Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1528
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
ALTERAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200705240015281
Data do Acordão: 05/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : 1) O exercício, ou não, pela Relação dos poderes das alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 712º do CPC é incensurável pelo STJ sendo a respectiva decisão irrecorrível.
2) O STJ é essencialmente um Tribunal de revista, vocacionado para a uniformização de jurisprudência.
3) O uso da faculdade do nº 3 do artigo 729º do CPC é excepcional e dela só pode lançar-se mão se se concluir pela existência de contradições essenciais, desconsideração do alegado pelas partes ou matéria de conhecimento oficioso, tudo em pontos de facto, sem cuja eliminação, consideração ou esclarecimento fique comprometida a decisão final.
4) A redacção do artigo 690º A do CPC introduzida pelo Decreto-Lei nº 183/2000 de 18 de Agosto, dispensa o recorrente, que impugna a matéria de facto, de proceder à transcrição das passagens da gravação em que se funda, mas impõe-lhe a indicação dos pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgada que deve constar da alegação, nos termos do nº 1, alínea a) do artigo 690º A do CPC, sob pena de rejeição do pedido de reapreciação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou acção, com processo ordinário, contra “Banco ..., SA, Sociedade Aberta”, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 43.767,26 euros a titulo de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais do Réu, assim efectivando a sua responsabilidade extra contratual.

O Tribunal Judicial da Comarca da Amadora julgou a acção improcedente, designadamente por verificada a excepção da prescrição, e absolveu o Réu do pedido.

O Autor apelou para a Relação de Lisboa que confirmou o julgado.

Pede, agora, revista, assim concluindo:

- O Acórdão recorrido violou designadamente, as normas dos artigos 498º e 323º do C Civil e 493º do C. P. Civil.

- Ao violar tais preceitos legais, relativamente à aplicação e interpretação de tais normas jurídicas, o Tribunal da Relação, não fez correcta aplicação dos mesmos.

- Igualmente, o Tribunal da Relação não usou as faculdades enumeradas no artigo 712º do CPC, pelo que, também a referida norma jurídica não foi correctamente aplicada, pois que, devia ter alterado a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, violando, assim, por erro de apreciação da prova produzida, interpretação e aplicação do disposto no citado artigo 712º do CPC.

- O douto Acórdão recorrido refere que “Para conhecimento desta questão impunha-se ao Apelante que, nos termos dos artigos 712º e 690º A do CPC indicasse os pontos concretos da matéria de facto que pretendia ver alterados, por referencia aos também concretos meios de prova constante dos autos e/ou objecto de depoimento em audiência de julgamento gravada, ónus que não cumpriu.”

- Acontece que, o recorrente no artigo 9º das conclusões das alegações apresentadas no Tribunal da Relação, referiu que “o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, salvo o devido respeito, não valorou toda a prova produzida, nos autos e tirou conclusões consentâneas com a referida prova, verificando-se contradições entre os elementos constantes dos autos, a prova produzida em audiência de julgamento matéria dada como provada, verificando-se assim, erro de apreciação da matéria de facto e não apreciação da prova documental, violando assim, designadamente, as disposições constantes no artigo 712º do CPC.

- O Acórdão recorrido também não fez correcta aplicação do direito, no que diz respeito à excepção da prescrição.

Contra alegou o Réu em defesa do julgado, afirmando:

- Ao Supremo Tribunal de Justiça não incumbe por lei alterar a matéria de facto dada como provada, a apreciação das provas não é matéria de revista, não lhe cabendo pronunciar se houve erro de julgamento, que manifestamente não houve. Ao STJ cabe decidir de direito;

- No que respeita à verificação da excepção peremptória da prescrição do direito à indemnização por factos ocorridos entre Março de 1999 e Agosto de 2000, é manifesto que se verifica a prescrição, porquanto o recorrente em Agosto de 2000 conhecia no todo o contexto que a situação encerrava e só em Janeiro de 2004 é que distribuiu a acção.

- A douta sentença de 1ª instância, bem como o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, estão conforme e de acordo com a Lei, sendo manifesto que inexiste qualquer violação dos artigos 323º, 498º do CC ou artigos 493º e 721º do CPC.

As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:

- O Autor era co-titular da conta nº ..., conjuntamente com BB, na dependência da Buraca, do Banco ....

- Igualmente era co-titular da conta nº ..., conjuntamente com CC, administradora do prédio sito no Lg. Borges Carneiro nº ..., Buraca.

- A conta nº ... correspondia à conta do condomínio do prédio sito no Lg. Borges Carneiro nº ....

- Em Março de 1999 o Autor e a co titular da conta, BB, apresentaram na dependência da Buraca do ... uma proposta de crédito para realização de obras na casa do Autor.

- Em 16/3/99, o Autor contactou telefonicamente o Réu, dependência da Buraca, para obter informações sobre a aprovação do empréstimo solicitado.

- Nessa data foi o Autor informado que o empréstimo não podia ser concedido e que devia dirigir-se aquele balcão, pois pretendiam comunicar-lhe uma situação muito grave.

- De imediato o Autor e a co-titular da conta, BB, dirigiram-se ao citado balcão onde lhes foi comunicado que o empréstimo não era concedido em virtude de o autor se encontrar em situação perante a qual este não lhe poderia ser concedido.

- Perante a estranheza e espanto do Autor o empregado de balcão, Sr. DD, informou o Autor de que este tinha muitas letras protestadas, cujo valor excedia 17.739.263$00.

- O Autor disse ao Sr. DD que só poderia haver engano, pois nem sequer sabia o que era uma letra, pois nunca tinha assinado nenhuma.

- De seguida o Sr. DD entregou ao Autor uma relação, a qual mencionava o nome de AA, onde constavam 22 letras no valor de 17.739.263$00.

- Face a tal situação, o Autor disse ao Sr. DD que tal era impossível, ao que o Sr. DD insistiu e disse que a informação dada era absolutamente verdadeiras e que não tinham qualquer dúvida que a divida era do Autor.

- Na sequência do que lhe foi dito, o Autor sentiu-se mal tendo tido necessidade imediata de se sentar.

- Perante aquelas circunstâncias o Sr. DD disse ao Autor que fosse contactar as sociedades das quais forneceu relação para esclarecerem o que se passava.

- A sociedade ... Materiais de Construção, depois de se ter apercebido que deveria haver um lapso, tanto mais que conheciam o próprio devedor e constataram que não era o Autor, prestou-se a fornecer todos os elementos necessários para que o assunto fosse esclarecido.

- Forneceram cópia do instrumento de protesto de uma letra na qual consta o contribuinte fiscal 800 995 643.

- Tal número de contribuinte não corresponde ao do Autor.

- O Autor, em 25/3/99 deslocou-se novamente à dependência da Buraca, para saber se tinham feito alguma diligencia para esclarecer a verdade, tendo estes se limitado a confirmar as informações dadas através de carta, onde consta “lamentamos informar que após análise detalhada não foi possível considerá-la favorável.”

- O Autor remeteu em 31/3/99 fax para o Banco de Portugal no Porto, a solicitar informação relativa ao registo ou não de letras protestadas em seu nome, tendo obtido a seguinte informação “não se encontra registado em seu nome qualquer protesto relacionado com títulos de crédito.”

- O Autor dirigiu carta à administração da Ré em 27/4/99, conforme doc. de fls. 18 que aqui se dá por integralmente reproduzido.

- O Réu respondeu à referida carta através de missiva de 10/05/99, conforme doc de fls. 19 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

- Em 20/5/99 o Autor remeteu ao Réu nova carta para tentar esclarecer toda a situação, conforme doc. de fls. 21 e ss que aqui se dá por integralmente reproduzida.

- Através de carta de 16/8/99 veio o réu responder conforme doc de fls. 23 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

- O Autor remeteu ao Réu em 29/12/99 carta, conforme doc. de fls. 24 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

- O Réu respondeu por carta datada de 7/1/2000, conforme doc. de fls. 25 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

- Em 13/1/2000 o Autor remeteu carta ao Réu, conforme doc. de fls. 27 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

- O Autor recebeu carta do Réu em 25/1/2000, conforme doc. de fls. 28 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

- Em 3/2/2000 o Autor remeteu carta ao Réu conforme doc. de fls. 30, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

- O Autor recebeu carta do Réu datada de 9/3/2000, conforme doc. de fls. 31 que aqui se dá por integralmente reproduzido.

- Em 19/7/2000 o Autor remeteu ao Réu a carta constante de fls. 33 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

- Na sequência de todo este processo, o Autor teve um grande desgaste psíquico e como é uma pessoa doente deixou que tudo tivesse ficado parado e aceitou o pedido de desculpas do Réu.

- No dia 13/1/2003, quando o Autor se encontrava em casa na companhia da sua mulher e cunhada, foi surpreendido pelo Sr. G..., marido da administradora do prédio sito no Lg. Borges Carneiro nº..., que lhe bateu à porta e sem mais lhe disse “você tirou 50% do saldo da conta do condomínio”.

- O Autor sem saber o que se passava disse que não tinha procedido ao levantamento de qualquer quantia.

- O Autor de imediato dirigiu-se à dependência da Buraca do Réu a fim de esclarecer o que se passava.

- Aí foi informado pelo empregado Sr. DD que tinha sido retirado das contas de que era titular €507,58 e €206,07, por ordem do Tribunal da Figueira da Foz – ... Juízo, Pº nº ....

- Tendo-se gerado alguma discussão já que o autor não se conformou com tais afirmações, tendo a empregada do Réu, de nome C..., vindo junto do seu colega dizer “o que é que quer, a informação que lhe estamos a dar está correctíssima”.

- O Autor disse ao Sr. DD que não era possível haver qualquer processo contra ele e que deveria tratar-se de mais um engano.

- Ao que o Sr. DD respondeu que desta vez não havia qualquer engano.

- Perante a recusa da dependência da Buraca em falar com o advogado do Autor, este dirigiu-se em 14/1/2003 àquela dependência, tendo falado com o Sr. DD que lhe disse que para falar com a gerência só com marcação, tendo no entanto, perante a insistência do mandatário do Autor, comparecido o sub gerente EE, a quem foi exposta toda a situação e fornecidas cópias das cartas recebidas anteriormente onde constava ter havido erro na identidade do autor.

- Em 18/1/2003 o Autor, através do seu mandatário, telefonou para o Réu com vista a obter mais informações acerca do assunto, tendo-lhe sido dito que nada podiam fazer.

- Em 22/1/03 o Autor dirigiu-se ao Tribunal da Figueira da Foz, para consulta do processo.

- No processo constavam vários documentos remetidos pelo Tribunal a vários bancos para penhora de contas de AA e mulher FF.

- Entre eles encontravam-se ofícios à CGD onde o Autor e a sua mulher GG detêm conta de crédito à habitação.

- As entidades bancárias a que o referido tribunal remeteu documentação enviaram informação ao Tribunal onde constava que AA e FF não tinham conta nesses respectivos bancos.

- O mandatário do autor elaborou um requerimento dirigido ao Tribunal da Figueira da Foz, conforme doc. de fls. 43 a 48 que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

- Em 27/2/2003 foi proferido o despacho de fls. 50 que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde se lê “resulta dos autos evidente confusão entre o real executado com o referido requerente, pois têm o mesmo nome…”

- Após a recepção deste despacho do Tribunal da Figueira da Foz, o Autor deslocou-se à dependência da Buraca do Réu, tendo falado com o sub gerente – EE – tendo-lhe fornecido cópia do citado despacho, tendo este informado que iria proceder à regularização das contas.

- O Autor esteve mais de 15 dias sem o dinheiro estar desbloqueado.

- Quando em Março de 1999 o Autor solicitou junto ao Réu um empréstimo de 700.000$00, o mesmo destinava-se a efectuar pequenas obras de conservação na sua casa, com vista a um maior conforto seu e da sua mulher, pois ambos são pessoas doentes.

- O valor das obras pedidas em 1999 é actualmente de €12.000,00

- Por oficio de 22/11/2002, do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, 3º Juízo, o gerente do Banco ... SA foi notificado “de que nos termos do disposto no artigo 861º A do CPC ficam penhorados à ordem deste Tribunal e processo os saldos das contas de depósito à ordem e a prazo, nomeadamente as contas nº ... e ... de que sejam titulares o executado AA, estado civil: desconhecido; identificação fiscal: 112787720; domicilio Rua José Estevão, ..., Eixo, 3800 Aveiro (…)”

- Na sequência do referido em 7 a 11, o Sr. DD disse ao Autor “vocês pensam que enganam os Bancos, mas nós sabemos bem como isso é”.

- Tendo o Sr. DD dito igualmente ao Autor que era por isso que o empréstimo não era concedido.

- O Autor ficou extremamente abalado e afectado perante o que lhe estava a ser comunicado.

- Na sequência do referido em 13), o Sr. DD reafirmou ao Autor que o empréstimo não lhe era concedido enquanto não pagasse a quantia em dívida.

- Após o referido em 14) e 15), o Autor deslocou-se novamente à dependência do Réu na Buraca explicando o que se passava tendo-lhe sido dito “não queremos saber mais nada”, “o Sr. deve o dinheiro e ainda quer mais empréstimos”.

- Mais disseram que “se quiser vá tratar disso ao Banco de Portugal, porque da nossa parte não fazemos mais nada, pois não há nenhum engano, é mesmo o Sr. que deve”.

- Na sequência do referido em 35), o Autor sentiu-se envergonhado perante o que estava a ser dito.

- Alguns dias após o referido em 39), o Autor dirigiu-se ao balcão da Buraca do Réu, sendo-lhe dadas as mesmas respostas “é você que deve o dinheiro”, “e ainda vem para aqui reclamar”, “temos aqui todas as provas que o Sr. deve dinheiro e que por isso tem que lhe ser feita a penhora”.

- Perante tal humilhação, o Autor ligou para o seu mandatário, chocado a chorar, num estado de completo desespero.

- O Autor teve que se deslocar ao Banco de Portugal onde gastou a quantia de €15,00.

- Em deslocação ao Tribunal da Figueira da foz e ao escritório do mandatário do Réu, no referido processo, gastou €155,25.

- Aquando da deslocação ao Tribunal da Figueira da Foz despendeu em refeições a quantia de €25,00.

- Em deslocações ao balcão da Buraca do Réu e ao escritório do seu mandatário despendeu a quantia de €60,00.

- Em telefonemas para o Banco de Portugal e para o Tribunal da Figueira da Foz despendeu €12,00.

- O Autor teve muitos dias que não saiu de casa pois sentia vergonha das expressões que lhe foram dirigidas pelo Réu.

- Os funcionários do Réu colaboraram com o Autor no sentido deste poder esclarecer a situação que o envolvia, habilitando-o com elementos, tudo num quadro de recato e confidencialidade.


Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Alteração da matéria de facto.
2- Prescrição.
3- Conclusões.


1- Alteração da matéria de facto.

No primeiro segmento da alegação recursória, o Autor insurge-se contra o Acórdão por este não ter procedido à alteração da matéria de facto, não usando as faculdades do artigo 712º do Código de Processo Civil.
Sem razão, porém.

1.1- Como julgou este STJ, em igual conferência (Acórdão de 18 de Abril de 2006 – 06 A871) “cumpre ás instâncias apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio, só a Relação podendo emitir um juízo de censura sobre o apurado na 1ª instância.

O STJ, e salvo situações de excepção legalmente previstas só conhece matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais, só é sindicável se foi aceite um facto sem a produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.”

Este principio resulta do artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro – sendo que a intervenção do STJ restringe-se à averiguação da observância das regras de direito probatório material, artigo 722º nº 2 do Código de Processo Civil, ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, artigo 729º nº 3.

Mas a ampliação da matéria de facto pressupõe que o facto a inserir de novo tenha sido alegado pelas partes, no momento e em sede adequados.
Terá de considerar-se ter havido, aquando da fixação da base instrutória, preterição de “matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito”, nos precisos termos do nº 1 do artigo 511º do diploma adjectivo.

Ora, “in casu”, a Relação ao fixar a matéria de facto não incumpriu o citado nº 2 do artigo 722º (dando como assente um facto sem a produção de prova legalmente indispensáveis ou infringindo as normas reguladoras da força probatória de determinado meio de prova), nem o Autor tal refere precisamente.

Outrossim, este Supremo Tribunal não pode exercer qualquer censura por a Relação não ter feito uso dos poderes de alteração ou anulação da decisão da 1ª instância em matéria de facto.
É por isso que a decisão que exerça esses poderes é irrecorrível, “ex vi” do nº 6 daquele preceito.

1.2- Recorde-se, ainda, que a garantia daquele “duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca pode envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais, erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto.” (in preâmbulo do Decreto Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro).

A decisão da 1ª instância pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido a gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada nos termos do artigo 690º A do CPC, a decisão proferida com base neles.

A acção foi intentada em 2004.
É lhe aplicável a redacção do artigo 690º A do Código de Processo Civil, introduzido pelo Decreto-lei nº 183/2000, de 18 de Agosto (artigo 8º).
Na redacção anterior (Decreto-Lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro) o nº 2 exigia ao recorrente, “sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda”.
Actualmente, cumpre, apenas, ao recorrente “indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 522º C”.
E o nº5 do mesmo preceito impõe à Relação a audição ou visualização dos depoimentos indicados, “excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas, para tanto contratadas pelo tribunal.”

Escreveu-se no Acórdão do STJ de 6 de Julho de 2006 – 06 A1838 – desta mesma conferência:
“Mas também incumbe ao impugnante da matéria de facto indicar os “concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”.
O nº1 do artigo 712º do diploma adjectivo dispõe a possibilidade de alteração, pela Relação, da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto, se do processo constarem todos os elementos que serviram de base à decisão ou se, tendo ocorrido a gravação, tiver havido impugnação de acordo com o citado artigo 690º A.
Como refere o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Novembro de 2005 (Pº 3153/05 – 1ª) “foi intenção do legislador, aliás expressamente confessada no relatório do Decreto-Lei nº 39/95, criar um duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, embora temperada pelo ónus imposto ao recorrente de delimitação concreta do objecto do recurso e da respectiva fundamentação, a fim de evitar a impugnação genérica da decisão de facto no seu todo.”

E assim é porque – embora a Relação forme a sua própria convicção dentro do princípio da livre apreciação das provas nos mesmos termos do Tribunal “a quo” – a ausência da imediação do contacto directo com a prova, a não suficiência, para percepção de detalhes e características idiossincráticas das testemunhas (o que releva para estribar convicções), de sistemas de gravação, não permitem uma perfeita documentação do ocorrido na 1ª instância.
Será uma actividade difícil e penosa, passar várias horas a ouvir gravações, tentando identificar e reconhecer vozes dos depoentes e de outros intervenientes, relacioná-las com o que consta da acta e cotejá-las com as motivações, tantas vezes sem o necessário apuro técnico.
Por isso é que o 2º grau de jurisdição em matéria de facto deve ser visto com cautela buscando interpretações rigorosas – embora não necessariamente restritivas – dos preceitos que o regulamentam.
A exigência da alínea a) do nº 1 do artigo 690º A do Código de Processo Civil – e deixemos a da alínea b), por já acima abordada – destina-se precisamente a balizar, com rigor, a área de reapreciação, evitando uma reprodução integral de toda a prova, com as escolhas atrás acenadas.
A importância dessa especificação é tal que o legislador fulmina a sua ausência com a rejeição do recurso.”

Ora o recorrente não cumpriu esse ónus não indicando, com precisão os pontos de facto que pretendia ver reapreciados pela Relação.
Nem se diga que pode reportar-se, genericamente, a “todos os factos”, como refere o Autor.
Esse entendimento esvaziaria de sentido o nº 1 do citado artigo 690º A que impõe não só a referência (“obrigatoriamente”) aos “concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” (a) como aos “concretos meios probatórios” (…) “sobre os pontos da matéria de facto impugnada” (b).

1.3- Finalmente, não tem este Tribunal razoes para, oficiosamente, lançar mão do nº 3 do artigo 729º da lei processual.
Trata-se de medida de excepção só utilizável quando ao conhecer do mérito – a questão de direito – concluir que existem contradições essenciais em pontos de facto que vão comprometer a decisão final, ou quando não foram considerados factos alegados pelas partes, ou, finalmente, quando foi desconsiderada matéria de conhecimento oficioso.

Só se concluindo que, sem eliminação dessas contradições, ou sem o alargamento da matéria de facto, a solução final está comprometida, é que se faz apelo a essa faculdade. (cf., no mesmo sentido, e v.g, o Acórdão do STJ – também desta conferência – de 30 de Maio de 2006 – Pº 1440/06-1ª).
Incensurável, em consequência, o Acórdão recorrido na parte em que se pronunciou sobre a matéria de facto.

2- Prescrição

Também não merece reparo a decisão recorrida quando acolheu a prescrição do direito peticionado.
O Autor vem efectivar a responsabilidade aquiliana do Réu por factos ilícitos ocorridos entre Março de 1999 e Agosto de 2000.
Logo conheceu as consequências (danos) que alega ter sofrido, sendo que até recebeu uma carta e aceitou pedido de desculpas do Réu em Julho de 2000.
A acção deu entrada em Juízo em Janeiro de 2004.
O prazo da prescrição do direito à indemnização (que, aqui, é de três anos, nos termos do nº 1 do artigo 498º do Código Civil) já tinha decorrido.
E como bem nota a Relação os factos verificados após Agosto de 2000 não integrariam ilícito gerador de responsabilidade extra contratual já que se traduziram no acatamento, pelo Réu, de decisão judicial determinativa de penhora de conta bancária, sendo que o erro na identificação do depositante – executado só poderia ser imputado ao Tribunal.

3- Conclusões

Resta concluir que:

a) O exercício, ou não, pela Relação dos poderes das alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 712º do CPC é incensurável pelo STJ sendo a respectiva decisão irrecorrível.
b) O STJ é essencialmente um Tribunal de revista, vocacionado para a uniformização de jurisprudência.
c) O uso da faculdade do nº 3 do artigo 729º do CPC é excepcional e dela só pode lançar-se mão se se concluir pela existência de contradições essenciais, desconsideração do alegado pelas partes ou matéria de conhecimento oficioso, tudo em pontos de facto, sem cuja eliminação, consideração ou esclarecimento fique comprometida a decisão final.
d) A redacção do artigo 690º A do CPC introduzida pelo Decreto-Lei nº 183/2000 de 18 de Agosto, dispensa o recorrente, que impugna a matéria de facto, de proceder à transcrição das passagens da gravação em que se funda, mas impõe-lhe a indicação dos pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgada que deve constar da alegação, nos termos do nº 1, alínea a) do artigo 690º A do CPC, sob pena de rejeição do pedido de reapreciação.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pelo recorrente.

Sebastião Póvoas (relator)
Moreira Alves
Alves Velho