Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B674
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: VENDA JUDICIAL
REGISTO PREDIAL
INSCRIÇÃO
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
REGISTO DA HIPOTECA
REIVINDICAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
EXTINÇÃO DE DIREITOS
Nº do Documento: SJ200404150006747
Data do Acordão: 04/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4150/03
Data: 07/03/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A venda judicial não fica sujeita ao eventual e futuro arrependimento ou tardio despertar do titular inscrito que, citado nos termos e para os efeitos do artº. 119º, 1, do Código de Registo Predial, nada disse, não podendo este, em tais circunstâncias, invocar a presunção de propriedade derivada do registo (artº. 7º, CRP) como fundamento do direito de reivindicação a que se reporta o artº. 909º, 2, d), CPC.
2. A possibilidade de, em idênticas circunstâncias, dar sem efeito a venda judicial ao abrigo do citado artº. 909º, 2, d), CPC, como resultado de reivindicação fundamentada, já não na presunção derivada do registo, mas em usucapião, deve ser excluída se, sobre o prédio, existe um registo de inscrição de hipoteca em favor do exequente, porque, ao consentir no registo da penhora, como efeito de nada ter dito na sequência da citação, o titular inscrito reivindicante deixou actuar a garantia hipotecária que, em qualquer caso, sempre lhe seria oponível.
3. O direito do titular inscrito que, citado nos termos e para os efeitos do citado artº. 119º, 1, nada disse, extingue-se por efeito da venda judicial, se o acto da aquisição em favor daquele titular tem registo posterior ao da hipoteca, ou a posse dele, com as características necessárias à usucapião, se iniciou também posteriormente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" reivindicou, do casal constituído por B e C, a fracção autónoma G, do prédio em propriedade horizontal sito na rua de Santo António, ..., em Ponte Frielas;
disse que o adquiriu em hasta pública numa execução hipotecária movida pela "D, S.A.", contra "E, Lda.", e que registou a aquisição.
Os demandados contestaram e deduziram reconvenção, dizendo que adquiriram a fracção por efeito de sentença proferida em acção para execução específica de contrato-promessa de compra e venda que a ora demandada moveu à dita construtora, tendo registado a aquisição;
invocando a força de tal decisão, a usucapião, por efeito de posse de boa fé, iniciada em 1980, e a prioridade de registo, pediram que fosse declarado nulo o registo de aquisição em favor do autor.
A pedido deste, interveio na causa a "D, S.A.", que acompanhou a posição do chamante.
A acção foi julgada improcedente e procedente a reconvenção.
A Relação de Lisboa, no recurso que lhe levou o autor, inverteu o sentido daquela decisão, dando total ganho de causa ao recorrente, e fê-lo, fundamentalmente, com base na prioridade do registo da hipoteca e no inerente direito de sequela.
É, agora, a vez dos demandados, que pedem revista com o fundamento de que gozam do efeito da prioridade do registo, consagrado no artº. 6º, CRP (1).
Os recorridos alegaram.

2. São os seguintes os factos provados, com interesse para a decisão:
- no dia 12 de Julho de 1994, no âmbito da carta precatória na 239/94, do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Loures, desentranhada do processo de execução ordinária nº. 10.617 intentada por "D, S.A." contra "E, Lda.", e que, instaurada em 28.07.82, correu termos na 1ª secção do então 4º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, foi arrematada em hasta pública, pelo autor, a fracção autónoma designada pela letra G, correspondente ao 3º andar direito do prédio urbano sito na actualmente denominada Rua de Santo António, nº ..., Ponte de Frielas, e hoje inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santo António dos Cavaleiros sob o artº. 489 e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Loures, sob a ficha 00597/950614-G;
- pela apresentação 17/940803, encontra-se inscrita sobre a referida descrição predial, a aquisição, a favor do autor, por arrematação judicial, da fracção autónoma identificada, sendo sujeito passivo "E, Lda.";
- pela apresentação 03/860528 e sob a cota G-2, encontra-se inscrito sobre a mesma descrição predial, o seguinte facto: "Decisão judicial, em que é autora B casada com C, na comunhão de adquiridos, Urbanização da Tourinha, Lote ..., Rua de Santo António, nº. ..., 3º dtº, Ponte de Frielas, Loures, e ré, "E, Lda." - Parte dispositiva: transferência do direito de propriedade para a autora";
- a penhora efectuada no referido processo de execução foi realizada em 29.06.90 e regista em 16.11.90, como provisória por natureza, por não ser a executada, mas, sim, B a titular inscrita;
- naquelas datas, incidiam, sobre a mesma descrição predial, três registos de inscrição de hipoteca voluntária em favor de "D, S.A.", para garantia de empréstimos à, então, titular inscrita "E, Lda.", de 6.000.000$00, 630.000$00 e 3.000.000$00;
- no mesmo processo de execução, foi ordenada a citação da titular do registo de aquisição vigente à data da penhora, B, nos termos e para os efeitos do artº. 119º, CRP, tendo aquele registo sido, depois, convertido em definitivo.

3. Quando a execução foi instaurada, vigoravam, sobre a descrição predial correspondente à fracção autónoma em causa, dois registos de inscrição compatíveis, um, mais antigo, de aquisição em favor da executada "E, Lda.", e outro, de hipoteca para garantia do crédito do exequente "D, S.A." sobre a mesma executada.
À data da nomeação à penhora, já tinha sido registada a sentença que determinou a execução específica do contrato-promessa de compra e venda realizado entre a ré B e a dita "E, Lda.", ali executada.
Por tal motivo, a execução sobre tal bem devia ter sido dirigida directamente contra aquela mesma titular, nos termos do artº. 56º, 2, CPC (2), sem prejuízo da demanda, já em curso, da própria devedora.
Não foi feito assim.
A penhora foi admitida como sendo de bem da própria executada ("E, Lda."), e o jeito de tornear o obstáculo da existência de um registo de inscrição em nome de pessoa diversa foi cumprir o artº. 119º, 1, CRP, para que a titular inscrita declarasse se a fracção penhorada lhe pertencia.
Ora, apesar de não estar documentada nos autos a reacção da citada (nem, tão pouco, a realização do acto), está, porém, que, na sequência daquela ordem de citação, o registo da penhora passou de provisório por natureza a definitivo, o que traduz ou um silêncio da citada, tal como, sem oposição, o interveniente "D, S.A." alega ter sucedido, ou a expressa declaração de que o bem lhe não pertencia (hipótese esta de todo improvável, face às circunstâncias).
A execução continuou a correr, portanto, apenas contra a primitiva executada ("E, Lda.") e sobre um prédio que supostamente lhe pertencia, e continuou bem, porque a não oposição da titular inscrita à citação que lhe foi feita, nos termos e para os efeitos do artº. 119º, CRP, regularizou os posteriores procedimentos executivos.
Só que a qualidade de demandado em processo executivo é completamente diferente da de simples interveniente ocasional para efeitos de declarar se o bem penhorado lhe pertence ou não.
Na qualidade de executada, a aqui ré/recorrente teria, pelo menos em teoria, ao seu dispor todo o arsenal defensivo que a lei concede ao demandado numa acção executiva. Poderia, p. ex., por em causa o título executivo, e exercer todos os direitos de defesa, instrumentais ou materiais, ao dispor de um demandado num processo declaratório (artº. 815º, 1, CPC); poderia, também, deduzir oposição à penhora (artº. 863º-A, CPC); poderia, enfim, acompanhar o processo do princípio até ao fim, exercendo oportunamente os direitos processuais inerentes, de modo a acautelar uma venda nas melhores condições possíveis.
A intervenção acidental nos termos do artº. 119º, CRP apenas proporciona a emissão de uma declaração (de que o prédio penhorado pertence ou não pertence ao declarante citado) e nada mais.
Em todo o caso, é uma declaração que, na perspectiva do interesse fundamental da pessoa cujo património foi atacado por um acto de execução, tem a enorme vantagem de, pelo simples facto de ser produzida, isto é, sem necessidade de mais alegação e prova, sem os trabalhos pesados próprios da dedução e prova dos embargos, paralisar aquele acto e os que lhe sucederam.
Basta, com efeito, ao titular inscrito fazer uma simples declaração de que o prédio lhe pertence efectivamente para, sem mais diligências, o juiz ter de suspender a execução quanto àquele bem e remeter os interessados para os meios processuais comuns (cfr. artº. 119º, citado, e seu nº. 4).
Este artº. 119º visa assegurar o princípio fundamental do trato sucessivo, definido e regulamentado nos artº. 34º e 35º, CRP.
O princípio do trato sucessivo significa que nenhum registo definitivo de inscrição de transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre os bens pode ser efectuado sem que haja uma inscrição prévia em nome do transmitente ou do sujeito passivo do encargo, de modo a formar-se uma cadeia ininterrupta de transmissões.
Quando a penhora sobrecarrega um bem e o último registo predial de aquisição desse bem não figura em nome do executado, torna-se necessário, para evitar a quebra ou interrupção da cadeia de transmissões (pois a penhora é um preliminar da venda judicial), ouvir o titular inscrito.
Se este se não opõe, ou, o que é mesmo, nada diz, o registo da penhora, de meramente provisório, passa a definitivo, a venda judicial pode ser feita com legitimidade e o seu posterior registo será um elo mais de uma cadeia regular de inscrições.
A penhora passará a ser oponível àquele titular inscrito, precisamente porque, expressa ou tacitamente, a ela se não opôs.
A venda judicial não ficará sujeita a um eventual e futuro arrependimento ou tardio despertar daquele mesmo titular inscrito, ao qual, nessas circunstâncias, estará vedado invocar a presunção de propriedade derivada do registo (artº. 7º, CRP) como fundamento do direito de reivindicação a que se reporta o artº. 909º, 2, d), CPC.
Esta é a natural, e legal, consequência de nada se ter passado à revelia do titular e à margem da situação tabular, e de tudo ter sido realizado de acordo com a vontade real ou presumida daquele, de acordo com a vontade real ou presumida de que o encargo (a penhora) se registasse.
A possibilidade de dar sem efeito a venda judicial ao abrigo do citado artº. 909º, 2, d), CPC, como efeito de reivindicação fundamentada, já não na presunção derivada do registo, mas em usucapião, deve, por outro lado, ser arredada porque, ao consentir no registo da penhora, a ré/recorrente deixou actuar a garantia hipotecária que, em qualquer caso, sempre lhe seria oponível.
Acresce o princípio da eficácia extintiva da venda executiva, consagrada no artº. 824º, CC.
Segundo o nº. 2, daquele artigo de lei, os bens vendidos em execução "são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo".
Após a venda em execução, fica definitivamente vedada a reivindicação do bem alienado, com base num direito que, no entretanto, se extinguiu por efeito daquela mesma alienação forçada.
Ora, como se viu, o registo da execução específica do contrato-promessa é posterior ao da hipoteca; por outro lado, a alegada posse sobre a fracção teve início (1980) em data também posterior ao registo da hipoteca.
Por isso, aquele direito (quer se considere a via derivada de aquisição, quer a via originária) foi, inelutavelmente, atingido pelo efeito extintivo da venda judicial.

4. Por todo o exposto, negam a revista.
Custas pela recorrente

Lisboa, 15 de Abril de 2004
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo Barros
___________
(1) Código do Registo Predial.
(2) Código de Processo Civil.