Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1239/11.9TBBRG-E.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: INSOLVÊNCIA
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
FUNDAMENTOS
FACTO CONSTITUTIVO
FACTO IMPEDITIVO
ÓNUS DA PROVA
CONTAGEM DOS JUROS
Data do Acordão: 06/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS/ PROVAS
DIREITO COMERCIAL - INSOLVÊNCIA DE EMPRESAS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - SENTENÇA - RECURSOS
Doutrina: - Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis, 2005, 168.
- Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência. Uma Introdução, 4ª edição, Almedina, 2010, 25, 138, 139, 140.
- Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2ª edição, 1970, 236 e ss.
- Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Reimpressão, Quid Juris, 2009, 72, 784.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, revista e actualizada por Herculano Esteves, 1976, 130.
- Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 5ª edição, 2009, Almedina, 241.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, I, 2011, 76 e 77; Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4ª edição, 2001, 356 e 357.
- Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, Fascículo 1º, 1946, 196.
- Pupo Correia, Direito Comercial, Direito da Empresa, 10ª edição, revista e actualizada, 2007, 42 e 46.
Legislação Nacional: CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE), NA REDACÇÃO ANTERIOR À LEI Nº 16/2012, DE 20-4: - ARTIGOS 2.º, 5.º, 18.º, N.ºS 1 E 2, 27º, Nº 1, A) E B), 48.º, N.º1, B), 162.º, 186.º, N.º5, 235.º, 236.º, N.º1 E 4, 238.º, N.ºS 1 E 2, 243.º, 244.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 10.º, N.º2, 342.º, N.º2.
CÓDIGO COMERCIAL: - ARTIGO 13.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 660.º, N.º 2, 715.º, N.º2, 726.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 21-10-2010, Pº Nº 3850/09.9TBVLG.-D.P1.S1, WWW.DGSI.PT
-DE 6-7-2011, Pº Nº 7295/08.OTBBRG.G1.S1;
-DE 24-1-2012, Pº Nº 152/10.1TBBRG-E.G1.S1, WWW.DGSI.PT
Sumário :

I - A exoneração do passivo restante é um regime particular de insolvência que redunda em benefício das pessoas singulares, com vista à obtenção do perdão da quase totalidade das suas dívidas remanescentes, mas que não tem por objectivo específico as dívidas da massa insolvente, representando um desvio enorme na finalidade, última do processo de insolvência, da satisfação dos interesses dos credores.

II - Só depois da satisfação do interesse do devedor, surge, em segundo plano, como finalidade do instituto, a realização de um relevante interesse económico, ou seja, o da rápida reintegração do devedor na vida económico-jurídica.

III - Podendo ser titulares de empresas comerciais as sociedades e os comerciantes individuais, sendo, in casu, os requerentes da insolvência “representantes e sócios/accionistas de sociedades comerciais”, não são «titulares de uma empresa», nos termos e para os efeitos do preceituado pelo art. 18.º, n.º 2, do CIRE.

IV - A existência do elemento «prejuízo para os credores», não decorre, automaticamente, do teor literal da al. d), do n.º 1, do art. 238.º, do CIRE, não tem natureza objectiva, tratando-se de um pressuposto independente da tardia apresentação do pedido de insolvência, devendo antes ser, concretamente, apurado, em cada caso, com afastamento terminante de qualquer tipo de presunção de prejuízo, que carece sempre de demonstração efectiva.

V - Ao contrário do que acontecia com o regime estabelecido no CPEREF, que estatuía a cessação da contagem dos juros “na data da sentença da declaração de falência”, os juros passaram com o CIRE a ser considerados créditos subordinados e, como tal, a vencer-se após a apresentação à insolvência, não ocasionando o atraso desta, por si só e independentemente de outras circunstâncias, qualquer prejuízo para os credores.

VI - A apresentação tardia do insolvente-requerente da exoneração do passivo restante não constitui presunção de prejuízo para os credores, pelo facto de, entretanto, se terem acumulado juros de mora, competindo antes aos credores do insolvente e ao administrador da insolvência o ónus da prova de um efectivo prejuízo, que, seguramente, se não presume.

VII - Os fundamentos determinantes do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante não assumem uma feição, estritamente, processual, uma vez que contendem com a ponderação de requisitos substantivos, cuja natureza assumem, não se traduzindo em factos constitutivos do direito do devedor a pedir a exoneração do passivo restante, mas antes em factos impeditivos desse direito, razão pela qual compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua demonstração.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:

A solicitação do credor “Caixa.....”, foi solicitada a insolvência de AA e de BB, os quais, na sequência daquele requerimento, formularam o pedido de exoneração do passivo restante, alegando, em síntese, que a sua responsabilidade com a insolvência se deve apenas aos avais que subscreveram para poderem obter o crédito para as empresas, sendo certo, também, que, actualmente, o requerente aufere €750,00 e a requerente €2.718,99, vivendo ambos numa casa arrendada, pela qual pagam a quantia mensal de €400,00.

No relatório que apresentou, o administrador da insolvência concluiu no sentido de que os requerentes se encontravam numa situação de insolvência.

Vários credores sustentaram o indeferimento liminar do pedido.

O Tribunal de 1ª instância, considerando que da omissão da apresentação à insolvência não resultaram prejuízos para os credores, porque não houve um agravamento do passivo com a constituição de novos créditos, nem uma diminuição do activo, por não terem sido efectuadas alienações ou gastos sumptuosos, admitiu, liminarmente, o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes AA e de BB e ordenou que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do presente processo de insolvência, seja cedido ao fiduciário nomeado o rendimento disponível dos insolventes, com exclusão dos créditos a que se refere o artigo 115º e do montante correspondente a dois salários mínimos nacionais, para o conjunto dos requerentes, considerando que vivem em economia comum, atento o estipulado pelo artigo 239º, nº 3, a) e b), ambos do CIRE.

Desta decisão, os credores “Banco ............ SA”, “Caixa.....”, o Ministério Público e os requerentes interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado procedentes as apelações dos credores e do Ministério Público e improcedente a apelação dos requerentes insolventes, e, em consequência, revogou a decisão recorrida, indeferindo, liminarmente, o pedido de exoneração do passivo restante.

Do acórdão da Relação de Guimarães, os requerentes insolventes interpuseram agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, deferindo-se, liminarmente, o pedido de exoneração do passivo restante, por si formulado, devendo ainda, em consequência, ser decidido o recurso de apelação que apresentaram, junto do mesmo Tribunal da Relação, que saiu prejudicado com a primeira decisão, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, integralmente:

1ª – Se ainda não se pode considerar unânime, é claramente maioritário o entendimento que defende que os requisitos/pressupostos previstos no art. 238° do CIRE são impeditivos do direito de aos insolventes ser "concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste" (art. 235° do CIRE), logo necessariamente o ónus da prova pertence aos credores, e não constitutivos do direito - que alguma doutrina defende como potestativo - que os insolventes têm à exoneração do passivo restante, logo excluído do seu ónus de prova.

2ª - Como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 21.10.2010, relativo ao processo n° 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1: "É que e conforme resulta do disposto no n°3 do artigo 236° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o devedor pessoa singular tem apenas, no requerimento de apresentação à insolvência em que formula o pedido de exoneração do passivo restante, de "expressamente declarar" que "preenche os requisitos" para que o pedido não seja indeferido liminarmente.

3ª - Isto significa, em nosso entender, que o devedor não tem que apresentar prova dos requisitos. Até porque, bem vistas as coisas, as diversas alíneas do n°1 do artigo 238° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante. Não constituem factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração. Antes e pelo contrário, constituem factos impeditivos desse direito. Nesta medida, compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova - cfr. n°2 do artigo 342° do Código Civil.

4ª - Igual entendimento se pode ler no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, relativo ao processo n.° 165/11.6TBACN-G.C1, datado de 17.01.2012, bem como do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 12.05.2011, relativo ao processo n.° 1870/10.0TBBRG-D.G1: "O instituto da exoneração do passivo restante visa conjugar o princípio fundamental do direito ao ressarcimento (total) dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se verem definitivamente libertos de dívidas que ainda subsistam e que normalmente teriam que satisfazer. Pretende-se assim facilitar ao insolvente a reabilitação económica (princípio do fresh start). Compreensivelmente, e isto sem prejuízo do que adiante se dirá quanto à repartição do ónus da prova, a lei pretende que este benefício só deva poder ser concedido àqueles em que se revele o merecimento de uma nova oportunidade, e o contrário disto não deve poder sobressair do seu comportamento anterior e dos deveres associados ao processo de insolvência.

5ª - Assim, podemos concluir, com a certeza possível, que os insolventes cumpriram com os requisitos legais, isto é, requereram a exoneração do passivo restante respeitando as regras legais, maxime os arts. 236° e 238° do CIRE.

6ª - Ultrapassada que está o ónus da prova dos pressupostos/requisitos elencados no n° 1 do art. 238° do CIRE pertencer aos credores que entendem os insolventes não merecerem a concessão de tal direito, cumprirá saber, se, a final, tais credores, conseguiram fazer essa prova e da qual resulta a não concessão do benefício da exoneração prévia decidida pelo Venerando Tribunal a quo.

7ª - Cumpre aqui reduzir ao essencial a matéria deste recurso, visto o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães ter considerado como verificado somente o pressuposto previsto na alínea d) do n° 1 do art. 238° do CIRE, em que se estatui o seguinte: "o devedor [que] tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica".

8ª - Este art. 238° n° 1 alínea d) do CIRE apresenta assim três requisitos autónomos e cumulativos: i) a não apresentação à insolvência ou a apresentação para além do prazo de seis meses desde a verificação da situação de insolvência; ií) a existência de prejuízos decorrentes desse incumprimento; e iii) o conhecimento de que não havia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

9ª - Desde logo, e por ser ostensivo, os insolventes são pessoas singulares, não estando sujeitos à presunção inilidível prevista no art. 18° n° 3 do CIRE.

10ª - De igual forma, está também fixado nos presentes autos que a insolvente BB não é gerente nem detentora de qualquer cargo nas empresas de que advêm as dívidas (relembra-se que as dívidas resultam de avais dados pelos insolventes às operações comerciais das sociedades), pelo que expressamente está excluída do dever de apresentação à insolvência, nos termos do art. 18° n° 2 do CIRE.

11ª – O facto da insolvente BB ser sócia das empresas avalizadas é irrelevante, como e bem decidiu o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão datado de 20.04.2010, relativo ao processo n° 1617/09.3TBPVZ-C.P1: "o que a lei exige para o funcionamento dos n° 2 e 3 do art. 18° do CIRE é que o devedor (...) seja titular de uma empresa, o que não acontece quando o mesmo é sócio de uma determinada sociedade pois "a qualidade de sócio de uma sociedade é uma realidade distinta da de pessoa singular titular de uma empresa." (disponível in www.dqsi.pt).

12ª - Quanto à existência de prejuízos para os credores, se é verdade que o Venerando Tribunal da Relação, "a quo" seguiu a corrente jurisprudencial que entende que o simples vencimento de juros poderá ser considerado prejuízo para os credores, ou que, verificado o atraso, é lícito presumir prejuízos, tais perspectivas são claramente minoritárias na nossa jurisprudência. A corrente maioritária entende que é necessário que os credores aleguem quais os factos geradores desse prejuízo, para além dos juros vencidos.

13ª - Desde logo será aqui relevante regressar ao já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 21.10.2010, relativo ao processo n.° 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1: "(...) Ora, se se entende que pelo facto de o devedor se atrasar a apresentar-se à insolvência resultavam automaticamente prejuízos para os credores, então não se compreendia por que razão o legislador autonomizou o requisito de prejuízo.

Só se compreende esta autonomização se este prejuízo não resultar automaticamente do atraso, mas sim de factos de onde se possa concluir que o devedor teve uma conduta ilícita, desonesta, pouco transparente e de má fé e que dessa conduta resultaram prejuízos para os credores (...)".

14ª - E factualmente, quanto aos prejuízos dos credores, ficou provado o seguinte: "4 – Foram reclamados créditos no montante de 38.744.943,33€, que essencialmente, resultam de operações financeiras avalizadas pelos insolventes, na qualidade de representantes e sócios/accionistas de várias sociedades comerciais. 5 - De acordo com as certidões juntas a fls. 314, 340, 351, 361, 372, 412, 425, 451, 539, 552, 567 e 652, e atendendo às informações prestadas pelos credores nos autos, os créditos reclamados venceram-se em datas respeitantes essencialmente aos anos de 2009 e 2010, tendo sido instauradas diversas acções executivas no primeiro semestre de 2010, bem como em datas anteriores".

15ª - Não ficou provado qualquer outro prejuízo além deste.

16ª - Todo o raciocínio apresentado pelos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, apesar de esclarecido, falece por falta de factos onde se sustentar.

17ª - Lendo-se os recursos de apelação apresentados pela Digníssima Procuradora-Adjunta do Ministério Público e pelos credores Banco ............, S. A. e Caixa..... constata-se que de facto os prejuízos em causa serão somente juros.

18ª - Já que, as provisões junto do Banco de Portugal devido ao crédito vencido, teriam de ser feitas, quer antes, quer depois da apresentação pelos aqui recorrentes à insolvência.

19ª - Igual entendimento que os juros não constituem prejuízo para efeitos do art. 238° n° 1 alínea d) do CIRE, e que caberia aos credores provar a existência de prejuízos, teve o Tribunal da Relação do Porto no Acórdão datado de 19.05.2010, relativo ao processo n.° 1634/09.3TBGMD-B.PV. "(...) Ao estabelecer, como pressuposto do indeferimento liminar do pedido de exoneração, que a apresentação extemporânea do devedor à insolvência haja causado prejuízo aos credores,  a lei não visa mais do que os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles comportamentos geradores de novos débitos (a acrescer àqueles que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer). São estes comportamentos desconformes ao proceder, honesto lícito, transparente e de boa fé cuja observância por parte do devedor é impeditiva de lhe ser reconhecida possibilidade (verificados os demais requisitos do preceito) de se libertar de algumas das suas dívidas, e assim, conseguir a sua reabilitação económica. O que se sanciona são os comportamentos que impossibilitem (ou diminuam a possibilidade de) os credores obterem a satisfação dos seus créditos, nos termos em que essa satisfação seria conseguida caso tais comportamentos não ocorressem.

Face ao exposto, concluímos que não integra o conceito normativo de 'prejuízo' pressuposto pelo art. 238°, n° 1 do C.l.R.E. o simples aumento global dos débitos do devedor causado por simples acumular dos juros (...)".

20ª - E os insolventes não realizaram, nem foi alegado e muito menos provados, qualquer acto que diminuísse o seu património, de forma ilícita ou meramente imoral ou não ética, com o intuito de reduzir as garantias patrimoniais dos credores.

21ª - Será ainda de acrescentar que, se a responsabilidade pelo acesso ao crédito e com condições mais negativas foi ou é dos aqui insolventes, tal teria de ser expressamente alegado e provado pelos credores.

22ª - Por último, obtendo provimento o presente recurso, deverão os autos regressar ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães para decidir o recurso interposto pelos insolventes e que sai prejudicado pela decisão que aqui se recorre e se pugna pela sua inversão.

Nas suas contra-alegações, o credor “Banco ............, SA” conclui no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão impugnada, e o Ministério Público, embora com dúvidas, defende, igualmente, a sua improcedência.

O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:

1. Em 18 de Fevereiro de 2011, a “Caixa.....” veio requerer a declaração de insolvência de AA e BB.

2. Citados, os requeridos não deduziram oposição, antes admitindo a situação de insolvência e requerendo que lhes fosse concedida a exoneração do passivo restante.

3. Em 22 de Março de 2011, foi declarada a insolvência dos aludidos AA e BB.

4. Foram reclamados créditos, no montante de €38.744.943,33, que, essencialmente, resultam de operações financeiras avalizadas pelos insolventes, na qualidade de representantes e sócios/accionistas de várias sociedades comerciais.

5. De acordo com as certidões juntas, a folhas 314, 340, 351, 361, 372, 412, 425, 451, 539, 552, 567 e 652, e atendendo ainda às informações prestadas pelos credores nos autos, os créditos reclamados venceram-se em datas respeitantes, essencialmente, aos anos de 2009 e 2010, tendo sido instauradas diversas acções executivas, no primeiro semestre de 2010, bem como em datas anteriores.

6. O insolvente marido aufere, a título de intermediário esporádico na venda de pneus, uma quantia incerta, mas próxima dos €750,00 mensais, auferindo a insolvente mulher um salário ilíquido de €2.718,99.

7. Como despesas, apresentam €400,00/mês, a título de renda da casa que habitam, electricidade, gás, alimentação e vestuário.

8. Nenhum dos requerentes tem antecedentes criminais com relevância para a presente decisão.

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 685º-A e 726º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão do prejuízo para os credores decorrente do não cumprimento do dever de apresentação tempestiva à insolvência.

II – A questão do ónus da prova.

III – Eventualmente, para o caso da revogação do acórdão recorrido, a questão de saber se do rendimento disponível devem ser atribuídos aos insolventes três salários mínimos.

                               I. DO PREJUÍZO PARA OS CREDORES

I. 1. O acórdão recorrido entendeu que se verificam os pressupostos constantes do artigo 238º, n.º 1, d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o que implicou o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, em virtude de o prejuízo causado aos credores dever ser analisado, numa perspectiva ampla, abrangendo qualquer malefício ao giro comercial dos credores, e não numa perspectiva restrita, de modo a abarcar, tão-só, as situações de aumento do passivo ou de diminuição das garantias.

A exoneração do passivo restante, como medida específica da insolvência das pessoas singulares, independentemente de serem ou não titulares de empresas, constitui uma inovação do CIRE, tratando-se de um regime particular de insolvência que redunda em benefício das pessoas singulares, com vista à obtenção do perdão de quase todas as suas dívidas remanescentes, após o encerramento do processo de insolvência, liquidado todo o património que compõe a massa insolvente e cedido o seu rendimento disponível, nos termos das disposições combinadas dos artigos 235º e 245º, do mesmo diploma legal, sem que tenha por objectivo específico as dívidas da massa insolvente.

Trata-se, de acordo com a filosofia inspiradora do diploma, de um benefício para o devedor, com o correspondente prejuízo para o credor, representando um desvio enorme no objectivo último do processo de insolvência, que se traduz na satisfação dos interesses dos credores, ao contrário do que acontecia, anteriormente, ao CIRE, em que o devedor insolvente se encontrava condenado a responder pela totalidade das dívidas contraídas no passado, as quais só se extinguiam, em virtude da ocorrência superveniente de qualquer causa legal, «maxime» o cumprimento.

            E só depois da satisfação do interesse do devedor, surge, em segundo lugar, como finalidade do instituto, a realização de um relevante interesse económico, ou seja, o da rápida reintegração do devedor na vida económico-jurídica.

            I. 2. Dispõe o artigo 18º, nº 1, do CIRE, na redacção anterior à estabelecida pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, aplicável, que “o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3º, ou à data em que devesse conhecê-la”, com excepção, segundo o estabelecido no seu nº 2, das “…pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência”.

            Os actuais sujeitos passivos da declaração de insolvência, atento o disposto pelo artigo 2º, do CIRE, são as pessoas singulares, as pessoas jurídicas e os patrimónios autónomos, sendo certo que a empresa só é por tal abrangida se tiver personalidade jurídica ou autonomia patrimonial, pois que, caso contrário, é o seu titular que será declarado insolvente[2].

            Por seu turno, o artigo 5º, do CIRE, estatui que, “para efeitos deste Código, considera-se empresa toda a organização de capital e de trabalho, destinada ao exercício de qualquer actividade económica”.

            Prevalece, assim, a concepção de empresa como organização, próxima do sentido subjectivo do termo, ou seja, a empresa é o próprio empresário ou o comerciante, mas com algo de objectivo, como decorre do preceituado pelos artigos 18º, nº 2 e 162º, do CIRE[3].

            Por outro lado, nos termos do preceituado pelo artigo 13º, do Código Comercial, a lei só reconhece duas espécies de comerciantes, ou seja, os comerciantes em nome individual e as sociedades comerciais[4], não sendo, assim, os sócios comerciantes, uma vez que a sociedade representa uma individualidade jurídica, distinta e autónoma, da sociedade, sendo os actos de comércio praticados pelos sócios, enquanto sócios, actos da pessoa jurídica sociedade e não daqueles, em nome próprio[5].

Deste modo, podendo ser titulares de empresas comerciais as sociedades e os comerciantes individuais, e sendo certo que, na linguagem jurídica, os comerciantes têm vindo, gradualmente, a ser equiparados a empresários e as suas organizações produtivas, uniformemente, designadas como empresas[6], resta concluir que os requerentes da insolvência, “na qualidade de representantes e sócios/accionistas de várias sociedades comerciais”, como ficou demonstrado, não são «titulares de uma empresa», nos termos e para os efeitos do preceituado pelo artigo 18º, nº 2, do CIRE.

            I. 3. Ora, não sendo os requerentes da insolvência «titulares de uma empresa» e inexistindo, consequentemente, o dever de apresentação à insolvência, dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação, a mera omissão ou retardamento na apresentação não importa a classificação da falência como culposa, ainda que tal tenha conduzido a um agravamento da situação económica do insolvente, em conformidade com o preceituado pelos artigos 18º, nºs 1 e 2 e 186º, nº 5, do CIRE.

            De todo o modo, ocorrendo a omissão de apresentação, durante seis meses, com prejuízo para os credores, desde que conhecido ou que não pudesse ser ignorado, sem culpa grave, pelo devedor, verifica-se, igualmente, a exclusão da possibilidade deste requerer a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto pelo artigo 238º, nº 1, d), parte final, do CIRE.

            I. 4. E, sendo o devedor uma pessoa singular, “pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”, de acordo com o estipulado pelo respectivo artigo 235º.

            Por outro lado, preceitua o artigo 236º, nº 1, do mesmo diploma legal, que “o pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio”, prosseguindo o respectivo nº 3, ao afirmar que o devedor, pessoa singular, tem apenas, no requerimento de apresentação à insolvência em que formula o pedido de exoneração do passivo restante, de “expressamente declarar” que “preenche os requisitos”, para que o pedido não seja indeferido, liminarmente.

            Finalmente, estatui o artigo 238º, do CIRE, no seu nº 1, que “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza; c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência; d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do
artigo 186º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos
artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data; g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência”.

Com excepção do disposto na alínea a), os restantes fundamentos que constam das demais alíneas do artigo 238º, nº 1, do CIRE, têm natureza substantiva e referem-se a comportamentos do devedor que justificam a não concessão da exoneração.

            Estas alíneas definem, embora pela negativa, os requisitos de cuja verificação depende a exoneração, podendo reconduzir-se a comportamentos do devedor que contribuíram ou, de algum modo, agravaram a situação de insolvência [b), d) e e)], a situações ligadas ao passado do insolvente que, no critério do legislador, justificam a não atribuição do benefício da exoneração do passivo restante [c) e f)] ou a condutas adoptadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência [g)][7].

            Mas, se é compreensível que nestes casos não seja concedido ao devedor o benefício da exoneração do passivo restante, já não se entenderia a sua previsão automática como hipóteses de indeferimento liminar, porquanto é manifesto que terá de ser produzida prova desses factos, conforme resulta do estipulado pelo artigo 238º, nº 2, do CIRE[8], sendo certo que a verificação da ausência das situações contempladas nas aludidas alíneas constitui requisito de admissibilidade da exoneração.

            O Juiz averigua, então, se existe algum facto impeditivo da procedência do pedido da exoneração do passivo restante, designadamente, se o devedor contribuiu para que a declaração de insolvência tivesse ocorrido em momento posterior aquele em que deveria ter sucedido.

E, mesmo fundando a sua decisão na verificação de qualquer uma dessas causas de indeferimento, o Juiz tem de sustentar-se em factos demonstrados.

            O estipulado pela alínea d), isto é, se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”, afasta a concessão do benefício da exoneração, determinando o indeferimento liminar do pedido quando o devedor-requerente omita ou abstenha de se apresentar à insolvência, nos seis meses seguintes à verificação desta situação, que desse atraso resulte prejuízo para os credores e que o requerente soubesse, ou não pudesse ignorar, sem culpa grave, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

            E não ocorrendo qualquer uma destas circunstâncias, de natureza cumulativa, e basta a não verificação de uma delas para quer tal aconteça, deve o pedido ser, liminarmente, admitido.

            I. 5. Não sendo os requerentes da insolvência «titulares de uma empresa», como já se disse, a omissão de apresentação à insolvência, durante seis meses, com prejuízo para os credores, desde que conhecido ou que não pudesse ser ignorado, sem culpa grave, pelo devedor, determina, igualmente, a exclusão da possibilidade deste requerer a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto pelo artigo 238º, nº 1, d), parte final, do CIRE.

            Por outro lado, a existência do elemento prejuízo para os credores, não decorre, automaticamente, como resulta, de forma manifesta, do teor literal da citada alínea d), até porque se trata de pressupostos independentes[9], da tardia apresentação do pedido de insolvência, sendo certo que a verificação de prejuízos insignificantes, não sensíveis, não é fundamento suficiente para a recusa liminar do pedido.

O prejuízo, a que se refere o artigo 238º, nº1, d) do CIRE, deve ser irreversível e grave, como acontece com aquele que resulta da contracção de dívidas, estando já o devedor em estado de insolvência, da ocultação do seu património ou de actos de dissipação dolosa, constituindo um patente agravamento da situação dos credores, de modo a onerá-los pela atitude culposa do devedor insolvente, evidenciando que este não merece o benefício da segunda oportunidade («fresh start»), pressuposta pela nova concepção filosófico-jurídica do CIRE.

Contudo, tal não significa que o insolvente deva, sem mais, arcar com as consequências da lei, sem o benefício da exoneração, pela simples consideração do facto objectivo em si mesmo, atendendo à supramencionada finalidade do instituto, onde prevaleça um juízo de equidade e de proporcionalidade que a lei justa deve contemplar[10].

Ao invés, o atraso na apresentação à insolvência, para além do prazo legal subsequente à sua verificação, constitui o devedor em mora, com obrigação de pagamento de juros, sendo certo que, para que se possa considerar haver prejuízo para os credores, urge que o mesmo seja, concretamente, apurado, em cada caso, com afastamento terminante de qualquer tipo de presunção de prejuízo, que carece sempre de demonstração efectiva.

Porém, ao contrário do que acontecia com o regime estabelecido no artigo 151º, nº 2, 1ª parte, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, que estatuía a cessação da contagem dos juros, “na data da sentença da declaração de falência”, os juros passaram a ser considerados créditos subordinados, nos termos do preceituado pelo artigo 48º, nº 1, b), do CIRE, o que significa que, actualmente, os créditos continuam a vencer juros, após a apresentação à insolvência, pelo que o seu atraso nunca ocasionaria, a este respeito, qualquer prejuízo para os credores, que, consequentemente, continuam a ter direito aos juros, com a inerente irrelevância do atraso da apresentação à insolvência no avolumar da divida.

I. 6. A aplicação da norma que contém este apontado fundamento do indeferimento liminar, a que alude a alínea d), do nº 1, do artigo 238º, do CIRE, impõe a existência de um nexo de causalidade entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores, por um lado, e o conhecimento ou desconhecimento, com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, por outro[11].

Está aqui em causa apenas a questão de saber se a não apresentação do devedor à insolvência se pode justificar por ele estar, razoavelmente, convicto de a sua situação económica pode melhorar, em termos de não se tornar necessária a declaração de insolvência.

            O que, verdadeiramente, releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado, no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a cumprir a generalidade dos seus compromissos[12].

Revertendo ao caso em apreço, importa considerar que, em relação à questão da existência de prejuízos para os credores, não foram fornecidos quaisquer elementos ou factos susceptíveis de contradizer o alegado pelos devedores, para além do avolumar dos juros que, como já se afirmou, não pode se considerado como um prejuízo, «a se».

E o despacho que, nos termos do preceituado pelo artigo 238º, nº 1, admita, liminarmente, o pedido de exoneração do passivo restante, apenas assegura o prosseguimento desta instância, sem constituir efeito de caso julgado quanto à consistência substancial do mérito da pretensão, que culminará com a prolação da decisão de cessação antecipada do procedimento ou com o despacho final de exoneração, atento o disposto pelos artigos 243º e 244º, todos do CIRE.

Claro está que o Juiz goza sempre da faculdade de indeferir, liminarmente, o pedido de exoneração do passivo restante quando o mesmo seja, manifestamente, improcedente ou quando ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer, oficiosamente, ou de conceder ao requerente, sob pena de indeferimento, prazo para corrigir os vícios sanáveis do pedido, designadamente quando esta careça de requisitos legais ou não venha acompanhada dos documentos que hajam de instrui-lo, nos casos em que tal falta não seja, devidamente, justificada, face ao disposto no artigo 27º, nº 1, a) e b), do CIRE, aplicável, analogicamente, por procederem, na hipótese em apreço, as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei, de acordo com o disposto pelo artigo 10º, nº 2, do CC.  

                                          II. DO ÓNUS DA PROVA

Diz o acórdão recorrido, neste particular, que era aos requerentes do pedido de exoneração do passivo restante que pertencia a alegação dos factos que fundamentam a respectiva pretensão.

Com efeito, as diversas alíneas do nº1, do artigo 238º, do CIRE, ao estabelecerem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar, não assumem uma feição, estritamente, processual, uma vez que contendem com a ponderação de requisitos substantivos, não se traduzindo em factos constitutivos do direito do devedor pedir a exoneração do passivo restante, mas antes em factos impeditivos desse direito, razão pela qual compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua demonstração, atento o preceituado pelo artigo 342º, nº 2, do Código Civil.

Tratando-se de factos que, de acordo com a norma substantiva que serve de fundamento à pretensão de cada uma das partes, se destinam a inviabilizar o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor-insolvente, são susceptíveis de obstar a que esse direito se tenha constituído, validamente[13], cabendo, assim, aos credores ou ao administrador demonstrar a sua existência, sendo certo, a este propósito, que “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento, em conformidade com o preceituado pelo artigo 236º, nºs 1 e 4, do CIRE”[14].

Aliás, a hipótese legal de indeferimento liminar, consagrada pela alínea e), do nº 1, do artigo 238º, do CIRE, ou seja, “constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º”, significa um afloramento deste entendimento[15].

Por tudo quanto já se disse, a apresentação tardia pelo insolvente-requerente do pedido de exoneração do passivo restante não constitui presunção de prejuízo para os credores, nos termos do disposto pelo artigo 238º, nº1, d), do CIRE, pelo facto de, entretanto, se terem acumulado juros de mora, competindo antes aos credores do insolvente e ao administrador da insolvência o ónus da prova de um efectivo prejuízo, que, seguramente, se não presume.

E a não formação do efeito do caso julgado sobre a decisão de admissão liminar do pedido, por certo, permitirá consubstanciar a versão expendida pelo “Banco ............, SA”, nas contra-alegações da revista, que o acervo factual, entretanto, demonstrado e a subida do recurso em separado, desprovido da quase totalidade da restante matéria documental, por ora, não consente.

              III. DA GARANTIA DE SUBSISTÊNCIA DOS INSOLVENTES

Tendo procedido as conclusões constantes das alegações da revista, a que se referem as duas antecedentes questões suscitadas pelos devedores insolventes, cumpre apreciar a questão de saber se do rendimento disponível devem ser atribuídos aos mesmos três salários mínimos, que o acórdão recorrido considerou prejudicada, nos termos do disposto pelo artigo 660º, nº 2, do CPC, face à revogação da decisão proferida, em sede de 1ª instância.

Dispõe o artigo 726º, do CPC, que “são aplicáveis ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação interposta para a Relação, com excepção do que se estabelece no artigo 712º e no nº 1 do artigo 715º e salvo ainda o que vai prescrito nos artigos seguintes”.

Com efeito, preceitua o artigo 715º, nº 2, do CPC, a propósito da apelação e da regra da substituição do tribunal recorrido, que “se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhecerá no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.

Assim sendo, a regra geral da aplicação subsidiária ao recurso de revista da fisiologia própria do recurso de apelação interposta para a Relação, conhece, desde logo, a excepção à regra da substituição ao tribunal recorrido, consagrada no artigo 715º, nº 2, do CPC, por existir um regime próprio para a reforma dos acórdãos da Relação.

E nem, no caso em apreço, poderia, materialmente, ser de outra forma, considerando que a presente revista subiu em separado dos autos principais, inexistindo sequer as alegações da apelação apresentadas pelos devedores insolventes e as eventuais contra-alegações de resposta.

Deste modo, e, como já fora solicitado pelos recorrentes, sem a oposição do “Banco ............, SA” ou do Ministério Público, os autos baixarão ao Tribunal da Relação, a fim de ser apreciada, tanto quanto possível, pelos mesmos Exºs Desembargadores, a questão cujo conhecimento foi considerada prejudicada pela decisão da apelação.

CONCLUSÕES:

I – A exoneração do passivo restante é um regime particular de insolvência que redunda em benefício das pessoas singulares, com vista à obtenção do perdão da quase totalidade das suas dívidas remanescentes, mas que não tem por objectivo específico as dívidas da massa insolvente, representando um desvio enorme na finalidade, última do processo de insolvência, da satisfação dos interesses dos credores.

            II - Só depois da satisfação do interesse do devedor, surge, em segundo plano, como finalidade do instituto, a realização de um relevante interesse económico, ou seja, o da rápida reintegração do devedor na vida económico-jurídica.

            III – Podendo ser titulares de empresas comerciais as sociedades e os comerciantes individuais, sendo, «in casu», os requerentes da insolvência “representantes e sócios/accionistas de sociedades comerciais”, não são «titulares de uma empresa», nos termos e para os efeitos do preceituado pelo artigo 18º, nº 2, do CIRE.

            IV - A existência do elemento «prejuízo para os credores», não decorre, automaticamente, do teor literal da alínea d), do nº 1, do artigo 238º, do CIRE, não tem natureza objectiva, tratando-se de um pressuposto independente da tardia apresentação do pedido de insolvência, devendo antes ser, concretamente, apurado, em cada caso, com afastamento terminante de qualquer tipo de presunção de prejuízo, que carece sempre de demonstração efectiva.

V - Ao contrário do que acontecia com o regime estabelecido no CPEREF, que estatuía a cessação da contagem dos juros, “na data da sentença da declaração de falência”, os juros passaram com o CIRE a ser considerados créditos subordinados, e, como tal, a vencer-se após a apresentação à insolvência, não ocasionando o atraso desta, por si só e independentemente de outras circunstâncias, qualquer prejuízo para os credores.

VI - A apresentação tardia do insolvente-requerente da exoneração do passivo restante não constitui presunção de prejuízo para os credores, pelo facto de, entretanto, se terem acumulado juros de mora, competindo antes aos credores do insolvente e ao administrador da insolvência o ónus da prova de um efectivo prejuízo, que, seguramente, se não presume.

VII – Os fundamentos determinantes do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante não assumem uma feição, estritamente, processual, uma vez que contendem com a ponderação de requisitos substantivos, cuja natureza assumem, não se traduzindo em factos constitutivos do direito do devedor a pedir a exoneração do passivo restante, mas antes em factos impeditivos desse direito, razão pela qual compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua demonstração.

DECISÃO[16]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista e, em consequência, revogam o acórdão recorrido, repristinando, em parte, a decisão proferida, em sede de 1ª instância, no segmento em que admitiu, liminarmente, o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes AA e BB, determinando-se ainda que os autos baixem ao Tribunal da Relação, a fim se ser apreciada, tanto quanto possível pelos mesmos Exºs Desembargadores, a questão da garantia da subsistência dos insolventes, cujo conhecimento foi considerado prejudicado pela decisão da apelação.

                                  Custas da revista, a cargo do “Banco ............, SA”, por delas, correspondentemente, estar isento o Ministério Público, nos termos das disposições combinadas dos artigos 446º e 447º, do CPC, e 4º, nº 1, a), do Regulamento das Custas Processuais, aplicável.

                                         

Notifique.

Lisboa, 19 de Junho de 2012

      

       Helder Roque (Relator)

       Gregório Silva Jesus

       Martins de Sousa

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[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.
[2] Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência. Uma Introdução, 4ª edição, Almedina, 2010, 25.
[3] Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, I, 2011, 76 e 77; Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4ª edição, 2001, 356 e 357.
[4] Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2ª edição, 1970, 236 e ss.
[5] Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, Fascículo 1º, 1946, 196.
[6] Pupo Correia, Direito Comercial, Direito da Empresa, 10ª edição, revista e actualizada, 2007, 42 e 46.
[7] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Reimpressão, Quid Juris, 2009, 784.
[8] Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 5ª edição, 2009, Almedina, 241.
[9] Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência. Uma Introdução, 4ª edição, Almedina, 2010, 138 e 139.
[10] STJ, de 24-1-2012, Pº nº 152/10.1TBBRG-E.G1.S1, www.dgsi.pt
[11] Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência. Uma Introdução, 4ª edição, Almedina, 2010, 140.
[12] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Quid Juris, reimpressão, 2009, 72.
[13] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, revista e actualizada por Herculano Esteves, 1976, 130.
[14] Assunção Cristas, Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, Themis, 2005, 168.
[15] STJ, de 6-7-2011, Pº nº 7295/08.OTBBRG.G1.S1; STJ, de 21-10-2010, Pº nº 3850/09.9TBVLG.-D.P1.S1, www.dgsi.pt
[16] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.