Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A455
Nº Convencional: JSTJ00039657
Relator: ARAGÃO SEIA
Descritores: HERANÇA
HERANÇA JACENTE
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
REPÚDIO DA HERANÇA
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
PERSONALIDADE JURÍDICA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
Nº do Documento: SJ200103200004551
Data do Acordão: 03/20/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8843/00
Data: 11/09/2000
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CIV - DIR SUC. DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC95 ARTIGO 6 A. CCIV66 ARTIGO 2046.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1975/06/12 IN BMJ N248 PAG434.
Sumário : I- Diz-se jacente a herança que já foi aberta mas não foi aceite nem repudiada.
II- A declaração de óbito prestada por herdeiro no processo de liquidação do imposto sobre sucessões e doações e o pedido do cabeça de casal para a prorrogação do prazo de apresentação da respectiva relação de bens são actos cujo sentido normal não traduz a intenção de aceitar a herança, mas apenas a do cumprimento das disposições fiscais, para evitar as correspondentes sanções.
III- Embora carecida de personalidade jurídica, a herança jacente pode propor acções em juízo (de reivindicação, confessórias de servidão, de cobrança de dívidas, etc).
IV- Sendo a herança jacente a verdadeira parte em juízo não se pode falar na necessidade de intervenção conjunta de outros sucessíveis.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I- Da Tramitação Processual

A herança deixada por A, representada por B, intentou acção ordinária, contra C e mulher, D, E e marido, F, e G, pedindo sejam condenados no pagamento de 140000000 escudos, correspondentes ao dobro do sinal passado e juros compensatórios desde a data do recebimento até à respectiva entrega, e de 16933190 escudos e cinquenta centavos, concernentes a benfeitorias, com fundamento de estes não terem cumprido um contrato-promessa de compra e venda de imóveis celebrado no dia 30 de Outubro de 1992 entre eles e o falecido A.
Contestaram os Réus, invocando que B não provou ser herdeira de A e, se lhe sucederam as pessoas mencionadas, então ela não é cabeça de casal e que, em qualquer caso, carece de legitimidade para formular os pedidos que formulou desacompanhada dos restantes herdeiros.
Respondeu a Autora, alegando, além do mais, a extemporaneidade da contestação e que B é irmã e herdeira do falecido, que o ex-cônjuge, a quem cabia o cabeçalato, lhe delegou todos os poderes e que a herança tem personalidade judiciária por o respectivo titular não estar determinado.
Na audiência preliminar foram os Réus absolvidos da instância, com fundamento na falta de personalidade judiciária da autora.
Agravou, com êxito, a herança jacente.

II- Do recurso

1- Das Conclusões

Inconformados, recorreram os Réus para este Supremo Tribunal, concluindo, deste modo, as suas alegações:
a- B, intitulando-se cabeça de casal da herança de A, em representação dessa herança que indicou como jacente, porque, segundo ela, ainda não teria sido aceite pelo herdeiro H, instaurou contra os Réus a acção dos autos (acção declarativa de condenação por alegado incumprimento de contrato promessa de compra e venda).
b- Na resposta à contestação veio dizer que a cabeça de casal é a viúva I e que esta delegou nela, B, todos os poderes.
c- O cabeça de casal não pode fazer-se representar por procurador no exercício do seu cargo (artigos 2082, n. 1, e 2095, do CC).
d- Mas, ainda que pudesse, a verdade é que a procuração apresentada (cfr. doc. 3, junto à resposta à contestação) não dá poderes à B para representar I como cabeça de casal da herança de seu falecido marido.
e- Não resulta dos autos que o sucessível H haja aceite ou repudiado a herança a que foi chamado por óbito de seu pai A.
f- O sucessível H é médico-psiquiatra e reside em Lisboa, não sendo crível que, tendo a herança, como tem, bens imóveis, passados mais de cinco anos desde o falecimento do autor da herança, não tenha ainda aceite ou repudiado a mesma.
g- Sendo, como é, fácil de provar nos autos que o sucessível H não aceitou ainda, nem repudiou a herança, à falta de tal prova, não pode a mesma herança ser considerada como jacente.
h- Não podendo a herança, como não pode, ser considerada como jacente, não pode ser-lhe reconhecida personalidade judiciária, devendo, por isso, os Réus ser absolvidos da instância.
i- Mesmo que a Autora pudesse ser considerada como herança jacente, que não pode, mesmo assim, ela não teria legitimidade para intentar uma acção como a dos autos, na qual, teriam, por imperativo legal, que intervir conjuntamente todos os herdeiros.
j- A suposta herança jacente de A, representada pelo cabeça de casal, ou por algum dos herdeiros, não tem legitimidade para intentar a acção dos autos, devendo, também por isso, ser os Réus absolvidos da instância.
1- O Acórdão recorrido violou os artigos 2046, 2056 e 2091, n. 1, do CC, e os artigos 5, 6, alínea a), 26, n. 3, 28, n. 1, 493, ns. 1 e 2, 494, n. 1, alíneas c) e e), 495, do CPC.
Em contra alegações a recorrida pugna pela confirmação do decidido.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

2- Dos Factos Provados
A e I casaram um com o outro, no dia 9 de Maio de 1980, perante o oficial do Registo Civil do Município de Roma, Itália, transcrito no dia 14 de Novembro de 1980 na Secção Consular da Embaixada de Portugal em Roma e, na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa, no dia 8 de Maio de 1981.
No dia 30 de Agosto de 1994, no cartório Notarial de Alenquer, A declarou em testamento deixar a sua quota disponível à sua irmã B e o usufruto da parte restante.
A, faleceu no dia 16 de Junho de 1995.
No dia 11 de Novembro de 1996, no Cartório Notarial de Alenquer, I declarou, em instrumento de procuração, constituir sua bastante procuradora B a quem conferia poderes para partilhar quaisquer bens, situados em ou fora de Portugal, deixados por óbito do seu marido A.
A Autora afirmou na petição inicial:
- sob o n. 5, que a A sucederam como herdeiros, a mulher I, o filho H e a irmã B, esta herdeira da quota disponível e usufrutuária da parte restante;
- sob os ns. 47 a 49, que a doença de A e os gastos de dinheiro com ela entre meados de 1994 e 1995 comprometeram o negócio jurídico e os réus com fundamento nesse facto podiam proceder à sua resolução, caso em que, dentro dos princípios da boa fé, da equidade e da justiça deviam ter devolvido aos herdeiros de A os setenta milhões de escudos que já haviam recebido e não o fizeram, tendo ficado com o dinheiro.
Sob o n. 17 da resposta afirmou a Autora não ter ainda havido partilha dos bens da herança.
3- Das Questões a Decidir.
São as seguintes as questões a resolver:
- se a cabeça de casal se pode fazer representar por procurador no exercício do seu cargo;
- se a herança aberta por óbito de A pode ser considerada jacente.
A primeira questão está desde já arredada por não ter sido suscitada na Relação, mas apenas nas alegações agora formuladas, e como é sabido ser orientação deste Supremo Tribunal, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
4- Da Herança Jacente e da Herança Vaga.
Para o artigo 2046 do CC diz-se Jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado.
A herança é declarada vaga para o Estado nos termos das leis de processo, quando é reconhecida judicialmente a inexistência de outros sucessíveis legítimos - artigo 2155, do CC.
A aceitação pode expressa ou tácita: é expressa, quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir - ns. 1 e 2 do artigo 2056; é tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam - n. 1 do artigo 217 -, não implicando os actos de administração praticados pelo sucessível aceitação tácita - n. 3, do artigo 2056, todos do CC.
Nesta conformidade o STJ já entendeu no Acórdão de 12 de Junho de 1975, Bol. 248, 434, com o que concordamos, que a declaração de óbito prestada pelo herdeiro no processo de liquidação do imposto sobre sucessões e doações e o pedido do cabeça de casal para a prorrogação do prazo de apresentação da respectiva relação de bens são actos cujo sentido normal não traduz a intenção de aceitar a herança, mas apenas a do cumprimento das disposições fiscais, para evitar as correspondentes sanções.
Os recorrentes põem em causa que o sucessível H ainda não tenha aceitado ou repudiado a herança; contudo, não se socorreram do dispositivo legal ao seu alcance para o saber: o requerimento ao tribunal tendo em vista a sua notificação para, no prazo que lhe for fixado, declarar se aceita a herança ou se a repudia - n. 1, do artigo 2049 do CC.
5- Da Personalidade Judiciária da Herança Jacente.
A herança jacente tem personalidade judiciária - alínea a), do artigo 6 do CPC.
Nesta conformidade pode ser parte em juízo, mas sempre através de um representante legal.
Como referem o Prof. Antunes Varela e os Drs. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 111, a herança jacente (artigos 2046 e segs. do CC), embora carecida de personalidade jurídica, pode propor acções em juízo (de reivindicação, confessórias de servidão, de cobrança de dívidas, etc.), sendo a herança a verdadeira parte na acção e não o sucessível chamado, o herdeiro, o curador ah hoc ou Ministério Público que aja em nome dela (artigos 2047 e segs. do CPC).
Sendo a herança jacente a verdadeira parte em juízo não se pode falar na necessidade de intervenção conjunta de outros sucessíveis.
Como bem se diz no Acórdão recorrido, na fase da condensação, em que o tribunal de 1.ª instância decidiu a absolvição da instância dos Réus por falta de personalidade judiciária da Autora, não dispunha de factos assentes que lhe permitissem concluir não se tratar de herança jacente por já haver sido aceite por todos os sucessíveis; e basta, na espécie, que um sucessível não tenha aceitado ou repudiado a herança para que subsista a jacência da herança em termos de atribuição excepcional da personalidade judiciária a que se reporta a alínea a), do artigo 6 do CPC.
6- Da Decisão.
Acorda-se em se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos agravantes.

Lisboa, 20 de Março de 2001.
Aragão Seia,
Lopes Pinto,
Ribeiro Coelho.