Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A2680
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: DENÚNCIA DE CRIME
OFENSAS À HONRA
COLISÃO DE DIREITOS
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: SJ20081218026801
Data do Acordão: 12/18/2008
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA DOS RÉUS E NEGADA A REVISTA DO AUTOR
Sumário :
1) Toda a participação criminal dirigida contra pessoa certa contém, objectivamente, ainda que a nível de suspeita sustentada por argumentos meramente indiciários, uma ofensa à honra e consideração do denunciado, por se traduzir na imputação de factos penalmente ilícitos.
2) O acesso aos tribunais para fazer valer um direito é constitucionalmente garantido, e o direito de participar criminalmente pode, em certos casos constituir um dever cujo incumprimento será, por si, a comissão de um ilícito penal. Mas a participação não pode ser feita com a consciência da falsidade da imputação ou é crime de denúncia caluniosa.
3) No crime de denúncia caluniosa os interesses protegidos pela incriminação são a administração da justiça, a não ser perturbada por impulsos inúteis e infundados e dos acusados a serem protegidos contra imputações falsas e temerárias lesivas da sua honra.
Trata-se de um crime doloso, inadmitindo, sequer, o dado eventual como elemento subjectivo.
4) Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como “iter” de acesso á justiça e aos tribunais.
5) Na colisão de direitos, que são desiguais, deve prevalecer o considerado superior.
6) Com princípio, o direito de denúncia prevalece notoriamente nos casos de denúncia vinculada (ou denúncia-dever funcional) e, em geral, porque como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de Direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos.
7) Para além da denúncia caluniosa, são restrições a linguagem ofensiva do texto (que não se limite à narração de factos mas lance epítetos ou emite juízos de valor sobre o denunciado) que, por si, pode ofender a honra, mas não esquecendo o princípio da necessidade do n.º 2 do artigo 154º do CPC, sendo que, no mais (dever geral de diligência), deve ser feita uma avaliação casuística na ponderação do tipo de crime, na complexidade, sofisticação, necessidade de perícia e putativos agentes, que pode servir de critério para avaliar da grosseira leviandade da denúncia.
8) O regular – ressalvando situações de abuso e de actividades perigosas – exercício do direito exclui a ilicitude (é causa de justificação) como pressuposto da responsabilidade civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

AA, intentou acção com processo ordinário contra Imobiliária Construtora BB, S.A, CC, e DD, pedindo a sua condenação a pagar-lhe uma indemnização no valor de 500.000,00 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação até integral pagamento.

Alegou, em síntese, que os 2° e 3 RR. são administradores da 1.ª R., sendo a 3.ª R. a Presidente do Conselho de Administração; que desde 1986 a 1998, foi Fiscal Único e Presidente do Conselho Fiscal da 1.ª R; em 1998 foi também Auditor Externo da mesma sociedade; que na sequência da análise às contas da 1.ª R. do ano de 1998 e em estrita obediência aos critérios legais, teria de emitir Certificação Legal de Contas com parecer adverso e foi o que fez; que os RR. pressionaram-no para alterar o parecer adverso, mas não o fez; que os RR. prestaram declarações aos jornais afirmando falsamente que o A. não tinha feito a certificação legal de contas e dando a conhecer o teor de denúncia caluniosa que tinham efectuado contra o A.; os RR. acusaram o A. de ter emitido parecer falso e de ter recebido dinheiro de um grupo de accionistas para o fazer, visando baixar o valor das acções; que os RR. sabiam que as suas afirmações eram falsas, fazendo-o apenas para destruir o bom-nome pessoal e profissional do A. e para apagarem os efeitos do parecer adverso; Com o mesmo fito intentaram várias acções cíveis contra o A. e fizeram várias participações disciplinares na OROC, todas infundadas; que com a actuação dos RR., o A. sofreu danos de carácter não patrimonial graves, também com reflexos patrimoniais avultados, na medida em que a sua capacidade de trabalho ficou diminuída e perdeu clientes e negócio.

A 1.ª e o 2° RR. contestaram alegando, resumidamente que não foram fonte de qualquer notícia de jornal atentatória do bom-nome do A., tendo feito todas as queixas e intentando todas as acções convictos da sua razão e com motivos para tanto.

Terminam pedindo que a acção seja julgada não provada e improcedente, com a sua consequente absolvição do pedido e a condenação do A. como litigante de má fé.

A 3.ª R. também contestou impugnando os factos que lhe são imputados ou qualquer intenção da sua parte de denegrir a imagem do A.

Termina pedindo a sua absolvição do pedido.

No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, os Réus foram absolvidos do pedido.

Inconformado, apelou o Autor tendo a Relação de Lisboa dado parcial provimento ao recurso e condenado os Réus a pagarem ao Autor, a titulo de indemnização, a quantia de 20.000,00 euros.

Pedem, agora, os Réus e Autor revista, aqueles assim concluindo, nuclearmente:

- Bem esteve o Acórdão recorrido ao decidir secundar a Decisão proferida em 1.ª instância no que diz respeito ás afirmações proferidas pelos Réus à imprensa escrita (Relativamente às «declarações à imprensa» não podemos deixar de secundar o que nesse sentido se encontra consignado na sentença objecto de censura”), ii) pela inexistência de (.) matéria fáctica que permita concluir sobre a existência de comportamento ilícito a atribuir aos Réus face à instauração das acções cíveis em causa” e iii) No que se refere às participações disciplinares à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (..) não é possível imputar aos Réus conduta ilícita”,

- No entanto, diferente foi o entendimento do Acórdão recorrido relativamente à participação criminal apresentada pelos Recorrentes contra o Recorrido, porquanto entendeu que a conduta daqueles é ilícita, que ainda que não dolosa, à necessariamente culposa e entendendo encontrar-se demonstrado “indispensável nexo de causalidade” entre os danos não patrimoniais sofridos pelo Recorrido e o comportamento ilícito dos Recorrentes, entendeu ainda o Douto Acórdão recorrido ter-se por “ajustada equitativa, viabilizando o fim a que se destina (...) a indemnização de € 20.000,00”.

- Ora, mal esteve o Douto Acórdão recorrido ao decidir condenar os Recorrentes, a título de responsabilidade civil por factos ilícitos por estes – ao apresentarem uma participação criminal contra o Autor – terem violado o seu direito ao bom nome e à reputação, e não podem os Recorrentes conformar-se com tal decisão porquanto a mesma consubstancia uma clara violação do disposto nos arts. 483°, 484° e 335° do CC, arts 20° e 18° n° 2da CRP e arts 487° n° 2, 496° e 494°– todos do CC.

- O art. 484° do CC estabelece que “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados”,

- Sendo certo que responde, desde que se verifiquem os pressupostos definidos no art. 483° do CC, ou seja (i) o facto, (ii) a ilicitude, (iii) a imputação do facto ao agente, (iv) o dano e (v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

- Ao contrário do que se decidiu no Acórdão recorrido, no caso em apreço tais pressupostos não estão reunidos, não existindo, assim, possibilidade alguma de se imputar aos Recorrentes qualquer tipo de responsabilidade civil, para efeitos de obrigação de indemnização ao ora Recorrido por alegados danos morais por este sofridos em consequência da apresentação, por aqueles, de uma participação criminal.

- De facto, a participação criminal foi apresentada pelos Recorrentes no exercício de um direito constitucional consagrado, o direito de acesso ao direito e aos tribunais (cfr. art° 20° da CRP).

- Ora, se por um lado é inegável que a personalidade moral de uma pessoa, o seu bom nome e consideração social são valores legalmente tutelados e com consagração constitucional (cfr. art°s 70°. 483° e 484° do CC e art° 26° da CRP), também é inegável que a relevância desse direito “não pode de modo algum comprimir a importância de outros direitos que, como ele, gozam de igual estatuto (direitos fundamentais) como é o caso (..) do direito de acesso ao direito e aos tribunais previsto no art. 20.º sendo certo que a Lei Fundamental não estabeleceu qualquer hierarquia entre os mesmos.”

- Assim, estamos claramente perante uma colisão de direitos, que deverá ser solucionada nos termos do preceituado no art. 325° do CC.

- Assim, perante as contradições e colisões normativas desses direitos deve o intérprete, caso a caso, estabelecer limites e condicionalismos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre eles.

- È isto mesmo, aliás, que decorre do principio da proporcionalidade estabelecido no n° 2 do art. 18° da CRP que expressamente dispõe que ‘a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos nos casos expressamente previstos na Constituição devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegido”.

- A este propósito importa ter em atenção que um dos direitos em colisão é o de acesso á justiça e aos tribunais, exercido através da entrega pelos Recorrentes de uma participação criminal contra o Recorrido onde, tal como acontece na maioria das denúncias criminais que são apresentadas, o acusado se vê confrontado com afirmações que, de uma maneira ou de outra, o ofendem.

- Ora, é precisamente por essa razão que a nossa Lei Fundamental, no seu art. 32°, n°2, corroborada pelos dispositivos da Lei Processual Penal, assegura e garante, a todos aqueles que são alvo de queixas e acusações, o princípio da presunção de inocência até trânsito em julgado da sentença condenatória.

- Torna-se, pois, necessário um juízo de ponderação e coordenação “entre os direitos em colisão, tendo em conta a situação em concreto, de forma a encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto dos valores constitucionais, encarando as limitações aos respectivos direitos tão só enquanto necessárias para salva guarda do «outro» direito constitucionalmente protegido, com respeito aos princípios da proporcionalidade da adequação e necessidade, juízo esse que não foi, no caso em apreço, efectuado pelo Douto Acórdão recorrido.

- Ora, o direito de acesso à justiça não pode ser restringido, nos termos em que o foi pelo Acórdão recorrido.

- Os Recorrentes exerceram o direito fundamental de acesso à justiça, na plena e verdadeira convicção de que o fizeram em nome de interesses maiores como o dever de protecção dos interesses dos accionistas da Recorrente Imobiliária Construtora BB, o dever de respeito pela verdade e o dever de denunciar uma actuação criminosa.

- Ora, o exercício de um direito é causa justificativa suficiente para afastar a ilicitude de um determinado facto (neste sentido veja-se Adriano Vaz Serra, in BMJ 85, página 87, ponto 23 ‘o acto danoso não é antijurídico quando praticado no exercício de um direito, pois, se o agente tem o direito (o de o praticar, não actua contra a ordem jurídica” e ainda o Acórdão do STJ. de 27 de Novembro de 2001 in CJSTJ, ano IX -2001, Tomo III, pág. 122: “A afirmação ou divulgação de um facto não pode ser ilícita se corresponder ao exercício regular de um direito, faculdade ou dever.

- Importa reiterar que no caso em apreço os Recorrentes exerceram o direito fundamental de acesso à justiça, i) plenamente convictos que as situações por si denunciadas tinham ocorrido, ii) agindo em nome de interesses maiores, iii) a denúncia criminal era o meio que se afigurava necessário à realização dos fins pretendidos e juridicamente aprovados, e iv) só foi levada a efeito pelos Recorrentes como última ratio.

- O exercício do direito de acesso à justiça foi assim exercido pelos Recorrentes de uma forma séria, ponderada e responsável, pelo que a eventual ilicitude do facto se encontra claramente afastada.

- Ao considerar que a conduta dos Recorrentes é ilícita, nomeadamente por não se ter apoiado “em elementos absolutamente seguros”, o Acórdão recorrido não resolveu o conflito entre os dois direitos constitucionalmente garantidos nos termos do art° 335°. n° 1 do CC, pois não procedeu à harmonização ou concordância pública dos interesses em jogo, de forma a atribuir a cada um deles a máxima eficácia possível, em obediência ao princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade vinculante em matéria de direitos fundamentais.

- O Acórdão recorrido violou assim o disposto nos artigos 483.º, 484.º e 335.º do Código Civil e 20.º e 18.º n.º 2 da Constituição da República.

- Mais violou o Douto Acórdão recorrido o disposto no art° 487° no 2 do CC (que preceitua que “a culpa à apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso’) ao ter entendido que a conduta dos Recorrentes, ainda que não dolosa, foi necessariamente culposa.

- Ora, a culpabilidade trata fundamentalmente do nexo entre o facto e a vontade do agente, podendo inclusivamente o aplicador do direito, em certas circunstâncias, considerar isento de censura um acto objectivamente ilícito, e no caso em apreço, como já a propósito da ilicitude da conduta dos Recorrentes se concluiu - aos Recorrentes não era exigível um comportamento diferente.

- Neste sentido veja-se o que ensina o Professor Menezes Cordeiro in Direito das Obrigações Vol li, pág 349 (...)“é indubitável que a divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom-nome e a reputação de uma pessoa. Por outro lado, a divulgação de um facto falso atentatório pode não constituir um delito por carência, por exemplo, de elemento voluntário. Por isso a solução deve resultar do funcionamento global das regras da imputação delitual.”

- Assim, ainda que se considere que a conduta dos Recorrentes é ilícita - o que só por mera hipótese de raciocínio se equaciona - sempre se dirá que foi precisamente a crença absoluta na veracidade dos factos imputados ao Recorrido que levou a que os Recorrentes apresentassem uma denúncia criminal junto das autoridades competentes, não tendo esta sua conduta sido sequer negligente pois os Recorrentes, pela sua capacidade e face às circunstâncias concretas da situação, não poderiam nem deveriam ter agido de forma diferente.

- A conduta dos Recorrentes não merece, assim, qualquer reprovação ou censura do direito, pelo que o Douto Acórdão recorrido violou o disposto no art° 487°, n° 2 do C C

- Relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pelo Recorrido, importa reiterar que os mesmos não podem ser imputados aos Recorrentes, uma vez que, pelas razões apontadas supra, a sua conduta não é, nem nunca poderá ser, considerada ilícita e culposa.

- No entanto, ainda que se considere que a conduta dos Recorrentes é ilícita e culposa – o que, de novo, só por mera hipótese de raciocínio se admite - sempre se dirá que, nos termos do disposto no n° 1 do art.° 496° do CC “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, devendo a gravidade medir-se por critérios objectivos e devendo o dano (..) ser de tal modo que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”, conforme ensina o Professor Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, Vol 1, pág. 566.

- Ora, no caso em apreço, importa por um lado i) reiterar que sempre terá de se levar linha de conta que as perturbações Psicológicas e a afectação do Autor ao sentir-se aviltado na sua reputação pessoal o profissional não decorreram apenas da participação criminal, mas também da noticia publicada pelo jornal «O Independente», sendo que não é possível mensurar qual a contribuição de cada uma dessas situações nas lesões apuradas” por outro ii) que o facto que originou o dano foi praticado no exercício de um direito constitucionalmente consagrado, e junto das autoridades competentes para tanto, e finalmente iii) que, tal como resultou provado – ponto 51 da matéria provada constante da sentença - “o real conteúdo de tal denúncia/queixa crime só chegou ao conhecimento do A. em Novembro de 2001”.

- Ou seja, os danos sofridos pelo Recorrido são os danos que, devido à natureza de qualquer participação criminal sempre afectam os acusados, e como também já supra se referiu, é precisamente por essa razão que a CRP, no seu art. 32°, n° 2, corroborada pelos dispositivos da Lei Processual Penal, assegura e garante, a todos aqueles que são alvo de queixas e acusações, o princípio da presunção da inocência até trânsito em julgado da sentença condenatória.

- Face ao supra exposto, é inegável que o Douto Acórdão recorrido violou os já citados art°s 496° e 494.º do CC, pelo que deverá o montante de € 20.000,00 ser substancialmente reduzido.

- Por último, os Recorrentes não se podem conformar com o Douto Acórdão recorrido na parte em que os condena em 2/3 das custas da Apelação, sem ter em conta o decaimento do Apelante.

- Na verdade, nos termos do disposto no n° 2 do art. 446° do CPC, o responsável pelas custas é aquele que dá causa à acção, mas apenas na proporção em que a ela der causa.

- Ora, no caso em apreço, e tendo em atenção o pedido formulado pelo Autor, ora Recorrido – € 500.000,00 – e a condenação decidida no Douto Acórdão recorrido - € 20000,00 - é inegável ter existido decaimento parcial daquele (note-se que aquele Acórdão julga a acção parcialmente procedente), pelo que os Recorrentes só poderiam ser condenados nas custas na proporção do respectivo decaimento.

- Face ao supra exposto, desde já se requer a reforma do Douto Acórdão recorrido quanto às custas, porquanto existiu uma violação do já citado n°2 do art° 446° do CPC.

Contra alegou o Recorrido defendendo a bondade do Acórdão.

O Autor concluiu, em síntese, a sua alegação:

- O Recorrente não pode aceitar a Decisão sob recurso, no que concerne á não verificação ou “não evidência” de efectivos danos patrimoniais sofridos pelo A., ora Recorrente;

- É exigível ao Tribunal recorrido considerar que, não obstante se não tenham coligidos factos suficientes que permitam atribuir ao A. o valor peticionado na sua PI a título de danos patrimoniais, outros factos geradores de danos poderão existir como causalidade adequada da conduta ilícita praticada pelo RR. susceptíveis de serem apurados e liquidados em sede de execução da Sentença, conforme expressamente o A peticionou nos já mencionados arts. 169° e 170.º da PI.;

- O Acórdão sob recurso decidiu contra legem ao absolver os ora Recorridos de qualquer responsabilidade por danos patrimoniais, devendo o mesmo, em consequência, ser revogado por decisão que condene os mesmos Recorridos a pagar ao ora Recorrente a quantia que vier a ser liquidada a título de indemnização pelos danos patrimoniais causados em virtude da sua conduta ilícita;

- Do cotejo do art. 661°, n° 2, do CPC, com os arts. 565° e 566°, ambos do C. Civil, resulta que a existência de dano, como pressuposto da obrigação de indemnizar, tem que ser provada em acção declarativa, só se podendo deixar para a execução de sentença a determinação meramente quantitativa do seu valor, pelo que se o Tribunal verificar a existência de um dano, (como é o caso, conforme se pode retirar do ponto 68 da matéria de facto constante da Sentença), mas não dispuser de dados que possibilitem a sua quantificação, mesmo quando esta tenha sido objecto de prova na Acção Declarativa, pode e deve relegar a fixação do respectivo montante para execução de Sentença;

É evidente que, conjugada tal factualidade dada como provada, com o pedido efectuado pelo A., nos arts. 169° e 170.º da sua PI., não é impeditivo da condenação dos RR., ora Recorridos, no ressarcimento do ora Recorrente, atento o preceituado no art. 661°, n°2 do C.P.C.:

– A não ser assim, o ora Recorrente teria o seu direito a uma indemnização por danos patrimoniais efectivamente sofridos e a apurar/liquidar em sede de execução de sentença, definitivamente postergados e em clara violação da Lei substantiva, constante dos art. 483º, 564º, 565º e 566º do C. Civil;

– Tendo em conta os anteditos factos dados como provados e o preceituado no art. 342º, nº 2, do C. Civil, impõe-se concluir que o A. e ora Recorrente fez prova de que sofreu efectivamente danos patrimoniais como consequência directa do comportamento ilícito perpetrado pelos RR, ora Recorridos;

- Devia ter sido proferida condenação ilíquida nesta parte.

As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:

1- O A. é economista e revisor oficial de contas (A).

2- O A. exerceu, individualmente ou por intermédio da Sociedade de Revisores Oficiais de Contas (SROC) M... e C... (SROC), desde 1986 a 1998, o cargo de Fiscal Único/Presidente do Conselho Fiscal da R. BB (B).

3- Os 2º e 3º RR. são ambos administradores da 1ª R. (C).

4- A 3 R. é Presidente do Conselho de Administração da R. BB (D).

5- Em 1998, a SROC do A. foi designada Auditor Externo da mesma R. BB (E).

6- A sociedade R. BB, é uma sociedade cujos valores mobiliários por si emitidos estão admitidos à negociação em Bolsa (F).

7- A sociedade R. BB detinha, à data, participações sociais noutras empresas do mesmo Grupo, designadamente AGROMAN BB, S.A.; BB AGROMAN, S.A.; SOMOTEL, S.A.; INTERHOTEL, S.A.; COMPORTUR; MATUR, S.A., AUTODRIL, SGPS, S.A., AUTODRIL IMOBILIÁRIA, S.A., AUTODRIL SOCIEDADE IMOBILIÁRIA DO AUTÓDROMO DD, S.A., com as quais forma Grupo (G).

8- O A. era 1998 igualmente Revisor Oficial de Contas das sociedades acima identificadas, sendo que, no que se refere à Sociedade R. Imobiliária Construtora BB, S.A., o A. desempenhou funções de Revisor Oficial de Contas durante os triénios de 1987-1989; 1990-1992 e 1993-1995 (H).

9- No triénio de 1996-1998 a fiscalização, da sociedade foi exercida pela sociedade de revisores oficiais de contas “M... e C...”, da qual o A. é sócio e representante (I).

10- No triénio 96/98 o A. exerceu funções de Fiscal Único (1996 e 1997) e Presidente do Conselho Fiscal (em 1998) (J).

11- O Conselho Fiscal da sociedade R. secundou inteiramente o conteúdo e as conclusões da Certificação Legal de Contas da ia R. elaborada pelo A. referindo que: O Conselho Fiscal tomou conhecimento dos documentos produzidos pelo Revisor Oficial de Contas, nomeadamente a Certificação Legal, de Contas e Relatório de Auditor Externo, que lhe mereceu o seu inteiro acordo (K).

12- O A., na qualidade de Presidente do Conselho Fiscal da sociedade, denunciou criminalmente várias situações da sociedade visada (aqui 1ª R.) e resultantes de actos da Administração da sociedade visada, em queixa apresentada ao Senhor Procurador Geral da República e por si subscrita, bem como noutras com as quais a aqui 1.ª R. tem relações de participada (L).

13- O A. não foi reeleito (M).

14- Em 25 de Janeiro de 2001, os RR. apresentaram uma denúncia criminal contra o A. (N).

15- O inquérito nº 2584/01.7TDSLB, com origem em queixa dos RR. contra o A., foi arquivado pelo Ministério Público: requerida a abertura de instrução, a mesma foi aceite apenas quanto ao crime de infidelidade; a instrução culminou com despacho de não pronúncia; deste houve recurso para o TRL o qual foi julgado improcedente, por acórdão já transitado em julgado (O).

16- Os RR. afirmaram na dita queixa que o A. não havia procedido à Certificação das Contas da 1.ª R. (P).

17- Em declarações ao “Diário de Notícias” em 1999, o 2º R. afirmou que a divergência entre a Administração da 1ª R. e o A. se resumia a “... uma questão técnica” (Q).

18- A 3 R. DD que, na Assembleia-Geral da ia R. que teve lugar em 12.4.99, referiu o seguinte: Senhores Accionistas ainda no terminámos esta última batalha, mas eu tenho observado ponto a ponto o que aqui se disse e principalmente também o Dr. AA que tem trabalhado bastante connosco e que tem dado todas as outras explicações. Estou convencida de que muitas das coisas não se teriam passado assim se às vezes tivéssemos mais atenção ou se ouvíssemos mais as advertências. (R).

19- Na queixa-crime que apresentaram contra o A., os RR. afirmaram que o A. recebeu dinheiros da parte de um grupo de accionistas da 1 R., composto por JF, MD e PF, com vista a desvalorizar as acções da 1.ª R. e possibilitar a aquisição por partes destes das ditas acções a um preço mais baixo (S).

20- Após a leitura dessa Certificação Legal de Contas, de carácter “negativo”, o Conselho de Administração da 1ª R. reuniu, em 30 de Março de 1999, tendo deliberado, por unanimidade, “manifestar ao ROC o seu repúdio pelos termos em que a mesma foi redigida e que, na sua opinião, para além de injustos, não traduzem a verdade dos factos”, atentos os factos e fundamentos referidos na Acta do Conselho de Administração nº 398 (T).

21- Meses antes o A. afirmava no “Relatório do Auditor Externo sobre a Informação Semestral” relativo ao ano de 1998, elaborado e assinado pelo próprio A. em 28 de Setembro de 1998, o seguinte: Com base no trabalho efectuado, o qual foi executado tendo em vista a obtenção de uma segurança moderada, excepto quanto aos efeitos das situações referidas nos parágrafos 8 a 10, nada chegou ao nosso conhecimento que nos leve a concluir que a informação financeira do semestre findo em 30 de Junho de 1998 contenha distorções que afectem de forma materialmente relevante a sua conformidade com os princípios contabilísticos geralmente aceites e com os princípios de suficiência, veracidade, objectividade e actualidade exigidos pelo artigo 161º do Código do MVM (U).

22- Na Certificação Legal das Contas da 1ª R. com Parecer Adverso, o A. diz, além do mais, o seguinte: Em nossa opinião, e dada a relevância e significado dos efeitos das situações descritas nos parágrafos nºs 7 a 12 acima a informação financeira constante dos mencionados documentos não apresenta de forma verdadeira e apropriada, em todos os aspectos materialmente relevantes, a posição financeira da Imobiliária Construtora BB, S.A., em 31 de Dezembro de 1998, e o resultado das suas operações no exercício findo naquela data, em conformidade com os princípios contabilísticos geralmente aceites e não satisfaz os princípios de suficiência, veracidade, objectividade e actualidade exigidos pelo Código do Mercado de Valores Mobiliários (V).

23- A reserva do ponto 7. refere que pelo menos duas participações no total de 727.500 contos deviam ter sido objecto de provisão (W).

24- As duas participações a que o A. se refere na sua “Certificação Legal das Contas e Relatório de Auditoria Externa” dizem respeito às empresas “Agroman BB, Sociedade de Exploração de Hotéis, S.A.”, doravante AGP e “BB Agroman, Sociedade Imobiliária, S.A.”, doravante GPA (X).

25- A participação da Primeira R. no capital social da AGP, ou seja, 100% do capital social da mesma, foi vendida - em 30 de Março do ano de 2000 - pela Primeira R, mediante “Contrato de Compra e Venda de Acções” celebrado com a empresa “FM, Sociedade de Construções, S.A.”, pelo valor de Esc.: 1.340.000.000$00 / €6.683.891,82 (Y).

26- A capear o documento de certificação legal das contas datado de Março de 1999, o A. juntou carta dirigida a “Exmos Accionistas e Exmo Conselho de Administração de Imobiliária Construtora BB, S.A.”, na qual a 3ª R. após a frase “Carta apenas para a Administração” (Z).

27- Os Senhores accionistas da Primeira R. tiveram acesso e conhecimento do teor Certificação Legal das Contas e Relatório de Auditoria Externa (AA).

28- O Conselho Fiscal da Primeira R. só foi nomeado no segundo semestre de 1998, mais propriamente por deliberação das Assembleia-geral da Primeira R. de 25.06.98 (BB).

29- O Presidente era a própria SROC denominada “AA e CB, SROC”, da qual o A. era sócio e legal representante (CC).

30- Relativamente às denúncias criminais efectuadas pelo A. contra os Segundo e Terceira RR., estas (Inquéritos nºs 2141/O0.5JDLSB e 8280/00.5TDLSB, o qual tinha incorporada uma outra participação criminal) foram arquivadas (DD).

31- Os RR. intentaram contra o A. e contra a SROC de que o A. era sócio e legal representante as seguintes acções judiciais, entre outras: Acção declarativa a correr termos pela 1.ª Secção da 4ª Vara Cível de Lisboa sob o nº 571/99, na qual se pretende obter a declaração de falsidade de Certificação Legal de Contas e Relatório de Auditor Externo, relativa ao exercício de 1998 da Primeira R., que actualmente se encontra a aguardar despacho saneador ou designação de audiência preliminar; Acção declarativa a correr termos pela 3a Secção da 5.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa sob o n° 90/2000, na qual se pretende obter a declaração de falsidade da Certificação Legal de Contas e Relatório do Auditor Externo relativo ao exercício de 1998 da “Autodril, SGPS, S.A.” e que actualmente se encontra pendente de Recurso; Acção declarativa a correr termos pela 2ª Secção da 4ª Vara Cível da Comarca de Lisboa sob o nº 16/2000, na qual se pretende obter a declaração de falsidade da Certificação Legal de Contas e Relatório do Auditor Externo relativo ao exercício de 1998 da “lnterhotel - Sociedade Internacional de Hotéis, S.A.”, que actualmente se encontra pendente de Recurso no Supremo Tribunal de Justiça (EE).

32- Outras empresas ligadas ao “Grupo BB” também apresentaram contra o A. e contra a SROC de que o A. era sócio e legal representante várias participações à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (doravante OROC ou Ordem) e intentaram acções judiciais, nomeadamente para apuramento de responsabilidades disciplinares e para discussão de valores de honorários e de conteúdo da prestação dos serviços devidos pelo A. ou pela sua SROC (FF).

33- O A. não efectuou o relatório das contas consolidadas da Primeira R. relativas ao ano de 1998 (GG).

34- Por isso, a Primeira R. solicitou à OROC a nomeação oficiosa de uma SROC para efectuar a auditoria externa e proceder à certificação das suas contas consolidadas relativas ao ano de 1998 (HH).

35- A SROC então nomeada pela Ordem foi a “OL, NL e FC, SROC” (II).

36- Ora, esta SROC efectuou a auditoria para a qual foi nomeada oficiosamente e produziu o relatório do qual consta, além do mais, que: Em nossa opinião formada como explicado no parágrafo 6 excepto quanto aos defeitos dos ajustamentos que poderiam revelar-se necessários caso não existissem as limitações mencionadas nos parágrafos 7 a 12 inclusive e exceptuando os efeitos das situações quantificadas nos parágrafos 11 e 12 inclusive e das referidas nos parágrafos 13 a 16 inclusive, a informação financeira consolidada constante dos mencionados documentos de prestação de contas apresenta de forma verdadeira e apropriada, em todos os aspectos materialmente relevantes, a posição financeira consolidada da IMOBILIÁRIA CONSTRUTORA BB, S.A. em 31 de Dezembro de 1998, o resultado consolidado das suas operações e os fluxos consolidados de caixa no exercício findo naquela data, em conformidade com os princípios contabilísticos geralmente aceites e satisfaz os princípios da suficiência, veracidade, objectividade e actualidade exigidos pelo Código de Valores Mobiliários. No ponto imediatamente subsequente e em sede de ênfases, i.e., chamadas de atenção é referido que: (...) (i) persistem situações estruturais de exploração deficitária da generalidade das empresas que constituem o Grupo BB (que de um modo geral conduziram à redução substancial dos capitais próprios ou a situações de capitais próprios negativos)... constata-se que o Grupo no seu todo se encontra impossibilitado de solver os seus compromissos a curto prazo ...consideramos que a adequação da base de continuidade de operações em que as contas consolidadas foram preparadas está dependente da obtenção de substanciais recursos financeiros da parte dos seus accionistas da efectiva concretização dos projectos turísticos e/ou imobiliários que o Grupo pretende desenvolver.” Na observação contida na al. c) do ponto 18.5 do mesmo Relatório afirma-se: “c) As despesas insuficientemente documentadas ou confidenciais incorridas durante o ano de 1998, no total aproximadamente de 136.000 contos, foram, segundo a informação da Administração utilizadas directa ou indirectamente no exercício normal da actividade das empresas do. Grupo (JJ).

37- As contas de 1998 foram aprovadas - por maioria representativa de mais de metade do capital social da empresa - em Assembleia-geral Anual da Primeira R. (KK).

38- A Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) não detectou quaisquer irregularidades naquelas contas, nem instaurou qualquer processo contra a Primeira R. (LL).

39- Consta do teor da notícia publicada pelo jornal “O Independente”: Contactado pelo Independente, CC recusou-se a tecer qualquer comentário, alegando que o caso está em segredo de justiça (MM).

40- O ponto 56. da participação criminal em questão refere o seguinte:

No dia 16 de Novembro o referido JF (...) referiu na presença do Dr. CC, ora denunciante, e do Sr. JP que combinara pagar 30.000 contos ao denunciado, por sugestão do Sr. MD, cabendo-lhe a ele pagar 16.000 contos dessa soma (NN).

41- Por outro lado, também o ponto 58. da participação criminal em questão refere que no dia 30 de Dezembro, em conversa telefónica tida com o denunciante Dr. CC, o referido Sr. JF referiu, a propósito da entrega das contas da Agroman BB pelo ora denunciado, que este as entregaria «se não, não recebe mais um chavo», conversa esta testemunhada pelos Advogados Dr. JB e Dra. GM. Na verdade esse atraso estava a prejudicar a alienação de interesses do referido JF (OO).

42- O Revisor Oficial de Contas que, entretanto, sucedeu ao A., declarou, perante o Ministério Público, que:... Não há necessariamente contradição entre esta opinião (a sua) e as formuladas pelo ROC AA nos seus Relatórios que, aliás, analisou na altura com base do seu trabalho O que se passa é que por um lado houve factos supervenientes de grande relevância pata as contas, como por exemplo o acordo da GP com o Estado a propósito do Autódromo do Estoril e a destruição do Hotel da Madeira... em sua opinião o trabalho do Auditor anterior (referindo-se ao A.) não mereceu reparo do ponto de vista técnico porque estava bem feito e bem fundamentado. Espelhava de forma acertada a realidade contabilística da sociedade. ... Dos relatórios não se pode concluir que houvesse má fé da sua parte (PP).

43- O A. excepcionou diversas situações no Relatório que elaborou relativamente às contas da R. BB do Exercício de 1997 onde, na transcrição do Parecer do A. que incidiu sobre as contas da R. BB do primeiro semestre de 1998, o A. remeteu para um “critério de segurança moderada” e excepcionou, ainda assim, “os efeitos das situações referidas nos parágrafos 8 a 10” (QQ).

44- Em declaração, o referido JF refere expressamente o seguinte: 1. Em 02.12.97 coliguei-me com MD e PF, adquirindo acções da dita empresa (...). 2. Conheço, então o ROC da empresa e das empresas a ela associadas, Dr. AA. 3. Em 16 de Novembro de 1999 afirmei, na presença dos Senhores Dr. CC e JP que combinara com o Sr. MD e o Sr. PF, pagar uns milhões de escudos ao RQC Dr. AA (...) (RR).

45- Na aludida declaração, o referido JF refere expressamente que No dia 30 de Dezembro de 1999, em conversa telefónica que mantive com o Dr. CC, a propósito da questão da entrega das contas da Agroman-BB já revistas pelo referido ROC que ou este as entregaria ou «se não, não recebe um chavo» (...) Confirmo que em 12.01.00, enviei um fax ao referido ROC no qual, ainda a propósito da entrega das ditas contas consignei que «qualquer mais atraso poderá trazer graves prejuízos (SS).

46- Na mesma Declaração, o dito JF que afirmou que:

Em 16 de Novembro de 1999 afirmei, na presença dos Senhores Dr. CC e JP que combinara com o Sr. MD e o Sr. PF, pagar uns milhões de escudos ao ROC Dr. AA, seriam suportados na proporção das acções por cada um detidas, dado ter a maior parte do valor na coligação. Não especifiquei a que título se devia tal pagamento (TT).

47- A R. BB, em Nota Interna datada de 11.01.99, assinada pela R. DD, considerava que estava em situação difícil (UU).

48- Durante o ano de 1998 o A., no exercício e por força das suas funções, procedeu ao exame das contas da sociedade R. com vista à respectiva certificação (1º).

49- O A. analisou extensivamente os documentos disponibilizados pela BB (2º).

50- Em Novembro de 1999, contactado pelo Diário de Notícias para se pronunciar sobre a Certificação Legal das Contas de 1998, com parecer adverso, o R. CC referiu que tudo se resume a uma questão técnica, tentando desvalorizar as divergências entre a empresa R. e SROC do A. (7º).

51- O real conteúdo de tal denúncia/queixa-crime só chegou ao conhecimento do A. em Novembro de 2001 (10º).

52- O A., quando contactado pelo jornal, confirma, pura e simplesmente, que: confirmo terem sido entregues três processos na Polícia Judiciária e na Procuradoria, mas não os quero comentar dado que estão a ser analisados em sede própria” e “desconhecer onde se encontram neste momento os processos”, afirmando que as queixas foram “efectuadas no cumprimento dos meus deveres legais (14º).

53- Na notícia constante de “O Público”, de 20/11/2000, os RR. comentam o parecer adverso elaborado pelo A. sobre as contas de 1998 da 1ª., bem como rebatem aspectos constantes das participações que o A. efectuou contra os RR. (17º).

54- Quando contactado pelo mesmo jornal antes da publicação do mesmo artigo de 20/11/2000, e confrontado com as críticas dos RR., o A. limitou-se a afirmar que “são críticas que nem merecem ser comentadas” (18º).

55- O A. só soube pelo jornal “O Independente” que os RR. tinham deduzido queixa-crime contra si, imputando-lhe crimes de infidelidade e manipulação de mercado (20º).

56- O A. sentiu-se surpreendido e a indignado com o teor da notícia constante do jornal “O Independente” (21º).

57- Os membros do Conselho Fiscal da 1a R. eram um economista e outro gestor (portador de um MBA – Master in Business Administration) (28º).

58- Os RR. souberam de tal concordância, uma vez que sendo o 2º e o 3º RR. membros do Conselho de Administração da 1a R. o Relatório e o Parecer do Conselho Fiscal foram-lhes remetidos (29º).

59- O A. foi submetido a controlo de Qualidade levado a cabo pela Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, no qual foi objecto de análise a actividade do A., enquanto Revisor Oficial de Contas e Auditor Externo (30º).

60- Tal controlo incidiu sobre o trabalho desenvolvido pelo A. relativamente à 1.ª R. (31º).

61- Nesse controlo conclui-se que: Dossiers de trabalho bem preparados cobrindo, nos aspectos mais importantes, as diversas áreas de trabalho. A Certificação emitida (opinião de natureza Adversa) está adequadamente suportada e reflecte as conclusões produzidas (32º).

62- O A. não foi aliciado por qualquer accionista para emitir a Certificação Legal de Contas na modalidade de Parecer Adverso (37º).

63- Conforme os RR. não podiam ignorar, quando o A. emitiu a Certificação Legal de Contas da 1º R., na modalidade de Parecer Adverso, já os mencionados JF, MD e PF detinham, em conjunto, uma participação social na 1ª R., correspondente a mais de 10% do respectivo capital social (38º).

64- JF foi mesmo eleito Administrador da 1.ª R. (39º).

65- O Senhor Dr. ML, representante legal da sociedade de revisores oficiais de contas – OL, NL e FC – contratado pelos RR. para auditar e certificar as contas consolidadas do Grupo BB, veio afirmar perante o Meritíssimo representante do Ministério Público que presidia ao inquérito que: Em sua opinião o trabalho do auditor anterior (referindo-se ao A.) não mereceu reparo do ponto de vista técnico porque estava bem feito e bem fundamentado. Espelhava de forma acertada a realidade contabilística da sociedade (42º).

66- Os RR. fizeram a denúncia (25/01/2001) já sabiam da opinião que um terceiro tecnicamente apto para o efeito tinha sobre o trabalho levado a cabo pelo A. (43º).

67- Quando os RR. interpuseram a queixa-crime já a CROC tinha efectuado o Controlo de Qualidade sobre a Certificação que o A. fez às contas da R. de 1998 (44º).

68- Por força do teor da notícia de “O Independente”, de 17/08/2001, bem como do processo crime originado pela denúncia de 25/01/2001, o A. sofreu enormes perturbações ao nível do seu rendimento de trabalho, sentiu-se enxovalhado no seu nome e idoneidade profissional, atrasou trabalhos em curso e deixou de aceitar outros por não se sentir em condições psicológicas para os desenvolver, nomeadamente por grande dificuldade de concentração e para evitar contactos com clientes (46º a 51º).

69- Desde 1987 até à Certificação Legal das Contas de 1998, o A. sempre emitiu declarações de conformidade das contas com os princípios contabilísticos geralmente aceites, ainda que com reservas desde o ano de 1992, ou seja, exceptuando essa conformidade em alguns pontos (53º).

70- Em 29/10/2000 os RR. fizeram publicar no jornal “O Público” comunicado no qual, além do mais, afirmam desconhecer as investigações e processo judiciais a que a notícia do dia 26 se reporta, desmentem quaisquer irregularidades, e afirmam que estão em curso procedimentos judiciais contra um dos queixosos por faltas graves praticadas no exercício das suas funções (...) diversas sociedades do Grupo apresentaram queixas disciplinares na Ordem dos Revisores Oficiais de Contas contra um dos queixosos (...) (60º).

71- Em 03/11/2000, os RR. enviaram ao Senhor Procurador-geral da República carta onde afirmam ter tomado conhecimento pela notícia de “O Público” do dia 26 da existência de processos-crime contra eles e pedem para ser esclarecidos sobre o assunto (61º).

72- O 2º R. prestou declarações ao jornal “O Público” para a notícia de 20 de Novembro de 2000, subordinada ao título “BB questiona PGR” (62º).

73- Com efeito, muitos dos bens imóveis da Primeira R. – como o A. bem sabe e sempre soube – figuram nas suas contas, pela própria natureza da actividade empresarial da mesma, sob a forma contabilística de “Existências”, a custo histórico (64º).

74- A 1ª R. tem bens com os seguintes valores de mercado: Edifício da Rua ..., cerca de 4 milhões de contos (€ 19.951.915,88); Hotel ...l, cerca de 3,450 milhões de contos (€ 17.208.527,45); e Estalagem da .../Centro Hípico, cerca de 1,365 milhões de contos (€ 6.808. 591,29) (65º).

75- A Ordem dos Revisores Oficias de Contas chamou a atenção do A. para o facto de considerar que, no que respeita à Certificação Legal de Contas, efectuada pelo A. às Contas da R. BB, relativamente ao ano anterior (1997), teria sido mais adequada a emissão de opinião adversa em lugar da Certificação com Reservas (67º).

76- Na sequência da recepção pelo A. da carta datada de 5.11.98 que lhe foi dirigida pela então Câmara de Revisores Oficiais de Contas, ora Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, o A. decidiu discutir o assunto com o Administrador da R. BB, ou seja, com aqui também R. CC, tendo-lhe deixado cópia da carta que havia recebido da Câmara de Revisores Oficiais de Contas (68º).

77- O A. teve oportunidade de, nas reuniões que ia tendo com o Conselho de Administração da R. BB, designadamente com o R. CC, explicar a situação e dar a conhecer o teor da carta que recebeu da CROC na sequência dos esclarecimentos que prestou relativos à Certificação Legal de Contas, que levou a cabo para a R. BB, relativa ao Exercício de 1997 (69º).

78- O A. deu conhecimento à R. BB, na pessoa do seu Administrador e aqui R. CC, que a CROC havia considerado que: ...Depois de devidamente ponderados os esclarecimentos facultados, entendemos que seria tecnicamente mais adequada a emissão de uma opinião adversa (70º).

79- Foi o facto de a R. BB nada ter feito para corrigir as excepções a que aludiam os parágrafos 8 a 10 do Parecer do A. relativo ao primeiro semestre de 1998 que levou a que este, no final do segundo semestre de 1998 emitisse Parecer Adverso (71º).

80- O A., considerando a manutenção de determinadas situações e o agudizar de outras relativamente às quais havia levantado reservas, decidiu emitir uma certificação de grau mais negativo do que a anterior, tanto mais que a própria Ordem dos Revisores Oficiais de Contas o havia já alertado para a situação, aconselhando-o a proceder desse modo (72º).

81- Os membros do Conselho Fiscal da R. BB e que foram designados pela Assembleia Geral da própria BB eram, e são, profissionais idóneos e respeitáveis e que exerceram as suas funções de modo absolutamente independente e sem sujeição a qualquer ideia de dependência funcional, intelectual ou outra relativamente ao A. (73º).

82- Todas as acções interpostas pela 1ª R. ou outras empresas do grupo contra o A., mencionadas nos arts. 81º e 82º da contestação, foram decididas a favor do A. (74º e 75º).

83- A R. BB enviou ao A., a documentação de consolidação relativa ao Exercício de 1998 apenas em 21 de Janeiro de 2000 (76º).

Foram colhidos cinco (5) vistos ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 do artigo 728.º do Código de Processo Civil.

Conhecendo,
I- Recurso dos Réus.
1. Denúncia de crime.
2. Exercício de um direito.
3. “In casu”
II- Recurso do Autor.
III- Conclusões.


I – Recurso dos Réus

Os Réus pedem revista com o nuclear fundamento que uma participação crime não pode constituir um ilícito gerador de responsabilidade aquiliana, por se traduzir no exercício de um direito consagrado constitucionalmente.

O exercício do direito constitui causa de exclusão da ilicitude, sendo que, no caso, se pode perfilar uma situação de colisão de direitos.

Vejamos, “pari passu”, a bondade da motivação referida.
1- Denúncia de crime.

O aresto posto em crise considerou que, ao participarem criminalmente do Autor, os Réus agiram negligentemente imputando-lhe factos ofensivos da sua honra e consideração o que constitui ilícito gerador da obrigação de indemnizar.

São curiais algumas considerações exegéticas sobre a denúncia crime.

Sabido é que toda a participação criminal dirigida contra pessoa certa contém, ainda que a nível de suspeita sustentada por argumentos meramente indiciários, uma ofensa à honra e consideração, já que a imputação de factos penalmente ilícitos é, objectivamente, lesiva da auto estima e da imagem social.

O artigo 70.º do Código Civil tutela o direito à honra, consagrando-se, no artigo 484.º, a ressarcibilidade das ofensas ao bom-nome, situação também penalmente consagrada no capítulo VI do Código Penal.

Princípios que traduzem o direito à integridade moral e à dignidade das pessoas constante do artigo 25.º, n.º 1 da Constituição da República.

Daí que, e como princípio-base, todo o ataque à honra individual seja susceptível de integrar um acto ilícito, gerador da obrigação de indemnizar como pressuposto, que é, quer da responsabilidade civil, quer da responsabilidade criminal.

Movendo-nos em sede de participação penal, não podem olvidar-se os seguintes princípios: a) o acesso aos Tribunais para fazer valer um direito que está constitucionalmente garantido (artigo 20.º da Constituição da República); b) participar criminalmente pode, em certos casos, constituir um dever, cujo incumprimento será, por si, a comissão de um ilícito penal; c) a participação não pode ser feita com a consciência da falsidade da imputação (artigo 365.º do Código Penal).

Detalhando,
a) A todos é garantido o acesso à Justiça – “O acesso ao Direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos” – de acordo com o n.º 1 do citado artigo 20.º da Constituição da República.

Este preceito tem contornos definidos que se desdobram em direito de acção (“direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever … do mesmo órgão sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada”), direito do processo (“direito de vista do processo” incluindo “a possibilidade de consulta dos autos”), o direito a uma decisão judicial atempada (“sem dilações indevidas”) o direito a um processo justo, o direito a um processo de execução e o direito ao recurso (expresso no duplo grau de jurisdição). – cf. Profs. V. Moreira e G. Canotilho – “Constituição da República Portuguesa Anotada” – 3.ª Ed., 163 e 164.

Note-se, contudo, que não é segura a tutela constitucional do 2º grau de jurisdição fora da área penal.

E não se olvide que todos têm o direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e publicamente perante um tribunal imparcial.

b) Mas participar criminalmente pode ser também um dever quando a inacção implique um incumprimento funcional (artigo 242.º do Código de Processo Penal) ou se puder integrar uma forma de comissão de crime.

Vejam-se os artigos 10.º, n.º 2, 360.º e 369.º da lei penal substantiva.

O ponto 16 do preâmbulo do Código Penal de 1982 referia que “ligada a uma ideia pedagógica, norteada pelo fermento da participação de todos os cidadãos na vida comum, consagra-se em termos limitados a equiparação da omissão à acção. Desta forma a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o comitente recaía um dever jurídico que pessoalmente obrigue a evitar esse resultado.”

E em determinadas situações a denúncia é determinante para evitar, impedir, ou dificultar o evento criminoso.

c) Finalmente, “quem por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento.” comete o crime de denúncia caluniosa.

Este artigo 365.º do Código Penal, corresponde ao artigo 408.º (redacção de 1982 alterada pela Reforma Penal de 1995 – Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), e foi lido pela jurisprudência (v.g. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 1995) como sendo a administração da justiça o interesse protegido pela incriminação, que não os “meramente pessoais dos visados”. (in Conselheiro Victor de Sá Pereira e Dr. Alexandre Lafayette – “Código Penal Anotado e Comentado”, 2008, 882.

Mas o Prof. Costa Andrade (apud “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, Tomo III, 523) assim explana:

“Numa primeira aproximação de índole político-criminal e teleológica, ressalta liquida a caracterização da “denúncia caluniosa” como uma infracção de “dopplenatur” ou pluridimensional. A sua incriminação e punição visa prevenir a actividade inútil e infundada das instâncias formais contra pessoas inocentes. O que resulta em tutela tanto do individuo como da realização da justiça. O problema está em precisar os termos em que o legislador plasmou normativa e positivamente este programa. E consequentemente, qual a topografia destes interesses na área de tutela e qual o seu estatuto na perspectiva do bem jurídico típico.”

Conclui, depois, pela confluência de dois interesses, privilegiando, contudo, os individuais e ficando os valores da realização da justiça sob “tutela reflexa ou complementar”.

Entretanto os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 14 de Dezembro de 1983 (BMJ 332-332), de 9 de Janeiro de 1997 (CJ-VI-1-172) e de 29 de Março de 2000 – 99P628, já decidiram pela protecção não só do interesse que tem a administração da justiça em que o procedimento criminal contra determinada pessoa seja sinceramente requerido, como do interesse dos acusados contra o prejuízo resultante de acusações maliciosas.

Crê-se ser esta a orientação a merecer acolhimento por fazer apelo a ambos os interesses (colectivos e individuais) colocando-os em paridade e acentuando certa componente ética que deve estar presente na denúncia, ou imputação, da prática de um crime.

Embora, de certo modo, fora da economia deste acórdão, as precedentes considerações podem relevar para que se defenda a manutenção do direito de denúncia em estritos limites de boa fé e probidade, sabendo que a imputação temerária e dolosa de prática de crime pode não só lesar a honra do visado como perturbar o funcionamento da máquina judiciária.

A lei penal só incrimina a denúncia falsa se dolosamente formulada.

Isto é, não está em causa saber se, a final, se concluiu pela inocência do denunciado, só importando que, “ab initio”, o denunciante conheça a inverdade dos factos avançados para suporte da denúncia.

Crime doloso em duas vertentes pois terá de haver “consciência de falsidade da imputação” e “intenção de que contra (o denunciado) se instaure procedimento”.

Fora de causa está o dolo eventual (cf. nas actas da comissão revisora, o Prof. Eduardo Correia e o Conselheiro Maia Gonçalves).
2- Exercício de um direito

Na situação “sub judicio” não resulta demonstrado o elemento subjectivo (dolo) acima tratado.

O aresto recorrido considerou, porém, que a denúncia feita pelos Réus não obstante não ter “assumido contornos de denúncia caluniosa”, constitui o exercício ilegítimo do direito de acesso a apresentação junto da entidade competente da participação criminal”, já que “não foi provado que a base de sustentação da participação criminal levada a cabo pelos Réus tenha sido apoiada em elementos absolutamente seguros, particularmente tendo em linha de conta a data em que a mesma ocorreu – Janeiro de 2001 – isto é, mais de um ano após a verificação dos indícios de suspeição evidenciados nos autos”. Concluiu, de seguida, que “não obstante o terem feito no exercício de um direito constitucionalmente garantido”, os Réus “ultrapassaram os parâmetros do mesmo” já que “a ofensa à honra e bom nome do Autor (…) não constituiu meio adequado e razoável de cumprir a finalidade do direito de acesso à justiça.”

Não podemos concordar.

2.1- Afirmámos antes que toda a denúncia criminal contém, em regra, objectivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos idóneos para caracterizarem um comportamento criminoso, podendo, no limite, constituir um meio perverso de agressão.

Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se, porém, o direito à denúncia como “iter” de acesso à justiça e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos do denunciante.

O diferendo resolve-se em sede de conflito de direitos.

Arredadas, desde logo, as situações de denúncia caluniosa, este Supremo Tribunal, em recente Acórdão de 18 de Novembro de 2008 – 08B3227 – decidiu que deve “prevalecer o direito de denúncia sobre o contraposto direito à honra do denunciado.”

Mas detenhamo-nos um pouco mais sobre a figura da colisão de direitos, com acolhimento no artigo 335.º do Código Civil.

O Prof. Menezes Cordeiro conceptualiza-a em sentido amplo, (“haverá colisão de direitos quando um direito subjectivo, na sua configuração ou no seu exercício, deva ser harmonizado com outro ou com outros direitos”) e em sentido estrito (“ocorre sempre que dois ou mais direitos subjectivos assegurem, aos seus titulares, permissões incompatíveis entre si.”) apud “Da Colisão de Direitos”, in “O Direito”, 137, 2005, 38; cf. ainda, Dr.ª. Elsa Vaz de Sequeira, “Dos pressupostos da colisão de direitos no Direito Civil” (2004).

Tratando-se de direitos iguais ou da mesma espécie os titulares devem ceder reciprocamente em termos de que ambos produzam os seus efeitos, “sem maior detrimento de qualquer das partes”; se “desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”, prevalência a ser aferida caso a caso.

No Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Outubro de 2008 – 08 A 3005 – deste mesmo relator – assim se expôs:

“Tratando-se de direitos de espécie diferente irá prevalecer aquele que tutela interesse superior, tendo sido dada primazia aos direitos de personalidade e, de entre esses, aos mais antigos. (cf. o n.º 2 do artigo 335.º do Código Civil, “o que deva considerar-se superior” e v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 2000 – CJ/S.T.J VIII-42-45 – de 27 de Maio de 2004 – CJ/S.T.J XII, 2.º - 71-74 – de 14 de Outubro de 2003 – 03 A 2249 onde o, aqui 2.º adjunto, Conselheiro Alves Velho, ponderou: (…) que não se afigura que faça sentido, pois, aludir a uma colisão de direitos em abstracto, isto é, não referida a situações jurídicas activas de que dois diferentes sujeitos jurídicos sejam titulares em dado momento. Se, ponderada a situação de facto comprovada, o julgador chegar à conclusão de que na realidade só um direito existe, radicado na esfera jurídica de um dos litigantes, o instituto da colisão de direitos deixa de poder aplicar-se.” e de 15 de Março de 2007 – 07B585).”

O Acórdão deste Supremo Tribunal, de 9 de Maio de 2006 – 06 A636 – reportando-se ao citado artigo 335.º do Código Civil, decidiu:

“Parece-nos resultar com toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro - e quem diz direito diz qualquer posição jurídica activa passível de actuação - a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência de ambos.”

Assim sendo, e estando perante direitos desiguais, por de espécie diferente, prevalece o que, em abstracto, for de considerar superior.

Ora, a tutela da honra terá de ceder perante o exercício do direito – e, como vimos, em certos casos, o cumprimento do dever de denunciar criminalmente.

Para garantir a estabilidade, a segurança, a paz social no Estado de Direito, há que assegurar ao cidadão a possibilidade, quase irrestrita, de denunciar factos que entende serem criminosos.

E dizemos “quase irrestrita” por a limitação maior consistir em a denúncia não ser feita dolosamente (com consciência da sua falsidade) e do teor dos seus termos.

Estes devem limitar-se à narração dos factos, sem emissão de quaisquer juízos de valor ou lançamento de epítetos sobre o denunciado.

Se tais juízos de valor ou epítetos integrarem “a se” uma ofensa à honra, então a denúncia pode, mas só por essa razão, ser ilícita cedendo o respectivo direito perante a honra (desnecessária e gratuitamente lesada) do denunciado. (cf., v.g., o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Novembro de 2008 e Prof. Costa Andrade (ob. cit. 531 – “A comunicação tem de ter factos por conteúdo. Não relevam para o efeito meras opiniões, conclusões pessoais, juízos de valor ou qualificações jurídicas”).

2.2- Com esses limites, aliás reflectidos no n.3 do artigo 154.º do Código de Processo Civil (hoje n.º 2 com o Decreto-lei 329-A/95 de 12/12), (“não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”) a denúncia criminal não integra um facto ilícito, pois que a eventual lesão da honra surge justificada por praticada no regular exercício de um direito.

É o que, também, já resultava do artigo 13.º do Código Civil de 1867 (… “que não passou ao novo Código, mas desse facto não é licito inferir que o principio, no que tem de válido, não haja sido acolhido no actual sistema” – Prof. Pessoa Jorge, in “Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, 194), resultando de quem exerce uma actividade, ao abrigo de um direito subjectivo, vê a sua conduta justificada não incorrendo em responsabilidade aquiliana, por falta do requisito ilicitude.

Claro que no exercício do direito não se exclui o dever geral de diligência, devendo haver abstenção se o acto praticado puder, previsivelmente, e sem causa, lesar os direitos de outrem. É a restrição ao princípio “qui jure suo utitur nemini facit injuriam”.

Restrição ainda, e como é óbvio, quando o exercício se traduz em situações que a lei expressamente consagra como perigosas (v.g., artigo 493.º, n.º2 e 1347.º do Código Civil).

É o chamado “risco permitido” já que, na óptica penalista do Prof. Cavaleiro de Ferreira, “pode prever-se em abstracto que o exercício de certas actividades normais e lícitas é susceptível de causar desastres” (in “Direito Penal”, I, 1969, p. 296).

Assim, o exercício regular do direito (sem aqui abordar a figura do abuso – artigo 334.º do Código Civil) é uma causa de exclusão da ilicitude (ou causa de justificação “stricto sensu”) na medida em que o facto típico é o exercício ou a realização do direito, resultando a justificação de que esse exercício se contém nas fronteiras do conteúdo intrínseco do direito. (Não se olvidem, contudo, os n.ºs 2 e 3 do artigo 271.º da Constituição da República).

E o dever geral de diligência no caso de denúncia, ou participação criminal, e arredando a tipificação acima exposta da denúncia caluniosa, deve ser analisado casuisticamente na ponderação da natureza mais ou menos notória do crime imputado, da sua complexidade ou sofisticação, da tecnicidade, da necessidade de perícias para a averiguação e investigação e até dos putativos agentes (autoria singular, co-autoria ou associação criminosa).

Não se despreze, outrossim, que o cidadão comum, cada vez menos crente na isenção da fisiologia institucional em matéria de prevenção penal, antes confia no distanciamento e na imparcialidade do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal, o que torna mais frequente, como recurso último, o pedido da sua intervenção.


3- “In Casu”

No caso em apreço, os Réus limitaram-se a participar criminalmente do Autor, numa área de contabilidade – gestão de uma sociedade comercial de que eram administradores e o Réu auditor, quer a titulo individual, quer por intermédio da “Sociedade de Revisores Oficiais de Contas”, agora como auditor externo.

A sociedade Ré tinha participação em várias empresas do mesmo grupo, o que desde logo, aponta para uma contabilidade complexa e cruzada.

O inquérito resultante dessa queixa foi arquivado pelo Ministério Público, mas aceite, em sede de instrução ulteriormente requerida, pelo crime de infidelidade, que veio a ser objecto de despacho de não pronúncia.

Como antes se expôs irreleva o desfecho do impulso criminal, mas, tão-somente, o elemento subjectivo que motivou a participação.

Ora, nada nos autos aponta, sequer, para negligência grosseira, como refere a peça recorrida, já que se tratava de imputação de ilícito cuja verificação implicava várias e tecnicistas perícias que não estariam ao alcance dos denunciantes, em termos de credibilidade científica.

E nem se diga que perante relatórios de auditoria anteriores, os Réus deviam com eles conformar-se e abster-se de denunciar.

Os relatórios anteriores sempre seriam sindicáveis e era direito dos Réus solicitarem tal sindicância ao Ministério Público e aos tribunais.

Os “media” vêm relatando casos recentes em que os relatórios de auditoria apontam para comportamentos anódinos e, mais tarde, o Ministério Público indicia-os como menos inocentes.

Ademais, o despacho de arquivamento de denúncia dos Réus (fls. 78 e ss.) refere ter sido “produzida prova que permite concluir que ainda que haja «falsidade» no sentido civil ou comercial, o mesmo não terá coloração penal. Esta denunciada falsidade era, na versão da denúncia, dolosa”.

Ou seja, se mesmo a autoridade judiciária recorreu a argumentação jurídica para não imputar a conduta ao denunciado e não afastou liminarmente a possibilidade de comissão do crime por grosseira denúncia, pode concluir-se que não era exigível aos Réus outras e mais cautelas.

A assim não se entender ficariam os conhecedores de ilícitos penais (e repete-se quando em causa crimes a importar sofisticados meios de investigação) impedidos no exercício de direito de denúncia, por poderem correr o risco de a não prova do comunicado os vir a penalizar civilmente.

Tal traduzir-se-ia numa intolerável limitação ao exercício de um direito constitucionalmente consagrado, intimidando o cidadão que pretendesse comunicar às autoridades judiciárias a eventual prática de um crime.

Procede, em consequência, a parte nuclear das alegações dos réus recorrentes.

II – Recurso do Autor

Os termos da procedência da revista dos Réus inviabiliza o recurso do Autor cujo âmbito foi limitado à não atribuição de um “quantum” para indemnizar os danos patrimoniais que alega ter sofrido.

Estamos perante a responsabilidade civil extra-contratual.

São seus pressupostos o facto ilícito, a culpa, o nexo causal e o dano reparável.

Ora, como acima se expôs, inexiste facto ilícito porque se perfila uma causa de justificação – o exercício de um direito – que torna lícito um comportamento que, sem esse exercício, seria devido.

É o que resulta do n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, com o advérbio “ilicitamente”, que “a contrario” significa a possibilidade da violação ser lícita (cfr. a evolução, no sentido exposto, quando o Prof. Vaz Serra usava a palavra “antijuridicamente” – “Requisitos da responsabilidade civil” – BMJ 92.37 e a 2ª Revisão CC a introduzir a terminologia actual; Prof. P. Lima e A. Varela – “Código Civil Anotado” I, 329).

De outra banda, e adjuvantemente, sempre quedaria improvado o pressuposto culpa, em qualquer das modalidades, “maxime” na apontada no acórdão recorrido – falta notória de diligência, por omissão de um comportamento devido – o que arredaria a obrigação de indemnizar.

Sem procedência, pois, a revista do Autor.


III - Conclusões

Pode, assim, concluir-se que:

a) Toda a participação criminal dirigida contra pessoa certa contém, objectivamente, ainda que a nível de suspeita sustentada por argumentos meramente indiciários, uma ofensa à honra e consideração do denunciado, por se traduzir na imputação de factos penalmente ilícitos.

b) O acesso aos tribunais para fazer valer um direito é constitucionalmente garantido, e o direito de participar criminalmente pode, em certos casos, constituir um dever cujo incumprimento será, por si, a comissão de um ilícito penal. Mas a participação não pode ser feita com a consciência da falsidade da imputação ou é crime de denúncia caluniosa.

c) No crime de denúncia caluniosa os interesses protegidos pela incriminação são a administração da justiça, a não ser perturbada por impulsos inúteis e infundados e dos acusados a serem protegidos contra imputações falsas e temerárias lesivas da sua honra.

Trata-se de um crime doloso, inadmitindo, sequer, o dado eventual como elemento subjectivo.

d) Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como “iter” de acesso á justiça e aos tribunais.

e) Na colisão de direitos, que são desiguais, deve prevalecer o considerado superior.

f) Com princípio, o direito de denúncia prevalece notoriamente nos casos de denúncia vinculada (ou denúncia-dever funcional) e, em geral, porque, como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de Direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos.

g) Para além da denúncia caluniosa, são restrições a linguagem ofensiva do texto (que não se limite à narração de factos mas lance epítetos ou emite juízos de valor sobre o denunciado) que, por si, pode ofender a honra, mas não esquecendo o princípio da necessidade do n.º 2 do artigo 154º do CPC, sendo que, no mais (dever geral de diligência), deve ser feita uma avaliação casuística na ponderação do tipo de crime, na complexidade, sofisticação, necessidade de perícia e putativos agentes, que pode servir de critério para avaliar da grosseira leviandade da denúncia.

h) O regular – ressalvando situações de abuso e de actividades perigosas – exercício do direito exclui a ilicitude (é causa de justificação) como pressuposto da responsabilidade civil.

Nos termos expostos, acordam:

- Conceder revista aos Réus, absolvendo-os do pedido e revogando o Acórdão recorrido.

- Negar revista do Autor.

Custas a cargo do Autor em todas as instâncias

Lisboa, 18 de Dezembro de 2008

Sebastião Póvoas (Relator por vencimento)

Alves Velho

Moreira Camilo

Urbano Dias

Garcia Calejo (Vencido como primitivo Relator, conforme a declaração de voto que junto)

Voto de vencido:

No acórdão que elaborei, teria negado a revista ao recurso dos RR., confirmando o douto acórdão recorrido, porque entendi, dadas as circunstâncias provadas, que os RR. ao deduzirem queixa criminal contra o A. o haviam feito agindo, no mínimo, com evidente irreflexão. Na verdade, nessa ocasião já sabiam da opinião que um terceiro, tecnicamente apto para o efeito, tinha sobre o trabalho levado a cabo pelo A., e que a CROC tinha efectuado o Controlo de Qualidade sobre a Certificação que o A. fez às contas da R. de 1998 (factos acima referidos acima sob os n°s 66 e 67), tendo ambas as entidades concluído, de essencial, pelas regularidade dessas contas (factos acima referidos sob os n°s 36, 59 a 61. É certo que a queixa não incidiu, propriamente, sobre o conteúdo das contas, mas estando já de posse de elementos que lhes permitiam concluir terem essas contas sido elaboradas de forma correcta e, portanto, que o A. agira de forma recta, deveriam os RR. ter agido de forma mais cuidadosa, omitindo a elaboração de uma queixa contra uma pessoa que havia cumprido escrupulosamente as suas funções, apesar de o desempenho dessa tarefa ter ido contra os seus interesses materiais. Por outras palavras, estando cientes da realidade indicada, antes de apresentarem queixa crime (que teve a ver com aliciamentos de accionistas da 1a R. para emitir parecer adverso com vista a desvalorizar as respectivas acções -facto referido supra sob o n° 19) os RR. deveriam ter procedido de forma mais escrupulosa de forma a evitarem que a honra e consideração do visado, o A., não fossem afectadas. Nas circunstância apuradas, poder-se-á sustentar, e parece lícito supor, que tal queixa foi realizada com intuitos de represália. Ainda no mesmo sentido, como correctamente se refere no douto acórdão recorrido, como os factos imputados ao A. são particularmente lesivos e atentatórios do seu bom nome e reputação, não se deveria ter concretizado a queixa sem indícios seguros da sua efectiva ocorrência "pois que o direito ao recurso aos órgãos de administração da justiça tem sempre subjacente uma liberdade escrupulosa, maxime quando se insere no âmbito da responsabilização criminal onde são colocados em causa valores de suma importância a nível pessoal e sócia?.
Quer isto tudo dizer que os RR., face às circunstâncias já de si conhecidas no momento, não deveriam ter apresentado a dita denúncia criminal. Por outras palavras, não obstante tivessem o direito abstracto de deduzirem queixas contra o A., a verdade é que em relação à denúncia (criminal) não tinham fundamento como, aliás, poderiam ter verificado se tivessem tido uma conduta conscienciosa.
Ao apresentarem a queixa, os RR. agiram ilicitamente. Os factos que nessa queixa foram atribuídos ao A. são objectivamente graves, imputando-lhe circunstâncias que contendem com a sua honorabilidade pessoal para o exercício das suas funções profissionais.
Portanto, pelas razões jurídicas indicadas no acórdão recorrido, teria mantido a condenação de os RR. indemnizar o A. pelos danos causados.
No restante, a minha posição foi e é conforme a decisão que fez vencimento.