Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO GOMES DA SILVA | ||
Descritores: | OMISSÃO DE PRONÚNCIA PERÍCIA SOBRE A PERSONALIDADE NULIDADE HOMICÍDIO QUALIFICADO | ||
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Data do Acordão: | 01/11/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DIREITO PENAL – FACTO / FORMAS DO CRIME – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA / CRIMES CONTRA A LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL / CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. | ||
Doutrina: | -Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, p. 114; -Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, p. 104; -Augusto Silva Dias, Direito Penal, Parte Especial, Crimes contra a Vida e a Integridade Física, 2.ª Edição, 2007, AAFDL, p. 24, 25 e 36; -Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 2.ª Edição, p. 53 e ss.; -Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 197 ; Comentário do Código Penal, Tomo I, 1.ª Edição, p. 26 e 27; Figueiredo Dias e Nuno Brandão, 2.ª Edição, p. 32, 37, 51 e 81; -Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 175; -Paulo P. Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição, p. 512 e 514; -Teresa Serra, Homicídio Qualificado Tipo de Culpa Medida da Pena, Almedina, 1990, p. 58 e ss.. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALÍNEA F), 403.º, N.º 3 E 434.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 22.º, 23.º, 77.º, N.º 1, 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEAS E) E H), 145.º, N.ºS 1, ALÍNEA A) E 2 E 170.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 04-06-2014, PROCESSO N.º 298/12.1JDLSB.L1.S1; - DE 28-04-2016, PROCESSO N.º 2377/13.9GBABF.E1.S1; - DE 29-06-2017, PROCESSO N.º 661/15.6PBLRS.L1.S1; - DE 06-07-2017, PROCESSO N.º 204/14.9JAGRD.C1.S1. -*- ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: - ACÓRDÃO N.º 186/2013; - ACÓRDÃO N.º 269/2014. | ||
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Sumário : | I - A circunstância de o recurso ser inadmissível no tocante a alguns crimes pelos quais o recorrente foi condenado (crime de importunação sexual e ofensa à integridade física qualificada não impede que sendo de lhe atribuir razão a respeito de questões relativas a outro crime (homicídio qualificado) não prejudica o dever de retirar da procedência dessa parte do recurso as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida, assim o impondo o n.º 3 do art. 403.º do CPP. II - Genericamente, o recurso é a reacção a uma decisão que se entende injusta porque nela se procedeu a uma má interpretação ou a uma incorrecta aplicação da lei ou se incorreu num erro no julgamento da matéria de facto. III - Se o erro é da decisão de facto impõe-se que no recurso em processo penal se cumpra o art. 412º, nº 3 CPP especificando o recorrente (i) os concretos pontos que considera incorrectamente julgados, (ii) as concretas provas [produzidas] que impõem decisão diversa da recorrida e, se for caso disso, (iii) as provas que devem ser renovadas o que no caso, não aconteceu. IV - Mas pressupondo que a pretensão do recorrente era evidenciar um erro de direito e obter a sua reparação há, desde logo, que considerar que essa reparação não passaria por deferir a pretensão de que um certo facto (nº 57) fosse dado como não escrito. Não há previsão legal para esta pretensão se a invocação é de erro de direito e, também por esta via, aquele tribunal não teria de se pronunciar. V - Perante a invocação de um erro de direito como seria a omissão de perícia sobre a personalidade prevista no art. 160.º CPP que poderia ser reputada como diligência relevante para a descoberta da verdade (art. 120.º, n.º 2, al. d) CPP) invocação essa feita pelo recorrente somente no recurso estaria o tribunal da relação impedido de se pronunciar pois a necessidade de realizar esse exame não foi objecto de requerimento do recorrente no momento oportuno, ou seja, quando lhe foi concedido prazo para preparação da defesa após a comunicação da alteração não substancial nem essa era uma matéria que oficiosamente se impusesse determinar ao tribunal de 1ª instância. VI - E a questão também não poderia ser tratada como nulidade do acórdão que pudesse ser arguida no recurso. Não tendo havido decisão a esse respeito estaria o tribunal da relação impedido de se pronunciar sobre o pedido de realização da perícia de acordo com o que consta do art. 608º, nº 2 CPC ex vi art. 4.º CPP. VII - Mas se o recorrente perante o Tribunal da Relação, invocou falta de exame crítico por parte do acórdão da 1ª instância a respeito daquele facto (nº 57) sendo esta uma questão posta expressamente no recurso interposto deveria, aqui sim, o Tribunal da Relação pronunciar-se sobre ela. Não o fazendo omitiu pronúncia. VIII - Resta precisar qual a consequência dessa omissão e designadamente se perante essa falta o acórdão recorrido deve ser declarado nulo como propõe o recorrente invocando o nº 2 do art. 379º CPP. IX - As nulidades de processo são «desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais» mas como já foi assinalado «a nulidade representa uma perda de esforços, de tempo, de dinheiro, perda tanto mais grave quanto maior é o campo sobre o qual se projecta. Considerar nula uma sentença que é o termo dum longo e dispendioso ciclo de actividade processual (…) é uma atitude de tal modo prejudicial que bem se compreende a formação duma doutrina tendente a salvar do naufrágio aquilo que razoavelmente possa ser salvo». X - Por outro lado, não pode perder-se de vista que «os actos processuais são actos instrumentais que se inserem na complexa unidade de um processo de tal sorte que cada acto é, em certo sentido, condicionado pelo antecedente e condicionante do subsequente» pelo que «a inobservância dos requisitos formais repercute-se mais ou menos acentuadamente no acto terminal do processo, pondo em perigo a justiça da decisão». XI - Transigência e equilíbrio são, pois, ideias-chave que destas posições doutrinais se extraem em matéria de nulidades processuais e se isso é assim no plano do direito constituído tudo aconselha que a regra da apreciação caso a caso, através da qual se avalie se a omissão verificada tem influência no fim que era visado, se sobreponha a considerações de índole puramente formal. XII - A nulidade do acto não estará, portanto, estritamente ligada à simples inobservância de um determinado formalismo ou rito processual, por muito pertinente que ele possa ser, mas será constatada pela relação entre o vício e o fim do processo e pela patente impossibilidade de a ultrapassar e de conservar os efeitos da decisão por tal afectar a justiça da dita decisão. XIII - Se a intervenção do Supremo Tribunal, no âmbito do recurso de revista e em sede de concretização da medida da pena, deve revestir-se de alguma parcimónia e deve ser reservada para os casos de violação das regras da experiência ou face à desproporção da quantificação – do quantum exacto da pena – ela pode ocorrer «quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção». XIV - Assim, na operação de sindicação da medida das penas a levar a cabo a falta formal assinalada poderá ser ultrapassada de maneira a conservar no essencial os efeitos da decisão recorrida e de modo a não afectar a justiça do caso, na perspectiva de qualquer dos sujeitos processuais, obviando as sobreditas desvantagens da anulação mediante a apreciação da relevância ou da falta dela do facto provado que não foi objecto de exame crítico (nº 57). XV - A qualificação do crime de homicídio a que se procede no art. 132º surge quando se verifica «um tipo de culpa agravado» que está «assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a um conceito indeterminado como é o da “especial censurabilidade ou perversidade do agente”»; essa verificação é «indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto outros relativos ao autor exemplificativamente elencados» no citado nº 2 do art. 132º. XVI - Como já foi ensinado, a cláusula geral de agravação prevista no nº 1 do art. 132º, para ter-se como verificada, implica uma conexão hermenêutica entre ambos os aspectos: os exemplos típicos elencados no nº 2 explicitam o sentido dessa cláusula agravante e esta, por seu turno, funciona como correctivo normativo da objectividade daqueles traduzido na fórmula expressiva «não só, nem sempre». Sendo o sentido e o alcance da técnica dos exemplos-padrão flexibilizar a aplicação da lei penal a ideia essencial é a de que são de considerar como homicídios qualificados somente casos particularmente chocantes. XVII - particularmente chocantes na actuação do agente, no modo como comete o homicídio, que reflictam um desvalor especialmente grave e uma motivação especialmente censurável. Em que o acto de destruição da vida humana para lá do modo ardiloso, ou cruel ou de inflicção de sofrimento como é levado a cabo revele também uma atitude dedicada e envolvida do agente. Casos em que, afinal, a formulação de um especial juízo de culpa encontre suporte numa «correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo do ilícito». XVIII - A futilidade do motivo não pode ser perspectivada somente perante o estrito acto de anavalhar, de efectuar um disparo ou de levar a cabo uma outra qualquer agressão com o intuito de tirar a vida a alguém. Aí, é o fim da linha, o culminar do processo decisório e de execução. A futilidade deve ser avaliada no contexto, no desencadear e desenrolar de toda a situação que descamba no resultado morte. Só assim se cumprirá o desígnio da «avaliação da imagem global» pois de outro modo a avaliação será necessariamente fragmentada. XIX - Quando, por exemplo, se diz que houve um conflito é necessário, designadamente, que se avalie quem o provocou, o que esteve na sua origem e quais as proporções que assumiu. A hostilidade é a regra numa atitude homicida mas o que levou a ela? Foi ou não algo de «incompreensível ou inexplicável à luz do modo de agir do homem médio ou mesmo revelador de um baixo carácter». XX - É todo esse comportamento que poderá ser tido como insignificante, frívolo, vão – sinónimos de fútil – , ou sórdido, infame ou ignóbil – sinónimos de torpe. E poderá permitir – ou não – a formulação de um especial juízo de culpa. «Não só, nem sempre», referido. XXI - Foi o recorrente que desencadeou uma situação provocatória, potencialmente originária de um conflito, sendo portador de uma “arma branca”, e que, sem outros acontecimentos que pudessem ser tidos como geradores desse conflito, fez com que a vítima viesse para fora do bar e a esfaqueou mortalmente. XXII - Têm razão as instâncias e os assistentes quando aludem à insignificância da situação globalmente considerada para a reacção do recorrente e quando qualificam essa reacção como «ostensivamente despropositada, de surpresa, implacável e insensível». Em suma, traiçoeira e, por isso, cobarde a partir de um motivo manifestamente insignificante qual haja sido a interpelação de que foi alvo por parte dos membros do grupo a que se dirigiu e provocou. XXIII - A lei estipula que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a prática do facto com utilização de meio particularmente perigoso. A perigosidade há-de advir do instrumento em si e não do modo ou das circunstâncias em que é usado. Há-de ser o próprio instrumento utilizado a ter «uma aptidão particular para causar a morte». XXIV - Não é o facto de haver um ambiente festivo, de os presentes estarem desarmados e não alertados para a detenção desse instrumento pelo agressor ou de os golpes serem desferidos em certa zona do corpo que o torna particularmente perigoso. Uma navalha ou um canivete não é em si um instrumento que possa ter esse estatuto apesar da sua letalidade consoante as circunstâncias em que é usado. Demais a mais quando nem sequer se conhece com precisão as suas especificidades. É esse o quid. Não são as circunstâncias da utilização que hão-de tornar o instrumento particularmente perigoso; é o instrumento em si que há-de ter um elevado potencial de letalidade e, por conseguinte, uma perigosidade acrescida independentemente das concretas condições de utilização; «uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados». XXV - Sob a perspectiva do senso comum (conventional wisdom) tem de reconhecer-se que um canivete ou mesmo uma navalha não tem esse elevado potencial. Não é um meio de ataque perante o qual «as possibilidades de defesa» sejam especialmente reduzidas. Sem embargo de o contexto da utilização poder ser merecedor de um juízo de especial censurabilidade e de revelar, por essa via, uma ilicitude compaginável com casos particularmente chocantes. XXVI - O recorrente cometeu o crime de homicídio qualificado dos arts. 131º e 132º, nº 1, por haver especial censurabilidade na sua conduta lesiva da vida humana, e nº 2, al. e) por essa censurabilidade se revelar não só mas também na circunstância de a dita conduta ter sido levada a cabo por um motivo fútil. XXVII - Corolário lógico é o de considerar que a conduta do recorrente no tocante às ofensas à integridade física qualificada nas pessoas de X e Y. É essa uma consequência que se impõe de acordo como o art. 403º, nº 3 CPP. XXVIII - São os aspectos factuais que ocorreram na ocasião do crime que sobretudo se consideram relevantes mas não já o sobredito facto 57 («O arguido denotou ainda, em plena audiência de julgamento, impulsividade, vontade reactiva, intolerância a tudo quanto e a todos quantos lhe fossem desfavoráveis, determinando que fosse removido para a cela») que mais não é do que um repositório de conclusões tiradas a partir de um dado circunstancial como foi o do comportamento do recorrente em certo momento da audiência quando eram proferidas alegações pelo mandatário dos assistentes (como está consignado na fundamentação da matéria de facto) num contexto natural de pressão e tensão. E, por isso, dir-se-ia inócuo no que respeita à definição do perfil psicológico e da personalidade do recorrente. 11-01-2018 Proc. n.º 89/14.5SHLSB.L1.S1– 5.ª Secção | ||
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Decisão Texto Integral: |
1. – No âmbito do processo nº 89/14.5SHLSB.L1.S1 da Instância Central de Lisboa, 1ª Secção Criminal, J5, da Comarca de Lisboa o arguido AA foi julgado e condenado da forma seguinte: - como autor material de 1 crime de homicídio qualificado, dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e), na pena de 18 anos de prisão; - como autor material de 1 crime de ofensas à integridade física qualificada, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nºs 1 e 2, alínea e), (na pessoa de BB), na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; - como autor material de 1 crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nº 1 e nº 2, alíneas e) e artigos 22º e 23º, (na pessoa de CC), na pena de 1 ano e 3 meses de prisão; - como autor material, de 1 crime de importunação sexual, do artigo 170º do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão; - em cúmulo jurídico das aludidas penas, na pena única de 20 anos e 6 meses de prisão. As disposições citadas são do Código Penal. Quanto ao crime supra mencionado de homicídio qualificado e também aos 2 crimes de ofensa à integridade física qualificada, consumado e tentado, foi absolvido da circunstância qualificativa da alínea h) do nº 2 do art. 132º C. Penal que na acusação lhe era imputada.
Foi ainda condenado ao pagamento de uma indemnização civil aos demandantes e assistentes DD e EE, no valor global de € 170 000.
Interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa o magistrado do Ministério Público e o arguido. O recurso do arguido não teve provimento. O recurso do Ministério Público foi parcialmente provido e o arguido condenado na forma seguinte: - por 1 crime de homicídio qualificado, dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e) e h), na pena de 20 anos de prisão; - por 1 crime de ofensas à integridade física qualificadas, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nºs 1 e 2, alínea e) e h), (na pessoa de BB), na pena de 3 anos de prisão; - por 1 crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nº 1 e nº 2, alíneas e) e h) e artigos 22º e 23º, (na pessoa de CC), na pena de 2 anos de prisão. Foi mantida a condenação pela prática do crime de importunação sexual, do artigo 170º do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão. Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 22 anos de prisão.
O arguido interpôs novo recurso para o Supremo Tribunal de Justiça formulando na sua motivação as seguintes conclusões (transcrição): 1º Na interposição do recurso, na sua motivação e conclusão VI e VII, suscitou-se a questão de: “Se considerarmos, como devemos considerar que o mecanismo utilizado pelo tribunal recorrido foi o art.° 358° n° 1 e 3 do CPP em que a alteração no decurso da audiência visa os factos descritos na acusação, com relevo para a decisão da causa, facilmente se pode constatar que o facto que deu origem a essa alteração constante no ponto 57. da matéria de facto assente, mais não foi do que tentar demonstrar que o arguido tem uma personalidade impulsiva e reativa para dai, mais uma vez chegar à dita qualificação jurídica "agravativa" dos crimes de homicídio e integridade física de que vinha acusado. 2º Certo é que o tribunal, tendo em conta a existência de mecanismos legais para esse efeito, poderia ou deveria, oficiosamente lançar mão do art. 160° ex vi art. 369° n° 1 todos do CPP, pelo que salvo melhor opinião, e na circunstancia de facto e de direito como foi dado como provado (alteração dos factos descritos na acusação),deve o mesmo facto ser dado como não escrito nos factos assentes, pois alheio ao objeto processual”. 3º Por isso se referiu em sede conclusiva que, para que tal pudesse ser tido em conta, o tribunal deveria ter ordenado a realização de relatório pericial sobre a personalidade do recorrente nos termos dos artigos 154°, 160° ex vi 369° nº 1 do CPP. 4º Acresce à pertinência da questão o facto de nas respostas apresentadas, quer pelos Assistentes, quer pelo próprio Ministério Publico, os mesmos lhe fazerem referência, embora, naturalmente entendendo que o recorrente não teria razão, através do tão conhecido método informático denominado «copy paste», em quase total conformidade com as respostas dos Assistentes, conforme se motivou e para aí integralmente se remete. 5º Fundamentou e decidiu a sua apreciação com ausência de exame crítico, violando os artigos 425° nº 4 ex vi artigo 374° n° 2 e 379° do CPP, e bem assim omitindo pronúncia sobre a questão que lhe foi colocada e que podia e devia ter apreciado. 6º Sendo o acórdão recorrido nulo nesta parte e reformado em conformidade por este Alto Tribunal. 7º O tribunal recorrido, apesar de ter indeferido a impugnação de pontos da matéria de facto, devia ter valorado os factos que constavam do texto da decisão recorrida, nomeadamente, e entre outros, que entre arguido e infeliz vítima ocorreu «confronto físico», tudo conforme se motivou e integralmente se remete, sempre na senda, entre outros, do que já decidido foi por este Alto Tribunal (processo n° 661/ 15.6PBLRS. L1.S1 da 3a secção de 29.06.2017). 8º Donde constando factos que, embora deslocados da sede própria se extrai que existiu entre recorrente e a vítima «as agressões física eram mútuas, essencialmente com os punhos», (BB), «acabou por envolver-se em confronto físico com o arguido» (FF), «os dois indivíduos agrediam-se mutuamente com murros», (GG), «o envolvimento físico entre os dois», «momento de cessar a reação da vítima, e pôr fim à contenda», «quando sentiu perde o ‘domínio’ sobre a situação de confronto», e «cessar a reação da vítima». 9º E, na esteira dos Assistentes, que até aceitaram os factos supra descritos (mas paradoxalmente não alterados pelo tribunal recorrido), o acórdão de que ora se recorre, ao fim e ao cabo, também na decisão ora recorrida, acaba por reconhecer que de facto «o matou apenas porque não conseguiu controlar o confronto físico em que se envolveu com ele» - nosso sublinhado. 10º Donde, sempre ressalvado superior e melhor opinião, a decisão do TRL, que apesar de reconhecer, que o recorrente «o matou apenas porque não conseguiu controlar o confronto físico em que se envolveu com ele», (cf. pág. 109 1º parágrafo), acaba por entender e qualificar este motivo como «insignificante» e como tal fútil. 11º Ou seja, considerando que a origem dos confrontos físicos nas mais variadíssimas situações são, por regra, decorrentes de motivos «insignificantes», em confronto com o valor da vida humana, então, segundo o tribunal da relação, qualquer homicídio que ocorra no âmbito de «confronto físico», será sempre qualificado, por «motivo fútil», uma vez que a sua valoração se reporta ao motivo antecedente, qualquer que ele seja, independentemente, do subsequente confronto físico. 12º Ou seja, por outras palavras, haja ou não «confronto físico» a qualificativa já operou, sendo indiferente, que o agente, após motivo «insignificante», e sem qualquer reação da vítima, pretenda, ab initio, tirar logo a vida de outrem, ou, numa situação, como a dos autos, em que se verifica a existência de um confronto físico, em que um dos envolvidos, «só ao perder o controlo da situação», decide matar outrem. 13º Ora ainda no seguimento do Douto Acórdão do STJ acima citado, até podemos admitir que o motivo é fraco ou até pouco relevante, mesmo admitindo que a infeliz vítima pretendia, tão só, proteger a amiga de já ter sido importunada sexualmente, mas para operar a qualificativa «motivo fútil», “para o efeito previsto no art.° 132°, n° 2, alínea e), não pode ser o que, com referencia à moldura penal correspondente ao homicídio normal, é irrelevante ou pouco relevante em termos de atenuar o grau de culpa do agente. Essa é matéria cuja sede de valoração é a determinação da pena concreta dentro dessa moldura, sendo ainda a esse nível ou eventualmente no plano das causas de justificação do facto ou da atenuação especial da pena que se pode colocar a questão da desproporção entre a conduta da vítima e a reação do agente, de que fala a decisão recorrida. A pouca relevância de um motivo não pode ter consequência mais gravosas que a ausência de motivo. 14º Motivo fútil será antes aquele cuja frivolidade ou gratuitidade reflete qualidades de personalidade de tal modo rejeitáveis, à luz dos valores comummente aceites pela comunidade, que justificam a punição do facto dentro de uma moldura penal agravada, isto é, um motivo que, pela sua natureza, indicia a especial maior culpa que fundamenta a agravação. Será o caso daquele que mata por aposta ou numa demonstração de perícia”; (cf. Ac. do STJ, proc. N0 693/13.9JDLSB. L1. S1 de 23.04.2015). 15º Donde entendemos que o ora recorrente não devia ter sido condenado por aquela alínea agravativa do homicídio que praticou e confessadamente aceitou e verbalizou arrependimento. 16º Além disso, decorre da fundamentação constante do acórdão recorrido, embora o tribunal conceda, que a utilização da «navalha» não configure um «meio particularmente perigoso», acaba por considerar a qualificativa preenchida, atentas as circunstâncias em que a dita «navalha» é utilizada, as quais entende particularmente perigosas. 17º Ora, salvo melhor e superior opinião, o legislador, ao mencionar «utilizar meio», apenas pretende, qualificar o instrumento e não as circunstâncias em que o mesmo foi utilizado, sob pena de vir a abarcar quaisquer instrumentos, mesmo de aparente perigosidade reduzida, como pregos, paus, tesouras, pedras, canetas, incluindo, os pés e as mãos se, quem os utiliza der golpes «certeiros» atentas as circunstâncias da sua utilização. 18º Acresce que com tal interpretação, encontrar-se-ia sempre preenchida a referida qualificativa, deslocando-se para as circunstâncias que rodearam a morte de outrem, mesmo que o «meio utilizado, não seja particularmente perigoso», transformando a atual exceção prevista na lei na alínea h) do artigo 132° n° 2 do CP em regra no crime de homicídio. 19º Donde de acordo com a jurisprudência e doutrina, que julgamos ser senão unânime, pelo menos maioritária, quanto à consideração de que a «faca» não ser considerada meio particularmente perigoso, ainda mais, como no caso em concreto, não se tenha apurada a sua dimensão de cabo e lâmina, conforme, entre outros, Acórdão do STJ da 3ª secção de 17.04.2013 proc. n.0 237/ 11.7JASTB.LI.S1. 20º Pelos motivos e com os doutos ensinamentos acima expostos, não deveria o douto acórdão recorrido ter aplicado, ao caso em concreto, a dita qualificativa, com repercussão ao nível dos crimes imputados e da respetiva moldura penal, tendo em consequência violado os artigos acima indicados. 21º O Tribunal recorrido devia ter absolvido o recorrente da tentativa de ofensa corporal simples, qualificada pelo artigo 145° nº 1 al. a) e 2 do CP, na pessoa da Joana, em virtude da não punibilidade do crime base, e da ausência de resultado, conforme se motivou e para aí se remete. 22º Ora interpretar-se que o crime de ofensas à integridade física qualificada, na forma tentada, prevista e punida pelo art. 145º n° 1 al. a) do CP pode operar mesmo não existindo a efetiva lesão no corpo ou na saúde de outra pessoa prevista no artigo 143° do CP é inconstitucional por violação do princípio “nulla pena sine lege” previsto no art. 29° nº 1 da nossa Lei Fundamental. 23° Por todo o exposto entendemos que a condenação do arguido deveria ter sido pelo crime de homicídio simples, na forma consumada, e não a de homicídio qualificado, pelo que o mesmo deverá ser absolvido e reformado o acórdão recorrido, aplicando-se uma pena não superior a 15 anos de prisão, ao invés dos 20 anos de prisão aplicada, reduzindo-se a pena na pessoa do BB para 1 ano de prisão e absolvendo-se o mesmo relativamente à ofendida CC, e mesmo sem conceder, que se mantivesse a pena relativamente à FF, não devesse exceder em qualquer caso, em cúmulo jurídico, a pena única de 15 anos e 6 meses de prisão, o que se requer. 24º Face aos factos provados deve ser excluída a qualificativa da al. e) e h) do art. 132° do C.P. e manter-se o crime do artigo 131° do C.P. 25º Fica assim patente que o tribunal recorrido, na determinação das penas parcelares e da pena única, agravando todas elas (com exceção da pena do crime de importunação sexual que, diga-se, já estava fixada nos 3/4 do seu limite máximo), não atendeu a nenhuma circunstância que depusesse a favor do recorrente. 26" Na verdade, não só este assumiu os factos, como demonstrou, ou melhor, verbalizou, conforme matéria assente no ponto 56. que “estava arrependido e pretendeu formalizar um pedido de desculpas aos ofendidos e pais da infeliz vitima HH, o que aconteceu apenas relativamente ao ofendido BB”. — nosso sublinhado - 27º E, tal só não sucedeu relativamente aos assistentes por se terem recusado em aceitar tal pedido de desculpas por parte do mesmo. 28º Ora, mal ou bem, pelos vistos para o tribunal recorrido foi indiferente, tanto mais que escreve que o arguido não demonstrou «remorsos(!)», quando o arguido "verbalizou" esse arrependimento e expressou-o diretamente ao ofendido BB que o aceitou. 29º Aliás, interrogamo-nos se a mesma conclusão alguma vez o tribunal poderia ter chegado, se o arguido se remetesse ao silêncio, como direito constitucionalmente garantido. 30º Repare-se que pese embora o arguido tivesse apresentado a sua versão dos factos, responsabilizando-se pelos mesmos, "obrigando" o tribunal, após a produção de prova, à necessidade de se socorrer do disposto do art. 358º nºs 1 e 3 do CPP (corroborando em parte tal versão), mesmo assim o tribunal recorrido, escreve que o arguido é uma pessoa “desprovido de padrão moral, intolerante, cobarde, impulsivo e reativo”, mas não já que o arguido, ora recorrente, é de condição social e económica muito modesta, o que também ressalta à vista no seu relatório social, mas que totalmente descurado foi pelo tribunal ora recorrido. 31º É certo que ninguém, no seu perfeito juízo, pede desculpa e verbaliza arrependimento daquilo que não confessou ou assumiu! 32º Ora mais sintomático daquilo que se afirma, é o facto do tribunal recorrido não ter valorado na medida da pena relativamente ao ofendido BB o pedido de desculpa, formalizado em plana audiência, tendo o recorrente, inclusive, penitenciando-se por ter tirado a vida ao HH, um grande amigo do ofendido. 33° Por outro lado, a pena de 9 meses de prisão pelo crime de importunação sexual na pessoa de FF foi exagerada, pois ficou nos 3/4 da pena aplicável, considerando até que a mesma ofendida, declarou que «desvalorizou a situação para não arranjar confusões", sendo certo que o «contacto de cariz sexual" o foi por fora das calças de ganga que trajava na altura. 34º Seja como for, num caso bem mais gravoso do que aquele que consta dos autos, em que um arguido vinha acusado por 2 crimes de importunação sexual, foi condenado numa numa pena única de 5 meses e 15 dias de prisão efetiva (cf. Ac. do TRC de 26/02/2014, proc. 17/11.OGBAGD.C1). 35° Entendemos assim por mais justa, adequada e proporcional a pena de 4 meses de prisão. 36º Mas mais uma vez mesmo que assim não se entende, e em termos de justiça relativa, e princípio de igualdade, entendemos que as penas parcelares e a pena única são deveras desproporcionais, por excessivas, face aos factos provados. 37º Ora, com exceção da morte causada à infeliz vitima, todos os outros crimes, o valor do resultado, foi, com o devido respeito diminuto. 38º Do BB as ofensas foram «superficiais» e não necessitaram de quaisquer tratamentos; e relativamente à CC nenhum resultado foi produzido. 39º Pelo que as penas devem ser todas reduzidas. 40º Aliás, como supra se referiu, o tribunal valorou indevidamente, mesmo dentro da moldura penal qualificativa, os motivos que já por si, conduziram àquela, quando, na determinação da medida concreta da pena, aborda novamente a censurabilidade da sua conduta, o elevado grau de ilicitude e de dolo direto e intenso, mais uma vez as circunstâncias em que utilizou a navalha, o tipo de «instrumento utilizado», que como se viu já teria levada a mais esta qualificação. 41º Ora tudo em violação dos artigos 40° nos 1 e 2, e 71° no 1 e 2 do CP. 42º Ora conforme consta do Douto Acórdão deste STJ, de 31/11/2011, da 3a secção, proc. n.° 238/10.2JACBR.S1, publicado em www.dgs.pt , 43° "(..) Há que ter conta o principio da proibição da dupla valoração da culpa, impedindo que esta actue como factor de ponderação da medida de pena, uma vez que já foi considerada na própria qualificação do crime ( ..). ", 44º Acresce ainda e mais adiante quanto à medida da pena para este tipo de crimes que: "(...) a pena unitária tem de responder à vaiaração, no seu conjunto e interconexão, dos factos e personalidade do arguido. Atentos os vários cenários possíveis, a nível de singularidade ou pluralidade de circunstâncias especialmente censuráveis, e mesmo da intensidade de cada uma das circunstâncias qualificativas poder ser maior ou menor, defende-se que o julgador deve ser muito exigente quando opta por uma pena máxima ou próxima da máxima, pois o princípio da igualdade está intimamente ligado ao da justiça relativa e, portanto, há que reservar tais penas para os casos excecionais de rara violência”. 45° Pelo que se requer a V. Exas. e sem conceder tudo o que acima se explanou, que, em caso algum a pena única possa ultrapassar os 17 anos de prisão, por mais proporcional, justa e adequada aos fins das penas e não deixam ficar comprometida a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras que, no caso foram violadas, respeitando-se outrossim, a sempre desejável reintegração do "recluso" na sociedade (art. 2° n° 1 do DL. n° 265/79 que o recorrente já começou a apreender)! 46º O Tribunal recorrido, interpretou o art. 132° al. e) e h) e art. 71° n° 1 e 2 no sentido de permitir uma dupla valoração da ilicitude dos factos e da culpa do recorrente, quando o recorrente interpreta as citadas normas no sentido da proibição da sua dupla valoração conforme doutrina e jurisprudência acima indicada e na íntegra se reproduzem. 47° Pelo exposto o douto acórdão recorrido violou a medida da culpa do recorrente e, consequentemente, a medida da sua pena (art. 40° n° 2 do C.P) e os artigos 132° n° 2 al. e), e art. 71° n° 1 e 2 e 77° n° 1 e 2 do C. Penal. 48° Bem como por erro de interpretação, violou as normas jurídicas supra referidas.
A magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso considerando que: - A falta de pronúncia sobre a questão colocada pelo recorrente perante a relação sobre a necessidade de realização de perícia sobre a personalidade é mera irregularidade já sanada; - O recorrente praticou todos os crimes pelos quais foi condenado; - A pena imposta em cúmulo, mesmo que superior à que fora fixada na 1ª instância peca por benevolência não assumindo relevância o arrependimento verbalizado em tribunal pelo arguido.
Também os assistentes DD e EE responderam concluindo que: - O Tribunal da Relação não tinha de se pronunciar sobre questão que lhe não foi colocada como seria o caso da realização de perícia que não fora requerida. - Houve especial censurabilidade ou perversidade por parte do recorrente patentes na conduta globalmente considerada; na natureza implacável da sua acção; no motivo fútil, porque insignificante, nas circunstâncias que o levaram a provocar o confronto com a vítima; no motivo fútil, porque insignificante, nas circunstâncias que o levaram a ferir o ofendido BB e tentar ferir a ofendida CC; na cobardia da sua actuação perante pessoas desarmadas, ostensiva, despropositada e de surpresa, e sem que qualquer das vítimas tivesse agido contra si. - Há lugar à punição do crime de ofensa à integridade física tentada na pessoa de CC. - Não houve um efectivo e verdadeiro arrependimento do recorrente que possa ser tido como circunstância atenuante a ponderar.
Neste Supremo Tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido de ser rejeitado o recurso quanto ao crime de importunação sexual pelo qual o recorrente foi condenado; e ser «julgado parcialmente procedente quanto às questões de direito sobre as omissões eventualmente quanto à qualificação do crime de homicídio, ofensas à integridade física e medida das penas parcelares e única».
Foi cumprido o art. 417º, nº 2 CPP tendo respondido o recorrente e os assistentes. Aquele, referindo nada mais ter a acrescentar até pelo parcial acolhimento, no parecer, das suas posições. Os assistentes reiterando, em suma, a sua posição.
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2. – O resultado do julgamento quanto aos factos provados foi o seguinte (transcrição):
1. No dia 19 de Agosto de 2014, cerca das 00 horas e 45 minutos, HH, BB, CC, II, FF e JJ, dirigiram-se estabelecimento de diversão nocturna denominado “Black Tiger Bar”, situado na Rua dos Remolares, n.º 16-18, em Lisboa, após terem jantado juntos, na residência do ofendido BB. 2. Ali se encontrava igualmente o arguido AA, acompanhado de vários indivíduos, cuja identidade em concreto não foi possível apurar, entre os quais, o seu primo LL. 3. Um dos indivíduos do grupo abordou BB e outros amigos, no sentido de lhes venderem substâncias estupefacientes que os mesmos recusaram. 4. No decurso da noite, alguns dos amigos do ofendido HH mantiveram-se no interior do bar, ausentando-se pontualmente para fumar no exterior, ou para conversar com outros amigos e conhecidos, que entretanto iam chegando ao local. 5. Enquanto as raparigas dançavam, o arguido observava-as, tendo tentado por diversas vezes abordá-las, e dançar com elas. 6. A determinada altura, cerca das 03 horas e 12 minutos, o arguido colocou a mão na nádega da ofendida FF, que firmemente o repeliu, empurrando-lhe o braço. 7. Nos vinte minutos seguintes, o grupo composto pelos amigos do ofendido HH continuou a dançar, voltando por diversas vezes a ser abordado pelo arguido AA e pelo seu primo LL. 8. Cerca das 03 horas e 40 minutos, o arguido passou pela ofendida FF, tocando-lhe na zona genital, que apertou com força. 9. A ofendida FF agarrou-o de imediato pelo casaco, dizendo-lhe: “Mas o que é isto, estás a passar-te?!”, tendo o arguido respondido em tom agressivo. 10. O ofendido HH, que havia presenciado o sucedido, interpôs-se então entre a sua amiga e ofendida FF e o arguido a fim de a proteger. 11. Acto contínuo, o arguido, ajudado por outro indivíduo, levaram o ofendido HH para o exterior do bar, desferindo-lhe murros e pontapés. 12. Acto contínuo, o arguido utilizando uma faca tipo navalha, desferiu-lhe dois golpes que o atingiram na região torácica, e lhe provocaram um “derrame pleural bilateral, hemopericárdio, pneumomediastino anterior e pneumotórax anterior esquerdo”. 13. A ofendida CC, que estava à porta do bar e presenciou o sucedido, aproximou-se do ofendido HH. 14. Quando a ofendida CC o tentou socorrer, o arguido ergueu uma faca tipo navalha em direcção a ela, tentando atingi-la na zona do peito, o que não conseguiu, pois foi puxado para trás por pessoa não identificada. 15. O ofendido BB, que acabara de ver o que sucedera à ofendida CC, aproximou-se dela, tentando protegê-la. 16. O arguido desferiu então ao ofendido BB um golpe na zona da garganta, utilizando a mesma navalha, causando-lhe ferimentos superficiais e provocando a queda deste último no solo. 17. No seguimento das lesões causadas ao ofendido HH, este começou a desfalecer. 18. Apercebendo-se do seu estado, a sua amiga II médica de profissão, deitou-o no solo, exercendo pressão na zona do tórax que havia sido atingida, com o objectivo de estancar a hemorragia, até à chegada do veículo do I.N.E.M., que o transportou ao serviço de urgência do Hospital de S. José. 19. Aproveitando a confusão gerada, o arguido, calma e descontraidamente, pôs-se em fuga no veículo de marca “Seat” modelo “Altea” de cor vermelha, com a matrícula número ...-NT-... conduzido pelo seu primo, LL. 20. O arguido refugiou-se na sua residência, situada na rua ..., em Lisboa. 21. O veículo com a matrícula número ...-NT-... foi apreendido pela Polícia de Segurança Pública nessa mesma noite, estacionado na rua ..., junto ao prédio que ostenta o n.º ..., pois havia sido divulgada pela central rádio da Polícia de Segurança Pública a matrícula do veículo no qual o autor dos factos se havia posto em fuga. 22. Do manuseamento da faca pelo arguido, resultaram-lhe alguns ferimentos superficiais na mão com um pequeno sangramento. 23. Assim, ao abrir a porta do veículo no qual consumou a fuga, o arguido deixou os seus vestígios hemáticos no puxador do lado exterior da porta direita e na pega interior da mesma, que foram recolhidos por técnicos da Polícia Judiciária. 24. Realizado exame pericial comparativo de D.N.A. de tais vestígios com a zaragatoa bucal recolhida ao arguido resultou haver “identidade de polimorfismos dos vestígios hemáticos detectados nos items 1 e 2 do exame 201415299-BBG” 25. Das agressões perpetradas pelo arguido resultaram ao ofendido HH as seguintes lesões: “Duas feridas corto-perfurantes: Mais resultou provado: a) a condenação no processo com o NUIPC 556/03.6PSLSB, proferida pela extinta 3ª Secção do 6º Juízo Criminal de Lisboa, datada de 26 de Abril de 2006, transitada em julgado em 11 de Maio de 2006, na pena de 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, pela prática, em 21 de Março de 2003, de 1 (um) crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210, n.º 1 do Código Penal. Por despacho judicial de 13 de Fevereiro de 2009, foi declarada extinta a pena de prisão suspensa na sua execução, nos termos do disposto no artigo 57 do Código Penal. b) a condenação no processo com o NUIPC 815/03.8PSLSB, proferida pela extinta 3ª Secção do 2º Juízo Criminal de Lisboa, datada de 06 de Outubro de 2008, transitada em julgado em 05 de Novembro de 2008, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, pela prática, em 07 de Julho de 2003, de 1 (um) crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347 do Código Penal. Por despacho judicial de 13 de Dezembro de 2010, foi declarada extinta a pena de prisão suspensa na sua execução, nos termos do disposto no artigo 57 do Código Penal. c) a condenação no processo com o NUIPC 10/06.4SZLSB, proferida pela extinta 2ª Secção do 1º Juízo Criminal de Lisboa, datada de 26 de Maio de 2009, transitada em julgado em 15 de Junho de 2009, na pena de 60 (sessenta) dias de prisão, substituída por 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de € 2 (dois euros), e uma pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de € 2 (dois euros), pela prática, em 11 de Janeiro de 2006, de 1 (um) crime de aproveitamento de obra contrafeita (direito de autor), previsto e punido pelo artigo 199, por referência ao artigo 197, n.º 1 da Lei n.º 114/91 (Código do Direito de Autor e Direitos Conexos). Por despacho judicial de 09 de Junho de 2010, foi declarada extinta a pena de multa pelo pagamento. d) a condenação no processo com o NUIPC 101/08.7SZLSB, proferida pela extinta 3ª Secção do 6º Juízo Criminal de Lisboa, datada de 27 de Outubro de 2010, transitada em julgado em 10 de Maio de 2011, na pena de 30 (trinta) dias de prisão, substituída por 30 (trinta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), e uma pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 30 de Março de 2008, de 1 (um) crime de aproveitamento de obra contrafeita (direito de autor), previsto e punido pelo artigo 199, n.º 1, por referência ao artigo 197, n.º 1 da Lei n.º 114/91 (Código do Direito de Autor e Direitos Conexos). Por despacho judicial de 12 de Novembro de 2012, foi declarada extinta a pena de 30 (trinta) dias de multa pelo pagamento. e) a condenação no processo com o NUIPC 35/09.8SZLSB, proferida pela extinta 3ª Secção do 2º Juízo Criminal de Lisboa, datada de 29 de Março de 2012, transitada em julgado em 09 de Maio de 2012, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, substituída por 130 (cento e trinta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros) e na pena de 190 (cento e noventa) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 25 de Janeiro de 2009, de 1 (um) crime de aproveitamento de obra contrafeita (direito de autor), previsto e punido pelo artigo 199, n.º 1, da Lei n.º 114/91 (Código do Direito de Autor e Direitos Conexos). f) a condenação no processo com o NUIPC 32/06.5PFBRR, proferida pelo extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial do Montijo, datada de 04 de Maio de 2012, transitada em julgado em 24 de Maio de 2012, na pena de 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, e uma pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 01 de Junho de 2006, de 1 (um) crime de aproveitamento de obra contrafeita (direito de autor), previsto e punido pelo artigo 199, por referência aos artigos 197 e 195 da Lei n.º 114/91 (Código do Direito de Autor e Direitos Conexos). Por despacho judicial de 21 de Maio de 2014, foram declaradas extintas as penas em que o arguido foi condenado. g) a condenação no processo com o NUIPC 81/12.4SULSB, proferida pela extinta 1ª Secção do 4º Juízo Criminal de Lisboa, datada de 30 de Janeiro de 2014, transitada em julgado em 03 de Março de 2014, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, pela prática, em 06 de Novembro de 2012, de 1 (um) crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo n.º 2 do artigo 40 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Por despacho judicial de 14 de Setembro de 2015, foi declarada extinta a pena de prisão suspensa na sua execução, nos termos do disposto no artigo 57 do Código Penal. h) a condenação no processo com o NUIPC 980/09.0TAMTJ, proferida pelo extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial do Montijo, datada de 19 de Novembro de 2013, transitada em julgado em 10 de Março de 2014, na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, e uma pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 5 (cinco euros), pela prática, em 29 de Agosto de 2009, de 1 (um) crime de aproveitamento de obra contrafeita (direito de autor), previsto e punido pelo artigo 199, n.º 1, por referência ao artigo 197 da Lei n.º 114/91 (Código do Direito de Autor e Direitos Conexos). Por despacho judicial de 14 de Janeiro de 2016, foram declaradas extintas as penas em que o arguido foi condenado. 35. O arguido AA é um de cinco filhos de um casal de etnia cigana, que registou um processo de desenvolvimento no seio do agregado familiar de origem, marcado por laços de coesão e inter-ajuda entre os seus elementos, numa dinâmica familiar pedagogicamente permissiva. 36. O agregado familiar assenta o seu modo de vida na venda ambulante, com observância das normas e tradições do seu grupo étnico. 37. O percurso escolar do arguido é pautado pelo reduzido aproveitamento, abandonando a escolaridade sem ter concluído o ensino primário, passando a acompanhar os familiares na actividade de venda ambulante. 38. Mais tarde o arguido veio a substituir a pessoa do seu progenitor na actividade da venda ambulante, por todo o país. 39. Aos 19 (dezanove) anos de idade, o arguido estabeleceu relação marital com uma jovem, de acordo com os padrões culturais da sua etnia, relação esta que se mantém estável e afectivamente gratificante, sendo que o casal tem 3 (três) filhos, todos menores de idade, residentes na habitação dos pais do arguido com os seus progenitores. 40. O arguido descreve um quotidiano marcado pela precaridade económica, dependente dos rendimentos obtidos da actividade da venda ambulante, do suporte familiar, da habitação cedida pela Câmara Municipal de Lisboa, do rendimento social de inserção (no valor aproximado de duzentos e trinta euros) e do abono de família. 41. O arguido, durante um período de tempo limitado, por ocasião da suspensão na execução de pena de prisão, trabalhou na área das mudanças, auferindo um rendimento mensal na ordem dos € 500 (quinhentos euros). 42. O arguido refere ser consumidor ocasional de produtos estupefacientes – designadamente haxixe e de bebidas alcoólicas em contexto social (com amigos). 43. O agregado familiar – companheira e filhos do arguido – residem actualmente em habitação social atribuída na zona de Chelas, mantendo o suporte do núcleo familiar alargado. 44. O arguido valoriza as visitas regulares dos familiares em meio prisional, não revelando qualquer problema relevante ao nível do comportamento 45. Durante o período de internamento, numa primeira fase, ainda houve esperança que o ofendido HH pudesse, de alguma forma, recuperar. 46. O ofendido HH logo após a agressão e quando lhe prestaram os primeiros-socorros teve consciência da gravidade da situação. 47. O ofendido HH tinha 30 (trinta) anos de idade, 48. era arquitecto, com qualidades e capacidades já demonstradas e a quem se previa uma carreira brilhante. 49. Trabalhara, nessa qualidade, no quadro de várias sociedades, tendo exercido actividade em Portugal, na Hungria e nas Caraíbas. 50. Ia ingressar na frequência de um mestrado, no Reino Unido. 51. Era uma pessoa saudável, sem doenças. 52. Ao ofendido HH eram reconhecidas qualidades de carácter, lealdade, generosidade, sinceridade e dedicação, sendo querido por todos aqueles com quem privava. 53. Era uma pessoa alegre, positiva e activa, que amava a vida, facto sentido por todos quantos com ele se relacionavam. 54. Os assistentes sofreram e sofrem com a perda do seu filho HH, 55. o que também é sentido pelo irmão do ofendido HH – MM, o que acentua o sofrimento dos assistentes. 56. O arguido verbalizou estar arrependido e pretender formalizar um pedido de desculpas aos ofendidos e pais de HH, o que aconteceu apenas relativamente ao ofendido BB. 57. O arguido denotou ainda, em plena audiência de julgamento, impulsividade, vontade reactiva, intolerância a tudo quanto e a todos quantos lhe fossem desfavoráveis, determinando que fosse removido para a cela.
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3. – A primeira questão que se assume como prévia é a de precisar os limites de recorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação. Como decorre das conclusões formuladas o recorrente contesta vários aspectos do acórdão do Tribunal da Relação e entre eles a confirmação da pena de 9 meses de prisão imposta pela prática do crime de importunação sexual do art. 170º C. Penal (cfr designadamente as conclusões 33ª a 36ª). Esta questão está, porém, excluída da apreciação deste Supremo Tribunal pois, nos termos do art. 400º, nº 1, al. f) CPP, não são admissíveis os recursos das decisões da relação que confirmando decisão da 1ª instância não apliquem penas superiores a 8 anos de prisão como sucede com a pena parcelar imposta pelo crime de importunação sexual. Forma-se então dupla conforme impeditiva do conhecimento do recurso a esse respeito. É essa a jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal sufragada de resto pelo Tribunal Constitucional designadamente nos Acórdãos 186/2013 e 269/2014. Assim, relativamente à medida dessa pena parcelar que o recorrente pôs em causa formou-se caso julgado coberto e selado pelo respectivo trânsito. Donde a conclusão de que o recurso interposto é inadmissível nessa parte. Sê-lo-á ainda no que respeita aos crimes de ofensa à integridade física qualificada por força do disposto no art. 400º, nº 1, al. e) CPP. Ali se prescreve que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos. Ora, as penas impostas por esses crimes são inferiores a 5 anos. Contudo, como se exporá infra há aspectos do recurso no tocante ao crime de homicídio qualificado a respeito dos quais se crê ser de atribuir razão ao recorrente o que imporá que reflexamente se tirem consequências a respeito daqueles outros crimes. Assim o impõe o nº 3 do art. 403º CPP ao determinar que a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.
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4. – No decurso da audiência de julgamento, foi feita aos sujeitos processuais uma comunicação respeitante a alterações não substanciais da matéria de facto, ao abrigo do art. 358º, nºs 1 e 3 CPP, entre elas a que está consignada no facto 57 referido supra. Na sequência do que foi concedido prazo para a preparação da defesa nada vindo a ser requerido. Diz o recorrente – e é essa a primeira razão de discordância que suscita – que no recurso interposto para o Tribunal da Relação colocou a questão – nas conclusões VI e VII da motivação que então apresentou – da necessidade de, para dar tal facto como ponderável, dever o tribunal da 1ª instância «lançar mão do art. 160º ex vi art. 369º, nº 1 todos do CPP» e que não tendo isso acontecido deveria «o mesmo facto ser dado como não escrito». Diz também que o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre esta matéria rematando este segmento do recurso com as conclusões 5ª e 6ª que, recorde-se, têm o seguinte teor: «5º Fundamentou e decidiu a sua apreciação com ausência de exame crítico, violando os artigos 425° nº 4 ex vi artigo 374° n° 2 e 379° do CPP, e bem assim omitindo pronúncia sobre a questão que lhe foi colocada e que podia e devia ter apreciado. 6º Sendo o acórdão recorrido nulo nesta parte e reformado em conformidade por este Alto Tribunal.» Genericamente, o recurso é a reacção a uma decisão que se entende injusta porque nela se procedeu a uma má interpretação ou a uma incorrecta aplicação da lei ou se incorreu num erro no julgamento da matéria de facto. Se o erro é da decisão de facto impõe-se que no recurso em processo penal se cumpra o art. 412º, nº 3 CPP especificando o recorrente (i) os concretos pontos que considera incorrectamente julgados, (ii) as concretas provas [produzidas] que impõem decisão diversa da recorrida e, se for caso disso, (iii) as provas que devem ser renovadas. No caso, não foi isso que aconteceu. No recurso interposto para o Tribunal da Relação o recorrente não apresentou discordância a respeito de esse facto ter sido dado como provado nos termos precisos que a lei impõe. Por isso, sob este estrito ponto de vista não tinha o tribunal ora recorrido de se pronunciar. Pressupondo que a pretensão do recorrente era evidenciar um erro de direito e obter a sua reparação há, desde logo, que considerar que essa reparação não passaria por deferir a pretensão de que o facto 57 fosse dado como não escrito. Não há previsão legal para esta pretensão e, também por esta via, aquele tribunal não teria de se pronunciar. Ainda haveria a possibilidade de ser invocado um erro de direito que poderia ser, por exemplo, o da omissão de diligências reputadas de indispensáveis para a descoberta da verdade (art. 120º, nº 2, al. d) CPP) por não ter sido feito a perícia sobre a personalidade prevista no art. 160º CPP. Mas a esse respeito estaria o tribunal da relação impedido de se pronunciar pois a necessidade de realizar esse exame não foi objecto de requerimento do recorrente no momento oportuno, ou seja, quando lhe foi concedido prazo para preparação da defesa após a comunicação da alteração não substancial nem essa era uma matéria que oficiosamente se impusesse determinar ao tribunal de 1ª instância. E a questão também não poderia ser tratada como nulidade do acórdão que pudesse ser arguida no recurso. Não tendo havido decisão a esse respeito estaria o tribunal da relação impedido de se pronunciar sobre o pedido de realização da perícia de acordo com o que consta do art. 608º, nº 2 CPC ex vi art. 4º CPP. É, contudo, inescapável que a propósito do dito facto 57 o recorrente, perante o Tribunal da Relação, invocou falta de exame crítico por parte do acórdão da 1ª instância. Sendo esta uma questão posta expressamente no recurso interposto deveria, aqui sim, o Tribunal da Relação pronunciar-se sobre ela e claramente não o fez deste modo omitindo pronúncia. Resta precisar qual a consequência dessa omissão e designadamente se perante essa falta o acórdão recorrido deve ser declarado nulo como propõe o recorrente invocando o nº 2 do art. 379º CPP onde se prescreve que é nula a sentença quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar. Como é sabido, as nulidades de processo são «desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais»[1]. Como também já foi assinalado «a nulidade representa uma perda de esforços, de tempo, de dinheiro, perda tanto mais grave quanto maior é o campo sobre o qual se projecta. Considerar nula uma sentença que é o termo dum longo e dispendioso ciclo de actividade processual (…) é uma atitude de tal modo prejudicial que bem se compreende a formação duma doutrina tendente a salvar do naufrágio aquilo que razoavelmente possa ser salvo»[2]. Por outro lado, não pode perder-se de vista que «os actos processuais são actos instrumentais que se inserem na complexa unidade de um processo de tal sorte que cada acto é, em certo sentido, condicionado pelo antecedente e condicionante do subsequente» pelo que «a inobservância dos requisitos formais repercute-se mais ou menos acentuadamente no acto terminal do processo, pondo em perigo a justiça da decisão»[3]. Transigência e equilíbrio são, pois, ideias-chave que destas posições doutrinais se extraem em matéria de nulidades processuais e se isso é assim no plano do direito constituído tudo aconselha que a regra da apreciação caso a caso através da qual se avalie se a infracção cometida tem influência no fim que era visado se sobreponha a considerações de índole puramente formal. A nulidade do acto não estará, portanto, estritamente ligada à simples inobservância de um determinado formalismo ou rito processual, por muito pertinente que ele seja, mas será constatada pela relação entre o vício e o fim do processo e pela patente impossibilidade de a ultrapassar e de conservar os efeitos da decisão por tal afectar a justiça da dita decisão. Vejamos se, no caso, ponderada a falta invocada e o desenvolvimento processual fica realmente frustrada a melhor aplicação do direito material pois é esse o fim último do processo. Um caminho a ponderar para ultrapassar a falha cometida poderia ser o da utilização da «regra da substituição ao tribunal recorrido» prevista no art. 665º, nº 2 CPC ex vi art. 4º CPP. Mas nem tal se afigura necessário. Ainda que a intervenção do Supremo Tribunal, no âmbito do recurso de revista e em sede de concretização da medida da pena, deva revestir-se de alguma parcimónia e deva ser reservada para os casos de violação das regras da experiência ou face à desproporção da quantificação – do quantum exacto da pena – ela pode ocorrer «quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção»[4]. Com isto se pretende significar que na operação de sindicação da medida das penas a levar a cabo por este Supremo Tribunal a falta formal assinalada poderá ser ultrapassada de maneira a conservar no essencial os efeitos da decisão recorrida e de modo a não afectar a justiça do caso, na perspectiva de qualquer dos sujeitos processuais, obviando as sobreditas desvantagens da anulação. Adiante se apreciará, então, a relevância, ou a falta dela, do facto 57 na decisão da causa.
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5. – A segunda razão de discordância diz respeito à qualificação do homicídio pela alínea e) do nº 2 do art. 132º do C. Penal (diploma a que pertencem as normas doravante referidas sem menção de origem) a que o Tribunal da Relação procedeu dando provimento ao recurso do Ministério Público. Entende o recorrente que a circunstância qualificativa «motivo fútil» não deveria ter-se como verificada. 5.1 - É de realçar, antes de mais, que o Supremo Tribunal tem a sua área de intervenção circunscrita exclusivamente à matéria de direito, como determina o art. 434º CPP, tendo por base os factos que vêm fixados pelas instâncias. Por isso, as considerações do recorrente sobre o que o tribunal recorrido deveria ter dado ou não como provado são irrelevantes. É o caso do que vem sintetizado nas conclusões 7ª a 10ª da sua motivação acerca do que diz ser o «confronto físico» entre si e a vítima. Os factos a relevar são somente aqueles que estão descritos supra e apenas esses podem ser considerados. São espúrias, portanto, outras considerações designadamente as tecidas na fundamentação da 1ª instância e que de certo modo a decisão recorrida acolheu[5]. 5.2 – Como se tem referido em outras ocasiões[6] é sabido que a qualificação do crime de homicídio a que se procede no art. 132º será fruto de uma maior culpa do agente oriunda de uma actuação especialmente censurável ou perversa o que há-de ser avaliado em concreto, funcionando as circunstâncias enumeradas no seu nº 2 como exemplos-padrão, que não de aplicação automática. Elas são, portanto, elementos da culpa e não do tipo, como é usual acentuar-se ainda que de forma não inteiramente pacífica, com carácter meramente exemplificativo. A qualificação surge quando se verifica «um tipo de culpa agravado» que está «assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a um conceito indeterminado como é o da “especial censurabilidade ou perversidade do agente”»; essa verificação é «indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto outros relativos ao autor exemplificativamente elencados» no citado nº 2 do art. 132º[7]. Dito de outro modo para o que é aqui pertinente: o homicídio qualificado ocorre quando o agente, ao causar voluntariamente a morte de outrem actua com especial censurabilidade como quando é determinado por qualquer motivo torpe ou fútil (al. e) desse nº 2 do art. 132º). Mas não obrigatoriamente, repete-se, pois esta circunstância não é taxativa. Verificado algum dos elementos elencados isso «não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação[8]». Os exemplos-padrão são, em geral, configurados como conceitos normativos, que não descritivos, e estão consequentemente sujeitos a discussão crítica e valorativa. Essa discussão far-se-á em torno da questão de precisar se os indícios de culpa agravada são consistentes, se reflectem realmente uma culpa especialmente intensa caso em que se concluirá pela verificação da qualificação.[9] Como já foi também ensinado[10] a cláusula geral de agravação prevista no nº 1 do art. 132º, para ter-se como verificada, implica uma conexão hermenêutica entre ambos os aspectos: os exemplos típicos elencados no nº 2 explicitam o sentido dessa cláusula agravante e esta, por seu turno, funciona como correctivo normativo da objectividade daqueles traduzido na fórmula expressiva «não só, nem sempre». Sendo o sentido e o alcance da técnica dos exemplos-padrão flexibilizar a aplicação da lei penal a ideia essencial é a de que são de considerar como homicídios qualificados somente casos particularmente chocantes. Casos particularmente chocantes na actuação do agente, no modo como comete o homicídio, que reflictam um desvalor especialmente grave e uma motivação especialmente censurável. Em que o acto de destruição da vida humana para lá do modo ardiloso, ou cruel ou de inflicção de sofrimento como é levado a cabo revele também uma atitude dedicada e envolvida do agente. Casos em que, afinal, a formulação de um especial juízo de culpa encontre suporte numa «correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo do ilícito»[11]. O que não pode deixar de implicar uma «avaliação da imagem global do facto» ponderando os concretos factos e as características relevantes do agente de forma a emitir, então, um juízo sobre a verificação de especial censurabilidade ou perversidade.[12] Na decorrência da apreciação dessa imagem global pode até considerar-se um homicídio como qualificado ainda que se entenda não estarem provados factos que se enquadrem nos exemplos-padrão desde que os restantes factos revelem, em si, uma atitude merecedora de um juízo de especial censurabilidade ou perversidade. O que poderá ter-se como um motivo torpe ou fútil? Será aquele que «avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito»[13]. Claro está que a futilidade do motivo não pode ser perspectivada somente perante o estrito acto de anavalhar, de efectuar um disparo ou de levar a cabo uma outra qualquer agressão com o intuito de tirar a vida a alguém. Aí, é o fim da linha, o culminar do processo decisório e de execução. A futilidade, crê-se, deve ser avaliada no contexto, no desencadear e desenrolar de toda a situação que descamba no resultado morte. Só assim se cumprirá o desígnio da «avaliação da imagem global» pois de outro modo a avaliação será necessariamente fragmentada. Quando, por exemplo, se diz que houve um conflito é necessário, designadamente, que se avalie quem o provocou, o que esteve na sua origem e quais as proporções que assumiu. A hostilidade é a regra numa atitude homicida mas o que levou a ela? Foi ou não algo de «incompreensível ou inexplicável à luz do modo de agir do homem médio ou mesmo revelador de um baixo carácter»[14]? É todo esse comportamento que poderá ser tido como insignificante, frívolo, vão – sinónimos de fútil – , ou sórdido, infame ou ignóbil – sinónimos de torpe. E poderá permitir – ou não – a formulação de um especial juízo de culpa. «Não só, nem sempre», como acima referido. Será esse o cerne da questão. Vejamos, então. Um grupo de amigos, jovens, diverte-se num bar. A dada altura, o recorrente que está acompanhado de outros indivíduos começa a importunar uma das pessoas do sexo feminino desse grupo. A importunar sexualmente e de uma maneira repetida e ostensiva como resulta dos factos provados. A reacção da visada foi contida, digamos, perguntando ao recorrente, da segunda vez, se estava a «passar-se». Perante a resposta deste em tom agressivo, a vítima interpôs-se entre ambos para proteger aquela, sua amiga. Acto contínuo, como descrito nos factos 11 e 12, o recorrente e outro indivíduo dos que o acompanham e que o ajuda levam a vítima para o exterior do bar e ali, de seguida, o recorrente usando «uma faca tipo navalha», que nenhuma justificação foi dada como provada para ser detida pelo recorrente naquelas circunstâncias de tempo e lugar, atinge-a com dois golpes na região toráxica com as consequências evidenciadas. É, portanto, o recorrente que desencadeia uma situação provocatória, potencialmente originária de um conflito, sendo portador de uma “arma branca”, e que, sem outros acontecimentos que pudessem ser tidos como geradores desse conflito, faz com que a vítima venha para fora do bar e a esfaqueia mortalmente. Têm assim razão as instâncias e os assistentes quando aludem à insignificância da situação globalmente considerada para a reacção do recorrente e quando qualificam essa reacção como ostensivamente despropositada, de surpresa, implacável e insensível. Em suma, traiçoeira e, por isso, cobarde a partir de um motivo manifestamente insignificante qual haja sido a interpelação de que foi alvo por parte dos membros do grupo a que se dirigiu e provocou. 5.3 – Discorda ainda o recorrente que a decisão recorrida haja dado provimento ao recurso do Ministério Público e haja qualificado o crime de homicídio também pela alínea h) do nº 2 do art. 132º. Para o que aqui interessa a lei estipula que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a prática do facto com utilização de meio particularmente perigoso. A decisão da primeira instância é parca em explicações sobre as razões para ter desconsiderado o meio utilizado para consumar o crime como «particularmente perigoso»[15]. A decisão recorrida, por seu turno, discorreu do seguinte modo: «(…) é particularmente perigoso o instrumento ou utensílio que pelas suas características, além de dificultar a defesa da vítima, possui uma particular aptidão no contexto em que é utilizado para causar a morte. Tal perigosidade é o desvalor acrescentado ao tipo base, constituindo a qualificativa no sistema optado pelo legislador português (cfr. Teresa Serra, Homicídio Qualificado Tipo de Culpa Medida da Pena, Almedina, 1990, pág. 58 e seg.). A utilização da navalha num contexto como o dos autos, perante um ambiente festivo e indivíduos desarmados e não alertados para tal instrumento, confere-lhe particular perigosidade, acentuando o desvalor da conduta do arguido, implicando, assim, um maior grau de ilicitude vertido na qualificativa da alínea h) do preceito em causa. Ao utilizar a navalha, instrumento cortante de fácil manejo, o arguido de forma certeira atento os golpes ou cortes que desfere, aliás as zonas do corpo visadas nas duas outras vítimas são igualmente letais o que demonstra a perícia do arguido no manuseamento da dita navalha, obtém uma superioridade sobre os demais, mercê precisamente de deter a navalha. A utilização da navalha no aludido contexto, empresta ao modo de execução do facto um acréscimo de ilicitude, acréscimo esse que o legislador objectivou na qualificativa prevista na alínea h) do art. 132°, n° 2, do CP. Concedemos que a navalha em si poderá não ser considerada instrumento particularmente perigoso (e tal parece decorrer da nota 24 ao art. 132.° no Comentário Conimbricense, pág. 37 embora não se mencione a navalha) mas tal qualificativa resulta das circunstâncias em que é utilizada. No caso dos autos, ela surge num contexto, como já se referiu, em que a sua utilização é particularmente perigosa pois surge acintosamente desproporcional ao contexto.» Não se afigura pertinente este raciocínio. Deste logo porque se abordoa num específico aresto em que ficou provado o uso de uma «faca de mato» com uma lâmina de 19,3 cm de comprimento algo bem diferente de um canivete ou navalha. Em segundo lugar, porque a perigosidade há-de advir do instrumento em si e não do modo ou das circunstâncias em que é usado. Há-de ser o próprio instrumento utilizado a ter «uma aptidão particular para causar a morte»[16]. Não é o facto de haver um ambiente festivo – algo que, aliás, poderia existir dentro do bar mas não já fora deste, – de os presentes estarem desarmados e não alertados para a detenção desse instrumento pelo agressor ou de os golpes serem desferidos em certa zona do corpo que o torna particularmente perigoso. Uma navalha ou um canivete não é em si um instrumento que possa ter esse estatuto apesar da sua letalidade consoante as circunstâncias em que é usado. Demais a mais quando nem sequer se conhece com precisão as suas especificidades. É esse o quid. Não são as circunstâncias da utilização que hão-de tornar o instrumento particularmente perigoso; é o instrumento em si que há-de ter um elevado potencial de letalidade e, por conseguinte, uma perigosidade acrescida independentemente das concretas condições de utilização; «uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados»[17]. Ora, reconhecer-se-á, sob a perspectiva do senso comum (conventional wisdom) que um canivete ou mesmo uma navalha não tem esse elevado potencial. Não é um meio de ataque perante o qual «as possibilidades de defesa» sejam especialmente reduzidas.[18] Nesse específico segmento da motivação assiste razão ao recorrente. Sem embargo de o contexto da utilização poder ser merecedor de um juízo de especial censurabilidade e de revelar, por essa via, uma ilicitude compaginável com casos particularmente chocantes. 5.4 – Pode então dizer-se que o recorrente cometeu o crime de homicídio qualificado dos arts. 131º e 132º, nº 1, por haver especial censurabilidade na sua conduta lesiva da vida humana, e nº 2, al. e) por essa censurabilidade se revelar não só mas também na circunstância de a dita conduta ter sido levada a cabo por um motivo fútil. Está assim estabelecida a conexão a que se aludiu supra. Ponderada a atitude global do recorrente que se pode ter como enquadrada na cláusula geral de especial censurabilidade ou perversidade do nº 1 do art. 132º e escorada esta no suporte da correspondência axiológica com o exemplo-padrão da alínea e) do nº 2 do art. 132. Assim, não procede a pretensão do recorrente de ver qualificada a sua conduta como de homicídio simples sem embargo de lhe assistir razão quanto à não verificação da mencionada alínea h) do dito nº 2 do art. 132º. Corolário lógico do que se deixou exposto é o de considerar que a conduta do recorrente no tocante às ofensas à integridade física qualificada nas pessoas e BB e CC foram produzidas com especial censurabilidade ou perversidade mediante a verificação apenas da circunstância da alínea e) do nº 2 do art. 132º. Como já referido supra (em 3., último §) é essa uma consequência que se impõe de acordo como o art. 403º, nº 3 CPP. * 6. – Numa outra linha de argumentos discordantes, invocada subsidiariamente, propõe o recorrente a redução das penas. 6.1 – Como decorre do que supra já se expôs a qualificação jurídica dos factos que se entende adequada é aquela a que procedeu o tribunal da 1ª instância no entendimento de que se não justifica a qualificação pela circunstância da alínea h) do nº 2 do art. 132º no tocante ao crime de homicídio qualificado e aos crimes de ofensa à integridade física qualificada de que foram vítimas BB e CC. Quanto ao crime de importunação sexual nada pode ser modificado pois, nessa parte, a decisão é irrecorrível tal como também já referido, pela verificação da dupla conforme. Assim, além desse crime de importunação sexual do art. 170º pelo qual foi punido na pena de 9 meses de prisão o recorrente praticou: - um crime de homicídio qualificado, dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e); - um crime de ofensa à integridade física qualificada, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nºs 1 e 2, alínea e), (na pessoa de BB); - um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nº 1 e nº 2, alíneas e) e artigos 22º e 23º, (na pessoa de CC). Foi por eles punido, respectivamente, nas penas de 18 anos de prisão, 2 anos e 6 meses de prisão e 1 ano e 3 meses de prisão. 6.2 – Se, como se ensina, a pena pode e deve ser concebida como forma de o Estado «manter e reforçar a “confiança” da comunidade na validade e na vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantibilidade da ordem jurídica»[19], a este propósito se falando de prevenção geral positiva ou de integração, no sentido de meio de «resolução do conflito social suscitado pelo crime», é, decerto, nas normas que, no sistema, tutelam bens de valor superlativo, como a vida, que essa expectativa da comunidade na validade dessas normas, na restauração da paz jurídica, encontra o seu pleno sentido e a sua máxima expressão. E se é a prevenção geral positiva que fornece uma “moldura de prevenção” não pode escamotear-se haver “dentro” dessa moldura de prevenção um efeito de prevenção geral negativa ou prevenção de intimidação que embora não constitua «por si mesma uma finalidade autónoma da pena pode surgir como um efeito lateral (porventura, em certos ou em muitos casos desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos»[20]. É ainda dentro da dita “moldura de prevenção” que «devem actuar, em toda a medida possível, pontos de vista de prevenção especial sendo assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena[21]». É isto, no essencial, que está vertido no art. 40º, nº 1 do C. Penal onde se determina que a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade conferindo a essa pena a natureza preventiva geral e especial. Intervindo também a culpa como pressuposto necessário e limitativo da aplicação da pena, da punição pela prática de um crime, não é contudo pressuposto suficiente para tal ficando ainda subordinada à condição de se mostrar necessária do ponto de vista preventivo (geral e especial). Ora, no caso presente foi desde logo lesado um bem jurídico fundamental, a vida humana, logo por aí se revelando também um grau de ilicitude especialmente elevado, e certamente que a tutela eficaz desse bem torna prementes as necessidades de prevenção geral. E ainda, repetidamente, o bem jurídico integridade física com uma culpa agravada por força da clausula geral da especial censurabilidade. Os factos apurados integradores destes crimes revelam no que toca à conduta do recorrente e à sua reacção, uma postura torpe e cobarde, como já se referiu supra, merecedora daquele juízo de censurabilidade sem que isso se confunda com o motivo que levou a desencadear a dita conduta. Porquê? Porque para lá do motivo fútil e não obstante a vulgaridade, digamos, do meio utilizado o modo como as coisas se passaram para isso aponta. Um ataque ostensivamente despropositado, de surpresa, implacável e insensível porque logo dirigido a uma parte do corpo em que as lesões, com facilidade e naturalidade assumem uma letalidade enorme. Não está provado que tenha havido uma contenda séria e que no meio dela houvesse o desferimento de um ou vários golpes a esmo acabando por atingir as vítimas de modo grave. O que resulta dos factos é uma intenção – concretizada – de matar e ferir as vítimas dir-se-ia a sangue frio de forma traiçoeira, como já supra referido. Mesmo no caso em que se não registaram ferimentos (ofendida CC) o ataque do recorrente visou uma zona vital. O que não pode deixar de ser relevado em sede de determinação da medida das penas se realmente se pretender, como se pretende, acautelar as sobreditas necessidades de prevenção, perante uma ilicitude elevada e um dolo particularmente intenso, mesmo já no quadro da qualificação. São estes os aspectos que se consideram relevantes mas não já o sobredito facto 57 (supra em 4.) que mais não é do que um repositório de conclusões tiradas a partir de um dado circunstancial como foi o do comportamento do recorrente em certo momento da audiência quando eram proferidas alegações pelo mandatário dos assistentes [22] num contexto natural de pressão e tensão. E, por isso, dir-se-ia inócuo no que respeita à definição do perfil psicológico e da personalidade do recorrente. Ao contrário do que pretende o recorrente a sua postura em julgamento foi relevada positivamente na decisão da 1ª instância quando ali se consigna que não foi descurado o facto de haver participado na descoberta da verdade ainda que de forma parcelar e pouco vincada (cfr acórdão a fls 2449). Mas não poderá o recorrente ter a pretensão de ver fortemente ponderada essa circunstância como se de uma confissão integral e sem reservas se tratasse, essa sim a evidenciar, por seu turno, uma postura de arrependimento válido e de expressivo valor atenuante em sede de prevenção especial. Isso não consta da matéria provada e, por conseguinte, a alegação do recorrente de que «assumiu os factos» não releva para lá do que consta do facto 56. Claro que um arguido pode sempre fazer valer o seu direito ao silêncio sem que isso o possa prejudicar, como o recorrente questiona (cfr conclusão 29ª) mas o que não pode é pretender tirar daí uma contrapartida que seja tida em conta na diminuição da pena. De pouca relevância se afigura também em termos de prevenção especial, sobretudo, a circunstância invocada pelo recorrente sobre a sua condição social e económica quando estão essencialmente em causa bens jurídicos de natureza pessoal relevantíssimos. Também se atende ao passado criminal do recorrente ainda que com pouco significado porque naquilo que nele se tem por mais significativo – os crimes praticados com violência – o decurso do tempo é considerável. Assim, entendem-se adequadas as seguintes penas parcelares: - pelo crime de homicídio qualificado, dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e) a pena de 17 anos de prisão; - pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nºs 1 e 2, alínea e), (na pessoa de BB) a pena de 2 anos de prisão; - um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nº 1 e nº 2, alíneas e) e artigos 22º e 23º, (na pessoa de CC) a pena de 1 ano de prisão. Acresce, na ponderação a efectuar para determinar a pena única, a pena de 9 meses de prisão pelo crime de importunação sexual do art, 170º.
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7. - Quanto à medida da pena única estabelece o art. 77º, nº 1 do Código Penal que o critério específico a usar na sua fixação é o da consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. Mas também neste domínio da fixação de uma pena única se impõe ter presente o critério geral estabelecido no citado art. 40º C. Penal. O caminho a seguir é o da “fixação” de uma imagem global do facto como reiteradamente tem vincado a jurisprudência que dê a medida da sua dimensão no plano da ilicitude e da culpa, mas também do seu pano de fundo, digamos, a personalidade do agente. Tendo ainda como parâmetro imprescindível o respeito pela proporcionalidade (em sentido amplo), ou seja, a pena terá de ser aferida e ponderada em função da sua idoneidade, necessidade e proporcionalidade (em sentido estrito) para proteger os bens jurídico-penais lesionados levando aqui em linha de conta a importância desses bens a exigir essa protecção. Assim, tomando em consideração todos os factos praticados analisar-se-á a «gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique»[23]. E incluir-se-á nessa análise a avaliação da personalidade do agente para tanto se ponderando se desse conjunto de factos se pode retirar a conclusão de que ele tem alguma tendência para o crime ou se tudo decorre das circunstâncias concretas que hajam potenciado uma situação de pluriocasionalidade com vista a conferir à pena única um sentido agravante ou, pelo contrário, atenuante. Vejamos, pois. Os bens jurídicos lesionados sobretudo nos crimes de homicídio e ofensa à integridade física qualificada são de primeira ordem, pode dizer-se, como de resto se referenciou já. Chama-se este ponto à colação para evidenciar na imagem global do facto um traço da personalidade do recorrente que é o da sua propensão, como decorre também de certo modo dos seus antecedentes criminais, para a ofensa de bens jurídicos de carácter pessoal. Outro traço que contribui para projectar uma imagem global negativa no sentido de fazer sobressair a necessidade de reafirmar exigências de prevenção especial está na persistência e na intensidade das suas condutas. Não é possível escamotear a pluriofensividade do seu ataque que só por razões alheias à sua vontade não teve consequências ainda mais desastrosas, indicadora de uma personalidade com um forte sinal de uma outra propensão para comportamentos impulsivos e violentos. Tudo são razões para ter como adequada a pena única de 18 anos e 6 meses. *
8. – Em face do exposto decide-se: A) Rejeitar o recurso do arguido AA no tocante aos crimes de importunação sexual e de ofensa à integridade física qualificada. B) Conceder provimento parcial à parte restante do recurso e nessa medida, considerando ainda o disposto no art. 403º, nº 3 CPP, condenar o arguido: - pelo crime de homicídio qualificado, dos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e) na pena de dezassete (17) anos de prisão; - pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nºs 1 e 2, alínea e), (na pessoa de BB) a pena de dois (2) anos de prisão; - um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, do artigo 145º, nºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132º, nº 1 e nº 2, alíneas e) e artigos 22º e 23º, (na pessoa de CC) a pena de um (1) ano de prisão. C) Condená-lo em cúmulo das penas parcelares atrás referidas e da pena de nove meses pelo crime de importunação sexual na pena única de dezoito (18) anos e seis (6) meses de prisão. Sem tributação.
Feito e revisto pelo 1º signatário.
Nuno Gomes da Silva (Relator) Francisco Caetano -------------------------------------
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