Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3908/18.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RECUSA DE CUMPRIMENTO
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
DEFEITOS
INFILTRAÇÕES
PROMITENTE-COMPRADOR
PROMITENTE-VENDEDOR
RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 01/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Porque inútil, não há que conhecer do recurso na parte em que se invoca violação do direito probatório material pela Relação relativamente a factos que se mostram irrelevantes para a solução jurídica da causa.

II. No contrato promessa de compra e venda de imóvel para habitação impende sobre o promitente vendedor, para além da obrigação de celebrar o contrato prometido, a obrigação de proceder ao aprontamento do bem a vender de forma que este esteja apto a realizar o fim a que se destina ou tenha as qualidades asseguradas, devendo a coisa objecto do contrato ser entregue pelo vendedor liberta de defeitos e em condições de poder vir a ser fruída e utilizada sem restrições e sem percalços.

III. Se o imóvel prometido vender enferma de defeitos, que não sejam de escassa ou reduzida importância, não pode o promitente comprador ser obrigado a adquirir uma coisa que não está em conformidade com o que foi estabelecido vender; nesse caso é lícito ao promitente comprador recusar a outorga da escritura de compra e venda enquanto o promitente vendedor não proceder à reparação ou eliminação dos defeitos.

IV. Sendo a recusa de outorgar a escritura lícita, não assiste ao promitente vendedor o direito à resolução do contrato.

V. A amplitude e a concepção de vício inerente à utilidade de uma coisa, possuindo uma dimensão ou compreensão objectiva, que atina com a essencialidade do uso ou função a que a coisa se destina, não pode deixar de ser percepcionada como uma prefiguração subjectiva, dado que a utilidade possui, inegavelmente, uma dimensão subjectiva.

VI. Quem intenta adquirir uma habitação (nova ou reabilitada) para aí se viver ambiciona um local com boas condições de habitabilidade e conforto, entre as quais está a sua estanquicidade, não sendo suposto que na habitação haja manifestações de infiltrações.

VII. A ocorrência de infiltrações num canto do tecto da sala, criando uma bolha por empolamento e barramento nas placas de gesso cartonado do tecto e parede, tornando previsível a ocorrência de escorrências de água para o chão e a ocorrência de curto-circuito nos equipamentos de iluminação que passam no tecto, ainda que não elimine de todo as condições de habitabilidade, não deixa de as afectar significativamente, não podendo ser considerada como de escassa ou diminuta importância.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARARTIVA


ENTRE


JARDIMESC – INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, Ldª
(aqui patrocinada por AA, adv.)

Autora / Apelada / Recorrente

CONTRA

BB

(aqui patrocinado por CC, adv.)

Réu / Apelante / Recorrido



I – Relatório


A Autora intentou a presente acção pedindo se declarasse resolvido o contrato promessa de compra e venda que celebrou com o Réu, por incumprimento definitivo deste, se reconhecesse o direito a fazer seu o sinal prestado e se condenasse o Réu a restituir-lhe o imóvel objecto daquele contrato promessa, do qual ocorreu ‘traditio’, bem como a pagar uma indemnização pela ocupação do mesmo à razão de 1.050,00 € / mês.

Alega para fundamentar tal pedido ter o Réu faltado nas quatro datas designadas para a realização da escritura e para que oportunamente o interpelou, com a indicação de perda de interesse na realização do contrato.

O Réu contestou invocando a excepção de não cumprimento uma vez que a Autora não procedeu à reparação das infiltrações de que padece o imóvel prometido vender, sendo lícita a sua recusa em celebrar o contrato prometido e o abuso de direito na resolução do contrato promessa. Em reconvenção, pediu a condenação da Ré a reparar os defeitos existentes no imóvel, na redução do preço e a reconhecer-lhe direito de retenção; subsidiariamente, a ressarci-lo das benfeitorias feitas no imóvel.

Apenas o primeiro e último dos referidos pedidos reconvencionais foram admitidos.

A final foi proferida sentença que, considerando que o Réu faltou a todas as datas em que foi interpelado para proceder à realização da escritura e que «a existência de defeitos na coisa prometida vender não constitui fundamento bastante para o incumprimento, porque inexiste correlação directa entre uma e outra das prestações», julgou lícita a resolução com o concomitante direito a fazer seu o sinal com exclusão de qualquer outra indemnização, declarando o contrato promessa resolvido, reconhecendo o direito da Autora a fazer seu o sinal entregue, condenando o Réu a restituir o imóvel e absolvendo-o do demais pedido; assim com absolveu a Autora dos subsistentes pedidos reconvencionais.

Inconformado, apelou o Réu concluindo, em síntese, por excesso de pronúncia, erro na determinação da base factual e erro de direito.

A Relação, depois de considerar não padecer a sentença de nulidade e alterar a matéria de facto, considerando que seria «duma violência iníqua exigir que o R. fosse obrigado a comprar a sua casa de habitação nessas condições [com infiltração na sala com escorrências que possibilitam a ocorrência de curto-circuito], tal como seria violência atroz impor ao R. a perda do sinal de €132.750,00, em conjunto com a perda da casa onde já habita», qualificou o exercício do direito à resolução como abusivo, por contrário as ditames da boa-fé, revogando a sentença recorrida na parte em que declarou a resolução do contrato promessa, reconheceu o direito da Autora a fazer seu o sinal entregue e condenou o Réu a restituir o imóvel.

  Agora irresignada interpôs a Autora recurso de revista, nos termos do art.º 671º, nº 1, do CPC, concluindo, em síntese, por violação do direito probatório ao alterar a matéria de facto e por erro de julgamento porquanto inexiste abuso de direito.

   Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

II – Da admissibilidade e objecto do recurso


A situação tributária mostra-se regularizada.

   O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

   Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

   O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).

   Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

    Destarte, o recurso merece conhecimento.

     Vejamos se merece provimento.

           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

  De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

   Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

    Por outro lado, também os recursos estão sujeitos à regra da utilidade (art.º 130º do CPC), ou seja, só é legítimo invocar nos recursos questões que sejam relevantes e determinantes para a alteração ou anulação da decisão tomada.

   Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, desde logo se constata que a imputada violação do direito probatório pela Relação ao alterar a matéria de facto relativamente ao momento do conhecimento da comunicação da primeira data para a realização da escritura, não deve conhecida, por inutilidade, uma vez que, como a própria Recorrente reconhece “a mesma não é determinante” para o resultado do recurso.

    A única questão a conhecer é assim a de saber se é ilegítima a resolução contratual intentada pela Autora / Recorrente.


III – Os factos


Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:

1 - Em 2-11-2015, a A. prometeu vender e a R. prometeu comprar a fracção autónoma designada pela letra “D” correspondente ao …º andar do prédio urbano sito na Rua..., ..., freguesia de ..., em ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...21.

2 - O preço acordado foi de € 185 000, 00.

3 - A título de sinal e princípio de pagamento o R. entregou à A. € 27 750, 00.

4 - Nos termos da cláusula 4.ª a outorga do contrato definitivo deveria ter lugar até 30 após a emissão da licença de utilização.

5 - Nos termos da cláusula 13.ª/4, no caso de o promitente comprador, independentemente do motivo, não celebrar a escritura pública na data acordada entre as partes, nem nos 30 dias subsequentes, e tendo havido tradição da coisa, confere à promitente vendedora o direito de resolver automaticamente o presente contrato e para além de fazer suas todas as quantias recebidas a título de sinal e respectivo reforço” (cláusula 13.ª/4) (doc. 1 da P.I.).

6 - Em 4 de Maio de 2016, foi subscrito por A. e R. documento que intitularam “Adenda ao Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado em 02/01/2015” (a indicação do mês é lapso, pois deveria constar “11”) (doc. 2 da P.I.).

7 - Foram alterados os termos das cláusulas 3ª, 4ª, 9ª, 10ª e 11ª e revogados os termos da cláusula 5ª e do nº 3 da cláusula 13ª.

8 - Nessa data concretizou-se a tradição material do imóvel (n.º 1 da Cláusula 10.ª).

9 - A. e R. estabeleceram que “a quantia de 100.000,00 € (cem mil euros), a título de reforço de sinal e princípio de pagamento, será paga, através de cheque bancário, pelo promitente comprador, na data de realização da vistoria das obras realizadas”. (alínea b) da cláusula 3.ª).

10 - Na cláusula 9.ª foram elencadas as obras que restavam concluir.

11 - Nos termos da cláusula 11.ª, o promitente comprador obrigou-se a suportar e pagar todas as despesas de conservação e manutenção das partes comuns do edifício, que não decorram das obras actualmente em curso”.

12 - Na sequência desta adenda, foram efectuadas as obras previstas na cláusula 9ª e em 30 de Maio de 2016, foi lavrado e subscrito, por ambas as partes, o termo de vistoria (doc. 3 da P.I.).

13 - No termo de vistoria “As partes declaram, que na presente data as obras de reabilitação encontram-se totalmente concluídas e conforme o acordado entre as partes, bem como de acordo com o Projecto e as Especificações Técnicas anexas ao Contrato Promessa de Compra e Venda do imóvel”.

14 - “O promitente comprador declara a sua concordância com todas as obras de reabilitação efectuadas, bem como, que o imóvel se encontra totalmente concluído”.

15 - Nessa data “o promitente comprador efectuou o pagamento ao promitente vendedor da quantia de 100.000,00 € (cem mil euros), a título de reforço de sinal e princípio de pagamento”.

16 - De acordo com o projecto aprovado - e do conhecimento do R. (cf. considerandos do CPCV) -, a fracção prometida vender tinha acesso a um logradouro, que sendo parte comum, estava, exclusivamente, adstrito ao seu uso.

17 - A sociedade promotora tomou conhecimento de um despacho proferido no âmbito do processo de concessão da Licença de Utilização, pela Câmara Municipal ... e do teor de alguns considerandos, nomeadamente que “já no que se refere à colocação da grelha no pavimento do logradouro, não poderá ser aceite uma vez que o morador do piso inferior reclama que lhe prejudica a iluminação”. “Face ao exposto, propõe-se notificar a entidade requerente que a Licença de Utilização só poderá ser emitida quando a grade do logradouro estiver conforme projecto aprovado” (doc. 4 da P.I.).

18 - A sociedade promotora tomou conhecimento de um despacho proferido no âmbito do processo de concessão da Licença de Utilização, pela Câmara Municipal ... e do teor de alguns considerandos, nomeadamente que “já no que se refere à colocação da grelha no pavimento do logradouro, não poderá ser aceite uma vez que o morador do piso inferior reclama que lhe prejudica a iluminação”

“Face ao exposto, propõe-se notificar a entidade requerente (de) que a Licença de Utilização só poderá ser emitida quando a grade do logradouro estiver conforme projecto aprovado” (doc. 4).

19 - Por carta datada de 12 de Julho de 2016, o R. comunicou à A. que “o chão da sala foi danificado, apresentado manchas, aparentemente relacionadas com o uso de abrasivos, de que o N/Constituinte apenas tomou conhecimento após aceitação da obra, dado que na vistoria realizada apenas foi verificada a conformidade das obras descritas na adenda ao contrato promessa de compra e venda celebrado” (doc. 2 da contestação, a fls. 120).

20 - Em Novembro de 2016, a A., informou o R. da notificação da decisão final da Câmara Municipal ..., recusando a emissão da Licença de Utilização, enquanto a grelha metálica existisse no pátio/logradouro (docs. 5 e 6).

21 - A A. foi promovendo as diligências possíveis, junto da promotora, para obtenção da Licença de Utilização das outras fracções do prédio.

22 - O que viria a ser alcançado, através de despacho do Director Municipal de Urbanismo, de 27 de Dezembro de 2016 (doc. 7).

23 - Em 28 Dezembro de 2016, a A. enviou carta registada ao R., a solicitar a sua colaboração, para retirar o gradil, referindo, nomeadamente, “Mais informamos, que na reunião do passado dia 21 de Dezembro de 2016, a Câmara Municipal ... informou que vai emitir a Licença de Utilização das restantes sete fracções existentes no prédio, ficando a Licença de Utilização da fracção prometida comprar por V.Exa., pendente de emissão enquanto o pavimento de acesso ao pátio não for colocado em conformidade com o projecto aprovado”.

“Assim e tendo como objectivo a emissão da Licença de Utilização da fracção, urge proceder-se à remoção do pavimento actualmente existente, com a maior brevidade possível”.

E pedindo, “Para o efeito, solicitamos a V.Exa. que faculte à Jardimesc – Investimentos Imobiliários, Lda., o acesso ao pátio, sendo numa primeira fase, para deslocação do empreiteiro para verificar a obra a executar, a melhor forma de execução e duração da mesma, e numa segunda fase para execução e conclusão da obra”.

Concluindo “Mais informamos que todas as obras serão efectuadas e custeadas pela Jardimesc – Investimentos Imobiliários, Lda., não resultando daí qualquer encargo para V.Exa., razão pela qual, solicitamos a maior colaboração por parte de V.Exa., de forma que toda esta operação seja efectuada com a maior celeridade possível e o mínimo de incómodo para ambas as partes” (doc. 8).

24 - Esta comunicação foi reenviada, em 18/01/17, para a Mandatária do R. e foi recebida (doc. 9)

25 - Foi reenviada em 26 de Janeiro, para outra morada do R., que foi recebida (doc. 10).

26 - Tendo sido comunicadas as datas de 16, 18 e 19 de Janeiro, em que o arquitecto responsável e o empreiteiro estariam disponíveis para se deslocar ao local.

27 - Em 16 de Maio de 2017, a A. informou o R. de que em face da necessidade do cumprimento do despacho camarário e tendo em conta que o acesso ao pátio – parte comum do prédio –, era possível a partir do piso inferior, tal iria ser concretizado, de molde a regularizar a situação.

28 - O que viria a concretizar-se em 19 de Maio de 2017 - sem a presença do R. -, com a supressão do gradil.

29 - O que viabilizou a emissão da Licença de Utilização global, no dia 26 de Julho de 2017, incluindo a fracção prometida vender (doc. 11).

30 - Que se obteria após despacho de 22 de Junho (doc. 12).

31 - A que se seguiu a obtenção de outra documentação indispensável à outorga da escritura de compra e venda, nomeadamente, certificado energético, caderneta predial, certidão permanente da A. e pedido do exercício legal do direito de preferência (docs. 13, 14, 15 e 16).

32 - Obtida a documentação, a A. remeteu ao R. a carta datada de 28 de Setembro de 2017 (cf. doc. 17 da p.i.), pela qual pretendia comunicar que a outorga da escritura seria no dia 13 de Outubro de 2017, no Cartório Notarial da Dra. DD. [alterado pela Relação. Redacção inicial: Obtida a documentação, a A. viria a notificar o R., em 28/09/2017, para outorga da escritura no dia 13 de Outubro de 2017, no Cartório Notarial da Dra. DD. (doc. 17)].

33 - Referindo-se nessa convocatória “serve ainda a presente notificação para interpelar V.Exa. de forma admonitória, sob pena de perda de interesse da M/ Constituinte e da conversão da mora em incumprimento definitivo de uma nova data para a celebração do contrato prometido, o próximo dia 20 de Outubro, à mesma hora e no mesmo local”.

34 - Esta comunicação foi recebida pelo R. e era por este conhecida pelo menos em 16 de Outubro de 2017 [Alterado pela Relação. Redacção inicial: Esta comunicação foi recebida pelo R.]

35 - O R. não compareceu na escritura em nenhuma das datas. (doc. 18).

36 - Em 16 de Outubro de 2017, o R. enviou carta à A., em que, assinaladamente, se lê:

Ocorre que, e como é do Vosso conhecimento, desde o passado dia 21 de Agosto de 2017 que me deparo com uma situação de abundante queda de água no tecto do imóvel em apreço.

No seguimento da sugestão por si apresentada, providenciei pela imediata participação do sucedido ao seguro do condomínio, assim como contactei os proprietários da fracção de cima, no sentido de averiguar se a ocorrência provinha daquela fracção, os quais acabaram, também eles, por participar o sucedido ao seu seguro com vista ao apuramento e expedita identificação do foco da infiltração.

Realizadas as perícias, os peritos transmitiram-nos que a infiltração verificada podia ter mais do que uma causa possível, apontando como causas possíveis:; i. a proveniência de água de um tubo que passa no local onde ocorre a queda; ii. a proveniência de água de um aparelho de ar condicionado; ou iii. resultar da infiltração de água das chuvas que se acumula e provém do prédio contíguo.

Sucede que não obstante o fornecimento de água do prédio contíguo já ter sido interrompido e após um prolongado período de seca e altas temperaturas, certo é que continua a verificar-se a queda de quantidades significativas de água no interior do imóvel, o que coloca em crise qualquer conjectura de origem externa do problema de infiltração e queda de água (…)

Os defeitos que o imóvel veio a evidenciar obrigam-me a concluir que o mesmo não preenche os requisitos habitacionais adequados, pois denota-se que no seu interior entra água, não assegurando, assim, as condições para nele se estabelecer uma vivência condigna e adequada.

O defeito em causa não só não é insignificante, como é indeterminável na sua extensão e eventuais proporções que possa assumir, sendo certo que, e até à presente data, V. Exa. não adoptou qualquer tipo de diligência tendente ao seu apuramento e eliminação.

Ora tudo o exposto evidencia a existência de defeitos no imóvel a adquirir, os quais urgem ser eliminados e obstam, necessariamente, ao meu comparecimento no notário para celebração da escritura enquanto os mesmos não forme apurados e eliminados, sem prejuízo da manutenção do meu interesse na aquisição do imóvel.

Em virtude de todo o exposto, solicito pela presente que V. Exa. se digne informar-me das diligências que pretende realizar para o apuramento e eliminação do defeito em apreço (doc. 19 da P.I., a fls. 51).

37 - Em resposta, a A., em 24 de Outubro, enviou comunicação ao R., referindo, nomeadamente, que “a não comparência à escritura de compra e venda, não poderá ser atendível, uma vez que (5) como bem refere na missiva (5), a responsabilidade pela ocorrência que se verifica no apartamento foi objecto das devidas participações às Companhias de Seguros, tendo os peritos já efectuado uma peritagem ao local (que foi acompanhada pelo meu mandatário), entendo, estar esta questão a ser devidamente tratada e acompanhada”

“A infiltração existente localiza-se na sala de estar, aproximada de um dos cantos, o que em muito pouco ou nada prejudica a habitabilidade da fracção”.

“A tradição do imóvel para a posse de V.Exa, ocorreu a 4 de Maio de 2016, i.e. durante cerca de um ano e meio o apartamento teve todas as condições de habitabilidade, que ainda hoje se mantêm” (doc. 20).

38 - A A. efectuou convocatória para outorga da escritura para 8 de Novembro às 12h, no Cartório Notarial da Dra. DD.

39 - Escreveu que “caso V. Exa. não se apresente, na data, hora e local supra mencionados, devidamente habilitado para celebrar o contrato prometido, serve ainda a presente notificação para interpelar V.Exa., de forma admonitória, sob pena de perda do interesse e de conversão de mora em incumprimento definitivo, de uma nova data para a celebração do contrato prometido, o próximo dia 15 de Novembro, à mesma hora e no mesmo local”.

40 - Em 8 de Novembro, o R. não compareceu no local e hora designados, para outorga da escritura definitiva de compra e venda (doc. 21).

41 - Em 15 de Novembro, o R. não compareceu no local e hora designados para a outorga definitiva da escritura de compra e venda (doc. 22).

42 - A A. enviou uma comunicação ao R., no dia 11 de Dezembro, procedendo à resolução do contrato (doc. 24).

43 - Em 15 de Dezembro de 2017 foi expedida carta pelo R., para a A. da qual, assinaladamente, consta manter o interesse na aquisição do imóvel e em que se lê V.Exa. não podia, nem pode, desconhecer os motivos que me opõem à outorga da escritura de compra e venda (doc. 25).

44 - Por iniciativa do R. tiveram lugar, no imóvel, adaptação das caixas de aparelhagem por baixo da chaminé, fornecimento e montagem de sistema regulador de iluminação na sala, e de iluminação interior dos armários do quarto, fornecimento e montagem de interruptor simples para comando de iluminação de banca de cozinha e no quarto, abertura e encerramento de roços e instalação de torneira misturadora de bidé.

45 - Existe uma infiltração junto a um dos cantos do tecto da sala, que deu origem a uma bolha de humidade com indícios de empolamento na pintura e barramento em redor de uma das placas de gesso cartonado do tecto e na parede imediatamente adjacente.

46 - Atenta a dimensão da bolha de empolamento da tinta no tecto falso da sala, é plausível que caia água no tecto.

47 - A infiltração acarreta risco de curto circuito porque no tecto falso estão instalados equipamentos de iluminação que entrarão em contacto directo com a água.

48 - O imóvel situa-se em ..., na freguesia de ..., perto da ..., possuindo uma área útil de 50, 40 m2, logradouro de cerca de 15 m2 e área bruta de 86, 20 m2.

49 - O imóvel tem um valor locativo médio mensal de € 1 005, 30.

50 - As obras a que se refere o facto assente n.º 44 valorizaram o imóvel em cerca de € 830, 83.

51 - O custo das obras em causa foi suportado pelo R. e/ou por sua mãe.           


IV – O direito


Há muito que se considera que vínculo obrigacional engloba, não só um mero dever de prestar com a correlativa pretensão creditícia, mas sim vários elementos jurídicos autónomos, que permitem fazer de um conteúdo unitário uma realidade composta: fala-se, assim, da complexidade intra-obrigacional.

Por outras palavras, em qualquer relação contratual reconhecem-se, a par de uma ou várias obrigações principais (decorrentes para as partes do contrato celebrado, que definem o seu fulcro ou núcleo dominante), outras, secundárias (decorrentes da prestação principal, mas meramente acessórias da mesma - quando se destinem a preparar o cumprimento ou a assegurar a perfeita execução da prestação -, ou decorrentes da prestação principal, mas com prestação autónoma - relativas a prestações substitutivas ou complementares da prestação principal, e as compreendidas nas operações de liquidação das relações obrigacionais duradouras); e ainda outras, acessórias ou de conduta (decorrentes da boa fé objectiva, deveres que não interessando directamente à prestação principal, são todavia essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra).

   Os deveres acessórios de conduta podem ser tipificados como deveres acessórios de protecção (as partes, enquanto perdure um fenómeno contratual, estão ligadas a evitar que, no âmbito desse fenómeno, sejam infligidos danos mútuos, nas suas pessoas ou nos seus patrimónios), deveres acessórios de esclarecimento (na vigência do contrato as partes devem informar-se mutuamente de todos os aspectos atinentes ao vínculo, de ocorrências que com ele tenham relação e, ainda, de todos os efeitos que da execução do contrato possam advir) e deveres acessórios de lealdade (as partes devem abster-se de comportamentos que possam falsear, ou mesmo adoptar comportamentos que impeçam, o objectivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações).

Logo, a violação de qualquer desses aspectos consubstancia, por constituir violação dos deveres inscritos na relação obrigacional, incumprimento contratual (cf. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, 2ª reimpressão, 2001, págs. 586-608 e acórdãos do STJ de 09MAR2010, proc. 5647/05.6TVLSB.S1 e 27NOV2018, proc. 4724/10.6TBSTB.E1.S1).


É insofismável que no âmbito do contrato promessa de compra e venda de imóvel o dever principal de prestação que recai sobre o promitente vendedor corresponde à emissão da declaração de venda. Mas não se pode perder de vista que estando o mesmo vinculado a proceder de boa-fé na realização daquela prestação em função do quadro contratual (art.º 762º, nº 2, do CCiv), e tendo em vista a cabal realização do escopo contratual, aquele dever principal implica a realização de outras prestações tendentes a preparar aquele cumprimento; designadamente no que concerne às diligências necessárias à obtenção do necessário para a realização da escritura e ao aprontamento do bem a vender de forma a que este esteja apto a realizar o fim a que se destina ou tenha as qualidades asseguradas (cf. ANA PRATA , O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil, reimpressão, 1999, págs. 660-661).

Daí que se entenda que “se a coisa objecto do contrato deve ser entregue pelo vendedor liberta de defeitos e em condições de poder vir a ser fruída e utilizada sem restrições e sem percalços ulteriores decorrentes que a coisa ostente” não pode esse comprador “ser obrigado a, no momento da escritura, adquirir uma coisa que o vendedor reconhece não estar em conformidade com o que foi estabelecido vender” (acórdão do STJ de 20OUT2011, proc. 4564/07.0TVLSB.L1.S1). E, consequentemente, que se o imóvel prometido vender enferma de defeitos é lícito ao promitente comprador recusar a outorga da escritura de compra e venda  enquanto o promitente vendedor não proceder á reparação ou eliminação dos defeitos (divergindo-se apenas no enquadramento da legitimidade da recusa no regime da excepção de não cumprimento (art.º 428º do CCiv) – acórdãos do STJ de 25MAR2004, proc. 398/04, 13NOV2007, proc. 2740/07 – ou noutro regime legal – acórdãos do STJ de 02DEZ2013, proc. 157/07.0TBOER,L1.S1, e 09FEV2012, proc. 354/2002.P1.S1).

No entanto essa mesma jurisprudência coloca como limite àquela legitimidade da recusa que o recusante não se encontre também ele em incumprimento, que o vício invocado não seja de escassa ou reduzida importância, sendo insusceptível de afectar seriamente o escopo contratual, e que tal recusa não se configure como desproporcionada.


Insurgindo-se contra o entendimento da Relação, alinhado com o enquadramento acabado de aduzir, que considerou a sua declaração resolutiva ilegítima por reconhecer antes a legitimidade da recusa do Réu em outorgar a escritura de compra e venda, vem a Recorrente alinhar os seguintes argumentos: encontra-se verificada a circunstância atributiva do direito à resolução expressamente convencionada pelas partes; o invocado defeito não lhe resulta imputado; tal defeito padece de gravidade; e a ocorrência de conduta omissiva do Réu.

Apreciemos essa argumentação.


Foi convencionado (facto 5) que no caso «de o promitente comprador, independentemente do motivo, não celebrar a escritura pública na data acordada entre as partes, nem nos 30 dias subsequentes, e tendo havido tradição da coisa, confere à promitente vendedora o direito de resolver automaticamente o presente contrato e para além de fazer suas todas as quantias recebidas a título de sinal e respectivo reforço» defendendo a Recorrente que daí resulta que o direito de resolução, por vontade expressa das partes no exercício da sua liberdade contratual, surge com o facto objectivo (porque independente do motivo) da não celebração da escritura imputável ao Réu.

Ocorre que a liberdade contratual só releva enquanto se situar dentro dos limites da lei (art.º 405º do CCiv) e que a convenção de possibilidade de resolução no caso de não celebração da escritura, independentemente do motivo, constitui uma renúncia antecipada à invocação de causas de justificação, que se entende, desproporcionada e contrária bons bons costumes (o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé), o que torna inválida tal convenção (art.º 280º do CCiv). No mesmo sentido, embora focado na excepção de não cumprimento, pode ler-se JOSÉ JOÃO ABRANTES, A Excepção de não Cumprimento do Contrato, Almedina, 2020, p. 181-182.

Ademais, essa cláusula delimitava o seu campo de actuação à situação de não realização da escritura “na data acordada entre as partes” e no caso as datas designadas para a realização da escritura não foram acordadas entre as partes, mas designadas unilateralmente pela Recorrente, pelo que a mesma não seria aplicável à situação.


É certo que os autos revelam alguma ambiguidade relativamente à imputação do defeito à actividade da Recorrente; em particular que o defeito invocado (cuja existência a Recorrente reconhece - facto 37) resulte da deficiente execução das obras de reabilitação do imóvel levadas a cabo pela Recorrente.

Mas não é menos certo que essa imputação se haverá de presumir nos termos do art.º 2º, nº 2, al. d), do DL 67/2003, na versão republicada com o DL 84/2008, 21MAI. E a recorrente não ilidiu essa presunção.


No que tange à gravidade do defeito haverá desde logo de observar que não se exige, para a relevância do mesmo enquanto causa justificativa do incumprimento, que o defeito seja grave, mas antes que o mesmo não seja de escassa ou diminuta importância (cf. art.º 802º, nº 2, do CCiv).

Por outro lado haverá de considerar-se, como salientado no acórdão do STJ de 20OUT2011, proc. 4564/07.0TVLSB.L1.S1, que «a amplitude e a concepção de vício inerente à utilidade de uma coisa, possuindo uma dimensão ou compreensão objectiva, que atina com a essencialidade do uso ou função a que a coisa se destina, não pode deixar de ser percepcionada como uma prefiguração subjectiva, dado que a utilidade possui, inegavelmente, uma dimensão subjectiva».

Quem intenta adquirir uma habitação (nova ou reabilitada) para aí se viver ambiciona um local com boas condições de habitabilidade e conforto. E entre as qualidades inerentes a uma habitação (ademais nova ou reabilitada) está a sua estanquicidade; não é suposto que na habitação haja manifestações de infiltrações. Nesse circunstancialismo, a ocorrência de infiltrações num canto do tecto da sala, criando um a bolha por empolamento e barramento nas placas de gesso cartonado do tecto e parede, tornando previsível a ocorrência de escorrências de água para o chão e a ocorrência de curto-circuito nos equipamentos de iluminação que passam no tecto (factos 45 a 47), se bem que não elimine de todo as condições de habitabilidade, não deixa de as afectar significativamente, não podendo ser considerada como de escassa ou diminuta importância.


Por último, também não resulta dos autos qualquer comportamento omissivo por banda do Réu na denúncia do invocado defeito. Com efeito não só do teor da carta de 16OUT2017 – facto 36 – não se extrai que seja com ela que se procede à denúncia do defeito, como se evidencia, quer pelos seus termos (“como é do vosso conhecimento”) quer pelo teor da resposta – facto 37 – que efectivamente a Recorrente já tinha do facto conhecimento.


Dessa forma, mostrando-se infundadas as objecções levantadas pela Recorrente, há de concluir ser legítima a recusa do Réu em outorgar a escritura de compra e venda enquanto não for reparada a infiltração que se manifestou no tecto da sala e, consequentemente, tal facto não poder constituir fundamento para a resolução do contrato.


V – Decisão

Termos em que se decide:

- não conhecer do recurso quanto à imputada violação do direito probatório:

 - no mais, negar a revista confirmando o acórdão recorrido.


Custas da revista pela Recorrente.

                                                                                  


Lisboa, 27JAN2022


Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista