Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1813/22.8YRLSB.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PRESSUPOSTOS
ESCRITURA PÚBLICA
DECISÃO
Data do Acordão: 11/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Conforme acórdão de uniformização de jurisprudência proferido no processo 151/21.8YRPRT.S1-A, A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não contém uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja suscetível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

Em ação especial de revisão de sentença estrangeira intentada por AA e BB, foi proferido acórdão que com um voto de vencido negou a revisão pretendida com fundamento em a decisão revidenda não ser uma sentença, mas sim uma escritura pública da qual não consta qualquer decisão do tabelião, mas apenas declarações dos outorgantes. A declaração dos requerentes numa escritura pública perante uma autoridade administrativa estrangeira de que vivem em união de facto não está, pois, abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1 do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada.

Desta decisão interpuseram os autores recurso de revista concluindo que:

 “Considerando que a escritura pública de união estável proferida por autoridade administrativa brasileira se ajusta ao conceito do art.º 978.º do CPC, e que a lei  aplicável à relação jurídica em causa é a lei brasileira, por não ser esta uma matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses, e estando presentes os requisitos do art.º 980 do CPC e ausentes os do art.º 983, deve ser revista e confirmada em Portugal a escritura pública declaratória de união estável de origem brasileira, na forma do art.º 10, n.º 3, al. a), do CPC, conferindo-se, assim, a boa e correta interpretação aos arts. 978.º, 980.º e 983.º, todos do CPC, ao citado art. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03 de outubro, ao art.º 14.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro, e arts 50.º e 52.º do Código Civil.”

Concluem pedindo que seja o acórdão do tribunal da Relação de Lisboa reformado, julgando-se procedente a revista para a finalidade de reconhecer a revisão e homologação da decisão administrativa brasileira que reconheceu a união de facto dos autores, conferindo-lhe a eficácia exigida pelo art. 978. do CPC.

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Não houve contra-alegações

Colhidos os vistos cumpre decidir.

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Fundamentação

Encontra-se provado que:

1 - Por escritura lavrada a 19 de fevereiro de 2009 no 2º Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos - ..., os requerentes declararam que “convivem maritalmente, como se casados fossem, desde o dia .../.../2007 (…), mantendo um estado conjugal e familiar em caráter de União Estável”.

2 - Consta no final da escritura o seguinte: “E, de como assim o disseram, dou fé e pediram-me que lhes lavrasse esta escritura a qual feita, depois de lida às partes, em voz alta, acharam-na em tudo conforme, aceitam, outorgam e assinam...”

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Por referência ao objeto do recurso que é o de saber se a revisão solicitada preenche os requisitos exigidos legalmente deve de imediato sublinhar-se que esta questão debatida e decidida na jurisprudência de forma contraditória , como o revela o voto de vencido do acórdão recorrido foi objeto de Recurso para uniformização de º151/21.8YRPRT.S1-A, transitado em julgado, que veio pôr termo à polémica uniformizando o entendimento de “ A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não contém uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja suscetível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.”.

Como fundamentos para esta decisão enunciou-se que o art. 978 do Código Civil determina que “ 1.  Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.

2.  Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa”. E com base neste preceito o conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, deve interpretar-se no sentido de designar “tão somente a decisão revestida de força de ‘caso julgado’ que recaia sobre ‘direitos privados’, isto é, sobre matéria civil e comercial” - cfr. António Marques dos Santos, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (alterações ao regime anterior)”, cit., pág. 105.

De acordo com esta exigência a escritura pública declaratória de união estável não contém uma decisão; nas escrituras públicas declaratórias de união estável os interessados declaram perante uma autoridade pública (perante um tabelião) constituição de um vínculo análogo ao vínculo conjugal. Por outro lado, nestas escrituras públicas declaratórias de união estável o tabelião nada decide — simplesmente, atesta, constata ou certifica as declarações emitidas pelos interessados

No que se refere ao segmento de saber se a escritura pública declaratória de união estável está revestida de força de caso julgado, o critério consensualmente adotado na interpretação do art. 978 do Código de Processo Civil é o de que “[a] sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes a situação jurídica” - cfr. Luís de Lima Pinheiro, “Regime interno de reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras”, págs. 567-568. Estando em causa uma escritura pública, deverá, por isso, averiguar-se : se a escritura pública declaratória de união estável define a situação jurídica e se a escritura pública declaratória de união estável define a situação jurídica em termos comparáveis a uma sentença declaratória de união estável transitada em julgado.

O facto de a escritura pública se prestar apenas como prova relativa da união estável tem como corolário que não define a situação jurídica ou, em todo o caso, não define a situação jurídica em termos comparáveis a uma sentença declaratória de união estável transitada em julgado. Não tendo a escritura pública declaratória nenhum efeito constitutivo da união estável fica excluído o seu efeito constitutivo, subsistindo apenas o efeito declarativo da escritura pública - para o efeito de reconhecer um direito, ou de reconhecer um conjunto de direitos, aos interessados.

Devendo entender-se que a escritura pública não reconhece nenhum direito e que os direitos dos companheiros não resultam da escritura esta (escritura pública declaratória de união estável) não contém nenhuma definição da situação jurídica dos declarantes e, ainda que contivesse, nunca conteria uma definição imodificável, em termos comparáveis aos de uma sentença declaratória de união estável transitada em julgado.

Por estas razões enunciadas no acórdão uniformizador deve julgar-se improcedente a revista e confirmar a decisão recorrida.

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Síntese conclusiva

- Conforme acórdão de uniformização de jurisprudência proferido no processo 151/21.8YRPRT.S1-A, A escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não contém uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados; daí que não seja suscetível de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses, nos termos dos arts. 978.º e ss. do Código de Processo Civil.

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Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem estre tribunal em julgar improcedente a revista e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 29 de novembro de 2022


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Nunes da Silva

2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves