Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | MOREIRA CAMILO | ||
| Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO FUNÇÃO JURISDICIONAL ÓNUS DA PROVA | ||
| Nº do Documento: | SJ200306170040321 | ||
| Data do Acordão: | 06/17/2003 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL ÉVORA | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 618/02 | ||
| Data: | 05/23/2002 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Sumário : | 1ª - Segundo o nº 4 do artigo 20º da CRP, todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. 2ª - No conceito de prazo razoável, deve atender-se à natureza do processo e suas dificuldades, às instâncias de recurso e às diligências a efectuar nesse processo. 3ª - Ultrapassado tal prazo razoável, competirá ao Estado alegar e provar que a demora na prolação da decisão não é imputável ao titular do órgão ou ao deficiente funcionamento dos serviços, para afastar a sua responsabilidade. 4ª - Se bem que, em princípio, os juízes não possam ser responsabilizados pelas suas decisões - artigo 216º, nº 2, da CRP -, nada obsta a que se opere a responsabilização do Estado pelos prejuízos causados aos particulares no exercício da função jurisdicional, nos termos do artigo 22º do mesmo diploma. 5ª - Sendo assim, tendo ocorrido a prescrição do procedimento criminal pelo facto de um processo-crime ter estado parado mais de dois anos e meio no Tribunal da Relação, onde aguardava decisão sobre o recurso apresentado por arguida que havia sido condenada, deverá o Estado ser condenado a pagar uma indemnização ao assistente (e filhos) a título de responsabilidade extracontratual. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I - No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, A, por si e na qualidade de representante legal de sua filha menor B, e C intentaram contra o Estado Português a presente acção, com processo ordinário, pedindo que, com a procedência da acção, seja o Réu condenado a pagar-lhes a quantia de 60.370.817$00 de indemnização, sendo 60.200.000$00 a título de danos não patrimoniais e 170.817$00 a título de danos patrimoniais sofridos. Para fundamentar a sua pretensão, invocam, em síntese, que D, mulher do Autor A e mãe dos demais Autores, faleceu em Évora, a 18.10.1985, em consequência de aborto provocado pela parteira E, que, para esconder o crime, escondeu o cadáver num lugar ermo, e que, tendo a referida E sido pronunciada em processo de querela como autora de um crime de aborto, previsto e punido pelo artigo 130º, nºs 2, 5 e 6, do Código Penal de 1982, e julgada e condenada não só pelo indicado crime, mas também por simulação de crime, após extracção de culpa tocante de outro processo, na pena unitária de quatro anos e seis meses de prisão e no pagamento de uma indemnização de 3.000.000$00, e juros, aos aqui Autores, o processo veio, após longas paragens, a ser apreciado e julgado no Tribunal da Relação de Évora em recurso no dia 11.03.1997, sendo ordenado o arquivamento dos autos por prescrição do procedimento criminal, declaração que equivale ao reconhecimento pelo Estado da sua incapacidade em exercer a acção penal, frustrando, deste modo, os direitos fundamentais dos Autores, o que lhes causou danos que quantificam. Em representação do Réu, contestou o Exmº Magistrado do Ministério Público, pugnando pela improcedência da acção. Houve réplica. Efectuado o julgamento, foi proferida a sentença, segundo a qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, se condenou o Réu a pagar aos Autores a quantia de 3.170.817$00, acrescida de juros às taxas legais, desde a citação e até integral cumprimento. Autores e Réu recorreram - os primeiros subordinadamente -, vindo os Autores a desistir da sua apelação. O Tribunal da Relação de Évora, em acórdão proferido, julgou procedente a apelação interposta pelo Réu, revogando a sentença recorrida e absolvendo o Estado do pedido contra si deduzido. Inconformados com tal decisão, dela vieram os Autores interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido. Os recorrentes apresentaram as suas alegações, formulando as seguintes conclusões: 1ª - O artigo 22º da C.R.P. consagra o princípio da responsabilidade directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos no exercício das suas funções, nelas se incluindo a função jurisdicional. A responsabilidade por facto da função jurisdicional pode resultar de acções ou omissões, materialmente indevidas, de que resulte lesão de direitos dos cidadãos. Na falta de lei concretizadora, o artigo 22º da C.R.P. é a norma directamente aplicável, cabendo aos juízes e aos tribunais criar uma norma de decisão tendente a assegurar a reparação dos danos resultantes dos actos lesivos de direitos, liberdades e garantias, ou de interesses juridicamente protegidos. 2ª - A gestão dos processos judiciais e dos serviços judiciais constitui actividade administrativa e integra-se em actos de gestão pública, sendo, pois, de concluir pela aplicação à Responsabilidade Extracontratual do Estado por Actos Ilícitos o DL 48051, de 21 de Novembro de 1967. 3ª - A existência de Responsabilidade Extracontratual por Factos Ilícitos depende do preenchimento dos requisitos constantes do artigo 483º do Código Civil. In casu, verificam-se preenchidos todos os requisitos, pelo que impende sobre o Estado a obrigação de indemnizar. O facto ilícito consubstancia-se na violação do artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e bem assim do artigo 20º, nº 4, da C.R.P., que garantem a decisão da causa num prazo razoável. E a culpa não é, nestes casos, imputada a um ou mais indivíduos, mas traduz-se antes numa "falta do serviço" - "um facto anónimo e colectivo de uma administração em geral mal gerida, de tal modo que é difícil descobrir os seus verdadeiros autores". 4ª - A nível de direito comparado é pacífica e unanimemente aceite a responsabilidade do Estado decorrente da função jurisdicional. 5ª - Deve ser revogada a decisão impugnada, mantendo-se, em consequência, a douta sentença de primeira instância, cujos fundamentos se invocam. Em contra-alegações, o recorrido defendeu a manutenção do acórdão recorrido. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. II - Nas instâncias, ficaram provados os seguintes factos: 1. O Autor A contraiu matrimónio, a 16 de Março de 1980, na Amieira, com D. 2. Na constância deste casamento, e filhos de ambos, nasceram os Autores C, a 9 de Outubro de 1980, e B, a 19 de Outubro de 1981. 3. A 17 de Outubro de 1985, faleceu D, esposa e mãe dos Autores. 4. A 14 de Abril de 1988, no processo nº 383-A/87, 1º Juízo e 2ª Secção, do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, E foi pronunciada em processo de querela como autora de um crime de aborto, previsto e punido pelo artigo 139º, nºs 2, 5 e 6, do Código Penal de 1982. 5. Ao processo supra referido foi, também, junta certidão de culpa tocante, extraída de um processo correccional que corria termos no Tribunal Judicial da Comarca de Portel, no qual a Ré estava acusada da prática de crimes de ocultação de cadáver e de simulação de crime, previstos e punidos pelos artigos 226º, nº 1, e 409º, nº 2, do dito diploma, em 18 de Abril de 1990. 6. O Autor A, na qualidade de viúvo da vítima dos crimes pelos quais E estava pronunciada, constituiu-se assistente nos autos supra mencionados a 2 de Fevereiro de 1990. 7. A 4 de Fevereiro de 1994, a arguida interpôs recurso do referido acórdão para o Tribunal da Relação de Évora. 8. A 28 de Abril de 1994, os autos foram expedidos do Tribunal Judicial de Évora para o Tribunal da Relação de Évora, no qual deram entrada no dia seguinte, tendo sido distribuídos a 3 de Maio de 1994. 9. No Tribunal da Relação de Évora, o recurso só viria a ser apreciado no dia 11 de Março de 1997. 10. Nesta data, os Exmºs Desembargadores proferiram acórdão, pelo qual julgaram extinto o procedimento criminal, por prescrição, de acordo com o disposto nos artigos 117º, nº 1, c), 120º, nºs 1, 2 e 3, e 119º, nºs 1, b), e 2, do Código Penal de 1982, e atendendo ao tempo decorrido desde o cometimento dos crimes e às penas aplicáveis. 11. Quando foi julgado o recurso interposto pela arguida da sentença condenatória contra si proferida, tinham decorrido 12 anos desde o cometimento dos crimes. 12. Desde a data em que o Estado teve conhecimento do cometimento dos crimes, de natureza pública - a 19 de Outubro de 1985, quando através da sua autoridade policial, GNR de Portel, foi lavrado o auto de notícia em que se relata o aparecimento do cadáver da esposa e mãe dos Autores - até à investigação criminal respectiva estar ultimada e a arguida E ter sido acusada pelo M.P. e pronunciada pelo juiz do tribunal que a viria a julgar, decorreram 2 anos e meio. 13. Desde a data da pronúncia - 14.04.1988 - até à data em que foi proferido o acórdão de 1ª instância - 24.01.1994 - que condenou a Ré decorreram mais 6 anos menos 3 meses. 14. Desde a prolação desse acórdão até o tribunal de recurso apreciar o mesmo, concluindo pela prescrição do procedimento criminal - 11.03.1997 - decorreram mais 3 anos e 2 meses. 15. O recurso foi distribuído a 03.05.1994 no Tribunal da Relação de Évora; a 3 de Junho de 1994, foram os autos respectivos conclusos ao Exmº Desembargador Relator; na mesma data foi proferido despacho, mandando dar vista ao Ministério Público. 16. A 16 de Junho de 1994, depois de, a 9 do mesmo mês, o Exmº Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação ter aposto o seu visto, foram novamente os autos conclusos ao Exmº Desembargador Relator, para exame preliminar. 17. Durante dois anos, seis meses e dois dias, o processo aguardou despacho do Exmº Desembargador Relator, até que, a 18 de Outubro de 1996, não tendo o processo sido despachado, foi cobrado, a fim de ser remetido à secção central, para redistribuição. 18. Redistribuído o processo a outro Exmº Desembargador Relator, ao qual foi aberta conclusão a 5 de Novembro de 1996, por este foi proferido despacho a 4 de Fevereiro de 1997, no sentido dos autos seguirem com vista aos Exmºs Desembargadores Adjuntos. 19. Depois de terem prosseguido os demais trâmites legais (vistas aos Exmºs Desembargadores-Adjuntos), o processo foi, finalmente, apreciado e julgado em recurso no dia 11 de Março de 1997, conforme acima se deixou escrito, sendo ordenado o arquivamento dos autos por prescrição do procedimento criminal. 20. No decurso do processo mencionado em 4., o Autor A fez longas e repetidas deslocações - de e para o tribunal, instalações de polícia, escritório do seu mandatário e outras conexas com o funeral. 21. Nas quais despendeu, em valores actualizados, quantia não inferior a 40.000$00. 22. Em virtude dessas mesmas deslocações, viu-se impedido de trabalhar por tempo que, globalmente, se calcula em 65 dias. 23. E perdeu retribuição não inferior a 130.817$00, em valores actuais. 24. Da morte da mãe e esposa dos Autores decorreu para estes profundo desgosto e pesar. 25. Esse sofrimento foi acrescido em virtude das particulares circunstâncias em que aquela morte ocorreu, nomeadamente o abandono de cadáver e a exposição mediática a que ficaram sujeitos. 26. O Autor A, à data da morte da esposa, ficou com os dois filhos menores a seu cargo, respectivamente, com 4 e 5 anos de idade. 27. O Autor A conduziu a esposa D ao consultório da parteira E. 28. Para que esta lhe fizesse um aborto. III - 1. Segundo o acórdão ora recorrido, o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP) não é aplicável ao caso em apreço, pois aponta apenas para a responsabilidade (do Estado e das demais entidades públicas) decorrente da função administrativa ou, pelo menos, não abrange a dos actos jurisdicionais ou de natureza penal, como a dos presentes autos. Desde logo, porque são aí colocados no mesmo plano tanto os funcionários, titulares de órgãos ou agentes do Estado, como os demais entes públicos, quando é certo que estes últimos, limitados como estão à actividade administrativa, não praticam, nem é possível que possam praticar, actos de natureza judicial no âmbito da acção penal - que é uma função exclusivamente cometida aos tribunais pelo próprio ordenamento constitucional. Dado o princípio da irresponsabilidade dos juízes pelos seus julgamentos, qualquer reparação na sequência do erro judiciário ou da função jurisdicional dolosa terá que ter sempre por base a prática de actos ou omissões lícitos que não cabem na previsão do citado artigo 22º. Outras razões concorrem para convencer (o acórdão recorrido segue o explanado no acórdão do S.T.A. de 09.10.1990 - BMJ 400º, pág. 387) que este preceito constitucional não abrange nem pode aplicar-se extensivamente à função jurisdicional. Com efeito, a própria Constituição prevê noutros preceitos a disciplina legal a aplicar especificamente a típicos actos jurisdicionais danosos, geradores de responsabilidades do Estado, em termos muito mais restritos e, porventura, até contrários aos estabelecidos no mencionado artigo 22º, o que seria incompreensível e desnecessário se toda a matéria se considerasse abrangida pelo princípio geral deste último preceito. É o caso das condenações injustas, provadas em revisão de sentença, nos termos da lei, e a prisão preventiva contra o disposto na Constituição e na lei, que não só geram para o lesado o direito à indemnização pelos danos sofridos, como constituem o Estado no correspondente dever indemnizatório, como expressamente estabelece o artigo 27º, nº 5, da CRP. 2. Por outro lado, também considera inaplicável o Decreto-Lei nº 48051, de 21.11.1967, particularmente o disposto no seu artigo 9º, nº 1, pois este diploma pretendeu regular a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública e atribuiu nova redacção ao artigo 815º, § 1º, alínea b), do Código Administrativo, o qual determinou a inclusão no âmbito do contencioso administrativo "os pedidos de indemnização feitos à administração relativamente aos danos decorrentes de actos de gestão pública". Do confronto desta norma com o artigo 1º do citado Decreto-Lei resulta claramente ter-se pretendido abranger apenas "actos de administração", com exclusão dos actos da função jurisdicional. Por um lado - refere o acórdão -, porque se faz alusão apenas a "pedidos feitos à administração, e nunca a função jurisdicional foi entendida como uma função substancialmente administrativa". Por outro lado, porque os actos judiciais propriamente ditos, praticados no âmbito da função jurisdicional, sempre estiveram excluídos do conceito e da natureza de "actos de gestão pública", desde que praticados no âmbito da ordem judicial, com meios próprios para os apreciar e julgar das suas consequências. No conceito de "administração" - acrescenta - não cabe o poder judicial, porque a administração tem como órgão superior o Governo, ao passo que o poder judicial é independente e soberano. Daí que os actos jurisdicionais não suportem a qualificação de "actos de gestão pública", devendo, por isso, concluir-se que a responsabilidade pelos actos dos magistrados no âmbito da sua jurisdição há-de encontrar cobertura legal noutros textos que não os do Decreto-Lei nº 48051. Com efeito, a consagração da responsabilidade do Estado, em certos casos, por actos de função jurisdicional (artigos 690º do CPP de 1929 - erro judiciário - e 1083º do CPC - peita, suborno ou concussão dos magistrados) exclui concomitantemente qualquer responsabilidade por situações não previstas em tais textos, pelo que não pode aplicar-se supletiva ou extensivamente o disposto no Decreto-Lei nº 48051. Cita o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no Parecer nº 12/92 (Pareceres , vol. I, págs. 481 e seguintes), segundo o qual não faria sentido, por um lado, que, não podendo os juízes, por força do artigo 218º, nº 2, da CRP (agora 216º, nº 2), ser responsabilizados pelas suas decisões, salvo nos casos excepcionais de condenação pela prática de crimes de peita, suborno, concussão ou prevaricação, de dolo, de imposição legal expressa de tal responsabilidade ou de denegação de justiça - artigo 1083º do CPC -, o artigo 22º da Constituição os responsabilizasse pelos danos decorrentes do exercício da sua actividade profissional em termos de solidariedade com o Estado. 3. Ainda segundo o acórdão impugnado, da análise das decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e da interpretação que vem sendo feita à respectiva Convenção, parece resultar que esta apenas contempla os feitos cíveis, não se aplicando aos feitos penais. Com efeito, o Estado é o único titular do "ius puniendi", não podendo os particulares, ainda que, por alguma forma, atingidos pela conduta criminosa, invocar a não punição do agente para fundamentar um pedido de indemnização civil dirigido contra o Estado. Os apelados teriam tido sempre a possibilidade de se terem socorrido da acção cível ou do enxerto cível no processo penal, instrumentos processuais que ficariam imunes à prescrição do procedimento criminal. Não tendo feito uso de tais mecanismos, não poderão, agora, direccionar contra o Estado o pedido indemnizatório que deveria ter sido direccionado contra a arguida do ilícito, tanto mais que não existe qualquer normativo legal que imponha, nesta sede, a obrigação de indemnizar, por não se aplicar à situação em apreço nem o artigo 22º da CRP, nem o regime do Decreto-Lei nº 48051 e tão pouco o disposto no artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. IV - 1. Desde já, diremos que o que aqui está em causa não é uma indemnização por qualquer ilícito penal cometido pela arguida no processo em que o procedimento criminal se extinguiu por prescrição, mas uma indemnização por danos resultantes da demora na apreciação do recurso e no desfecho desse recurso. Logo, não pode chamar-se aqui à colação - como o fez o acórdão recorrido - o facto de haver a possibilidade de os aqui recorrentes terem podido direccionar um pedido de indemnização contra aquela arguida. 2. Como se diz na sentença proferida na 1ª instância, é sabido que o Estado é responsável pelos danos que, na sua actividade (aqui se incluindo a responsabilidade por actos legislativos e jurisdicionais), causar aos particulares - no caso, responsabilidade civil extracontratual - pela prática de um facto lícito, pelo risco ou pela prática de facto ilícito culposo. A este respeito parece assente a doutrina e a jurisprudência que apontam para a vigência do Decreto-Lei nº 48051, de 21.11.1967 (Maria José Rangel de Mesquita, in "Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública" - Coord. Fausto de Quadros - Almedina - 1995, págs. 115-122), na medida em que este não contrarie os preceitos constitucionais ora em vigor, designadamente os artigos 20º e 22º da CRP. A responsabilidade do Estado por acto jurisdicional está em discussão (melhor se diria que muita gente pretende ver estabelecida a responsabilidade civil directa dos juízes), mas, enquanto a mesma não for regulamentada (Vídeo Gratia - Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais Direitos ... in Suj Júdice, 1992, nº 4 - Provas e Sinais, pág. 125), esses dois parâmetros de apreciação positiva imperarão. 3. Segundo o nº 4 do artigo 20º da CRP, "Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo". "O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem" - artigo 22º do mesmo diploma. "Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei" - artigo 216º, nº 2, também da CRP. Ora, como pode ler-se na aludida sentença - com a qual, adiantamos já, nesta parte estamos perfeitamente de acordo -, é questão discutível e discutida, mas entende-se que a previsão genérica do artigo 22º da CRP (abrangendo toda a Administração) não afasta a aplicabilidade daquela outra norma constitucional, pelo que, no caso concreto, e a apurar-se a obrigação de indemnizar do Estado, sempre haverá "faute du service" a fazer incidir a responsabilidade exclusivamente sobre o Estado, e exclusivamente na medida em que há que dar campo de aplicação definido a ambas as normas constitucionais e não esquecer a segunda - o artigo 216º, nº 2 - por conjunturais razões políticas que atentam contra a independência do poder judicial, sabido que a irresponsabilidade é pedra de toque dessa independência. Tal entendimento é o que nos permitem as normas vigentes, com apoio da doutrina e do próprio parecer da Assembleia da República acima citado, págs. 127 e 128, quando afirma: "... para assegurar a independência dos juízes, a regra é a sua irresponsabilidade". "A responsabilidade civil dos juízes surge assim num quadro de excepcionalidade e não pode, portanto, ser analogicamente comparada à dos funcionários públicos". "A função jurisdicional deve ser exercida com independência. E esta só é efectiva com a irresponsabilidade". Estamos aqui perante originais pensamentos que não impediram que a dita Comissão concluísse que haveria que alargar os casos de excepção contidos na previsão do artigo 216º da CRP, o que tudo redundará numa diminuição da esfera de independência dos juízes. Neste mesmo sentido aponta António Goucha Soares quando afirma que " ... o valor fulcral que se pretende tutelar é o da independência do poder judicial, o qual se considera ameaçado se os particulares puderem accionar directamente os magistrados pelas suas decisões" (cfr. "A Transformação do Poder Judicial e os Seus Limites", in Revista do Ministério Público, nº 82, pág. 66). 4. Uma situação como a dos presentes autos conduz-nos a considerar que estaremos perante um caso de responsabilidade extracontratual do Estado por factos ilícitos, desde que concorram todos os tradicionais pressupostos deste tipo de responsabilidade: o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Na responsabilidade extracontratual por factos ilícitos - artigo 483º, nº 1, do Código Civil - é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa - artigo 487º, nº 1, do mesmo diploma. No caso dos presentes autos, a culpa pode resultar de uma conduta negligente por inconsideração, imprevidência, imperícia ou falta de destreza, ou de uma violação de normas específicas a que o agente deveria atender. Tem-se entendido que a simples violação objectiva de uma norma ou princípio jurídico é suficiente para se considerar existente um comportamento ilícito gerador de responsabilidade civil, para se considerar preenchido o pressuposto "ilicitude" (cfr. João Aveiro Pereira, in "A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais", Coimbra Editora, 2001, pág. 120). Nesta mesma direcção parece seguir o Supremo Tribunal Administrativo, quando, no seu acórdão de 07.03.1989 (RLJ, ano 123º, págs. 293 e seguintes), aceita a existência da responsabilidade do Estado "dispensando a imputação" dos factos ilícitos culposos a um "comportamento individual" (culpa funcional dos serviços). Este acórdão é claro na afirmação da existência do facto ilícito, não pelo incumprimento do prazo legal para a prolação de sentença (pelo facto de tais prazos constituírem meras normas disciplinadoras da actividade processual), mas sim pela não prolação da mesma em "prazo razoável". Assim, e como bem se diz na sentença da 1ª instância - que, nesta parte, vimos seguindo de perto -, ultrapassado tal prazo razoável - porque provado nos autos -, competirá ao Estado alegar e provar que a demora na prolação da sentença não é imputável ao titular do órgão ou ao deficiente funcionamento dos serviços, para afastar a sua responsabilidade. Isto é assim por violação clara do disposto nos artigos 20º, nº 4, da CRP e 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, face à circunstância de a "causa não ter sido objecto de decisão em prazo razoável" (sobre o conceito de "prazo razoável", ver "Notas para um processo equitativo", Irineu Barreto, in Documentação e Direito Comparado, nº 49/50, pág. 69; Joaquim Loureiro, in Scientia Iuridica, Tomo XLV - 1996, pág. 85; Caso Martins Moreira contra Portugal, in Documentação e Direito Comparado, nº 33/34, pág. 412; e Caso Lechner e Hess contra Áustria, in Documentação e Direito Comparado, nº 35/36, pág. 63). 5. Na presente situação, e atento o conceito de "prazo razoável", no qual se deve ter em conta a natureza do processo e suas dificuldades, as instâncias de recurso e as diligências necessárias do mesmo processo, entendemos que foi longamente ultrapassado o dito "prazo razoável". Na verdade, sete anos (mesmo considerando apenas o período entre a constituição de assistente e o arquivamento) não são um prazo razoável. No caso em análise, nem sequer são alegados e provados factos integradores da culpa de qualquer magistrado, pois a culpa pode não caber ao magistrado a quem esteve distribuído o processo durante anos (referimo-nos ao Exmº Desembargador Relator na Relação de Évora) sem a prática de qualquer acto jurisdicional, sendo certo que foi esta omissão que conduziu à prescrição do procedimento criminal. Basta admitir a hipótese de doença sem substituição, por impossibilidade ou incapacidade dos serviços. De qualquer forma, e como resulta do já explanado, tal não obsta a que se opere a responsabilização do Estado. 6. O facto ilícito, aqui, é - como já se disse - a demora na conclusão do processo em prazo razoável, ou seja, a morosidade da justiça, não a morte da mulher e mãe dos Autores. Daí que os danos sejam os decorrentes da demora na decisão. Exige a lei que o nexo de causalidade entre o facto e o dano se estabeleça entre essa demora e os danos dele resultantes, não os danos que derivam da morte, pois que aí se não estabelece qualquer nexo de causalidade com o facto ilícito em equação nos presentes autos. A morte foi causada por facto ilícito criminal de terceiro, não pelo cumprimento deficiente de uma das funções do Estado. Daí que se tenha de afastar liminarmente, como se refere na sentença da 1ª instância, a possibilidade de ressarcir os alegados danos não patrimoniais sofridos com a morte da mulher e mãe dos Autores. Ainda segundo a sentença, os danos que são consequência da demora na decisão serão seguramente os patrimoniais causados pela pendência daquele processo, sendo adequado aceitar que os danos causados pela demora na prolação de decisão naquele processo sejam os resultantes da não operatividade da decisão de 1ª instância que, oficiosamente, arbitrou aos Autores uma indemnização de 3.000 contos. Será assim? 7. No processo em causa, não foi deduzido qualquer pedido cível, nem estávamos perante a apreciação de qualquer acusação que contra os aqui Autores tenha sido formulada. Trata-se apenas de apreciar a sua posição num processo cujo objecto é um crime público, no qual o aqui Autor A, por si e como representante de seus filhos menores, se constituiu assistente e onde lhe foi arbitrada, oficiosamente, uma indemnização cível que não peticionou. Tal situação não cabe na estrita literalidade do nº 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. No entanto, é, em nossa opinião, abrangida pela previsão do artigo 20º, nº 4, da CRP. Ora, segundo o artigo 562º do Código Civil, "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação". "A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão" - artigo 563º do mesmo diploma. "O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão" - artigo 564º, nº 1, do referido Código. Lendo a petição inicial, constata-se que os danos invocados pelos Autores são os resultantes de despesas do Autor A com deslocações a tribunal, instalações de polícia, escritório do mandatário, conexas com o funeral da vítima, de períodos de tempo sem trabalhar, além dos danos não patrimoniais, os quais, como já referimos, foram afastados pela própria sentença proferida na 1ª instância. Poderemos ser tentados a dizer que estes danos de natureza patrimonial não decorrem do ilícito praticado pelo Estado, nada tendo a ver com o facto de, face à paralisação do processo, ter sido proferida uma decisão a julgar extinto o procedimento criminal, sendo certo que já haviam ocorrido aquando da prolação dessa decisão, o que significa que não existirá o necessário nexo causal entre o acto ilícito e esses mesmos danos. Sendo assim, e apesar de se considerar que o Estado deve ser responsabilizado pela demora na administração da justiça, teríamos de concluir que não existem aqui danos a cujo ressarcimento os Autores tenham direito. Só que não poderemos deixar de atender a que havia fortes probabilidades de os aqui recorrentes poderem vir a receber a quantia de 3.000.000$00 arbitrada oficiosamente no processo-crime, pelo que a conduta negligente dos órgãos do Estado fez frustrar as expectativas que haviam sido criadas. Por outro lado, há que não esquecer o disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 566º do Código Civil, nos termos dos quais a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível e, se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. Antolha-se-nos, assim, que deveremos recorrer à equidade para estabelecer um quantum indemnizatório que possa de algum modo compensar os recorrentes pela morosidade da justiça, a qual conduziu à prescrição do procedimento criminal. Assim sendo, não nos repugna aceitar a verba arbitrada na 1ª instância - 3.170.817$00, a que corresponde o valor de € 15.81597 -, a que acrescerão os juros, às taxas legais, desde a citação até integral pagamento. V - Do exposto, podemos extrair as seguintes conclusões: 1ª - Segundo o nº 4 do artigo 20º da CRP, todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. 2ª - No conceito de prazo razoável, deve atender-se à natureza do processo e suas dificuldades, às instâncias de recurso e às diligências a efectuar nesse processo. 3ª - Ultrapassado tal prazo razoável, competirá ao Estado alegar e provar que a demora na prolação da decisão não é imputável ao titular do órgão ou ao deficiente funcionamento dos serviços, para afastar a sua responsabilidade. 4ª - Se bem que, em princípio, os juízes não possam ser responsabilizados pelas suas decisões - artigo 216º, nº 2, da CRP -, nada obsta a que se opere a responsabilização do Estado pelos prejuízos causados aos particulares no exercício da função jurisdicional, nos termos do artigo 22º do mesmo diploma. 5ª - Sendo assim, tendo ocorrido a prescrição do procedimento criminal pelo facto de um processo-crime ter estado parado mais de dois anos e meio no Tribunal da Relação, onde aguardava decisão sobre o recurso apresentado por arguida que havia sido condenada, deverá o Estado ser condenado a pagar uma indemnização ao assistente (e filhos) a título de responsabilidade extracontratual. VI - Nos termos expostos, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido, para subsistir o decidido na 1ª instância. Sem custas, por delas estar isento o recorrido - artigo 2º, nº 1, a), do Código das Custas Judiciais. Lisboa, 17 de Dezembro de 2003 Moreira Camilo Lopes Pinto Pinto Monteiro |