Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3920/07.8TBVIS.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
DIREITO AO DESCANSO
DIREITO À SAÚDE
DIREITO A UM AMBIENTE SADIO E ECOLOGICAMENTE  EQUILIBRADO
Data do Acordão: 04/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS/PESSOAS SINGULARES/ EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS
Doutrina: - Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1980, pág. 63.
- Pires de Lima e Antunes Varela, C. C. Anotado, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 103.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 66.º, 335.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 17.3.1994, IN BMJ, 435º, 816;
-DE 15.3.2007, PROCESSO N.º 07B585, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 13.9.2007, PROCESSO N.º 07B2198, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 08.4.2010, PROCESSO N.º 1715/03.7TBEPS.G1.S1, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 07.4.2011,PROCESSO N.º 419/06.3TCFUN.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT .

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 27.4.1995, CJ, XX, 2, 213.
Sumário : I- A actividade de bar com aparelhos de som e música, junto a residências privadas, especialmente com carácter habitual, nas horas consagradas ao descanso reparador da generalidade das pessoas, é, ainda que potencialmente, gravemente lesiva do sono dos habitantes de tais residências e, consequentemente, do seu indeclinável direito ao descanso e à saúde, como integrantes do direito à vida e à integridade física, além de outros, como o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, portanto, como direitos de personalidade, legal, constitucional e supranacionalmente tutelados, como é por demais sabido.

II- Como anotam Jorge Miranda e Rui Medeiros, «enquanto conformável como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, perpassa no direito ao ambiente uma estrutura negativa – embora não sem incidências positivas – visto que ele tem por contrapartida o respeito, a abstenção, o non facere. O seu escopo é a conservação do ambiente e consiste na pretensão de cada pessoa a não ter afectado, hoje, já o ambiente em que vive e em, para tanto, obter os indispensáveis meios de garantia.

E, para lá desse núcleo essencial, deparam-se aí, conjugando o artigo 66º com outros aspectos:

..... O direito a promover a prevenção, a cessação ou a «perseguição judicial», de actos tendentes à degradação do ambiente» [J. Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I ( artºs 1º a 79º), 2005, pg. 682]

III- Como é consabido, a poluição sonora (ruídos prejudiciais, sobretudo nas horas consagradas ao descanso reparador da generalidade das pessoas) constitui uma da variantes dos atentados ao direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

            AA intentou, no Tribunal Judicial de Viseu, a presente acção ordinária contra BB, pedindo que este seja condenado a encerrar diariamente às 22.00 horas a actividade comercial no bar identificado no art.º 7º da petição inicial (p. i.) e de cujo funcionamento e desenvolvimento resultam ruídos, abstendo-se a partir dessa hora de laborar e de provocar quaisquer ruídos.

Alegou, em síntese, que é dona da fracção autónoma correspondente ao,....andar/“letra...” do prédio urbano designado por “Lote .....” e descrito na Conservatória do Registo predial de Viseu sob o n.º 0000 e que no piso inferior desse prédio urbano se instalou um estabelecimento de bebidas, bar, pub e aparelhos de som e jogos designado por “R.....” e que vem sendo explorado desde Agosto de 2006 pelo Réu;

O referido bar é composto de mesas, cadeiras, aparelhagem de música, máquinas electrónicas e vários televisores e por portas “tipo saloon”, sendo que o movimentar das portas e os aparelhos de som e música produzem um barulho ensurdecedor; em noites de futebol agudiza-se o barulho; o rojar das mesas e cadeiras é incomodativo, ouvindo-se esses barulhos com muita intensidade na dita fracção autónoma - sua casa de habitação e residência permanente -, normalmente entre as 21.30 e as 3.30 horas;

Depois do encerramento do bar e devido à movimentação de pessoas e ao ruído em redor do dito estabelecimento, não consegue descansar até às 4.30 horas; tem descansado só parte da noite, tem passado várias noites sem dormir, num constante nervosismo, o que se repercute negativamente tanto na sua saúde como no seu trabalho.

O Réu contestou, impugnando os factos alegados pela A. e concluindo pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador (tabelar) e seleccionada, sem reparos, a matéria de facto (assente e controvertida).

Efectuado o julgamento e decidida a matéria de facto, o tribunal da 1ª Instância julgou a acção procedente, condenando o Réu a encerrar diariamente às 22.00 horas a actividade comercial no bar denominado “R.....”, sito no ......... do Lote ,...da Rua ............., em Viseu, abstendo-se de a partir dessa hora laborar e de provocar quaisquer ruídos.

         Inconformado, interpôs o Réu recurso de Apelação da sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra que, julgando improcedente a referida Apelação, confirmou integralmente a sentença recorrida.

         Mesmo assim inconformado, o Réu veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

         CONCLUSÕES

1.ª - A sentença da 1ª instância, confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, assenta sobre factos que não levam nem podem levar a que este Supremo Tribunal a possa confirmar.

2.ª - A factualidade dada como assente não poderia, em caso algum, levar à procedência da acção, sobretudo nos termos em que foi proferida.

3.ª - Qualificar um barulho como "elevado" é um conceito, um conceito tão vago e tão frágil, diferente de pessoa para pessoa, que não pode ser fundamento para a decisão proferida.

4.ª - Para que tais ruídos ou barulhos mereçam a tutela do direito, terão de ter uma mensuração técnica e científica, ou seja serem ilegais, não podendo nunca assentar numa mera subjectividade, numa aleatoriedade e incerteza, como é o caso da decisão recorrida.

5.ª - O adjectivo "elevado" sem mais, contém dentro de si um tal grau de incerteza e subjectividade que não pode servir de base a coisa alguma.

6.ª - E não basta alegar incomodidade e nervosismo. Uma decisão tem de ter outros pilares, científicos e técnicos, e preencher os requisitos que a lei aplicável aos ruídos determinar.

7ª – Antes de se saber se os ruídos em causa afectam ou não os direitos de personalidade da A. temos de saber em concreto, e com carácter científico e técnico que ruídos, em concreto, são produzidos, e em que grau ou intensidade comprovada por critérios e exames científicos.

8.ª - Tal não consta da decisão, apenas que o barulho é elevado, o que é insuficiente para alicerçar uma condenação justa e proporcional.

9.ª - Acontece que o Tribunal não deu totalmente provado o quesito 7º, pois na resposta o tribunal da 1ª instancia não sufragou alegação da A. de que tais barulhos impedem o descanso desta (ver resposta ao quesito 72).

10.ª - É certo que na resposta ao quesito 10º o Tribunal deu como assente (o que é extraordinário) que depois do encerramento, cerca das 2 horas da manhã os barulhos já impedem a A. de descansar.

11.ª - Isto não tem sentido. Então depois do encerramento a A. não descansa? Porquê? Se o Bar está encerrado? Enfim, não bate certo.

12.ª - Uma sentença não pode subsistir numa base tão frágil e subjectiva, sem lógica, proporção ou bom senso.

13.ª - Nenhum Tribunal tem competência para fixar o fecho de um Bar. Não faz parte das suas atribuições. O que tem é o poder de decretar que o bar em causa (ou outro qualquer) tenha de fechar no caso às 22 horas se o seu dono, no caso o Réu, não diminuir ou eliminar os ruídos ilegais que dele derivam.

14.ª - Assim, se este Supremo Tribunal de Justiça, Deus não o permita, confirmar as decisões dos Tribunais inferiores, então, como ente supremo regulador da lei — da sua boa e lógica aplicação, deve decretar que o encerramento do Bar até às 22 horas só se manterá se e enquanto o Réu não eliminar, por qualquer meio técnico, a eliminação desses ruídos.

15.ª - A confirmar-se as decisões recorridas (o que só se admite por raciocínio tal a subjectividade da matéria provada) cabe a este Supremo Tribunal posicionar correctamente a decisão.

16.ª - Não é um fecho definitivo e sem mais. Poderá ser um fecho temporário que possibilite a eliminação desses ruídos por meios técnicos e aí o Bar poder estar aberto nos termos licenciados pelas entidades competentes na matéria.

17.ª - Não pode um Tribunal determinar o fecho de um Bar até a uma certa hora (no caso 22 h) por razões de ruídos e depois não admitir que, eliminados tais ruídos, não possa estar aberto nos termos licenciados pela entidade competente.

18.ª - O fecho deste Bar às 22 horas visa um fim: evitar ruídos. Uma vez afastados ou eliminados, não há nenhuma lei que, mesmo assim, imponha o seu fecho a tal hora. Ora,

19.ª - A sentença fecha e sem mais, como se a ela coubesse o poder de determinar horas de fecho de Bar, discotecas ou restaurantes.

20.ª - Se não houver um prejuízo substancial para as pessoas, se os ruídos forem eliminados, não há nenhuma lei que possa impedir a sua normal exploração dentro do horário licenciado pela respectiva Câmara Municipal.

21.ª - Daqui se conclui que as decisões recorridas violam a lei e contendem com os direitos e leis que protegem o Réu enquanto explorador de um bar licenciado.

22.ª - Assim:

a) Deve a presente acção ser julgada improcedente e revogadas as decisões recorridas porque assentam sobre matéria insuficiente e subjectiva e não em mensurações ou índices técnicos. O "elevado" dá para tudo. É um conceito aberto e que varia de pessoa para pessoa.

b)         Para o caso de, mesmo assim, vier a ser confirmada, então que se reduza o seu alcance e se determine que não é uma sanção absoluta e definitiva, mas que permite que o Bar possa continuar aberto após essa hora (22 horas) se adoptar medidas técnicas de insonorização que impeçam a produção de ruídos que se tornem prejudiciais a terceiros.

23.ª - A decisão proferida violou entre outros e nomeadamente os artº 1346º do CC, as regras do ónus da prova dos artºs 342º do CC por a A. não ter provado a ilicitude do barulho em termos certos e legais, com as medidas que a lei determina e fixa e não ter provado que até às 2 h da manhã não pode descansar (ver quesito 1°) e os direitos constitucionais que protegem a exploração de um bem (Bar neste caso) devidamente licenciado para o efeito e ainda os artºs 659º, 660º, 661º e 668º do CPC por ter feito uma errada aplicação do direito aos factos na medida que a situação não tem base suficiente para a acção ter sido dada como provada. Um ruído "elevado" não tem a virtualidade para fundamentar sem mais a procedência da acção.

ASSIM, devem revogar-se as decisões recorridas, ou pelo menos adequá-las ao bom senso, à lógica e à lei.

Nenhum  castigo  ou  impedimento  é  absoluto  se  o  suposto transgressor eliminar os ruídos.

E a sentença tal como foi proferida é para sempre, é eterna e não admite que o Réu elimine ou reduza tais ruídos, e ele tem direito a tal.

Não foram apresentadas contra-alegações no presente recurso.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

         Das instâncias, vem dada como definitivamente provada a seguinte factualidade:

a) O réu explora um estabelecimento comercial de bar denominado “R.....” no ........ do edifício denominado Lote ...., sito na Rua .............. (A)

b) O referido estabelecimento foi aberto no Verão de 2006. (B)

c) E é composto por mesas, cadeiras, televisor e aparelho de som. (C) 

d) Tanto a porta do edifício referido em II. 1. a) como a porta do bar estão viradas para uma zona de estacionamento do edifício. (D)

e) A P.S.P. deslocou-se ao mencionado estabelecimento [identificado em II. 1. a)] por causa do ruído. (E)

f) O aludido estabelecimento tem uma máquina de jogos electrónica e dois televisores. (resposta ao art.º 1º)

g) É explorado pelo Réu desde Agosto de 2006. (2º)

h) Os aparelhos de som e a respectiva música produzem um barulho elevado. (resposta ao art.º 4º)

i) Em noites de jogos de futebol o referido em II. 1. h) agrava-se. (5º)

j) O rojar das mesas e cadeiras por parte dos clientes é incomodativo para a A. (6º)

k) Os barulhos mencionados em II. 1. h) a j) sentem-se em casa da A. desde pelo menos as 21.30 horas até às 02.30 horas. (resposta ao art.º 7º)

l) Os frequentadores do dito estabelecimento situam-se principalmente na faixa etária entre os 20 e os 35 anos, que para ali se deslocam em automóveis e em motociclos. (resposta ao art.º 8º)

m) O quarto da A. está virado para o estacionamento referido em II. 1. d). (9º)

n) Depois do encerramento do referido estabelecimento, cerca das 02.00 horas, os barulhos decorrentes do mesmo impedem a A. de descansar. (resposta ao art.º 10º)

o) O referido em II. 1. h) a n), causa muito mau estar à A., pelo menos até às 02.30 horas, diariamente, descansando apenas no remanescente da noite. (resposta ao art.º 11º)

p) Devido ao referido em II. 1. h) a o), a A. tem passado várias noites sem dormir, num constante nervosismo, o que a desgasta. (12º)

q) Por causa do referido em II. 1. h) a p), a A. teve de recorrer a medicação e encontra-se preocupada e intranquila bem como a padecer de insónias, indo trabalhar sem descansar. (13º)

r) A A. viveu com a mãe até 13.7.2009, que também não conseguia descansar. (resposta ao art.º 15º)

s) A A. anda nervosa. (resposta ao art.º 16º)

t) O aludido estabelecimento está aberto diariamente até às 02.00 horas. (resposta ao art.º 17º)

u) A única “porta de balanço” que há no mesmo estabelecimento situa-se na ponta do balcão, estando permanentemente presa, não havendo qualquer movimento que produza barulho. (18º).

Com o respeito devido, é patente a falta de fundamento do presente recurso interposto pelo Réu BB.

A factualidade apurada e definitivamente fixada pelas Instâncias, não deixa qualquer margem para dúvidas de que os barulhos e ruídos que se produzem nas instalações do estabelecimento denominado «R.....», conexionados com a sua actividade de bar com aparelhos de som e música, junto a residências privadas, é gravemente lesiva do sono da Autora, ora Recorrida, e, consequentemente, do seu indeclinável direito ao descanso e à saúde, como integrantes do direito à vida e à integridade física, além de outros, como o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, portanto, como direitos de personalidade, legal, constitucional e supranacionalmente tutelados, como é por demais sabido.

Como anotam Jorge Miranda e Rui Medeiros, «enquanto conformável como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, perpassa no direito ao ambiente uma estrutura negativa – embora não sem incidências positivas – visto que ele tem por contrapartida o respeito, a abstenção, o non facere. O seu escopo é a conservação do ambiente e consiste na pretensão de cada pessoa a não ter afectado, hoje, o ambiente em que vive e em, para tanto, obter os indispensáveis meios de garantia.

E, para lá desse núcleo essencial, deparam-se aí, conjugando o artigo 66º com outros aspectos:

..... O direito a promover a prevenção, a cessação ou a «perseguição judicial», de actos tendentes à degradação do ambiente» [J. Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I ( artºs 1º a 79º), 2005, pg. 682]

Como é consabido, a poluição sonora (ruídos prejudiciais, sobretudo nas horas consagradas ao descanso reparador da generalidade das pessoas) constitui uma da variantes dos atentados ao direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.

A factualidade descrita é de tal modo eloquente, que toda e qualquer conjectura ou lucubração no sentido de lhe retirar ou minimizar o carácter violador de tais direitos de personalidade ou como tentativa de lhe minimizar os efeitos, volve-se em pura inutilidade  perante a evidência daquela realidade incontornável.

Os seguintes factos constituem res se ipsa loquitur como se colhe da sua simples leitura:

h) Os aparelhos de som e a respectiva música produzem um barulho elevado. (resposta ao art.º 4º)

i) Em noites de jogos de futebol o referido em II. 1. h) agrava-se. (5º)

j) O rojar das mesas e cadeiras por parte dos clientes é incomodativo para a A. (6º)

k) Os barulhos mencionados em II. 1. h) a j) sentem-se em casa da A. desde pelo menos as 21.30 horas até às 02.30 horas. (resposta ao art.º 7º)

n) Depois do encerramento do referido estabelecimento, cerca das 02.00 horas, os barulhos decorrentes do mesmo impedem a A. de descansar. (resposta ao art.º 10º)

o) O referido em II. 1. h) a n), causa muito mau estar à A., pelo menos até às 02.30 horas, diariamente, descansando apenas no remanescente da noite. (resposta ao art.º 11º)

p) Devido ao referido em II. 1. h) a o), a A. tem passado várias noites sem dormir, num constante nervosismo, o que a desgasta. (12º)

q) Por causa do referido em II. 1. h) a p), a A. teve de recorrer a medicação e encontra-se preocupada e intranquila bem como a padecer de insónias, indo trabalhar sem descansar. (13º)

Perante tão gritante factualidade, doutamente sentenciou o Acórdão recorrido:

 «A jurisprudência tem decidido, de forma reiterada, que a produção ou emissão de ruídos, geradora de poluição sonora, lesiva de direitos individuais e colectivos, obviamente carecidos de protecção e tutela, pode ser encarada por três ópticas distintas, normalmente conexionadas e interligadas:

- a do direito do ambiente, enquanto causa de evidente poluição ambiental, com assento primacial no próprio texto constitucional, no plano dos direitos e deveres sociais, de natureza análoga aos direitos fundamentais, em que se insere o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (art.º 66º, da CRP), complementado e densificado pelas normas constantes da Lei de Bases do Ambiente, fundamentalmente orientada, imediatamente e em primeira linha, para a protecção de interesses colectivos ou difusos;

- a clássica visão da tutela do direito de propriedade, no domínio das relações jurídicas reais de vizinhança, permitindo ao proprietário de um prédio opor-se às emissões, provenientes de prédios vizinhos, que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam (art.º 1346º, do CC)

- finalmente, a dos direitos fundamentais de personalidade, consagrados, desde logo, no texto constitucional – direito à integridade moral e física e ao livre desenvolvimento da personalidade (artºs 25º e 26º, n.º 1, da CRP) e reiterados naturalmente no CC, ao contemplar, no art.º 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral – sendo inquestionável que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade [como direitos da personalidade, a doutrina enumera, além de outros, os direitos à vida, à integridade física, à honra, à saúde, ao bom nome, à intimidade, à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, ao repouso essencial à existência [1]].

Daí que, em regra – e sem prejuízo de uma concreta e casuística ponderação judicial, a realizar em função do princípio da proporcionalidade acerca da intensidade e relevância da invocada lesão da personalidade – se imponha a conclusão de que, em caso de conflito, efectivo e relevante, entre o direito de personalidade e o direito ao lazer ou à exploração económica de indústrias de diversão, importa preservar os direitos básicos de personalidade, por serem de hierarquia superior à dos segundos, nos termos do art.º 335º, do CC[2].

8. Merece particular realce a conclusão de que às normas, constitucionais e legais, que tutelam a preservação do direito de personalidade deverá ser conferido o necessário relevo (prevalência) e efectividade na vida em sociedade – não sendo obviamente tolerável que o interesse no exercício ou exploração lucrativa de actividades lúdicas ou de diversão se faça com o esmagamento dos direitos básicos de todos os cidadãos que tiverem o azar de residir nas proximidades, aniquilando, em termos claramente desproporcionados, o direito a gozar de um mínimo de tranquilidade, sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio; na sua casa de habitação, cada um tem o direito de viver em tranquilidade, quer no desenvolvimento dos afazeres de cada dia, quer nos momentos de lazer, e muito especialmente de aí poder passar, sem ruídos importunos vindos do exterior e produzidos por outrem, as horas destinadas ao sono e ao repouso; o repouso e o sossego que cada pessoa necessita de desfrutar no seu lar para se retemperar do desgaste físico e anímico que a vida no seu dia a dia provoca no ser humano é algo de essencial a uma vida saudável, equilibrada e física e mentalmente sadia.[3]

Mais adiante, lêem-se na mesma decisão as incisivas palavras que se seguem:

. No caso dos autos, e perante a matéria de facto apurada, não pode duvidar-se que a actividade de diversão nocturna explorada pelo Réu acarreta uma lesão grave e continuada do direito de personalidade da A., ocasionando dano substancial ao gozo e fruição de um mínimo de tranquilidade na sua própria casa, independentemente da maior ou menor concretização da proveniência/origem dos ruídos inerentes à exploração do mencionado estabelecimento (espaço interior do edifício onde se encontra implantado, esplanada que lhe está afecta ou movimento de clientes e respectivos meios de transporte), sendo certo que os ruídos e perturbações originadas pela actividade desenvolvida raramente se circunscrevem ao interior do estabelecimento.

Não obstante, resulta da matéria de facto apurada que os ruídos incomodativos e que afectam a A. são principalmente os provenientes do próprio estabelecimento de diversão, do seu interior ou espaço em que está implantado, e, ao contrário do sustentado pelo Réu, não é exacto que a lesão do direito da A. decorra exclusivamente de comportamentos ocorridos na via pública [cf., sobretudo, II. 1. alíneas h), i), j), k), m), n) e o), supra].

Ademais, cabe a quem pretenda exercer uma actividade daquela natureza em edifício habitacional uma obrigação de especial contenção quanto aos níveis de poluição sonora que provoca e o dever de optar pelas soluções técnicas adequadas, no que respeita ao isolamento acústico das suas instalações, que eliminem ou reduzam ao máximo possível os incómodos causados aos outros residentes, degradando a sua qualidade de vida.

Nesta perspectiva, é obviamente improcedente a argumentação expendida, mormente quando se diz que a decisão recorrida violou o princípio da proporcionalidade.

Na decorrência do já exposto, se, de um ponto de vista normativo, nada obstaria a que o Tribunal, em aplicação dos critérios constantes do art.º 335º, do CC, e que definem as regras gerais de resolução das situações de colisão de direitos, optasse por proferir condenação numa inibição meramente condicional ou temporária da actividade lesiva dos direitos da A. - se a matéria de facto alegada pelas partes e apurada na causa mostrasse que as causas da lesão eram efectivamente elimináveis ou removíveis através de procedimentos técnicos determinados -, por essa forma se limitando o sacrifício do direito do demandado ao estritamente necessário para assegurar o exercício pleno do direito prevalente da demandante, verificamos, porém, que tal não se afigura viável/possível no caso em apreço, na medida em que o Réu [que, agora, parece definitivamente “alheado” dos autos…/cf. fls. 368 e seguintes] não curou efectivamente de alegar, como seria seu ónus, durante o processo, a sua disponibilidade para remover as deficiências construtivas que potenciavam o incómodo substancial da lesada, tal matéria não foi objecto de discussão entre as partes e não foram processualmente adquiridos factos que demonstrassem, por um lado, que as insuficiências do isolamento acústico eram, do ponto de vista técnico e económico, remediáveis, e, por outro lado, quais seriam exactamente as obras e procedimentos que se impunha ao Réu realizar no seu estabelecimento para alcançar plenamente aquele objectivo (definindo, afinal, em termos minimamente consistentes, o projecto de isolamento acústico que se verificou inexistir).[4]

No caso vertente, ficou demonstrado que a actividade industrial desenvolvida pelo Réu violou ilicitamente o direito ao repouso, tranquilidade e sono da autora, impondo-se o decretado encerramento (obviamente, enquanto não se proceder a obras de insonorização do estabelecimento), de modo a salvaguardar e respeitar, num nível de razoabilidade, os direitos de personalidade da A. – nas apontadas circunstancias, a limitação do horário de funcionamento do estabelecimento constitui uma medida eficaz e adequada para defesa dos direitos da A. e permite compatibilizar os direitos em confronto.[5]

É assim correcta a conclusão da sentença sob censura quanto à justificação da prevalência dada ao direito feito valer pela A. na presente acção (ao repouso, descanso/sono/tranquilidade e saúde), com a consequente compressão ou sacrifício do direito (menor) ao exercício de uma actividade por parte do Réu que produz ou ocasiona ruído.

 Neste sentido, pode ver-se, aliás, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 15.03. 2007, desta mesma Secção Cível, de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Oliveira Rocha, onde assim se decidiu, na parte que ora interessa:

«Caso a caso, importa averiguar se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável, face aos interesses em jogo, certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante».

         Mais adiante, lê-se no referido aresto deste Supremo Tribunal:

            «No caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respectiva avaliação, refere Capelo de Sousa (O Direito Geral de Personalidade, pag. 547), «abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da subjectivização de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos.

Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo».

                  O referido aresto exemplifica:

«Assim, quando num prédio de habitação seja montado um estabelecimento em que habitualmente haja produção de ruídos ou de cheiros susceptíveis de incomodar gravemente os habitantes do prédio, o direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida destes deve considerar-se superior ao direito de exploração de actividade comercial ou industrial ruidosa ou incómoda. Mas, já o direito ao sossego, à tranquilidade e ao repouso dos moradores não prevalece sobre o direito de propriedade alheio, face aos ruídos normalmente provocados por vozes de aves domésticas legitimamente mantidas em quintais de residências vizinhas».

Ou, como ensina Pessoa Jorge (Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág.201), «…No nº 2 desse normativo estabelece-se, na hipótese de colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente, a prevalência do que se considerar superior, a definir em concreto».

Pretende o Réu argumentar com a possibilidade de insonorização do local, defendendo que se «determine que a sanção não é definitiva, mas que permite que o Bar possa continuar aberto após essa hora (22 horas) se adoptar medidas técnicas de insonorização que impeçam a produção de ruídos que se tornem prejudiciais a terceiros» ( conclusões 16ª, 20ª e 22ª, al. b).

O que é facto é que nem antes, nem durante a pendência da presente acção, que foi intentada em 2007, o Réu logrou suprimir ou, sequer, atenuar os ruídos referidos mediante a falada insonorização, pois nada vem provado acerca disso.

Se o tivesse feito e se tal resultasse, teria provavelmente sobrevindo a inutilidade da presente lide.

Por isso, bem andou o Tribunal da Relação ao decidir o seguinte:

«Na decorrência do já exposto, se, de um ponto de vista normativo, nada obstaria a que o Tribunal, em aplicação dos critérios constantes do art.º 335º, do CC, e que definem as regras gerais de resolução das situações de colisão de direitos, optasse por proferir condenação numa inibição meramente condicional ou temporária da actividade lesiva dos direitos da A. - se a matéria de facto alegada pelas partes e apurada na causa mostrasse que as causas da lesão eram efectivamente elimináveis ou removíveis através de procedimentos técnicos determinados -, por essa forma se limitando o sacrifício do direito do demandado ao estritamente necessário para assegurar o exercício pleno do direito prevalente da demandante, verificamos, porém, que tal não se afigura viável/possível no caso em apreço, na medida em que o Réu [que, agora, parece definitivamente “alheado” dos autos…/cf. fls. 368 e seguintes] não curou efectivamente de alegar, como seria seu ónus, durante o processo, a sua disponibilidade para remover as deficiências construtivas que potenciavam o incómodo substancial da lesada, tal matéria não foi objecto de discussão entre as partes e não foram processualmente adquiridos factos que demonstrassem, por um lado, que as insuficiências do isolamento acústico eram, do ponto de vista técnico e económico, remediáveis, e, por outro lado, quais seriam exactamente as obras e procedimentos que se impunha ao Réu realizar no seu estabelecimento para alcançar plenamente aquele objectivo (definindo, afinal, em termos minimamente consistentes, o projecto de isolamento acústico que se verificou inexistir).[6]».

Finalmente, importa não olvidar o que se ponderou no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 7-04-2011 ( Relator, o Exmº Conselheiro Lopes do Rego) onde se escreveu expressamente:

«A lei processual não admite em regra, por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a condenação condicional, ou seja, a sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa – particularmente nos casos em que o facto condicionante sempre exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante» (Pº 419/06.3 TCFUN-L1.S1 in www.dgsi.pt).

Defende ainda o Réu/Recorrente que o Tribunal não tem competência para decretar o fecho de um bar, cabendo tal às autoridades administrativas.

Não tem razão!

Convém aqui recordar o que se decidiu no já falado Acórdão do STJ de 7-4-2011:

«Impõe-se, por outro lado, distinguir claramente os planos de uma possível ilegalidade administrativa no exercício das actividades que geram a poluição ambiental, decorrente do desrespeito das normas regulamentares ou atinentes ao licenciamento e à polícia administrativa, e da ilicitude, consubstanciada na lesão inadmissível do direito fundamental de personalidade. Tal diferenciação de planos tem justificadamente conduzido à conclusão de que os tribunais constituem a última linha de defesa daquele direito fundamental de personalidade, sempre que o mesmo não tenha sido devidamente acautelado pela actividade regulamentar ou de polícia da Administração, em nada obstando à tutela prioritária do direito fundamental lesado a mera circunstância de ter ocorrido licenciamento administrativo da actividade lesiva ou os níveis de ruído pericialmente verificados não ultrapassarem os padrões técnicos regulamentarmente definidos ( vejam-se, por exemplo, os Acs. do STJ de 22/10/98- p. 97B1024-de 13/3/97 – p.96B557- e de 17/1/02 – p. 01B4140)».

Não se vislumbra, destarte, qualquer violação dos preceitos legais apontados pelo Recorrente, nem de qualquer outro legal ou constitucional e, igualmente, não se verifica preterição de qualquer princípio jurídico-constitucional, designadamente, dos princípios de igualdade, adequação ou de proporcionalidade. 

Sem necessidade de maiores considerandos, improcedem as conclusões da alegação do Recorrente atinentes à questão decidenda, pelo que linearmente improcede o presente recurso.

DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a Revista.

Custas pelo Recorrente, por força da sua sucumbência.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 19 de Abril de 2012

Álvaro Rodrigues (Relator)

Fernando Bento

João Trindade

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[1] Vide, de entre vários, Pires de Lima e Antunes Varela, C. C. Anotado, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 103 e C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 1980, pág. 63.
[2] No invocado art.º 335º, do C. Civil, prevê-se: havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes (n.º 1); se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior (n.º 2).
[3] Cf., de entre vários, os acórdãos da RP de 27.4.1995 e do STJ de 13.9.2007-processo 07B2198, 08.4.2010-processo 1715/03.7TBEPS.G1.S1 e de 07.4.2011-processo 419/06.3TCFUN.L1.S1, publicados, o primeiro, na CJ, XX, 2, 213 e, os restantes, no “site” da dgsi.
[4] Cf. o citado acórdão do STJ de 07.4.2011, seguido de perto na precedente exposição.
[5] Cf., entre outros, o acórdão do STJ de 17.3.1994, in BMJ, 435º, 816 (sobre um caso com alguma similitude) e o citado acórdão do mesmo Tribunal de 13.9.2007-processo 07B2198.
[6] Cf. o citado acórdão do STJ de 07.4.2011, seguido de perto na precedente exposição.