Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3366
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
Nº do Documento: SJ20071030033666
Data do Acordão: 10/30/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. Nos termos do art. 690º-A do Cód. de Proc. Civil, o apelante que impugne a decisão da matéria de facto em processos onde foi efectuado o registo áudeo, tem o encargo de nas alegações especificar os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios constantes dos autos ou do registo da prova, que considere determinantes da alteração pretendida.
II. A especificação dos concretos meios probatórios constantes da gravação deve ser acompanhada da indicação do local onde na agravação constam aqueles, com referência ao assinalado na acta, nos termos do art. 522º-C, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.
III. Porém a especificação referida nos números anteriores não tem de constar expressamente das conclusões das alegações, mas pode constar da parte restante das mesmas alegações, desde que haja nas conclusões uma remissão clara e perceptível para aquelas especificações, de modo a que o tribunal de recurso possa com segurança aperceber-se das delimitações do objecto do recurso.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A Associação AA – Amigos do Ambiente propôs a presente acção popular com processo ordinário, no 1ª Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, contra BB – Aproveitamentos de Resíduos, Lda. e contra CC-Aproveitamento de Resíduos, Lda., pedindo a condenação das rés na cessação imediato da sua actividade industrial, com encerramento para sempre dos seus estabelecimentos e ainda a pagar solidariamente a indemnização pelos danos ambientais causados no montante de 20.000.000$00.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
- A autora é uma associação ambiental, sem fins lucrativos, que visa a defesa do ambiente em geral e em especial do AA e da sua área envolvente, nos concelhos de Fafe e Guimarães.
- As rés dedicam-se à incineração de resíduos perigosos e de óleos usados, com estabelecimento no lugar de Agro, naquela área territorial.
- Desta actividade resulta a emissão de gases, cheiros e fumos, águas residuais que terminam no AA, emissão esta que prejudica a saúde pública, não tendo as rés licença para a tal actividade empresarial, além de as respectivas instalações também não estarem licenciadas, nem serem legalizáveis.
- Desde a instalação das rés no local, a qualidade da água do AA, dos recurso aquíferos e do ar têm-se degradado com prejuízos já verificados na saúde das pessoa do local.
Contestaram as rés, alegando, em síntese, impugnar grande parte da factualidade alegada, nomeadamente, a alegada actividade de queima de resíduos perigosos ou de óleos usados, a ausência de licença para a sua actividade e os danos alegados como causados pelas rés.
Ainda pedem a intervenção da DD Seguros, por ter sido contratado com esta o ressarcimento de eventuais danos que a actividade da ré CC possa provocar.
A autora opôs-se ao chamamento e este foi indeferido.
Replicou a autora em articulado que foi mandado desentranhar, por ilegal.
Mandada aperfeiçoar a petição inicial, apresentou a autora nova petição em que se precisou os factos alegado inicialmente, respondendo as rés impugnando os factos resultantes do aperfeiçoamento.
Saneado o processo, foi organizada a matéria assente e a base instrutória, realizando-se audiência de discussão e julgamento com decisão da matéria de facto.
Após alegações de direito da ré BB, foi proferida sentença que julgou improcedentes os pedidos.
Inconformada a autora, apelou, tendo este recurso sido julgado improcedente.
Mais uma vez inconformada, veio a autora interpor a presente revista em cujas alegações formulou conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritas.
A recorrida BB contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões da aqui recorrente se deduz que esta, para conhecer neste recurso, levanta as seguintes questões:
a) Nas alegações que a recorrente apresentou no seu recurso de apelação, onde impugnara a decisão da matéria de facto, foram cumpridas as prescrições do art. 690º-A, nºs 1 e 2 ?
b) Mesmo que essas prescrições não tenham sido observadas, incumbiria ao Tribunal da Relação convidar a recorrente a satisfazê-las, em obediência ao disposto no art. 690º, nº 4 ?
c) Os pedidos formulados pela autora deveriam ser julgados procedentes, mesmo que se considere apenas a matéria de facto dada por provada na 1ª instância ?

Mas antes de mais, há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por provada e que é a seguinte:
1. A A. é uma associação ambiental sem fins lucrativos, que visa a defesa do ambiente, em geral, e em especial a defesa do AA, da sua área envolvente, na parte territorial envolvente pertencente aos concelhos de Fafe e Guimarães;
2. Tal associação está legalmente constituída, por escritura lavrada a fls. 95 e 95, vº, do livro de escrituras diversas nº 434 –A , do Cartório Notarial de Fafe, em 4-11-98;
3. As descargas das águas dos estabelecimentos das rés terminam no AA;
4. Da actividade industrial exercida pelas rés resulta um cheiro característico da destilação do bagaço de uva;
5. As rés não têm licença da Câmara Municipal de Fafe da construção onde possuem instaladas as suas unidades industriais;
6. O AA apresentava alterações visíveis na flora e fauna macroscópica, nomeadamente, a não existência de trandescância ( vulgo lentilha de água ) e de insectos e o crescimento anormal de biomassa fixa nas rochas e raízes de plantas emersas, a partir do ponto de descarga referido no nº3 ;
7. A população tem vindo a fazer junto de entidades responsáveis várias queixas;
8. As RR, à data da propositura da acção laboravam dia e noite;
9. As RR. têm por actividade principal a produção de aguardentes e a BB actividade secundária de aproveitamento de resíduos de uva e do cacho;
10. Esta actividade secundária deixou de ser exercida desde há já cerca de um ano e meio, a contar da data da audiência de julgamento.

Vejamos agora cada uma das concretas questões acima elencadas como objecto deste recurso.

a) Nesta primeira questão defende a recorrente que no seu recurso de apelação devia ter sido reapreciada a decisão da matéria de facto, por ter cumprido os requisitos de que depende a impugnação daquela, nos termos do art. 690º-A, n 1 e 2.
Pensamos que a recorrente tem razão nesta pretensão.
A questão aqui em causa limita-se a saber se nas alegações de apelação onde for impugnada a decisão da matéria de facto e quando a prova tenha sido registada, a indicação dos concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados e a indicação dos concretos meios de prova, constantes dos autos que imponham decisão diversa sobre aqueles pontos da matéria de facto, deve ser efectuada nas conclusões das alegações, ou se se basta com a sua indicação nas alegações, embora nas conclusões se faça remissão para aquelas.
O douto acórdão recorrido, apoiando-se num acórdão deste Supremo concluiu que aquelas indicações têm de constar das conclusões do recurso e por isso absteve-se de reapreciar a decisão da matéria de facto que fora pedida na apelação.
E isto apesar de nas alegações se haver feito uma indicação pormenorizada dos depoimentos em que se alicerçou a pretendida alteração da decisão da matéria de facto, indicação essa onde se transcreveu os passos dos mesmos depoimentos que a apelante considerava mais relevantes para o fim pedido.
Também nas alegações foram indicados os pontos da base instrutória que se consideraram mal decididos e se indicou o sentido da decisão pretendida: provados alguns que haviam sido dados por não provados e integralmente provados outros cuja decisão censurada havia respondido restritivamente.
A publicação do Dec.-Lei nº 39/95 de 15/02 que regulou o registo da prova nos processos civis, veio permitir uma real impugnação da decisão da matéria de facto, nos recursos de apelação.
A reforma do Cód. de Proc. Civil introduzida pelos Dec.-Lei nº 329-A/95 de 12/12 e Dec.-Lei nº 180/96 de 25/09, veio alargar e reformular aquela possibilidade de impugnação da decisão da matéria de facto.
O Cód. de Proc. Civil que resultou daquela reforma, estipula no art. 690º-A os requisitos de que depende aquela impugnação.
Este dispositivo, veio a ser alterado pelo Dec.-Lei nº 183/2000 de 10/08, sendo a redacção resultante deste que está hoje em vigor.
Segundo o nº 1 deste art. 690º-A, quando se impugne a decisão da matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e b) quais os concretos meios de prova constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
E o seu nº 2 prescreve que no caso da al. b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do art. 522º-C.
Por seu lado, este nº 2 refere que quando haja registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento.
Todas estas prescrições foram observadas nas alegações da apelante no caso dos autos.
Porém, parte das referidas especificações não foram transcritas nas conclusões da apelante, mas apenas nestas foi feita referência às especificações efectuadas na parte anterior das alegações.
Assim, vê-se nas alegações da apelação constantes de fls. 622, vº dos autos, que a apelante enumera os quesitos da base instrutória que foram dados por não provados e precisa os quesitos que foram respondidos restritivamente, dizendo que a prova testemunhal e pericial produzida impunha a resposta positiva.
Depois a apelante faz uma análise dos depoimentos de várias das testemunhas com indicação do local onde constam os depoimentos, com referência às indicações constantes na acta em obediência ao nº 2 do art. 522º-C, fazendo mesmo uma transcrição das partes dos depoimentos que na sua opinião são mais relevantes para as respostas que pretende ver dadas.
Após esta indicação, especifica, a fls. 631, vº, os quesitos de que pretende alterar a resposta negativa para positiva com base nos depoimentos acabados de descrever.
A seguir especifica os quesitos cuja resposta restritiva pretende ver alterada para provado integralmente.
A seguir analisa o relatório da prova pericial, com indicação do local dos autos onde o mesmo consta e discute-o e interpreta-o, apontando-o também como fundamentando as respostas pretendidas.
Em seguida, nas conclusões que formula, começa por especificar, mais uma vez, os quesitos que pretende ver dados por provados e que haviam sido dados por não provados e especifica os que tendo sido respondidos restritivamente pretende ver respondidos integralmente provados, acrescentando que tal alteração se funda “nos depoimentos das testemunhas arroladas pela apelante gravados nas cassetes e transcritas supra nas alegações, bem como no relatório pericial.”
A seguir nas mesmas conclusões, a apelante faz uma resenha conclusiva sobre o valor dos depoimentos no sentido da alteração pretendida, referindo, mais de uma vez, “ os trechos e afirmações das testemunhas acima transcritos”.
Nos termos do art. 690º do Cód. de Proc. Civil, as alegações dos recorrentes devem terminar por uma indicação “sintética” dos fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da decisão que consiste nas suas conclusões.
Tal como decidiu o ac. STJ de 4-02-93, C.J./STJ, 1993, 1º-140, “as conclusões são proposições sintéticas que emanam do que se expôs e considerou ao longo das alegações. Sem a indicação concisa e clara dos fundamentos explanados e desenvolvidos nas alegações não há conclusões, o que é motivo para não receber o recurso”.
A referida formulação das conclusões, nos termos expostos, é essencial para se determinar o âmbito do recurso, delimitando os poderes de cognição do tribunal de recurso.
Porém, a natureza sintética ou resumida das conclusões se não harmoniza com a exigência que o douto acórdão faz de que além de deverem constar daquelas a especificação dos pontos da matéria de facto cuja decisão pretende ver alterada, também deverem constar os concretos meios probatórios constantes do processo ou do seu registo que imponham resposta diversa àquela matéria de facto, nomeadamente, quando é vasta a matéria probatória citada e numerosos os quesitos de cuja resposta se discorda.
No caso dos autos, atendendo a que a apelante fez uma transcrição longa de parte dos depoimentos das testemunhas, seria incompatível com a natureza sintética ou concisa das conclusões fazer repetir aqueles depoimentos na formulação das conclusões.
Além disso, a finalidade da formulação das conclusões: delimitar os poderes de cognição do tribunal de recurso, não exige tal especificação.
Terá, sim, a apelante de apontar os pontos da matéria de facto e os meios de prova com que fundamenta a alteração pretendida, mesmo que nas conclusões tais indicações não constem expressamente, mas desde que haja nas conclusões uma remissão clara e perceptível para a especificação que haja sido feita nas demais alegações, de modo a que o tribunal possa saber com segurança e precisão o objecto do recurso.
A exigência de que tais especificações constem das conclusões, além de, em nosso entender, ser contrária à natureza sintética e concisa daquelas, constitui um rigorismo formal que o actual código não permite, por violar o direito de acesso ao direito.
Com efeito, o próprio relatório do Dec.-Lei nº 329-A/95 citado refere que “o direito de acesso aos tribunais envolverá identicamente a eliminação de todos os obstáculos injustificados à obtenção de uma decisão de mérito, que opere a justa e definitiva composição do litígio, privilegiando-se, assim, claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma “.
Desta forma, não podia a Relação de Guimarães recusar-se a reapreciar a decisão da matéria de facto, como fez, pois os respectivos requisitos legais haviam sido observados pela recorrente.
Tendo o acórdão recorrido omitido essa decisão injustificadamente, violou o dever processual de decidir todas as questões que as partes hajam submetido à sua apreciação, previsto no art. 660º, nº 2 e no art. 684º.
Por isso, incorreu na nulidade prevista no art. 668º, nº 1 al. d), primeira parte.
Terá assim, de ser reformado tal acórdão, pela Relação de Guimarães, nos termos dos arts. 715º, nº 1, 726º e 731º, nº 2.
Com esta decisão, fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas na revista.

Pelo exposto, julga-se procedente a revista e, por isso, se anula o acórdão recorrido, ordenando-se a baixa do processo ao Tribunal recorrido, para a sua reforma, se possível pelo mesmos Juízes, nos termos do citado nº 2 do art. 731º.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 30 de Outubro de 2007.

João Camilo ( Relator )
Fonseca Ramos
Rui Maurício.