Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
071877
Nº Convencional: JSTJ00004309
Relator: BROCHADO BRANDÃO
Descritores: EMPRESA EM AUTOGESTÃO
LIVRANÇA
AVAL
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ198906150718771
Data do Acordão: 06/15/1989
Votação: MAIORIA COM 3 DEC VOT E 8 VOT VENC
Referência de Publicação: DR 174 IS 1989/07/31, PÁG. 2986 A 2993 - BMJ Nº 388 ANO 1989 PÁG. 89
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR COM - SOC COMERCIAIS.
Legislação Nacional: L 68/78 DE 1978/10/16 ARTIGO 1 N1 N3 ARTIGO 3 ARTIGO 10 N1 N3 ARTIGO 11 ARTIGO 12 N2 ARTIGO 13 ARTIGO 14 ARTIGO 24 ARTIGO 30 ARTIGO 34 ARTIGO 35 N1 N2 N3 ARTIGO 36 ARTIGO 38 ARTIGO 39 N3 A B D ARTIGO 43 A B C ARTIGO 44 N1 ARTIGO 45 N1 N2 ARTIGO 46 ARTIGO 47 N2 ARTIGO 49.
LULL ARTIGO 7 ARTIGO 32 PAR1 PAR2 ARTIGO 43 ARTIGO 47 ARTIGO 77 ARTIGO 78.
CCIV66 ARTIGO 217 N1 ARTIGO 437 ARTIGO 627 N1 ARTIGO 628 N2 ARTIGO 632 PAR3 ARTIGO 634
ARTIGO 651 ARTIGO 1251 ARTIGO 1257 N1 ARTIGO 1263 A ARTIGO 1267 N1 A ARTIGO 1287 ARTIGO 1293 ARTIGO 1305 ARTIGO 1476.
CPC67 ARTIGO 768 N3.
DL 845/76 DE 1976/12/19 ARTIGO 44 ARTIGO 100 ARTIGO 101.
Sumário :
O abandono definitivo de uma empresa pelos seus trabalhadores em autogestão antes da vigencia da Lei n. 68/78, de 16 de Outubro, põe fim a essa autogestão e torna invocaveis as garantias referidas no artigo 36 da mesma Lei.
Decisão Texto Integral:
I - O Acordão deste Tribunal de 15 de Novembro de 1983
- agora recorrido - decidiu subsistir a autogestão dos trabalhadores da sociedade CAFER, Lda, organizados na cooperativa REFAC e, desse modo, vigorar o artigo 36 da Lei n. 68/78, de 16 de Outubro, e a suspensão dos direitos de terceiros credores - como o autor Banco Pinto & Sottomayor -, atraves da ininvocabilidade de avales a CAFER. Assim, absolveu do pedido os avalistas.

Tratava-se do accionamento de livranças emitidas em 1971 pela sociedade, descontadas bancariamente e avalizadas por A, B e C, agora reus.
O anterior Acordão de 25 de Janeiro de 1983 - o fundamento - considerou finda a autogestão e desaplicou o artigo 36. Cessaria a suspensão e ininvocação de garantias e condenou os reus no pedido.

Em ambos houve identidade fisica de autor e reus.
Mas acolheu-se diferentemente o mesmo facto do abandono em meados de 1977 do estabelecimento da CAFER pela REFAC, sem deixar patrimonio algum (resposta ao quesito 7).
Ante a discrepancia, o autor pediu uniformização no sentido do acordão-fundamento, considerando violados os artigos 1, 11, 14, 36, 39, 41, 43 e 48 da Lei n. 68/78, revogando-se a decisão e condenando-se os reus.
Houve contra-alegação: o Ministerio Publico e favoravel ao acordão recorrido.
II - O acordão intercalar decidiu haver oposição na mesma questão fundamental de direito. E, não obstante uma particularidade de menor relevo, assim e, no essencial, como ressalta do paragrafo anterior.
Na verdade, a contraposição e clara e conflui na aplicação do citado artigo 36, ou seja, naquilo a que chamamos a suspensão das garantias dos credores (no caso, o banco).

A particularidade, entretanto, consiste em que no primeiro se trata de avales, e no segundo, de fiança, em sentido tecnico.
Para quem entenda, e não e o nosso caso (retomaremos este ponto adiante), que aval e fiança não se diferenciam na pratica (conferir artigo 32, paragrafo 1, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, doravante indicada por LU), nenhumas duvidas se põem ja que o acordão fundamento se debruçara, justamente, num termo de fiança. E a "particularidade" seria irrelevante.
Mas, ainda entendendo-se o aval como garantia diferenciada, continua a não haver modificação sensivel.

E que, como veremos, a dilucidação do problema esgota-se essencialmente na analise da Lei n. 68/78.
E, mesmo extravasando para institutos como a posse, a propriedade e o usufruto, continua a ser indiferente tratar-se de fiança ou aval.
A unica coisa que sucede e que da adesão a tese do aval, como obrigação cambiaria autonoma, resultam argumentos de reforço de uma das teses em presença.
Mas que supõe a dilucidação de outras questões alheias a dicotomia aval-fiança.
Diremos, concluindo este ponto, ser a mesma a questão fundamental na sua essencia. O que e suficiente.

Revestindo-se a "particularidade" ou diversidade de simples caracter adjuvante.
III - Por "uma evolução de facto não regularizada" onde os trabalhadores assumiram o controlo de empresas ou estabelecimentos comerciais entre 25 de Abril de 1974 e Outubro de 1978 nasce a situação autogestionaria (Lei n. 68/78, artigo 1, n. 1). Essa a linha historica do novo instituto. Assim, para a Lei n. 68/78, basicamente, autogestão e o assumir de um governo empresarial pelos trabalhadores (artigo 1, n. 3). E isso atraves de uma evolução de facto, mesmo não credenciada governamentalmente [em teoria, e confirmavel (artigo 3)] e revestindo qualquer forma.

Particularizando, a lei caracteriza-a, agora numa perspectiva mais tecnicista, como a situação de governo onde se dissociam ou fragmentam, de um lado, "a posse util e a gestão" no colectivo de trabalhadores e, de outro, a "nua-titularidade" no proprietario, e ate nova ordem (artigos 3 e 10, n. 3, entre outros). Ou seja, os trabalhadores adquirem por uma evolução de facto, sublinhe-se, a "detenção e fruição de todos os bens", de todos os bens", como outra posse qualquer (artigos 11 e 12), ressalvados alguns efeitos, como, por exemplo, a usucapião (artigo 12, n. 2), ressalva na linha da dissociação e independencia posse-propriedade.
Identicamente, alias, quanto a gestão (artigos 14 e 24).
A incipiente situação autogestionaria, entretanto, tende a regularizar-se, mantendo-se, ou, como todas as coisas, a findar. A primeira modalidade e prevista no artigo 1, sob a formula "não regularizada nos termos gerais de direito", confirmada no artigo 10, n. 1, "ate a regularização definitiva", e e coroada no artigo 38, cujo capitulo e epigrafado, justamente, de "Regularização definitiva da autogestão".
E são tres as modalidades ai consideradas: a) Definição (solução) quanto ao proprietario; b) Aquisição pelo Estado da "nua-titularidade"; c) Aquisição da mesma nua-titularidade da empresa ou do estabelecimento pelos trabalhadores.
Não obstante a aparente taxatividade da enumeração
- "dara lugar a uma das seguintes situações" (as tres referidas) -, a verdade e que ela não abrange todas as possiveis. E, desde logo, isso sucede quando o Estado, expropriando [artigo 43, alinea a)], o faça não so quanto a "nua-titularidade" [hipotese supra, alinea b), a que chamaremos "expropriação parcial" (artigo 45, n. 1), mas proceda a "expropriação total" "da empresa ou estabelecimento nos termos gerais de direito", assim pondo fim a autogestão (artigo 44, n. 1). O que significa, como se disse alem da regularização autogestionaria, tambem o seu fim [outro exemplo da segunda modalidade e a definição positiva do proprietario afectado, com a reaquisição do direito, por acordo ou acção judicial (artigo 39, n. 3)].
Logo, e e a primeira conclusão, a autogestão provisoria tanto desemboca na definitiva como na sua morte juridica.

E essa morte sucede nos casos apontados, como porventura noutras situações.
Outra conclusão - a segunda - e que a autogestão nasce de uma evolução de facto, em principio desaparecendo com uma evolução de sinal contrario.
IV - E neste contexto de vida e morte da autogestão que surgem as disposições dos artigos 34 e seguintes, quanto aos direitos de terceiros.
Em principio, ela, a autogestão, não prejudica os terceiros credores. Salvo, diz a lei, as particularidades seguintes (artigo 34), designadamente a suspensão de alguns dos seus direitos, como no artigo 36 em causa.
Preve-se ai, nesse capitulo IV, que, se o dono inicial tiver um patrimonio distinto, separar-se-ão as dividas da empresa e as de outra origem, entre as quais as pessoas daquele dono (artigo 35, n. 1). Esta separação ou autonomização de patrimonios corresponde a nova realidade existente - propriedade, de um lado, e posse util gestionaria, de outro - e tem a ver com a equidade de beneficiar quem suporta os encargos; e, por outro lado, quem foi privado dos beneficios não e justo suportar os segundos. Isto no tocante ao proprietario originario.

Dai, em suma, os credores da empresa so deverem pagar-se pelos bens desta, não confundiveis com os do proprietario (artigo 35, ns. 2 e 3).
E dai ainda, e agora trata-se de um claro beneficio a autogestão e aos deveres "garantes" assim em moratoria, que os credores vejam suspensos ou comprimidos os seus direitos relativamente a outros devedores que não a empresa (artigo 36). Por isso, os dizeres suspensivos enquanto durar a autogestão. Pois que, finda ela, da-se a expansão normal do direito dos credores, como resulta, alias, dos principios gerais e do citado artigo 34. A excepção do artigo 36, enfim, vigora so enquanto houver a situação juridica pressuposta.
Excluimos, deste modo e desde ja, o entendimento de "duramente a autogestão" significar "enquanto o proprietario estiver privado da posse e gestão" ou "dos bens que a integravam", como sugere Vasco Xavier (conferir Revista de Legislação e de Jurisprudencia, n. 117, pagina 251 e nota 25). Entendimento esse onde se implicita a ideia de regresso da propriedade originaria, o que ja vimos não ser verdade necessariamente.
Pelo contrario, ha na locução "durante a autogestão" um claro sentido literal e de conteudo juridico, ja visto, de vigencia autogestionaria. Ou seja, a provisoria, a regularizada, mas não ja a finda.

Excepciona-se, em todo o caso, a "adaptação" do artigo
49, segundo o qual, finda a autogestão da Lei n. 68/78, mas persistindo o seu figurino socio-economico-politico, torna-se definitiva a suspensão das garantias, em homenagem ou no seguimento da situação anterior de autonomia de patrimonios. Trata-se de um rumo diferente do concebido naquela lei, mas que se instala no tecido juridico definitivamente.
Podemos assentar agora na terceira conclusão e que e esta: a suspensão dos direitos dos credores, com a ininvocação das garantias dadas por terceiros, existe enquanto vigorar o figurino autogestionario da Lei n. 68/78. E o regime especial. Depois cai-se no regime normal.
V - O problema agora e saber, no concreto, se a autogestão ainda vive ou acabou. Arredada como esta a hipotese especial de consolidação da propriedade nos trabalhadores.

O acordão-fundamento disse que não; o recorrido disse que sim.
Que factos ha a considerar nesta perspectiva?

Na essencia, que o exercicio autogestionario começou em 1975, constituindo-se os trabalhadores na cooperativa REFAC. E que em meados de 1977 o estabelecimento da CAFER fora ja abandonado por aquela, sem deixar patrimonio algum. Abandono identico, alias, ao sucedido no acordão-fundamento, ja que se trata dos mesmos trabalhadores (REFAC) e da mesma empresa (CAFER).
Para se afirmar que o abandono e ineficaz joga-se com dois argumentos essenciais: a insuficiencia do facto abandono para extinguir a situação juridica autogestionaria, por um lado; a inaplicação da regra da perda da posse do artigo 1267, n. 1, alinea a), do CCV, por não abranger a "posse util", preferindo-se-lhe, na via do artigo 13 da Lei n. 68/78, as regras do usufruto. Sendo certo, entretanto, que nenhum deles faria concluir pela extinção autogestionaria (esta a posição de Vasco Xavier, obra citada, loc. cit., pagina 250).
Um outro aspecto sera o vindo da cooperativa, que não poderia desaparecer com o mero abandono ( este o sentido do vencido no acordão-fundamento).
Analisemos com alguma minucia estas posições.
O colectivo de trabalhadores tem a posse e a gestão.
Qualificar a posse de "util" não altera a realidade fundamental de exercicio de um direito - essa posse
-, em principio, na esfera do proprietario (CCV, artigo 1251). E, justamente, foi o desmembramento ou dissociação caracteristicos da autogestão que se ficcionou em nua-titularidade e posse util ou efectiva para a distinguir da posse juridica.
Mas nada impede que o abandono correspondente leve a perda, nos termos do citado artigo 1267, n. 1, alinea a) Util ou não, trata-se da posse de um direito real, porventura menor.
A fragilidade do pensar adverso, alias, foi sentida pelo interprete, que passou a raciocinar como se o abandono fora eficaz (Vasco Xavier, obra citada, loc. cit., pagina 251). E enveredou então por outros caminhos - os do entendimento "adaptado" da expressão "autogestão" - para convencer da recondução de "durante a autogestão" a optica do proprietario virtual ou que o vira a ser. Ora, ja vimos que assim não e necessariamente, nem foi o sucedido na hipotese, como veremos.
Regressemos a ideias ja expressas e ao argumento especifico de mero facto do abandono contra a realidade juridica.
A autogestão existiu por mera evolução de facto, diz a lei.
Dissociando propriedade e posse (util), passou a existir uma realidade que não e so juridica, mas de direito e facto. Por isso, a nova realidade e mista, não podendo falar-se, rigorosamente, de facto contra direito.
Sim em factos assumindo juridicidade e onde ha a considerar uma nova evolução de sinal contrario, resumida no abandono genericamente

considerado. Isto por um lado.
De outro, e sabido que a posse e o exercicio de um direito. Adquire-se pela pratica reiterada dos actos correspondentes [CCV, artigo 1263, alinea a)].
Mantem-se enquanto durar essa actuação (artigo 1257, n. 1). E finda, diriamos logica e naturalmente, havendo abandono. Ora, no acordão fundamento, como ja sucedera, alias, no de 26 de Maio de 1981, deu-se plena eficacia a esse abandono, diga-se a proposito (o segundo acordão foi anotado na Revista de Legislação e de Jurisprudencia, cit., a pp. 211 e 248).
De resto,constituiria ficção juridica, impressionantemente fora da realidade, continuar a falar de uma autogestão inerte e sem patrimonio ha mais de uma dezena de anos.
E tambem não o afecta a forma cooperativa da pessoa que deteve a autogestão. Sem duvida que a forma assumida tem os seus meios proprios de extinção. Mas isso nada tem a ver com o facto diverso de essa pessoa, por hipotese ainda viva, perder uma posse. E o importante aqui e saber se a pessoa, singular ou colectiva, mantem ou não uma conduta de possuidor gestionario. E não se esta viva. E que não a mantem, e ha muitos anos, e irrecusavel, por mais que se queira ficcionar.
VI - Acabamos de ver não existirem razões para a ineficacia do abandono e a desaplicação do instituto da perda de posse.
Mas a tese adversa dos defensores da ineficacia e da preferente aplicação subsidiaria das regras do usufruto (Lei n. 68/78,artigo 13) conclui que por esta via a solução seria a mesma: a desocupação e abandono não configuraria a extinção do usufruto nem da autogestão (Revista de Legislação e de Jurisprudencia, cit., pagina 250, onde se equipara o detentor da posse util ao usufrutuario). E diz-se: não ocorre nenhuma das previsões do artigo 1476 do CCV, designadamente a renuncia.
Mas e aqui que divergimos. Pelo contrario, encaminhar assim as coisas so reforça a tese do fim da autogestão.
A renuncia, na verdade, e hoje uma declaração de vontade informal, expressa ou tacita. A segunda traduz-se em "factos que com toda a probabilidade a revelam" (CCV, artigo 217, n. 1). Ora, que concluir, nessa optica, de um colectivo de trabalhadores que desocupou e abandonou ha longos anos se não que "com toda a probabilidade" renunciou?
Sendo assim, quando inconclusivo o abandono possessorio
- e não o e -, chegariamos ao mesmo resultado por esta outra via da renuncia.
Recapitulando, verificamos que, de uma forma ou de outra, sempre a autogestão findou. E sera a quarta conclusão.
VII - O aproveitamento das conclusões permite ainda encarar o problema sob angulo diverso: que sucedeu a posse util gestionaria?
Que ela foi perdida e dado adquirido. Mas, sabido que a autogestão finda quando acabar a dissociação propriedade-posse, tera esta migrado para entidade diversa do actual dono da empresa, mantendo-se a situação autogestionaria?
Relembre-se que o dono originario não so não definiu a sua situação [Lei n. 68/78, artigo 39, alineas a) e b)], como tambem o Estado não expropriou, total ou parcialmente [artigos 39, alinea d), e 45, n. 1]. E o resultado seria a aquisição automatica pelo Estado [artigos 43, alinea b, e 47].
De qualquer modo, a propriedade da empresa surge ligada ao problema da sua posse, com base na primeira, podendo avançar-se quanto ao segundo, sempre visando a possivel dissociação autogestionaria.
Uma coisa e certa: os trabalhadores não adquiriram a propriedade (alias, se a adquirissem, a dissociação findaria); outra e que pela via da perda da posse ou da renuncia dos trabalhadores como se disse precedentemente, a posse autogestionaria findou.
Em termos de raciocinio, vamos agora admitir ser discutivel a assunção da propriedade pelo Estado.
Então ha que ensaiar outros caminhos.
A dilucidação do problema tem, na verdade, outra leitura possivel e não encarada nas decisões confrontadas. Efectivamente, ambas supuseram a aplicação da Lei n. 68/78, so divergindo na desaplicação do seu artigo 36.
Mas isso não impede encarar a questão de outro angulo argumentativo, desde que abrigados no rumo do pagamento dos avalistas, esse, sim, o ponto final em oposição.
A Lei n. 68/78, diz o seu artigo 1, aplica-se as empresas e estabelecimentos onde pela citada evolução de facto, ainda não regularizada nos termos gerais de direito, os trabalhadores assumiram a gestão entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da presente lei.
Sucede, porem, que, como vimos, os trabalhadores desassumiram a gestão em meados de 1977 (isto para usar a terminologia desse artigo 1).
Sucede, pois, que em fins de Outubro de 1978 (a lei e de esse mes) os trabalhadores ha muito haviam deixado a gestão.
Logo, não so o artigo 36 mas a propria lei no seu todo, ja não eram aplicaveis a situação concreta. E que ao tempo da sua entrada em vigor findara o assumir da gestão, tudo se reconduzindo ao regime do aval e que e o pagamento (no caso, incontestado por outras vias).
Efectivamente, em meados de 1977 a empresa encontrava-se numa situação de autogestão provisoria, a regularizar posteriormente com os mecanismos da Lei n. 68/78. Mas isso não chegou a suceder, visto que a provisoriedade desaparecera com a desassunção.
Alias, durante a provisoriedade, a regular nos termos do artigo 38 - um dos quais e a aquisição da nua-titularidade ou propriedade dissociada -, "o proprietario mantem a nua-titularidade do seu direito" (artigo 30). Mas, ainda que o não dissesse, teria de ser assim, visto que os trabalhadores so a gestão assumiram. A propriedade continuava intacta pela lei geral, nesse ponto confirmada pela Lei n. 68/78. E tanto assim que uma das soluções, na visão do legislador de 1978, e a mera definição da situação do proprietario, necessariamente mantido, e não a aquisição do direito, que não perdera.
Concluimos que, independentemente da aquisição pelo Estado da nua-titularidade (uma via possivel), sempre ela, a titularidade, era e e de outrem, que não dos trabalhadores.
So que não seja objecto desta decisão a questão do proprietario, assim deixada em aberto. Alias, em si mesmo, e indiferente saber quem ele seja, desde que não diverso do detentor da posse.
Por um dos caminhos ensaiados - mera argumentação para um resultado - sempre a dissociação propriedade-gestão acabou, e ate ja acabara em 1977, com ela findando a realidade autogestionaria.
E, de uma forma ou de outra, a excepcional suspensão do artigo 36 não tem aplicação, como se disse no acordão-fundamento, embora por outras razões agora.
VIII - Podera, em todo o caso, questionar-se o destino dessa posse. E o problema colocado no inicio do paragrafo anterior.
Seja embora uma consideração lateral do decidedum, afigura-se-nos que ela se consolidou no proprietario.
Segundo o artigo 1251 do CCV, a posse e o poder manifestado por uma actuação. Esse poder actuante não existe actualmente.
Por outro lado, e sabido que esse poder se liga estreitamente a propriedade (artigos 1251, 1287, 1293 e outros), a correspondente relação continente-conteudo, ou mais-menos, fica bem expressa no seguinte artigo 1305, ao dizer que, em principio, o proprietario goza plena e exclusivamente do uso, fruição e disposição. Essa a mencionada vocação consolidante da propriedade.
Em termos de facto, a posse ou gestão em causa seria como que uma res nullius de migração incerta. Mas, de um ponto de vista de direito, reingressou naturalmente no proprietario, Estado ou sociedade comercial. E, reingressando, sempre acabou a realidade autogestionaria.
XIX - Trata-se, porem, de avalistas responsabilizados "da mesma maneira que a pessoa por eles afiançada" (LULL, artigo 32, paragrafo 1).
Vira dai obstaculo?
A pessoa afiançada deve encarar-se objectivamente, e não em optica pessoalista ou de conveniencia. De contrario, e falecida essa pessoa, por exemplo, desapareceria a garantia. E isso não e verdade, mesmo no puro campo da fiança, que e dada, não em beneficio de devedor, mas do credor, e se extingue com a obrigação principal (CCV, artigo 651 e ainda os artigos 627, n. 1, 628, n.2, 632 e 634).
Nem sequer, porem, o aval e uma fiança em absoluto.
A expressão usada e uma tradução ma do original frances, dont il s'est porte garant, ou da versão inglesa, as the person for whom he has become guarantor (conferir J. G. P. Coelho, Letras, II volume, fasciculo V, pagina 6).

O aval e, sim, uma garantia diferenciada (embora com semelhanças), tendendo a autonomizar-se e a consagrar a independencia cambiaria do avalista. Basta pensar, resumidamente, nas diferenças dos artigos 32, paragrafo 2, e 632 do CCV e no seguinte paragrafo 3, quanto a sub-rogação, e, sobre a excussão, o artigo 47 da LU, em contraponto do artigo 638, n. 1, do CCV.
O que tudo redunda, para o avalista, na assunção da obrigação literal, ou, ao menos, onde a subsidiariedade não esgota a sua natureza juridica. O aval mostra-se um verdadeiro acto cambiario e, como tal, sujeito ao seu regime. O que corresponde, afinal, ao generico da independencia e abstracção das obrigações cambiarias (LU, artigo 7, e P. Coelho, obra citada, loc. cit, pagina 181).
X - Um ultimo considerando tem a ver com a justiça da solução.
Parecera chocante responsabilizar os avalistas no fim de uma gestão ruinosa. O que, desde logo, constitui so uma vertente da questão.
O artigo 36 em causa e ou a Lei n. 68/78 deram como que uma moratoria aos garantes. Eles beneficiaram dela mais de uma dezena de anos. E agora esse tempo acabou.
Mas e preciso considerar tambem o reverso do problema: o credor privado ha longos anos do pagamento que lhe e devido.
Os avalistas não tiveram a ver com a autogestão, e certo. Mas o credor tambem não. So que, quanto aos primeiros, essa era uma modificação de circunstancias que poderia ter sido invocada, e não o foi, nos quadros do artigo 437 do CCV. O mesmo não sucedendo ao credor, que se veria despojado irremediavelmente de um credito incontestado quanto ao fundo.
De qualquer modo, e sera o principal, se o banco exigisse o pagamento entre o fim da autogestão e a vigencia da Lei n. 68/78, que lhe suspendeu os direitos
- meados de 1977 e finais de 1978 -, nada impedia essa exigencia numa optica estritamente juridica. Como sucederia, alias, no vencimento das livranças antes da autogestão, ou durante esta, mas antes da publicação da lei.
Se assim era, e de discutivel justiça invocar agora uma lei que favoreceu os devedores para agora não pagar. Mesmo nos quadros de aplicação da lei, isso so sucederia se a posição dos trabalhadores vingasse com a aquisição por si da propriedade da empresa (citado artigo 49). Mas isso não aconteceu, retomando os acontecimentos o seu curso interrompido. Repete-se: descomprimidos os direitos dos credores, caimos na regra de que e pagar. E isso, repete-se tambem, quer pela desaplicação da Lei n. 68/78, no seu todo, como pela do seu artigo 36, nos quadros da aplicação generica da lei.
XI - Desaparecidos, assim, os obstaculos vindos da Lei n. 68/78, e entrando em acção os mecanismos gerais do aval e deixados em aberto naquela lei, so ha que responsabilizar os avalistas pelas obrigações assumidas (LU, artigos 32, 43, 47, 77 e 78).
Correspondentemente, formula-se o assento seguinte:
O abandono definitivo de uma empresa pelos seus trabalhadores em autogestão antes da vigencia da Lei n. 68/78, de 16 de Outubro, põe fim a essa autogestão e torna invocaveis as garantias referidas no artigo 36 da mesma lei.
Em consequencia, revoga-se o acordão recorrido e ordena-se o envio do processo a 2 instancia para pelos mesmos juizes, sendo possivel, ser proferida nova decisão sobre o merito da causa.
Custas pelos recorridos.

Lisboa, 15 de Junho de 1989

Brochado Brandão - Licinio Caseiro - Tinoco de Almeida
- Julio Santos - Manso Preto - Gama Prazeres - Solano Viana - Salviano de Sousa - Rodrigues Gonçalves - Cesario Dias Alves - Jose Saraiva - Jose Domingues - Mario Afonso
- Villa Nova - Vasco Tinoco - Barros de Sequeiros
- Ferreira Vidigal - Castro Mendes - Baltazar Coelho -
- Maia Gonçalves - Ferreira Dias - Antonio Soares Tome [votei o assento com base nas razões expressas no acordão-fundamento proferido no dia 25 de Janeiro de 1983 (Boletim, n. 323, pagina 415)] - Antonio Carlos Vidal de Almeida Ribeiro [vencido, por entender que a autogestão não se extinguiu (artigos 38, 47, n. 2, e 45 da Lei n. 68/78), sem que tenha de considerar-se o disposto no artigo 36 dessa lei: as garantias pessoais não podem ser invocadas pelos autores, ao contrario da decisão que fez vencimento] - João Alcides de Almeida (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto que junta) - Mario Sereno Cura Mariano (conforme declaração de voto, que junto, formulava assento em sentido oposto ao votado) - Jorge d'Araujo Fernandes Fugas (vencido, em conformidade com o voto do Excelentissimo Conselheiro Corte Real, que ja não faz parte deste Tribunal, expresso no acordão-fundamento publicado no Boletim, n. 323, pp. 415 e seguintes, e com a orientação firmada no Acordão deste Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 1980, in Boletim, n. 293, pp.372 e seguintes, que perfilhamos e desenvolvemos, em seu relato, no Acordão da Relação do Porto de 1 de Março de 1983, proferido no recurso de agravo n. 1904 da 4 Secção desse Tribunal) - Eliseu Figueira (vencido, conforme declaração de voto que junto)
- Barbosa de Almeida (vencido, pelas razões constantes do voto que antecede) - Mendes Pinto (vencido, pelas mesmas razões do voto do Excelentissimo Conselheiro João Alcides de Almeida) - Flavio Pinto Ferreira (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto do Excelentissimo Conselheiro Cura Mariano) - Jorge Vasconcelos (vencido, em conformidade da declaração de voto do colega Eliseu Figueira) - Lopes de Melo (vencido, pelos fundamentos referidos na declaração de voto do Excelentissimo Conselheiro Eliseu Figueira) - Sousa Macedo (vencido, pelos fundamentos referidos na declaração de voto do Excelentissimo Conselheiro Eliseu Figueira) - Jose Meneres Pimentel (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Excelentissimo Conselheiro Eliseu Figueira).
Declaração de voto:
Dispõe o artigo 36 da Lei n. 68/78 que "durante a autogestão" as garantias pessoais prestadas anteriormente não podem ser invocadas pelos credores.
Duvidas não se tem de que, perante a ocupação da empresa, houve o proposito de salvaguardar os interesses dos "garantes", em prejuizo dos credores. "Garantes" que, normalmente, ate eram os socios ou proprietarios da empresa e que se viram despojados dos bens sociais, dos seus instrumentos de trabalho ou da possibilidade de ganharem a vida. Dai a prevalencia dos seus interesses sobre os dos credores, situação que durara enquanto se mantiver a autogestão, enquanto, como refere V. Lobo Xavier, "o proprietario estiver privado de posse e gestão" (Revista de Legislação e de Jurisprudencia, n. 117, pagina 251).
A compreensão desta situação juridica assenta no disposto nos artigos 38, alinea b), e 43, alinea b), da Lei n. 68/78 - aquisição da nua-titularidade pelo Estado, o que conduziria a que os garantes fossem avalizar aquele Estado, o que não se concebe -, 45, n. 2 - a aquisição da nua-titularidade conduz a consolidação da posse util e da gestão pelo colectivo de trabalhadores, o que leva a que se considere que a empresa se subordina a autogestão definitiva, situação a considerar, ja que o INEA não estabeleceu prazo de duração da posse util em autogestão - e 46 - havendo aquisição da nua-titularidade pelo colectivo de trabalhadores, a situação excepcional do artigo 36 tornou-se definitiva, isto e, os garantes deixam de ser garantes, e isto sem consentimento ou oposição dos credores.
A posse util não e uma modalidade de posse prevista nos artigos 1251 e seguintes do CCV. E um direito real muito semelhantes ao direito de usufruto, em que o abandono não tipifica a extinção do mesmo. Tão-pouco conduz a esta situação o abandono dos trabalhadores ou o encerramento da empresa - posição de V. Lobo Xavier, que perfilhamos.
Por outro lado, vem demonstrado que os trabalhadores se constituiram em cooperativa. As formas de extinção desta vem expressamente contempladas nas leis respectivas
- hoje Codigo Cooperativo - e não vemos que haja ocorrido a extinção daquela. Pelo que a cooperativa prevalece, e com ela, a posse util que adquiriu, que, como concluimos, ainda não se extinguiu.
Não vem demonstrado que a cooperativa haja renunciado a posse util. Uma coisa e não ser a mesma exercida, outra a renuncia a ela. O Supremo Tribunal de Justiça não pode extrair ilações de factos quando tais factos podem conduzir a mais do que uma solução. E a renuncia tacita so e de admitir quando não houver duvidas sobre a solução a adoptar.
E certo que a solução propugnada podera mostrar-se chocante em relação aos credores. No entanto, ha que considerar que a lei da autogestão foi concebida em periodo em que se salvaguardavam predominantemente os interesses dos trabalhadores, sacrificando-se para tanto os interesses dos proprietarios e os dos credores.
Aqui foram sacrificados os interesses destes ultimos, sendo beneficiados os dos trabalhadores e dos garantes, estes normalmente investidos nas pessoas de socios ou de proprietarios das empresas.
Formularia, assim, assento em sentido oposto ao proposto. - Cura Mariano.
Declaração de voto.
1 - Vem dado como provado que a gestão da empresa em causa foi abandonada pelo trabalhadores em 1977. Dai que ao caso sujeito decidido pelo acordão recorrido não seja aplicavel o regime constante da Lei n. 68/78 de 16 de Outubro, pois segundo o artigo 1 desse diploma, ele so e aplicavel as empresas em que por uma evolução de facto não regularizada ainda nos termos gerais de direito os trabalhadores assumiram a gestão entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da presente lei, o que envolve que a gestão pelos trabalhadores ainda persista na data da entrada em vigor dessa lei, e que caso sujeito não se verificava, portanto.
2 - E pode agora, em plenario conhecer-se dessa questão.
Na verdade, a historia do n. 3 do artigo 768 do Codigo de Processo Civil, onde se preceitua que o tribunal deve resolver o conflito e lavrar assento, "ainda que a resolução do conflito não tenha utilidade alguma para o caso concreto em litigio" aponta inequivocamente para essa possibilidade, pois, segundo informa Alberto dos Reis Codigo de Processo Civil Anotado, VI, p. 312, tal dispositivo foi sugerido pelo conselheiro Botelho de Sousa por o Supremo haver deixado de emitir assento num caso em que, reconhecendo-se embora a existencia de conflito, se decidiu não o emitir com o fundamento de ser inutil, por, contrariamente ao que se decidira no acordão recorrido, se haver entendido, num caso de ambargos de terceiro, que o embargante não era terceiro.

3 - Mas ha na sequencia do exposto, que proferir assento, pois e manifesto o conflito de jurisprudencia. O art. 36 da Lei n. 68/78 dispõe que durante a autogestão as garantias pessoais prestadas anteriormente por dividas decorrentes da aquisição e exploração da empresa ou do estabelecimento não podem ser invocadas pelos credores".
E a aquisição pelo Estado pode, alem de outras formas, resultar da caducidade do direito a reinvindicar a empresa ou o estabelecimento ou exigir a restituição da sua posse [alinea c) do artigo 43], com o que a nua-titularidade se transfere da sociedade proprietaria para o Estado (n. 2 do artigo 47).
Assim, passaria a autogestão de provisoria a definitiva, pelo que, sendo o aval uma garantia pessoal, não pode invocar-se a responsabilidade dos avalistas por dividas decorrentes da exploração da empresa, nos termos do artigo 36 da Lei n. 68/78, que, alias, não distingue entre as formas de gestão provisoria e definitiva.
Nesta conformidade, e sem reflexo no acordão recorrido, deveria formular-se o seguinte assento:
O artigo 36 da Lei n. 68/78, de 16 de Outubro, e aplicavel ao caso de ser definitiva a autogestão.
João Alcides de Almeida.
Declaração de voto.
1 - O presente acordão, ao reincidir no vicio dogmatizante que, numa posição critica da jurisprudencia classica, vem sendo denunciado e que consiste na classificação das normas juridicas numa relação de subordinação regra-excepção, chega a um resultado errado, por ser contrario a tutela dos interesses que a ordem juridica (Lei n. 68/78, de 16 de Outubro) se propõe alcançar e por negar a justiça material que essa mesma ordem juridica, com a referida tutela, pretende realizar.
Uma correcta jurisprudencia radica numa metodologia correcta; por isso, e a este nivel metodologico que o julgador tem de assumir a realidade, na sua configuração multifacetada, procurar na ordem juridica a tutela, não excepcional, mas especial, dirigida a satisfação dos interesses e a solução dos conflitos em cada uma das areas em questão, e recusar a pretensão de meter no saco da pre-conceptuação elaborada em certa epoca ou para certas circunstancias uma realidade que lhe escapa.
No caso concreto para o presente acordão ha um regime geral, no que toca aos direitos de credito de terceiros, e um regime-excepção, quanto a situação de autogestão, para se concluir, de forma inexacta e contraria a lei, que, finda ou extinta a autogestão, aqueles terceiros veem os seus direitos expandir-se e retomar a potencialidade originaria, ate ai comprimida pelo regime autogestionario. Nada de mais inexacto com este resultado de uma justiça puramente formal a opor-se e a negar um justiça substancial, que a ordem juridica se propõe realizar, ao considerar todos os interesses envolvidos na situação autogestionaria (os interesses do proprietario, do colectivo de trabalhadores, dos credores e dos seus garantes, fiadores ou avalistas).
2 - Segundo o artigo 1 da Lei n. 68/78, o regime juridico ai definido aplica-se as situações de autogestão verificadas entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor deste diploma, ainda que, entretanto, a gestão tenha sido abandonada pelos trabalhadores, precisamente porque ha importantes interesses envolvidos e que importa proteger.
Dai que se mostrem despiciendas na presente analise todas as considerações a volta da perda da posse util ou da persistencia da situação de autogestão com o abandono da empresa ou da sua gestão pelos trabalhadores.
No caso de que trata o presente acordão verificou-se o abandono da empresa pelos trabalhadores ainda antes da entrada em vigor do citado diploma, o que, como se disse, e, alias, essa e a posição tomada no acordão, não impede a aplicação do regime juridico ai estabelecido, de harmonia com o referido no seu artigo 1.
So que o presente acordão, ao fazer essa aplicação, parte de uma premissa contraria a lei, a de que com a caducidade do direito do proprietario a reinvidicação da empresa ou a restituição da sua posse findara ou findaria a autogestão (se não tivesse havido abandono), com a transferencia da empresa ou do estabelecimento para o Estado.
E este o nucleo viciante do presente acordão.
Contrariamente ao ai afirmado, resulta dos artigos 43, alinea b), e 47 que com a caducidade do direito do proprietario não se transfere para o Estado a empresa, mas se transfere apenas a nua-propriedade, o que tem em vista considerar a empresa em autogestão definitiva (como se estabelece no artigo 45, n. 2, para a expropriação pelo Estado da nua-propriedade) e, por esta via, tutelar os interesses do proprietario [com a separação de patrimonios (artigos 35)] e os dos garantes pessoais [com a ininvocabilidade das garantias pessoais pelos credores)].
3 - O interesses envolvidos na situação autogestionaria são os interesses do proprietario, do colectivo de trabalhadores, dos terceiros credores e dos garantes pessoais.
Durante a autogestão, seja ela provisoria ou ja regularizada, portanto definitiva, consagra-se no citado diploma um regime de separação de patrimonios (os credores por dividas conexas com a empresa so pelos bens a ela afectados podem fazer-se pagar; os credores por dividas pessoais do proprietario não podem fazer-se pagar pelos bens da empresa) e, por outro lado, consideram-se ininvocaveis pelos credores as garantias pessoais prestadas a dividas contraidas anteriormente ao inicio da autogestão, ja vencidas ou vencidas posteriormente.
Este regime traduz-se num beneficio concedido ao proprietario e aos garantes pessoais como contrapartida de protecção da situação autogestionaria e, vigorando durante a autogestão, provisoria ou definitiva, estende-se a sua extinção, com a aquisição da nua-titularidade da empresa pelo colectivo de trabalhadores, como expressamente se estabelece no artigo 49 do citado diploma.
Segundo em principio de equidade e de justiça material, a lei, ao tutelar os interesses em conflito, resolve sacrificar os interesses dos credores, em regra, pessoas de negocios sujeitos ao risco da contratação, aos interesses do proprietario da empresa, cuja gestão foi assumida pelos trabalhadores, e aos interesses dos garantes pessoais (fiadores ou avalistas), tendo em conta que estes garantes são pessoas que por mero favor responsabilizam o seu patrimonio.
Portanto pelas dividas da empresa não responde o patrimonio do proprietario, para alem dos bens aquela afectados, nem o patrimonio dos garantes pessoais, sendo este o beneficio atribuido ao proprietario e aos garantes em prejuizo dos credores, durante a autogestão provisoria ou definitiva e mesmo apos a sua extinção, com a aquisição da nua-titularidade da empresa pelo colectivo de trabalhadores (artigo 49) ou com a expropriação da empresa pelo Estado [artigo 43, alinea a)].
Ja se disse que com a aquisição pelo Estado da nua-titularidade da empresa por expropriação ou por caducidade do direito do proprietario se considera definitivamente consolidada a autogestão, pelo que em qualquer destes casos vigora o regime de separação de patrimonios e o de ininvocabilidade pelos credores das garantias pessoais, como decorre dos artigos 35, 36,
45, n. 2, e 47, n. 2, do referido diploma.
Para a hipotese de expropriação da empresa ou do estabelecimento pelo Estado, com o que finda e, por isso, se extingue a autogestão, tambem se mostra evidente, ate na base de argumentação por absurdo, que se mantem o referido regime. Segundo o estabelecido para as expropriações (Decreto-Lei n. 845/76), a coisa expropriada e transferida para o Estado livre de onus e encargos (artigos 44, 100 e 101), sendo a correspondente indemnização partilhada por todos os interessados (proprietario, usufrutuario e credores com garantia real).
Portanto, os credores, segundo o aludido regime de separação de patrimonios, apenas tem como garantia geral a indemnização correspondentes aos bens afectados a empresa expropriada e, no que respeita ao benefecio concedido aos garantes pessoais, mantem-se a ininvocabilidade, tendo em conta que a ratio desta garantia pressupõe o direito de regresso contra todo o patrimonio da pessoa afiançada ou avalizada, patrimonio que, por razões de equidade, foi excluido da responsabilidade pela dividas da empresa enquanto esta não for recuperada pelo proprietario recuperar a empresa o direito dos credores adquire a sua potencialidade originaria; então extinta a autogestão, os credores passam a ter como garantia geral todo o patrimonio do devedor e como garantia pessoal o patrimonio do fiador ou do avalista.
Mas não e pelo facto de se extinguir a autogestão que os direitos dos credores retomam a sua amplitude inicial. E, sim, porque o proprietario assumira a recuperação da empresa. Se o proprietario deixar caducar o direito a reivindicação da empresa ou a restituição da respectiva posse, o artigo 47 do citado diploma, ao transferir para o Estado a nua-titularidade e ao considerar a empresa em autogestão definitiva (artigo 45), funciona como protecção a situação autogestionaria, estendendo-se a tutela, como contrapartida, aos interesses do proprietario e dos garantes pessoais, para tanto se mantendo a separação de patrimonios e a ininvocabilidade estabelecida no artigo 36.
O que se acaba de referir esta clara e transparentemente demonstrado na Revista de Legislação e de Jurisprudencia, n. 117, pp. 215 e 245, por Lobo Xavier.
Assim, e em resumo, "so no caso de recuperação da empresa ou do estabelecimento em autogestão pelo proprietario cessa o regime de separação de patrimonios e de ininvocabilidade das garantias pessoais pelos credores definido nos artigos 35 e 36 da Lei n. 68/78, de 16 de Outubro".
Eliseu Figueira.