Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7146/20.7T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: LINO RIBEIRO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ESPECIFICAÇÃO
VIOLAÇÃO DE LEI
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO PRO ACTIONE
PRINCÍPIO DA PREVALÊNCIA DA SUBSTÂNCIA SOBRE A FORMA
DIREITO AO RECURSO
GRAVAÇÃO DA PROVA
TRANSCRIÇÃO
ALEGAÇÕES DE RECURSO
CONCLUSÕES
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Sumário :
I – O ónus do artigo 640.º do CPC não exige que as especificações referidas no seu n.º 1 constem todas das conclusões do recurso;

II – É admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo. 640.º, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.  

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1 - AA, BB, CC, DD e EE, intentaram ação declarativa contra Ageas Seguros Portugal - Companhia de Seguros, SA, pedindo a sua condenação a pagar-lhes a quantia de € 380.385,79, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais e patrimoniais ocorridos em consequência de um acidente de viação que veio a resultar na morte de FF.

A ré contestou, excecionando que os netos DD e EE não detêm a qualidade de lesados e que à AA também não assiste o peticionado direito a alimentos futuros; impugnou parcialmente os factos alegados, dizendo que a vítima FF conduzia sob a influência do álcool, que lhe afetou a capacidade de condução, dando causa ao acidente; por fim, pediu a intervenção principal acessória do segurado GG, com fundamento em direito de regresso, dado que o mesmo abandonou o sinistrado.

A intervenção foi diferida e o interveniente GG apresentou contestação, imputando a responsabilidade do acidente à vítima.

Foi proferido despacho saneador, com seleção da matéria factual com interesse para a decisão da causa; realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo a ré dos pedidos.

2 - Inconformados, os autores AA, BB e CC interpuseram recurso de apelação, onde formularam as seguintes conclusões:

I. Na douta sentença que ora se recorre, o conhecimento do mérito da causa consubstanciou-se, assim como dela consta, da convicção do julgador, pela ponderação e valoração, de acordo com o princípio da livre convicção do julgador.

II. É nesta medida que a prova produzida, não serve o fim a que se propõe, de constituir a formação da convicção do douto tribunal nos fatos objetivos e formais da matéria de fato. Desta forma,

III. Tendo o tribunal a quo afastado toda a prova apresentada e contraditando processualmente, como se evidenciou, a posição que vinha reiterando em processo e em apenso, colocou não só o julgamento de

mérito em causa, mas concomitantemente a frágil situação dos aqui Recorrentes.

IV. Tendo sido mal valorada a prova testemunhal, também as conclusões que se tiram, tanto de facto como de direito saem fortemente inquinadas.

V. Tal como o que se apresenta transcrito dos trechos das inquirições destas alegações, todas as testemunhas do acidente e os elementos da força pública que acorreram ao local, corroboram no que os Recorrentes alegam no seu petitório inicial nomeadamente, que o acidente de viação se deve à manobra invasiva da hemi-faixa do veículo XG pelo veículo VF, por transposição de uma linha longitudinal continua e que o local do embate se dá nessa mesma hemi-faixa.

VI. A Meritíssima Juiz a quo promoveu por si violar o princípio da autonomia privada e dos direitos disponíveis pelas partes para absolver do pedido a Ré seguradora que já havia extrajudicialmente assumido a responsabilidade pelo acidente.

VII. Na verdade, tal assunção de responsabilidade está documentalmente provada nos autos em que, o que se discutia na verdade até era o quantum indemnizatório e não se a este havia direito ou não.

VIII. E é nesta medida que se considera, a decisão aqui em crise, além de tudo o mais, uma decisão surpresa pois contraria a prova produzida e faz tábua rasa do princípio da autonomia privada e dos direitos disponíveis e do poder dos particulares – neste caso a Ré seguradora - decidirem se assumem ou não a responsabilidade civil pelo acidente.

IX. E assim se impunha a matéria de facto provada com fundamento na prova produzida, mormente a prova gravada por da mesma não se poder concluir como se concluiu no ponto JJ da matéria provada.

X. Muito pelo contrário, a conclusão deve ser exatamente a inversa por ser o que decorre do depoimento das testemunhas como acima se viu pelas transcrições.

XI. Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve a matéria de facto provada na sentença em crise ser alterada no sentido de dar como provado que o embate se deu quando o Mini (VF) ainda não se encontrava na sua faixa de rodagem.

XII - E consequentemente, que o acidente se deu por culpa exclusiva do condutor desta viatura, devendo a Ré seguradora e aqui Recorrida, para quem a responsabilidade civil está transferida, ser condenada em toda a extensão do que foi pedido pelos Recorrentes na ação declarativa de cuja decisão aqui se recorre.

3 -O acórdão recorrido, com voto de vencido, não admitiu a impugnação da matéria de facto, pelo facto de as conclusões das alegações não sintetizarem todos os requisitos enunciados no artigo 640.º do Código de Processo civil, e em consequência, julgou improcedente a apelação, mantendo integralmente a sentença recorrida.

Novamente inconformados, os autores interpõem recurso de revista com apresentação das alegações, onde concluem o seguinte:

1 – Os recorrentes, inconformados com a decisão de 1.ª instância proferida no processo 7146/20.7T8PRT que correu os seus termos pelo Juízo Central Cível de ... - Juiz 2, dela interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

2 – O douto acórdão proferido foi no sentido de confirmar a decisão de 1.ª instância não por com ela se concordar, mas por, alegadamente faltar ao Recurso o mínimo “a cumprir, designadamente a indicação nas conclusões de quais os factos em concreto que o Recorrente põe em crise e quais os concretos meios probatórios que em sua opinião impunham decisão diversa.”

3 – Tal Acórdão tem voto de vencido de cujo teor se extrai não só a verificação do tal mínimo “a cumprir, designadamente a indicação nas conclusões de quais os factos em concreto que o Recorrente põe em crise e quais os concretos meios probatórios que em sua opinião impunham decisão diversa.” E que torna o recurso perfeitamente inteligível e decidível como ainda aponta o sentido da decisão concreta que incidiria sobre o recurso.

4 – Os Recorrentes não se conformam com o douto Acórdão do Tribunal da Relação por considerarem que os mesmos preenchem todos os requisitos formais exigíveis à luz das normas processuais.

5 – E também porque, tendo havido sobre o Recurso, resposta tanto da Meritíssima Juiz de 1.ª instância como contra-alegações por parte da Ré e do Interveniente, logo se vê que o mesmo tem o mínimo “a cumprir, designadamente a indicação nas conclusões de quais os factos em concreto que o Recorrente põe em crise e quais os concretos meios probatórios que em sua opinião impunham decisão diversa.”

6 – Aliás, como se comprova, sem qualquer sombra para dúvidas pelo teor do voto de vencido que mais claro não poderia ser e ao qual os Recorrentes aderem.

7 – Pelo que, e assim posto, o Recorrentes vêm agora em recurso de revista pugnar por decisão que substitua a proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, conhecendo-se do mérito do mesmo e decidindo-se no sentido de, em relação ao ponto JJ da matéria provada na sentença de 1.ª instância, ser o mesmo julgado no sentido de dar como provado que o embate se deu quando o Mini (VF) ainda não se encontrava na sua faixa de rodagem.

8 – E consequentemente, que o acidente se deu por culpa exclusiva do condutor desta viatura, devendo a Ré/ Recorrida seguradora, para quem a responsabilidade civil está transferida, ser condenada em toda a extensão do que foi pedido pelos Recorrentes na ação declarativa de cuja decisão se recorreu.

9 – Portanto e em conclusão, pugnam os Recorrentes por:

a.- Reconhecimento de que o seu recurso observa o mínimo “a cumprir, designadamente a indicação nas conclusões de quais os factos em concreto que o Recorrente põe em crise e quais os concretos meios probatórios que em sua opinião impunham decisão diversa”;

b. Que o seu recurso seja objeto de decisão quanto ao seu pedido;

c. Que essa decisão vá no sentido de em relação ao ponto JJ da matéria provada na sentença de 1.ª instância, ser o mesmo julgado no sentido de dar como provado que o embate se deu quando o Mini (VF) ainda não se encontrava na sua faixa de rodagem e consequentemente, que o acidente se deu por culpa exclusiva do condutor desta viatura, devendo a Ré/ Recorrida seguradora, para quem a responsabilidade civil está transferida, ser condenada em toda a extensão do que foi pedido pelos Recorrentes na ação declarativa de cuja decisão se recorreu.

10 – Conforme se impõe num Estado de Direito em que a justiça e o acesso a decisões jurisdicionais constitui um direito constitucionalmente consagrado.

Cumpre decidir

II – Fundamentação

4 – As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

A) Pelo contrato de seguro automóvel obrigatório com a apólice n.º ..........66 foi transferida para a Ré a responsabilidade relativamente aos danos causados pela viatura marca MINI, modelo Cooper, matrícula ..-VF-.., propriedade de GG.

B) No passado dia 1 de Junho de 2019, cerca das 22:20 Horas, na Avenida..., na freguesia de ..., concelho de ..., ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, marca Volkswagen, modelo Golf, matrícula XG-..-.., propriedade de FF, e conduzido pelo seu proprietário, falecido e o veículo marca MINI, modelo Cooper, matrícula ..-VF-.., propriedade de GG, e conduzido pelo mesmo, bem como um terceiro veículo marca OPEL, modelo Corsa, matricula ..-AO-.., propriedade de HH e conduzido por II.

C) São filhos do falecido sinistrado, o qual morreu intestado e no estado de solteiro e da Autora AA os Autores BB e CC.

D) Os Autores DD e EE são filhos da também ela Autora, CC.

E) Os veículos VF e AO circulavam no sentido ascendente daquela Avenida, em direção ao santuário de Santa ....

F) O veículo conduzido pelo falecido FF, circulava no sentido descente em direção ao centro da cidade.

G) Para a Ré, na ocasião do embate, estava transferida a responsabilidade pela circulação do Mini Cooper, através da Apólice de Seguro n.º ..........66.

H) O sinistrado FF veio a falecer dos ferimentos causados pelo acidente, sendo que o óbito veio a ser declarado já na madrugada de 2 de junho.

I) Tinha 58 anos à data do sinistro.

J) A Segurança Social satisfez, a título de subsídio às despesas decorrentes do funeral, o montante de 1.307,28€ (mil trezentos e sete euros e vinte oito cêntimos).

L) A Autora AA recebe pensão de sobrevivência que lhe é paga pela Segurança Social, no valor de € 191,20 (cento e noventa e um euros e vinte cêntimos).

M) A 8 de Novembro de 2019, foi pela Ré apresentada aos AA proposta de ressarcimento dos danos decorrentes do sinistro, da qual constam os seguintes valores: “Com vista à regularização extra judicial do assunto, remeto, abaixo, proposta final de indemnização, por morte da infeliz vitima, FF, nos seguintes termos: Perda direito à Vida: €40.000,00; Dano moral da própria vítima: €1.750,00; Dano moral do cônjuge: €17.500,00; Dano moral dos Filhos (2) -€15.000,00 (€7.500,00 x2); Despesas com funeral: €2.065,00; Dano Patrimonial Futuro com base no SMN liquido até á idade da reforma: €27.459,43 ( o valor apurado com base nas premissas acima referidas é de €41.189,14 sendo que deste valor 1/3 é descontado a titulo de despesa com o próprio, ou seja, o valor do rendimento que seria imputado a despesas próprias da infeliz vitima), no montante de €13.729,71), Total : €103.774,43 (cento e três mil setecentos e setenta e quatro euros e quarenta e três cêntimos)”, conforme Doc. 14 junto com a petição, que se dá por reproduzido e integrado para os legais efeitos.

N) O malogrado FF, no momento do acidente, conduzia o ..-AO-.. com uma TAS de, pelo menos, 2,10 gramas de álcool por litro de sangue.

O) Devido à taxa de álcool no sangue com a qual conduzia, o FF estava afetado na sua coordenação psico-motora, os seus reflexos, a sua atenção e os tempos de reação estavam diminuídos, os seus campos de visão e de audição estavam reduzidos, a sua capacidade de análise das distâncias e da velocidade estavam afetadas.

P) O álcool no sangue atuava sobre o FF como agente desinibidor, provocando nele uma anormal euforia e sensação de controlo, bom como uma subavaliação dos perigos.

Q) Aqueles efeitos do álcool afetavam a capacidade de condução do FF, limitando e diminuindo a sua aptidão para conduzir com atenção, destreza e perícia. R) A Autora AA vivia, à data do acidente, em união de facto com o lesado FF tendo tal união durado largo tempo, até que a morte deste os separou.

S) Na sequência do acidente, o condutor do veículo seguro na Ré, após ser removido do veículo com auxílio do condutor do terceiro veículo indicado acima, ausentou-se do local do acidente/da cena deste, antes da chegada da autoridade policial, como dos bombeiros, não se tendo apresentado àquela autoridade policial na ocasião, mas apenas ulteriormente, decorridos alguns dias sobre o sinistro.

T) O acidente ocorreu numa noite de Verão, com piso seco e sem qualquer obstáculo na via.

U) O local em que o acidente se verificou, era uma reta com a inclinação que se alcança da fotografia sob o número 56 do relatório tático de inspecção ocular junto aos autos, com visibilidade recíproca não inferior a 50 metros, mostrando-se o pavimento em bom estado de conservação.

V) No local do acidente, a via tinha uma largura de 6,10 metros e bermas de ambos os lados.

X) O eixo da via encontrava-se delimitado por uma linha longitudinal contínua, pouco visível, bastante desgastada.

Z) A via, no local do acidente, estava ladeada por árvores e vedação de madeira na lateral, com saída para a via pública, próxima do Hospital ..., sito na mesma cidade e freguesia.

AA) O veículo ..-VF-.., Mini Cooper realizou antes do embate uma manobra de ultrapassagem do veículo de matrícula ..-AO-.., Opel Corsa.

BB) O ..-VF e o veículo da vítima embateram, sendo-o a parte frontal esquerda do veículo da vítima.

CC) Após o embate o veículo do lesado prosseguiu a sua marcha e acabou por capotar, ficando imobilizado na faixa de rodagem destinada ao trânsito do sentido que tomava.

DD) O Mini Cooper ficou imobilizado contra um poste de iluminação, existente na berma, na lateral direita da faixa de rodagem, tendo emborcado e ficado virado na horizontal, do lado do condutor.

EE) Após a imobilização do veículo, o lesado ficou encarcerado no veículo, como consequência do embate, mas também da trajetória e capotamento do veículo após a colisão.

FF) O condutor do Mini Cooper foi ajudado a sair do veículo, mediante a quebra completa do para brisas da frente deste, pelo condutor do Opel Corsa, sendo que, após sair do veículo e efetuar uma chamada telefónica, ausentou-se do local do sinistro a pé, não tendo aguardado pela chegada da autoridade policial, nem também ali se tendo apresentado perante ela, enquanto realizava as normais diligências subsequentes a um acidente.

GG) O condutor do primeiro veículo embatido foi auxiliado pelos ocupantes do Opel Corsa, que pediram o auxílio da emergência médica e polícia.

HH) O automóvel do interveniente não foi embatido na frente, mas na sua roda da frente esquerda, sendo que os respetivos faróis de nevoeiro ficaram intactos e apenas a ótica frente esquerda (posicionada lateralmente) e a roda frente esquerda, foram arrancadas.

II) O local do embate, no sentido da circulação do veículo do falecido FF, configura uma reta, com descida de percentagem já referida, precedida de uma curva.

JJ) O embate deu-se quando o Mini (VF) já se encontrava na sua faixa de rodagem. LL) O veículo VF com o embate foi projetado para trás, levantando e embatendo no poste.

MM) Após o desencarceramento, o condutor do veículo Volkswagen, foi assistido pelos Bombeiros e já dentro da ambulância teve uma paragem cardiorrespiratória, tendo a equipa médica conseguido reverter este quadro e estabilizado o condutor, que, encaminhado para o Hospital ... em ..., viria a falecer horas mais tarde.

NN) Durante o período de assistência hospitalar, o FF entrou novamente em paragem cardiorrespiratória.

OO) Do acidente resultaram para aquele, fratura do corpo da vertebra C3 da coluna vertebral, com infiltração sanguínea dos tecidos adjacentes, bem como fratura das costelas lado esquerdo da 1.ª à 9.ª e lado direito da 1.ª à 6.ª, ao nível do arco anterior, com infiltração sanguínea dos tecidos adjacentes, fratura cominutiva da articulação do cotovelo esquerdo, fratura localizada na zona da coxa e terço proximal da perna esquerdo, entre hemorragias, lacerações e equimoses e outras lesões devidamente identificadas no relatório da autópsia junto aos autos, as quais foram causa da sua morte.

PP) Ao menos na ocasião da causação das lesões a vítima sofreu dores, tendo sofrido as dores provocadas pelos ferimentos, lesões traumáticas raqui-medulares, torácicas e pélvicas.

QQ) Os AA sofreram com a sua morte, intercedendo uma relação familiar próxima e afetuosa, de laços estreitos.

RR) O lesado e a Autora, AA recorreram a dois financiamentos bancários de 90.000,00€ e 60.000.00€, no total de 150.000,00€, conexos com a aquisição e construção de uma casa, na qual viviam, em andares diferentes e com entradas diferentes, a companheira (a Autora AA) e a vítima, a sua filha (a Autora CC) e os seus netos DD e EE.

SS) À data do acidente, FF estava desempregado, tendo exercido, até data não concretamente apurada, a profissão de ....

TT) Após a morte e com o choque, a sua companheira de longa data, aqui autora, entrou num processo de depressão, angústia e choque emocional.

UU) A companheira vivia com o agora falecido, sendo doméstica, prestando-lhe todos os cuidados necessários na vida conjugal, nomeadamente, tarefas domésticas cozinhando, limpando-lhe a casa, existindo um bom relacionamento entre ambos, que se cuidavam mutuamente.

VV) À data do óbito o filho (o Autor BB) encontrava-se emigrado na ..., onde se encontrava a trabalhar, tendo a perda do pai resultado em dor, angústia e choque, por não conseguir ver novamente o seu pai com vida, sendo que ao menos se deslocou a Portugal.

XX) A filha e netos residiam no primeiro andar da habitação construída pelo agora falecido, conviviam diariamente e tinham uma proximidade e uma convivência alegre e feliz com o pai e avô, respetivamente.

ZZ) Após o decesso de seu pai, a filha entrou também ela em depressão, causada pelo desgosto e dor da perda em circunstâncias tão trágicas.

AAA) O neto e neta necessitaram de apoio psicológico, com respetivamente 10 e 3 anos, para acompanhamento do processo de comunicação da morte do avô e todo o processo de luto, cuja repercussão se verificou a nível psicológico, a nível cognitivo e comportamental, pois ambos foram criados com o avô, que foi parte das suas infâncias e memórias.

BBB) Perderam o avô, mas também o companheiro de brincadeiras, dos lanches, dos ensinamentos do ofício da ..., do que com eles partilhava tempo e toda a disponibilidade que podia, do contador de histórias.

CCC) A Autora AA despendeu/liquidou:

a) Com o Funeral – 757,72€ (setecentos e cinquenta e sete euros e setenta e dois cêntimos) (para além do valor do subsídio recebido pela SS);

b) Com a aquisição de terra/sepultura no cemitério – 500.00€ (quinhentos euros);

c) Com o Jazigo – 1.650,00€ (mil seiscentos e cinquenta euros).

DDD) A A. CC gastou/pagou:

a) as viagens para Portugal e regresso do autor BB – 475.07€ -Quatrocentos e setenta e cinco euros e sete cêntimos;

b) a Habilitação dos herdeiros – 138.00€ (cento e trinta e oito euros);

c) Certidões de nascimento e óbito – 50.00€ (cinquenta euros).

EEE) A Autora AA aufere 558 EUR mensais pelo exercício da respetiva atividade.

FFF) Até à data da dedução da pretensão o ISSS, IP satisfez à A. AA, a título de pensão de sobrevivência, conforme certidão de fls. 142 dos autos, a quantia global de 3.682,85 EUR.

5 Delimitada a matéria de facto, importa conhecer do objeto material do recurso de revista, considerando que o “thema decidendum” do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 663. º n.º 2, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, doCPC).

Antes de mais, cumpre reconhecer a inexistência de obstáculos ao conhecimento da revista, apesar do acórdão recorrido ter confirmado o dispositivo da sentença. Para além do voto de vencido, a regra da dupla conforme prevista no n.º 3 do artigo 671.º do CPC sempre seria afastada pelo facto da decisão de mérito que foi tomada ser uma consequência inevitável da rejeição da impugnação da matéria de facto. É esta a posição reiterada da jurisprudência do STJ quando no recurso de revista é invocada a violação de normas de direito adjetivo relacionadas com a apreciação da matéria de facto: «Estando, pois, em causa na revista o (não) uso do poder de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, não ocorre a sobreposição decisória que caracteriza a dupla conformidade de julgados limitativa do recurso para o STJ» (entre outros, o Acórdão de 10 de novembro de 2020, proc. n.º 21389 /15.1T8LSB.E1).

Assim, a questão jurídica a conhecer é só uma: há erro processual na aplicação das normas do artigo 640.º do CPC?

O acórdão recorrido, após indicar o sentido e alcance das normas processuais que regulam a forma de impugnação da decisão de facto, concluiu o seguinte:

«Analisado o articulado de recurso, na motivação, e sob a epígrafe “âmbito do presente recurso”, as Recorrentes começam por dizer que o recurso “visa a impugnação da matéria de facto dada como provada” (toda?); depois, ao pormenorizar, apenas se faz referência ao “facto provado JJ”, fazendo-se transcrição parcial do teor do depoimento de várias testemunhas.

De seguida, elencam-se as conclusões (atrás transcritas), de cuja leitura se vê serem completamente omissas no que é considerado o limite mínimo de alegação: os concretos pontos de facto e os concretos meios probatórios.

Assim também o considera Abrantes Geraldes: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: (…) b) – Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; c) – Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (…).

Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.»

Em face do exposto, não se irá proceder à reapreciação da matéria de facto»,

Verifica-se, assim, que no entender da decisão recorrida, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é de rejeitar porque nas «conclusões» as alegações da apelação – acima transcritas – não especificam os requisitos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, cujo ónus pertence ao recorrente.

É, no entanto, outra a posição de um dos juízes que compõem o coletivo:

«Não subscrevo o aresto, pois admitiria o recurso da matéria de facto. Em primeiro lugar, interpreto de forma restrita os requisitos formais, por forma a possibilitar o mais amplo exercício do direito de recurso. Depois, no caso concreto os apelantes, nas suas alegações, indicam de forma suficiente os meios de prova que sustentam o seu pedido, o qual é formulado na parte final de forma clara. Assim, o tribunal e a parte contrária podem determinar o quê e o porquê do recurso e identificar as razões da discordância. Por último, esta parece ser a posição mais consensual do STJ, conforme por exemplo, Ac de 06-07-022 (Mário Morgado) nº 3683/20.1T8VNG.P1. S1.

Concluiria também, pela alteração, ainda que oficiosa, da matéria de facto, nos termos do art. 662º, do CPC, sucintamente:

O depoimento da testemunha fundamental, segundo a transcrição foi: " vi que não tinha tempo de o condutor retomar por completo para a via dele e depois sei que colidiram ". Ora, se essa foi a testemunha fundamental, parece que a mesma não pode isoladamente fundar de forma racional um juízo de tão grande certeza, porque vai além do que a testemunha aqui admitiu.

Depois, duas testemunhas diretas situam o embate na outra faixa. E, por fim o agente policial que efetuou o auto situa o embate no eixo da via, facto concordante com os danos do veículo e vestígios. Temos ainda de ponderar que quem efetuou a manobra perigosa foi o segurado da ré, e que sem essa manobra o acidente não teria ocorrido naquele tempo e local. Por isso, entendo que face à prova testemunhal produzida e indícios objetivos não é possível com suficiente certeza, afirmar o que consta do facto JJ.

6 – A vontade de interposição de um recurso jurisdicional deve exprimir-se através de requerimento que contenha a respetiva fundamentação e o pedido, de modo a delimitar o objeto do recurso. Com efeito, o n.º 2 do artigo 637.º do CPC estabelece que «o requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade»; e o n.º 1 do artigo 639.º impõe ao recorrente o dever de «apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos porque pede a alteração ou anulação da decisão».

Para tal, a lei processual impõe, ou melhor propõe ao sujeito processual a necessidade de cumprir certos ónus processuais, como condição de aquisição do direito ao recurso. Se quiser que o recurso seja admitido, o recorrente tem que cumprir o ónus de alegação, o ónus de conclusão e o ónus de especificação, previstos nos referidos artigos e no 640.º do CPC, no caso de ser impugnada a decisão sobre a matéria de facto. Neste caso, o requerimento deve «obrigatoriamente» especificar (i) «os concretos pontos de facto» que se considera erradamente julgados (ii) «os concretos meios probatórios» para nova decisão, (iii) e a decisão substitutiva sobre a matéria de facto que deverá ser proferida (alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC).

Na imposição destes ónus reconhece-se uma relação de meio para fim: o cumprimento dos ónus conduz à admissão do recurso; e a sanção para o não cumprimento – rejeição do recurso – resulta somente de não se ter verificada a situação que se produziria se os ónus fossem cumpridos. De modo que, não sendo um fim em si mesmo, a verificação do cumprimento desses ónus tem que ter em conta o princípio da razoabilidade, para que não se dificulte excessiva e desproporcionalmente o direito ao recurso.

Daí que o grau de exigência da racionalidade entre cada um daqueles ónus e o direito ao recurso possa ser diferente, consoante o relevo que tenham na construção do objeto recursório, e depender mesmo das circunstâncias de cada recurso. De facto, há situações onde não é possível concluir que a imperfeição do requerimento de recurso quanto a determinadas exigências legais, sobretudo quando secundárias, impossibilita a admissão do recurso. Nem sempre as exigências formais desrespeitadas devem implicar uma rejeição do recurso, nomeadamente se as finalidades que a forma protege chegaram a atingir-se.

A intervenção dos princípios como os da proporcionalidade, razoabilidade, materialidade subjacente e favorecimento do processo (princípio pro actione), com refrações várias na lei processual civil, permite ao juiz averiguar e controlar em cada caso concreto da relevância dos referidos ónus processuais. Pode dizer-se ser esta a orientação hoje predominante na jurisprudência do STJ, que nesta e nas demais exigências do recurso que tenha por objeto a matéria de facto afere os ónus processuais pelos parâmetros dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, com objetivo de evitar os efeitos negativos que um excessivo formalismo pode ter na tutela efetiva das posições jurídicos processuais.

Além de que, não deixe ainda de acrescentar-se, é abundante a jurisprudência constitucional relacionada com a imposição de ónus processuais às partes em processo civil a afirmar que a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo – não afastada pela garantia de acesso ao direito e à justiça – tem de se mostrar conforme o princípio da proporcionalidade. Não obstante a ampla liberdade do legislador na definição dos requisitos de forma dos atos das partes, na previsão dos ónus que sobre elas incidem e das cominações que resultam da não conformação com as regras formais ou de tramitação que regulam o desenvolvimento do processo, a criação e interpretação destas regras, para além de deverem ser funcionalmente adequadas aos fins do processo, devem conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não podendo impossibilita ou dificultar, de modo excessivo ou intolerável, a atuação processual das partes, e as cominações que decorrem de uma falta da parte não podem revelar-se desproporcionadas à gravidade ou relevância, para os fins do processo, da falta imputada à parte (Acórdãos n.ºs 277/2016, 486/2016, 527/2016, 270/2018, 604/2018, 440/2019, 151/2020 e 346/2020).

Veja-se o que decidiu o STJ relativamente ao incumprimento do ónus de especificar nas conclusões das alegações a decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto (alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º). Após longa controvérsia jurisprudencial, acabou por se conseguir uma unitária estabilidade (ou fixidez) do direito com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudências (AUJ), de 17 de outubro de 2023 (proc. n.º 8344/17.6T8STB.E-A. S1): «o Recorrente que impugna a decisão sob a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte de forma inequívoca, as alegações». Por isso, satisfeita a segurança jurídica e a garantia da certeza de uma unívoca aplicação do direito, pode dizer-se que conclusões sem especificação da decisão substitutiva são não excessivas ou não desproporcionais à garantia do direito ao recurso. A exigência processual de se indicar nas conclusões das alegações a decisão alternativa sobre as questões de facto impugnadas, quando submetida ao crivo da proporcionalidade/razoabilidade, é solução que se mostra desadequada, dispensável ou desrazoável quando, como se refere no AUJ, «da conduta processual do recorrente resultar de forma clara e inequívoca o que o mesmo pretende com a interposição do recurso».

De igual modo quanto à interpretação da norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, que impõe ao recorrente o ónus de «indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes». O objetivo do ónus de especificação das passagens da gravação é facilitar o acesso da Relação e do recorrido ao meio de prova fundamental para a nova decisão de facto. Ora, se o recorrente, sem localizar os concretos minutos da gravação que contêm as passagens relevantes, indica o momento do início e do fim da gravação de um certo depoimento, transcrevendo aquelas passagens na motivação do recurso, o ato processual mostra-se idóneo a cumprir a missão que lhe é assinalada, de harmonia com o esquema típico formal previsto na lei, porque desse modo acaba por facilitar a tarefa do tribunal e do recorrido. Portanto, se a falta de indicação exata das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo tribunal, em homenagem aos princípios da economia processual, da conservação dos atos jurídicos e da razoabilidade, deve considera-se cumprido o ónus de especificação das passagens da gravação. A rejeição do recurso, com este fundamento, afigura-se uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (Acórdãos do STJ de 29/10/15 (Proc. 233/09.4TBVNG.G1. S1), 19/1/2016 (Proc. 316/10.4TBLRA, C1.S1), 31/5/2016 (Proc. 889/10.5TBFIG.C1-A. S1), 6/12/2016 (Proc. 37/11.0TBBGC.G1. S1) e de 22/2/2017 (Proc. 988/08.3TTVNG.P4. S1).

7. No caso dos autos, a única falta que o acórdão recorrido aponta ao requerimento que corporiza o recurso de apelação é o facto das conclusões das alegações «serem completamente omissas no que é considerado o limite mínimo de alegação: os concretos pontos de facto e os concretos meios probatórios».

Ora, não é verdade que as conclusões tenham omitido por completo os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados. A impugnação da decisão da matéria de facto incide exclusivamente sobre o ponto JJ da matéria de facto provada acima transcrita: «O embate deu-se quando o Mini (VF) já se encontrava na sua faixa de rodagem». Os recorrentes alegam que existe prova bastante de que o embate ocorreu quando o Mini, numa manobra de ultrapassagem de outro veículo, ainda não se encontrava na sua faixa de rodagem e sintetizam essa afirmação nas conclusões.

De facto, após exporem na motivação das alegações as razões porque consideram que o facto descrito no ponto JJ da matéria de facto provada deve ser julgado não provado, com referência aos meios de prova que no seu entendimento impõem essa avaliação, formulam as seguintes conclusões: «Tal como o que se apresenta transcrito dos trechos das inquirições destas alegações, todas as testemunhas do acidente e os elementos da força pública que acorreram ao local, corroboram no que os Recorrentes alegam no seu petitório inicial nomeadamente, que o acidente de viação se deve à manobra invasiva da hemi-faixa do veículo XG pelo veículo VF, por transposição de uma linha longitudinal continua e que o local do embate se dá nessa mesma hemi-faixa» (Conclusão V); «E assim se impunha a matéria de facto provada com fundamento na prova produzida, mormente a prova gravada por da mesma não se poder concluir como se concluiu no ponto JJ da matéria provada» (Conclusão IX); «Muito pelo contrário, a conclusão deve ser exatamente a inversa por ser o que decorre do depoimento das testemunhas como acima se viu pelas transcrições» (Conclusão X).

Não obstante se fazer referência genérica aos meios de prova de onde pretendem demonstrar que o acidente ocorreu na faixa de rodagem do veículo sinistrado, as conclusões não individualizam as passagens da gravação em que se funda o recurso. Por certo que tal acontece porque, decorrendo essa prova dos depoimentos gravados das testemunhas do acidente, os mesmos foram integralmente transcritos no corpo das alegações, com indicação dos minutos o ficheiro áudio onde se encontram gravados. Sendo esse o método seguido, dir-se-á que apenas faltou mencionar nas conclusões o nome das testemunhas que provam facto diverso do descrito no ponto JJ dos factos provados.

Todavia, não é essa falta que impede o Tribunal de analisar se a prova testemunhal transcrita nas alegações impõe uma decisão de facto diversa na provada no ponto JJ dos factos provados. Se no corpo das alegações o recorrente transcreve passagens dos depoimentos que chama à colação na impugnação, deve dar-se por cumprida a exigência de indicar o meio probatório fundamental para nova decisão. Segundo a posição praticamente unânime do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, afigura-se-nos, por um lado, que a transcrição das passagens dos depoimentos tidas como relevantes é uma forma válida, ainda que indireta, de concretizar as passagens dos depoimentos que se pretende que o tribunal de recurso reaprecie e, por outro lado, que este requisito de impugnação da decisão sobre a matéria de facto é um “ónus secundário”, que apenas serve para ajudar o tribunal de recurso na tarefa de aceder às passagens da gravação (mas não o impede nem dispensa da necessidade de ouvir bem mais que essas passagens para poder avaliar com rigor o depoimento) e, como tal, não deve assumir uma importância desmedida que cerceie de forma desproporcionada o exercício do direito ao recurso, razão pela qual pode ser cumprido de modo menos rigoroso ou perfeito e inclusivamente não carece de ser cumprido nas próprias conclusões das alegações.

A finalidade ou função das conclusões é definir o objeto do recurso através da identificação abreviada dos fundamentos ou razões jurídicas desenvolvidas nas alegações (artigo 635.º, n.º 4, do CPC). Exercendo a importante função de delimitação do objeto recurso, a precisão das conclusões tem essencialmente por finalidade tornar mais fácil, mais pronta e segura a tarefa de administração da justiça, numa perspetiva dinâmica de «cooperação» entre os intervenientes no processo, e permitir eficaz «contraditório» a quem ganhou a causa e que, por via disso, tem interesse em manter o decidido, reagindo a questões que deverá perceber (artigos 3.º e 7.º do CPC).

Mas para que esse objetivo seja cumprido não é necessário que todas as exigências formais impostas no artigo 640.º do CPC tenham que ser sintetizadas nas conclusões. Como se diz no sumário do Acórdão do STJ de 1 de outubro de 2015 (proc. n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1): «não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação; com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640.º, do NCPC, não exige que as especificações referidos no seu n.º 1 constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação».

Em termos de ato processual, as conclusões correspondem à causa de pedir do recurso – «fundamento específico de recorribilidade» (n.º 2 do artigo 637.º) – em que o recorrente afirma a ilegalidade da decisão por violação de norma de direito substantivo ou de direito processual ou erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, conforme for caso. Ora, as funções que as conclusões representam dentro das alegações, designadamente a individualização dos fundamentos específicos do recurso e viabilização do exercício do contraditório, podem cumprir-se sem necessidade de nessa sede se «sintetizar» os meios probatórios e o pedido da decisão alternativa.

De modo que a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto apenas deve verificar-se quando falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, através da referência aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorretamente julgados (alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º), sendo de admitir que as restantes exigências (alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo. 640.º), em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.

Conclui-se por isso pela procedência da revista.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso de revista, anular o acórdão recorrido e determinar o conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto.

Custas pelos recorrida.

Lisboa, 08-02-2024

Lino Rodrigues Ribeiro (relator)

Ferreira Lopes

Nuno Ataíde das Neves