Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1194/22.0T8EVR-A.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
MUNICÍPIO
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

É da competência material dos tribunais comuns (artigo 64º do CPC), e não dos tribunais administrativos, o conhecimento de um conflito respeitante ao incumprimento de um pré-contrato tendo por objeto a celebração de um contrato de compra e venda de imóvel do domínio privado do município, por tal contrato se encontrar excluído do âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos pelo artigo 4º, n.2, alínea c) deste diploma.

Decisão Texto Integral:

Processo n.1194/22.0T8EVR-A.E1.S1


Recorrente: Município de Sousel


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


RELATÓRIO


1. CLUBE DE TIRO DE SOUSEL propôs ação comum contra o MUNICÍPIO DE SOUSEL, pessoa coletiva de direito público, formulando os seguintes pedidos:


- que fosse “proferida sentença que substitua a declaração negocial do Réu, declarando que vende ao Autor o prédio urbano em propriedade total sem andares nem divisões, de utilização independente, sito no ..., Sousel, inscrito, na matriz predial urbana da freguesia de Sousel, concelho de Sousel, sob o artigo nº1514 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sousel, sob a descrição 1696, pelo valor declarado no pacto de opção, operando-se a transmissão para o Autor da propriedade do referido imóvel”;


- e que fosse “proferida sentença que substitua a declaração negocial do Réu, declarando que vende ao Autor o prédio rústico, denominado ... ao ..., sito no ..., Sousel, inscrito, na matriz predial rustica da freguesia de Sousel, concelho de Sousel, sob o artigo 87, secção M e descrito na Conservatória do Registo Predial de Sousel sob a descrição 1696, pelo valor declarado no pacto de opção, operando-se a transmissão para o Autor da propriedade do referido imóvel”.


2. Alegou, para o efeito, além do mais, ser o réu Município o atual proprietário do prédio cuja parte urbana lhe foi entregue, em 2004, através de contrato de arrendamento outorgado pelos anteriores proprietários desse prédio. Em novembro de 2011, tal prédio foi adquirido pelo réu, o qual passou a ocupar a posição contratual de senhorio, tendo a aquisição do prédio pelo réu o “propósito de o manter afeto à atividade e aos fins estatutários do autor e de o transmitir a este no futuro”, porque este já havia “ponderado a aquisição do referido prédio, todavia, não possuía capacidade financeira para suportar o valor da aquisição do prédio juntamente com os custos relativos às inúmeras obras de conservação urgentes de que o prédio urbano carecia”, motivo pelo qual, atenta a natureza do objeto e a atividade do autor, o negócio serviria o interesse associativo e coletivo do concelho.


Alegou que, dado o referido interesse, aquele prédio seria mantido na posse e afeto à atividade do autor, mediante um contrato de comodato, com a possibilidade e garantia de o prédio ser adquirido pelo autor no futuro. Assim se salvaguardariam os investimentos feitos no prédio pelo autor. Tal contrato de comodato foi celebrado em fevereiro de 2013, pelo período de 20 anos, contendo uma cláusula com o seguinte teor: “após ter decorrido 1/5 de tempo previsto no comodato, pode o segundo outorgante exercer opção de compra do imóvel ora comodatado pelo valor pago pela Câmara Municipal de Sousel no momento da aquisição, acrescido da taxa de inflação entretanto ocorrida em cada um dos anos até ao ano imediatamente anterior à opção de compra”.


Alegou ainda que, tendo decorrido o aludido prazo de 4 anos, remeteu missiva ao réu, em novembro de 2021, na qual comunicou o exercício do direito de opção, solicitando o cálculo do valor a pagar para a aquisição. Em resposta, pelo réu foi enviado um ofício de recusa de celebração do contrato de compra e venda, por se suscitarem “reservas” quanto ao direito de opção reconhecido em sede contratual.


3. O Réu contestou, invocando (além do mais e no que releva para o presente recurso) a exceção da incompetência absoluta dos tribunais judicias em razão da matéria, porquanto o contrato celebrado, por ter como parte outorgante o Município e respeitar a venda do património privado das autarquias locais, constitui matéria cuja apreciação é da competência dos tribunais administrativos e fiscais. Defendeu a nulidade do contrato, por ser ilegal a cláusula de opção de compra nele inserida, mencionando ainda a aplicabilidade de normas referentes ao procedimento de contratação pública que teriam sido preteridas, bem como nulidades de índole procedimental administrativista.


4. Por despacho de 29.12.2022, a primeira instância julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria dos tribunais da jurisdição comum, que o réu havia invocado.


5. Inconformado com essa decisão, o réu interpôs recurso de apelação. Porém, o TRE (sem voto de vencido e sem fundamentação divergente) julgou o recurso improcedente, tendo sintetizado o seu entendimento nos seguintes termos:


«Versando o objeto do litígio sobre a execução específica de um contrato de opção de compra, de natureza privada, não é o mesmo subsumível em qualquer das hipóteses previstas no artigo 4.º, n.º 1, do ETAF, apesar de o réu ser um Município, pelo que a competência material para conhecer da causa incumbe ao foro comum


6. Continuando inconformado, o réu apelante interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:


«1. À luz do disposto no art. 2º, nº 1, al. e), do CCP, o Recorrente é considerado entidade adjudicante, sendo os seus contratos, em princípio, contratos públicos, sujeitos às regras de formação e celebração de contratos constantes da Parte II do CCP.


2. O art. 4º, nº 2, do CCP, exclui vários tipos contratuais de todo o regime do CCP, mas o contrato dos autos, de comodato sobre bem imóvel do domínio privado de autarquia local (o Recorrente), não se encontra abrangido pela exclusão.


3. Desde logo, porque tal contrato não se encontra entre aqueles aí enumerados pelo legislador, sendo certo que, procedendo a tal enumeração, poderia tê-lo feito caso considerasse que, tal como a compra e venda ou arrendamento, o comodato também era objeto de exclusão do âmbito de aplicação do CCP.


4. Depois, porque, entendendo as Instâncias que o contrato dos autos está efetivamente excluído do regime do CCP por subsunção do mesmo no universo de “contratos similares”, era imprescindível a demonstração dessa similitude, ou seja, sustentar a conclusão de que ele é um contrato similar àqueles expressamente referenciados, o que as Instâncias não fizeram, limitando-se a afirmar que o contrato é um contrato similar àqueles, extraindo a conclusão sem apresentar a justificação.


5. E, ainda, porque o fundamento legislativo da exclusão de contratos do âmbito de aplicação do CCP operada pelo art. 4º, nº 2, não se verifica no caso concreto dos autos, em que é uma autarquia local a celebrar um contrato sobre bem imóvel do seu domínio privado, já que não existe regulamentação administrativa própria, ao contrário do que sucede, por exemplo, com o Estado ou institutos públicos, sujeitos às regras do citado Decreto-Lei nº 280/2007, de 7 de Agosto.


6. Tal fundamento pode verificar-se na generalidade das entidades públicas e até no domínio público das autarquias locais, por este estar sujeito ao regime do referido diploma, mas não se verifica no seu domínio privado, por ausência de regulamentação.


7. Assim, mesmo a considerar-se que o contrato de comodato se enquadra na referida categoria de “contratos similares”, a norma excludente, prevista na al. c), não pode aqui ser aplicada da forma que pretendem as Instâncias, sob pena de se contrariar os fundamentos e intenção da opção legislativa, antes devendo ser interpretada restritivamente no sentido de, quando não existe regulamentação administrativa própria sobre celebração do contrato em causa pela entidade adjudicante – como é o caso – não se aplica o aí disposto.


8. Tal é ainda aconselhado pela onerosidade do contrato, já que os casos de contratos gratuitos, nos termos da al. b) do mesmo nº 2, é que são suscetíveis de levar à exclusão do contrato do âmbito de aplicação do CCP, devendo os onerosos, em princípio, ser submetidos às suas regras.


9. Por estes motivos, o disposto no art. 4º, nº 2, al. c) do CCP, não é aplicável ao contrato dos autos no sentido de o excluir do regime do CCP, ficando sujeito às regras da sua Parte II quanto à formação e celebração por ter sido celebrado por entidade adjudicante.


10. A inobservância dessas regras, como se verifica no caso dos autos, em que houve uma total ausência de procedimento pré-contratual, acarreta a nulidade do contrato, nos termos do disposto nos arts. 284º, nº 2 do CCP e 161º, nº 2, al. l), do CPA.


11. E isto independentemente de se lhe aplicar ou não a Parte III do CCP, já que o art. 280º, nº 3, manda aplicar as regras da Parte III sobre invalidade dos contratos a quaisquer contratos públicos, embora se entenda que a Parte III é efetivamente aplicável por via do disposto no art. 280º, nº 1, al. d), sendo o Recorrente simultaneamente entidade adjudicante e contraente público, nos termos dos arts. 2º nº 1 al. c) e 3º nº 1 al. a) do CCP.


12. De harmonia com o disposto no art. 4º, nº 1, al. e) do ETAF, que atribui à jurisdição administrativa e fiscal competência para apreciar a validade e execução de contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública por pessoas coletivas de direito público, deverão ser os tribunais administrativos e fiscais a julgar a ação dos autos, devendo apreciando o pedido do Recorrido, não obstante respeitar a um instituto civilístico (execução específica) e o contrato ter natureza privada, pois não deixa de estar sujeito a um procedimento de contratação pública.


13. E se cabe à jurisdição administrativa apreciar os casos de contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por maioria de razão lhe cabe também apreciar os casos – como o dos autos – de contratos que deveriam tê-lo sido, não podendo a violação desse dever servir como causa de desaforamento, no sentido de subtrair à jurisdição competente a apreciação do litígio.


14. Sendo um dos argumentos de defesa do Recorrente na ação a invalidade da deliberação que antecedeu a outorga do contrato, enquanto ato administrativo praticado pelo executivo camarário então em funções e vício procedimental antecedente da celebração do contrato, a jurisdição administrativa é também competente por via do disposto na al. b) do nº 1 do art. 4º do ETAF.


15. Não procedendo o exposto, sempre se deverá considerar que a jurisdição administrativa é competente para julgar a ação dos autos, por força do disposto no art. 4º, nº 1, al. b) do ETAF, com base na sujeição do contrato dos autos a um procedimento de formação e celebração regulado por normas de direito administrativo (Dec. Lei nº 280/2007, de 07 de Agosto) que foi totalmente preterido, fazendo do ato administrativo de deliberação camarária que decidiu celebrar, sem mais, o contrato, nulo, nos termos do disposto no art. 161º, nº 2, al. l) do CPA.


16. Isto porque existe uma lacuna de regulamentação quanto à gestão e alienação dos bens imóveis integrantes do domínio privado das autarquias, integrada, nos termos do disposto no art. 10º do Código Civil, com recurso à aplicação analógica do Capítulo III do referido diploma.


17. É que, mesmo nos contratos privados, sejam ou não sobre bens imóveis do seu domínio privado, as autarquias locais estão sujeitas ao cumprimento dos princípios gerais da atividade administrativa, por força do disposto no art. 202º, nº 2 do CPA, o que as impede de atuar quanto a tais bens de forma que não sirva o interesse público e respeite os referidos princípios, como da isenção e da imparcialidade.


18. Dadas preocupações do legislador com um possível extravio do exercício da função administrativa para fins não servientes do interesse público no âmbito contratual privado, como resulta claro do disposto no art. 202º, nº 2, do CPA, é necessária uma regulação da disposição de imóveis do domínio das autarquias locais para assegurar que os respetivos atos dispositivos servem o interesse público e não são utilizados para desbaratar património das pessoas coletivas públicas que o devem prosseguir, o que melhor se consegue com a aplicação analógica do Capítulo III do Dec. Lei nº 280/2007, de 07 de Agosto, aos negócios sobre bens imóveis do domínio privado das autarquias.


19. Por fim, cabe referir que a relação em causa é tutelada com especial intensidade por tais princípios, por ser evidente, face ao assumido pelo próprio Recorrido, que o intuito do negócio dos autos foi única e exclusivamente beneficiá-lo a ele e à sua situação financeira, em contravenção, desde logo, com o princípio da prossecução do interesse público, em aparente desvio de poder, o que também fundamenta a atribuição de competência à jurisdição administrativa, nos termos do disposto no art. 4º, nº 1, al. b) do ETAF.


20. Pelo exposto, em nosso entendimento, de um modo ou outro, decidiu erradamente o tribunal “a quo”, ao julgar competente os tribunais comuns para conhecer do presente litígio assim violando o disposto nos arts. 4º nº 2 al. c), 280º nº 1 al. d) e 3 e 284º do CCP, 4º, 6º, 9º, 161º nº 2, al. l) e 202º n.º 2 do CPA, 10º do Código Civil e 4º nº 1, als. b) e e) do ETAF, impondo-se a sua revogação e, consequentemente, o reconhecimento da procedência da exceção da incompetência absoluta dos tribunais comuns, em razão da matéria, para julgar a presente ação, absolvendo-se o Recorrente da instância, nos termos do art. 99º, nº 1 do CPC.


Assim decidindo, farão, Vossas Excelências, a acostumada JUSTIÇA


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto da revista.


Estando em causa uma questão de competência do tribunal em razão da matéria, o recurso é sempre admissível, nos termos do artigo 629º, n.2, alínea a) do CPC, independentemente do valor da causa ou da sucumbência.


O objeto da revista, delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (art.635º, n.º4 do CPC) e tendo como referente o objeto da apelação, traduz-se apenas na apreciação de uma questão: a de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito (concretamente da lei processual) quando (confirmando a decisão da primeira instância) concluiu que a jurisdição competente para apreciar a ação é a jurisdição comum (como pretende o autor) e não a jurisdição administrativa (como pretende o réu). Cabe, portanto, a este tribunal fornecer uma resposta definitiva para o referido problema jurídico, não tendo de proceder ao rebatimento de todo e qualquer argumento que o recorrente invoca para sustentar a sua tese.


2. Factualidade relevante.


A factualidade relevante para a apreciação do objeto do recurso é a que já resulta do relatório supra exposto.


3. O direito aplicável.


3.1. As instâncias entenderam que o tribunal competente para apreciar o caso a que respeitam os presentes autos é o tribunal comum.


Diferentemente, o réu entende que devia ter sido absolvido da instância, nos termos do artigo 99º, n.º 1 do CPC, por se verificar uma hipótese de incompetência absoluta dos tribunais comuns, devendo ser competente a jurisdição dos tribunais administrativos.


Sendo o sistema jurisdicional integrado por jurisdições de diversa natureza, é inevitável o surgimento de dúvidas e de conflitos quanto à determinação do tribunal competente para a apreciação de matérias que possam apresentar (pelo menos aparentemente) caraterísticas qualificativas mistas, nomeadamente de direito privado e de direito público, que, em certas hipóteses, acabam por convocar a jurisprudência do Tribunal dos Conflitos (atualmente regulado pela Lei n.91/2019).


No caso a que respeitam os presentes autos, não existe, porém, qualquer conflito ou desarmonia decisória, porque as instâncias foram coincidentes no entendimento de que a competência pertence aos tribunais comuns. Dado que o réu manifesta discordância quanto a tal entendimento, e a lei lhe faculta o acesso ao terceiro grau de jurisdição, cabe concluir, se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei processual.


Sem necessidade de extensa teorização da fundamentação, porque está em causa uma questão que, em concreto, não apresenta particular complexidade, deve, desde já, afirmar-se que não assiste razão ao recorrente e que as instâncias fizeram a correta aplicação do direito ao caso concreto.


3.2. Determina o artigo 64º do CPC (sobre a competência dos tribunais em razão da matéria) que:


«São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».


Esta norma (que se encontra reproduzida no artigo 40º, n.1 da Lei n.62/2023 – Lei de Organização do Sistema Judiciário) estabelece, assim, um critério de natureza residual, concretizável em função de um juízo excludente de jurisdições delimitadas por caraterísticas qualificativas específicas.


No caso a que respeitam os presentes autos, importa testar o juízo de exclusão da competência dos tribunais administrativos para o conhecimento da pretensão do autor tal como ela é objetivamente formulada por este perante o tribunal (ou seja, sem entrar em considerações de mérito sobre a viabilidade concreta dessa pretensão), o que significa excluir a natureza administrativa do conflito em causa (excluindo a jurisdição dos tribunais administrativos - art.212º, n.3 da CRP).


O que o autor pretende é a celebração de um contrato de compra e venda de dois imóveis, por via substitutiva, ou seja, integrada por uma decisão judicial que produza o efeito que seria produzido pela declaração negocial em falta. O pedido do autor corresponde, assim, à celebração de um contrato de compra e venda destinado a produzir o efeito translativo (art. 408º, n.1 do CC) da propriedade dos referidos imóveis, que integra o domínio privado do réu.


O fundamento para tal pedido radica na invocada existência de uma convenção, inserida num contrato de comodato celebrado entre as partes, a qual conferiu ao autor o direito de vir a adquirir os referidos imóveis pelo preço correspondente à aplicação do critério de cálculo constante dessa cláusula.


Como consta do acórdão recorrido (extratando o conteúdo do contrato junto pelo autor e cuja existência não é impugnada pelo réu), no documento que titula o contrato de comodato, celebrado em fevereiro de 2013, pelo prazo de 20 anos, foi inserida uma cláusula com o seguinte teor:


«após ter decorrido 1/5 de tempo previsto no comodato, pode o segundo outorgante exercer opção de compra do imóvel ora comodatado pelo valor pago pela Câmara Municipal de Sousel no momento da aquisição, acrescido da taxa de inflação entretanto ocorrida em cada um dos anos até ao ano imediatamente anterior à opção de compra”.


Embora essa convenção (na qual se prevê a futura aquisição dos imóveis) se encontre formalmente coligada com um contrato de comodato, ela não integra a estrutura do referido comodato, sendo, pela sua natureza, uma convenção autónoma (um pré-contrato), que poderia ter sido firmada de modo separado.


É, assim, atendendo aos elementos tipológicos do pedido e da respetiva causa de pedir, com a configuração processual que o autor lhe atribui (ou seja, independentemente da concreta validade ou eficácia da convenção em que se sustenta, cuja apreciação cairá no âmbito do mérito do pedido) que se deve concluir qual a jurisdição própria para conhecer das pretensões do autor.


Este critério, segundo o qual se deve atender ao pedido e à causa de pedir, é aquele que tem sido reiteradamente seguido pela doutrina e pela jurisprudência para a identificação da natureza do litígio e, consequentemente, da jurisdição prevista para a sua apreciação (veja-se, por exemplo, a fundamentação do AUJ n.5/2022, publicado no DR em 21.06.2022).


3.3. Entende o réu que o contrato que as partes celebraram é um contrato de natureza administrativa, regulado pelo Código dos Contratos Públicos (aprovado pelo DL n.º 18/2008, de 29 de janeiro) e, por ter tal natureza, a competência para dirimir o conflito respeitante ao seu incumprimento caberia aos tribunais administrativos, nos termos do art. 4º do ETAF. Efetivamente, o réu sustenta que o contrato de comodato não se encontra entre aqueles que o artigo 4º, n.2 do Código dos Contratos Públicos exclui do seu âmbito de aplicação, por não ser um contrato oneroso, pelo que teria de ser considerado como um contrato administrativo.


Ora, como já se deixou referido, a pretensão do autor não respeita ao cumprimento do contrato de comodato (o qual tem vigorado desde 2013), mas sim ao cumprimento de um pré-contrato de compra e venda, a cuja celebração as partes se vincularam através da convenção que uniram ao contrato de comodato (sendo, para este efeito, irrelevante a concreta qualificação que se atribua a essa convenção, seja ela um pacto de opção ou um contrato-promessa), e que é normativamente autónoma do contrato de comodato.


Embora a ré seja um contraente público [nos termos do art.3.º, n.º 1, alínea a) do CCP], tal caraterística não é, por si só, suficiente para atribuir natureza administrativa a todo e qualquer contrato por si celebrado, na medida em que o próprio Código dos Contratos Públicos exclui do seu âmbito de aplicação determinados contratos.


Estabelece o artigo 4º, n.2 do CCP:


«O presente Código não é igualmente aplicável a:


(…)


c) Contratos de compra e venda, de doação, de permuta e de arrendamento de bens imóveis ou contratos similares


O contrato que foi objeto da convenção incumprida (segundo a alegação do autor), sendo um contrato de compra e venda, é precisamente um dos contratos excluídos do âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos, logo, não sendo um contrato de natureza administrativa, não são, consequentemente, os tribunais administrativos os competentes para conhecerem de tal matéria. Do mesmo modo se pode considerar que o próprio pré-contrato (seja um pacto de opção ou um contrato promessa), por respeitar à celebração de um futuro contrato de compra e venda, sempre seria, pela sua natureza, qualificável como um dos “contratos similares” a que se refere o artigo 4º, n.2, alínea c) do CCP.


Nestes termos, o recorrente não tem razão quando alega que o caso concreto seria comportável no âmbito de previsão do artigo 4º, n.1, alínea e) do ETAF, sendo, por isso, competentes os tribunais administrativos.


Determina o artigo 4º do ETAF:


«1- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:


(…)


e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;»



Feito este percurso, e concluindo-se que o contrato cuja celebração é pretendida pelo autor não tem natureza administrativa (sendo a sua formação e execução excluídas do âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos), e também não sendo identificável qualquer outro normativo que expressamente colocasse tal contrato no âmbito da “contratação pública”1, regressa-se ao critério de competência residual previsto no artigo 64º do CPC, pelo qual se conclui que a competência para a apreciação do caso concreto cabe aos tribunais comuns.


Em resumo, o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito ao caso concreto.


*


DECISÃO: Pelo exposto, decide-se negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 31.01.2024


Maria Olinda Garcia (Relatora)


António Barateiro Martins


Leonel Serôdio





______________________________________________

1. Veja-se, sobre a delimitação da competência dos tribunais administrativos em matéria contratual, a fundamentação do citado AUJ n.5/2022.↩︎