Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | FERNANDES CADILHA | ||
| Descritores: | PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA PRESUNÇÃO JUDICIAL DESPEDIMENTO ILÍCITO | ||
| Nº do Documento: | SJ200703010041924 | ||
| Data do Acordão: | 03/01/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Sumário : | O Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar a decisão da Relação, que, no uso dos seus poderes de fixação dos factos materiais da causa, suprimiu um facto tido como adquirido, em primeira instância, por simples presunção judicial. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça 1. Relatório. AA, intentou a presente acção emergente de contrato de trabalho contra BB – Distribuição Alimentar, S. A., pedindo que seja declarada a ilicitude do seu despedimento e a ré condenada a reintegrá-la no seu posto de trabalho ou a pagar-lhe uma indemnização substitutiva, e, bem assim, a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde o despedimento e uma indemnização por danos não patrimoniais. Reclamou ainda, por referência à relação laboral que existiu entre as partes, as diferenças salariais entre a retribuição de operadora de supermercado e a correspondente a chefe de secção, que considera ser-lhe devida. Em primeira instância, a acção foi julgada totalmente improcedente e a ré absolvida dos pedidos. Em apelação, o Tribunal da Relação de Lisboa anulou a sentença na parte respeitante às diferenças salariais e ordenou a repetição do julgamento em vista a eliminar a contradição existente no âmbito da correspondente matéria de facto; e, no tocante à impugnação do despedimento, revogou a sentença e declarou ilícito o despedimento, por considerar que o juiz de primeira instância não poderia ter dado como provado, ainda que com fundamento em presunção judicial, o facto - a apropriação indevida de mercadoria - que foi qualificado como justa de causa de despedimento. É contra a decisão proferida quanto a este último aspecto que a ré empregadora agora se insurge, mediante recurso de revista, em que formula as seguintes conclusões: 1. A matéria de facto provada em 1.ª instância permite concluir que foi a Autora quem colocou mais peixe dentro do saco, após a pesagem pela colega e que o fez com o fim de se apropriar ilicitamente dessa quantidade, constituindo tal conduta justa causa de despedimento. 2. Ao revogar a douta sentença e julgar procedente a presente acção, a Relação violou o artigo 396.° do Código do Trabalho. Na sua contra-alegação, a autora, ora recorrida, defendeu a manutenção do julgado, invocando não haver prova bastante quanto à factualidade que determinou o despedimento. E é esse ainda o entendimento da Exma Procuradora-geral adjunta, que emitiu parecer no sentido de ser negada a revista. Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir. 2. Matéria de facto. A sentença de primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto, que a Relação aceitou: 1º A autora trabalhou por conta, sob as ordens e direcção da ré de 2 de Fevereiro de 1986 a 16 de Julho de 2004. 2°. Tinha a categoria profissional de operadora especializada, e auferia a remuneração mensal de Euros 540,00, acrescida de subsídio de alimentação no valor de Euros 4,39/dia e subsídio de feriado no valor de € 49,92. 3°. A autora é sócia do CESP-Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal. 4°. A autora prestava serviço na loja de Carnaxide. 5°. Por carta datada de 16 de Julho de 2004, a ré veio a despedir a autora. 6°. Despedimento precedido de processo disciplinar, com tentativa de entrega de Nota de Culpa, incluindo em mão por parte da ré, que a autora recusou receber. 7°. A autora padece de epilepsia, como é do conhecimento da ré. 8°. Chamada ao escritório da ré, em Carnaxide, para tomar conhecimento do processo disciplinar, a autora, nervosa, recusou-se a assinar e receber a nota de culpa. 9°. A 25.06.2004, é convocada pela ré para se apresentar na DRH nos escritórios centrais, no dia 29 de Junho pelas 9:00. 10°. Nesse dia, a ré pretendeu entregar à autora a Decisão final do processo disciplinar, de despedimento. 11°. A autora ficou bastante perturbada, desmaiou, e foi chamada a ambulância do INEM ao local. 12°. A decisão final de aplicação da sanção disciplinar de despedimento viria a ser entregue à autora, em mão, no dia 16 de Julho de 2004. 13°. No dia 20 de Janeiro de 2004, a autora prestava o seu trabalho, como habitualmente, na Secção de Peixaria da Loja BB em Carnaxide. 14°. Nesse dia, a autora adquiriu carapau para consumo próprio. 15°. Seguindo as normas da ré, solicitou à Srª. .... que procedesse à pesagem dos carapaus. 16°. A balança registou o peso de 1,002 Kgr, correspondente ao valor de € 3,99. 17°. E seria essa a importância que, no final, a ré exigiu que a autora pagasse. 18°. Por razões de serviço, a autora arranjou os carapaus algum tempo depois da pesagem, a meio da manhã, quando lá se encontravam as colegas .. e... 19°: Após essa operação, colocou os carapaus no balcão frigorífico, para à hora do almoço, os transportar para casa. 20°- A saída, a autora pretendeu registar os carapaus no balcão de recepção, como é habitual para os trabalhadores. 21°- Lá chegada, a D...., empregada da ré, disse à A. que iria proceder ao registo dos carapaus não no balcão da recepção, mas numa das caixas registadoras destinadas aos clientes. 22°- Efectuada a pesagem, o saco dos carapaus pesava 1 kg e 200 gramas. 23°- Posteriormente a pedido da D. ...., Gerente de Loja, a empregada da ré .. voltou a pesar o saco com os carapaus da autora na balança da peixaria, tendo confirmado que este pesava 1 kg e 200 gr. 24°- Desde data não apurada e até Dezembro de 2003, a autora era responsável pela Secção de Peixaria, que na terminologia interna a ré designava de chefe de secção. 25°- Enquanto responsável pela Secção, a Arguida desempenhava as seguintes funções: elaborava os horários da secção; participava nas reuniões dos responsáveis de Secção; era responsável pelo controlo e rotação de stocks, entre outras. 26°- A ré nunca lhe atribuiu a categoria profissional e remuneração correspondente a chefe de secção. 27°- A autora, por vezes tem comportamentos carregados de emotividade. 28°- A autora nunca foi alvo de processo disciplinar. 29°- A autora era uma funcionária trabalhadora. 30°- A ré pagou à autora as remunerações sempre correspondentes à categoria de Operadora Especializada. 31°- Os factos em causa nos autos, chegaram ao conhecimento do superior hierárquico com competência disciplinar, a Drª ..., em 29 de Março de 2004, via intra-mail, conforme comunicação disciplinar, elaborada pela Dr.ª ..., jurista da DRH, que tem por função, entre outras, recepcionar das lojas as participações. 32°- A Ré integra na sua estrutura mais de 170 lojas, espalhadas pelo país, as quais comportam os serviços essenciais à sua laboração, dependendo de um amplo leque de outros serviços que são prestados a partir dos escritórios centrais de Lisboa, dentre os quais os serviços inerentes aos Recursos Humanos, cujo Director é quem tem a competência do foro disciplinar. 33°. Cada grupo de lojas geograficamente considerado tem o respectivo supervisor, denominado District Manager, o qual vai tomando conhecimento das situações que vão ocorrendo nas várias lojas pelas quais é responsável, reportando, de seguida, ao Director do departamento a que cada situação respeite. 34°. À data dos factos, era directora de recursos humanos a Dr.ª .., a qual, acto contínuo a ter conhecimento dos mesmos, determinou a instauração do respectivo processo disciplinar, nomeando os seus instrutores - despacho de 29 de Março de 2004. 35°. A Nota de Culpa foi enviada à autora em 26 de Abril de 2004, em correio registado e com aviso de recepção, sem que tenha sido reclamada nos correios, conforme doc. de fls 101 a 107. 36°. Pelo que a Autora foi chamada pelo seu gerente - gerente da loja de Carnaxide - para lhe ser dado directo conhecimento do conteúdo da Nota de Culpa. 37°. Tendo aquela recusado tomar posse da mesma, do que foram testemunhas, para além do gerente, Sr. .., duas outras funcionárias da Ré, ... e ..., o que ocorreu em data incerta entre 26 de Maio de 2004 e os princípios de Junho de 2004. 38°. A Autora não apresentou resposta à Nota de Culpa, nem requereu qualquer diligência probatória. 39°. No que respeita à entrega da decisão final, foi solicitado ao gerente da Autora, no dia 25 de Junho, que solicitasse a comparência desta nos escritórios centrais da Ré, sitos na Rua ..., no dia 29 de Junho. 40°. A Autora compareceu no dia aprazado, tendo-lhe sido dado conhecimento do sentido da decisão final, ou seja, do despedimento. 41°. O que provocou na Autora uma reacção inerente ao seu problema de saúde, motivando o recurso ao INEM. 42°. Por tal motivo, não tendo sido possível a notificação da decisão nesta altura, a Autora apenas tomou posse da decisão final, assinando o documento, no dia 17 de Julho de 2004. 43°. Segundo as normas da Ré, sempre que um trabalhador pretende adquirir quaisquer produtos da secção onde exerce a sua actividade, devem ser os chefes dessa secção a verificar as quantidades desse produto, rubricando o respectivo talão. 44°. A data a chefe de secção de peixaria era a Sr.ª .., a qual procedeu à pesagem dos carapaus. 45°. A autora procedeu depois ao arranjo dos carapaus retirando as guelras e as tripas. 46°. Face ao facto de o volume do saco transparente no qual a Autora fazia transportar os carapaus lhe parecer superior, relativamente ao volume apresentado aquando da pesagem referida acima, a Srª voltou a pesar os carapaus na balança da peixaria, os quais apresentaram o peso de 1,200 quilogramas. 47°. Os carapaus que haviam pesado 1,002 Kg, uma vez amanhados, deveriam pesar cerca de 800/850 gramas. 48°- Em consequência de tal constatação, a D.ª ..informou do sucedido a Sr. ..., adjunta de gerente de loja, que, por sua vez, informou a Sr.ª .... 49°. Como é na caixa registadora da recepção que os funcionários registam as suas compras, mas nesta não existe uma balança que pudesse confirmar ou desmentir a informação que lhe havia sido prestada, a Sr.ª ...procedeu a verificação do peso nas caixas registadoras de clientes. 50°- Da situação foi apresentada queixa na Polícia de Segurança Pública. 51°- A Autora foi alvo de uma queixa por parte de clientes, sem consequência disciplinar. 52°- A secção de peixaria apresentava "quebras" significativas, incluindo no tempo em que autora dirigia a secção. 53°- A autora era pessoa com personalidade e maneira de estar inconstante, por vezes exaltando-se com facilidade. 54°- As balanças do estabelecimento da ré são verificadas por um funcionário da Câmara Municipal, em sistema de manutenção normal, ou extraordinária a pedido da ré. 55°- As balanças da ré, foram analisadas, em rotina normal - a chamada "Verificação Metrológica" - nos dias 22, 23 e 26 de Janeiro de 2004. 56°. Não foi assinalado qualquer reparo às balanças da ré no espaço respectivo e reservado às observações, incluindo as da secção de peixaria} de Marca Bizerba e de referência SW400 , às quais foi aposto o respectivo selo de verificação, que é atribuído em situações de regularidade das balanças na sua verificação metrológica, conforme documento de fls 131 e seg. 57°- A estrutura dos estabelecimentos da ré encontra-se dividida exclusivamente em duas secções: secção de Perecíveis e Secção de Não perecíveis. 58°. Dada a sua natureza particularmente sensível para a actividade da Ré, a Secção de Perecíveis é chefiada pelo Gerente de Loja, e a Secção de Não Perecíveis é chefiada pelo Adjunto de loja. 59°- A autora, à data dos factos, tinha como superior hierárquico a Sr.ª ..., que a veio substituir na "chefia" da secção, por a ré entender que a autora, atento o seu perfil e "quebras", não se adequava ao cargo. 3. Fundamentação de direito. A sentença de primeira instância, partindo dos factos apurados (n.ºs 46º e 47º da decisão de facto) e de outras considerações atinentes ao ónus afirmatório que deveria incumbir à autora (não alegou que a introdução do peixe no saco fora praticado por outras colegas, nem que se tivesse ausentado entre o momento da pesagem e aquele em que pretendeu sair do estabelecimento), veio a concluir, já na fase de enquadramento jurídico dos factos, e em vista a determinar a existência da justa causa de despedimento, que havia sido a autora “que colocou mais peixe dentro do saco, após a pesagem efectuada pela colega”. E, nesses termos, considerou que o comportamento imputável à trabalhadora representava uma clara violação do dever de lealdade para com a entidade patronal e inviabilizava a manutenção da relação laboral, integrando justa causa de despedimento. A Relação entendeu, porém, que, “não tendo sido dado como provado que foi a Autora que colocou no saco mais peixe do que aquele que havia sido pesado pela responsável pela peixaria, não pode tal facto ser considerado na fundamentação jurídica, pelo que terá de ser julgada improcedente a justa causa invocada para o despedimento”. É contra esta decisão que a ré, ora recorrente, se insurge, alegando, no essencial, que a matéria de facto provada em 1.ª instância permite concluir que foi a Autora que introduziu na embalagem a quantidade de mercadoria que excedia o peso etiquetado. Parece claro que a sentença, já na fase de fundamentação jurídica, aditou um novo facto àqueles que constavam da materialidade que havia sido dada como assente, e fê-lo por presunção judicial, partindo de outros factos já apurados e da inexistência de outros elementos factuais que pudessem excluir a responsabilidade da autora. É indiferente que esse novo facto tenha sido dado como adquirido para o processo, não no momento próprio em que se efectuou a discriminação dos factos provados, mas no momento que o juiz designou de “enquadramento jurídico”, e que era suposto destinar-se apenas a interpretar e aplicar as correspondentes normas jurídicas. O ponto é que através de um processo de dedução lógica, o juiz chegou, não a uma mera consideração de direito, mas antes a uma certa ilação de facto – a de que foi afinal a autora que colocou no saco a quantidade excedente de peixe. E só porque chegou a este resultado probatório é que considerou verificada, já em sede de direito, a justa causa de despedimento, porquanto foi esse novo facto que foi qualificado juridicamente como constituindo violação do dever de lealdade para com a entidade patronal. A Relação, utilizando os poderes de que dispõe na fixação dos factos materiais da causa, limitou-se, por seu turno, a eliminar esse facto, por considerar que ele não poderia ser extraído por simples presunção judicial, visto que os factos apurados tanto poderiam conduzir a essa conclusão como a uma conclusão contrária. É entendimento pacífico que a Relação, conhecendo de facto, pode extrair dos factos materiais provados as ilações que deles sejam decorrência lógica (cfr. acórdãos do STJ de 10 de Fevereiro de 1998, Processo n.º 709/97, de 26 de Março de 1998, Processo n.º 931/97, de 24 de Abril de 1998, Processo n.º 931/97). Por analogia de situação, a Relação pode igualmente sindicar as presunções judiciais tiradas pela primeira instância pelo que respeita a saber se tais ilações alteram ou não os factos provados e se são ou não consequência lógica dos factos apurados. Em qualquer dos casos, a Relação intervém aí na fixação da matéria de facto, actividade que não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, a menos que ocorra algum dos erros de direito a que se refere o artigo 722º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e que, no caso, não vêm sequer invocados. O Supremo, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil), e só excepcionalmente pode apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação, o que sucede se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2, e 729º, n.º 2, do Código de Processo Civil). A fixação dos factos materiais da causa baseada em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede, pois, o âmbito do recurso de revista. As presunções judiciais são um dos meios de que as instâncias se podem servir para estabelecer os factos da causa. Ao Supremo apenas cabe indagar, por ser uma questão de direito, se é ou não admissível a utilização das referidas presunções, face ao disposto no artigo 351º do Código Civil. Isto é, ao tribunal de revista apenas cabe determinar se um determinado facto poderá ser tido como provado com base em mera ilação ou se, no caso, se exige um grau superior de segurança na prova (acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 2005, Processo n.º 3853/05) . No caso concreto, estamos perante matéria factual que pode ser estabelecida por livre convicção do julgador, nada obstando que o tribunal de primeira instância pudesse também recorrer à presunção judicial. Todavia, a decisão da Relação de suprimir um facto que fora extraído por mera ilação, por considerar que não existe um suficiente grau de probabilidade, porque se insere ainda no domínio da prova livre, não é sindicável pelo Supremo. Por outro lado, não se encontrando provado que fora a Autora a responsável pela introdução na embalagem da mercadoria que excedia o peso constante da etiqueta, não poderá considerar-se verificada a justa causa de despedimento, que assentava essencialmente nesse facto. 4. Decisão Em face do exposto, acordam em negar a revista e confirmar a decisão recorrida. Custas pela recorrente. Lisboa, 1 de Março de 2007 Carlos Cadilha( relator) Mário Pereira Maria Laura Leonardo |