Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2153/13.9TYLSB.L1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
BEM IMÓVEL
FRACÇÃO AUTÓNOMA
FRAÇÃO AUTÓNOMA
CREDOR
COBRANÇA DE DÍVIDAS
DESPESAS DE CONDOMÍNIO
RESPONSABILIDADE
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 01/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE.
Doutrina:
-António Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, 1993, p. 245;
-Carolina Cunha, Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente após a extinção da sociedade nos casos de ausência de liquidação, Direito das Sociedades em Revista, III Congresso, 2014, p.174 e 179;
-José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, p. 468;
-José Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 13.ª Edição, p.435, 445 e ss.;
-Paula Costa e Silva e Rui Pinto, DLA (Dissolução e liquidação administrativas, Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, Código das Sociedades Comerciais Anotado (coord. de A. Menezes Cordeiro), 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2011, p. 1381 a 1443;
-Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 6.ª Edição 2016, p 1051 e 1054;
-Raúl Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina (reimpressão, 1999), p.461 e 496;
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 163.º, 164.º E 165.º, N.º 2.
REGIME JURÍDICO DA DISSOLUÇÃO E DA LIQUIDAÇÃO DE ENTIDADES COMERCIAIS (RJPADLEC), APROVADO PELO DL Nº.76-A/2006.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 14-03-2017, PROCESSO N.º 5871/13.8TBMTS.P1.S1;
-DE 24-11- 2015, PROCESSO N.º 381/08.8TCFUN.L1.S1.
Sumário : I - Concluindo-se que a via administrativa para a dissolução de sociedades (o RJPADLEC) não permite acautelar cabalmente legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida, não pode o aplicador do direito resignar-se à conclusão de que o sistema não confere expressamente legitimidade aos credores para promoverem a partilha por via judicial.

II - A existência de imóveis (que têm como proprietária uma sociedade dissolvida administrativamente), que não foram objeto de liquidação nem de partilha (porque esta fase não existiu), mas que continuam a gerar passivo (dívidas ao condomínio) não se encontra expressamente prevista nos arts. 163.º e 164.º do CSC.

III - Não sendo os ex-sócios diretamente demandáveis pelo pagamento das dívidas ao condomínio, (porque nada receberam da sociedade), há que apurar como pode o património da extinta sociedade responder por aquelas dívidas.

IV - Do ponto de vista da correta ordenação da titularidade dos bens, não é admissível que imóveis urbanos, concretamente frações autónomas, não tenham um dono que possa ser responsabilizado pelas dívidas inerentes ao seu específico estatuto imobiliário. Pelo facto de se encontrarem em propriedade horizontal, os imóveis (propriedade da dissolvida sociedade) continuarão, necessariamente, a gerar as dívidas correspondentes às despesas do condomínio.

V - Constatando-se a abertura do sistema à via judicial, feita pelo n.º 2 do art. 165.º do CSC, deverá concluir-se que essa via se manterá igualmente aberta quando esteja em causa a reclamada tutela de interesses materialmente idênticos. As hipóteses previstas no art. 165.º do CSC (respeitantes ao destino dos bens das sociedades inválidas) e a hipótese do caso sub judice (insuficiência normativa do procedimento administrativo de dissolução) respeitam a problemas valorativamente equiparáveis, pelo que se justifica a convocação da solução jurídica que conduza aos mesmos efeitos práticos.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

 

Processo n. 2153/13.9TYLSB.L1

I. RELATÓRIO

1. O Condomínio do prédio sito na Rua ..., n…., em Lisboa, propôs, contra AA, SA, BB, CC e DD, ação com processo comum, distribuída à comarca de Lisboa - Secção de Comércio, pedindo, na qualidade de respetivo credor, a liquidação da EE, Ldª, extinta por força de dissolução administrativa.

2. Os RR não contestaram a ação.

3. A primeira instância entendeu que se verificava a exceção dilatória de impossibilidade da lide e absolveu os RR da instância.

4. A Autora interpôs Recurso de Apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa.

5. Os RR não apresentaram contra-alegações.

6. A segunda instância confirmou a sentença recorrida, com fundamentação coincidente e sem voto de vencido.

7. Deste acórdão a Autora interpôs o presente recurso de Revista Excecional, com base no art.671º, n.1, alíneas a) e b) do CPC.

8. A Recorrente apresentou as conclusões que se transcrevem:

· A EE, Lda. foi dissolvida oficiosamente, no âmbito de procedimento administrativo de dissolução e de liquidação de entidades comerciais previsto no RJPADLEC.

· Nesse procedimento administrativo, não foi apurada a existência de qualquer ativo e passivo a liquidar e a sociedade foi, imediatamente e sem fase de liquidação, declarada extinta, nos termos do n.º 4 do art.º 11.º do RJPADLEC.

· No entanto, a sociedade extinta tem considerável ativo – pelo menos, as duas frações autónomas referidas nos arts.5º e 6º da p.i. - e também passivo, conforme alegou e demonstrou o Recorrente na p.i., resultante de relações jurídicas anteriores à data da extinção e por dívidas vencidas antes da extinção.
· Apesar de o Recorrente ser credor da sociedade, confronta-se, contudo, com uma sociedade extinta e, por isso, sem personalidade jurídica ou judiciária.
· Por outro lado, os seus ex-sócios, nada tendo recebido em partilha - porque não a houve - também não podem ser responsabilizados nos termos do art.º 163.º do CSC.
· Das duas conclusões que antecedem, temos, pois que a sociedade não seria, em princípio e de acordo com as regras processuais da legitimidade, bem como à luz do requisito do art.º 163.º n.º 1 do CSC (existência de partilha), sequer judicialmente demandável, razão pela qual o Recorrente intentou a presente ação ao abrigo da aplicação analógica do art.º 165.º do CSC.
· Ao intentar a ação ao abrigo do art.º 165º do CSC, o Recorrente considerou, também e acima do demais, a inúmera jurisprudência supra citada ou referenciada na motivação da presente alegação.
· Jurisprudência esta que, inequívoca e necessariamente, remete para a aplicação analógica do art.º 165.º do CSC, ao considerar, unanimemente, que o art.º 163.º do CSC é inaplicável quando estamos perante casos de sociedades extintas sem que haja sido feita a partilha, entre os respetivos sócios, do saldo positivo que haja resultado da anterior fase da liquidação.
· Tem também a doutrina que se pronuncia sobre esta questão identificado o problema jurídico em apreço nestes autos, reconhecendo que a ação prevista no art.º 163.º do CSC, não é um meio adequado a tutelar os interesses de um credor na situação em que se encontra o ora Recorrente.
· De facto, não tendo existido liquidação nem partilha e nada tendo recebido os sócios, como in casu sucede, uma ação intentada ao abrigo do art.º 163.º n.º 2, do CSC estaria, essa sim, liminarmente, condenada ao insucesso, por faltar um dos seus pressupostos: a atribuição de determinados bens aos sócios em partilha prévia à extinção, constituindo o quantum dessa atribuição, aliás, o próprio limite e medida das responsabilidades de cada sócio.
· Não se consegue compreender como poderia uma sentença condenar em tais termos, pois, sem partilha e adjudicação, a medida da responsabilidade dos sócios nem sequer existe de iure ou de facto.
· Muito menos se vislumbra como seria possível executar uma tal sentença. Sobre que bens, se nenhuns foram adjudicados em partilha aos sócios? Sobre imóveis titulados registralmente por uma sociedade extinta? Sobre depósitos bancários titulados também por uma sociedade extinta? O registo de tais penhoras poderia, aliás e com elevada probabilidade, ser recusado pela conservatória e pelas instituições bancárias, desde logo, porque, quanto a depósitos bancários, não se vislumbra como poderia, na prática, o Agente de Execução dar ordem de bloqueio eletrónico, nos termos do art.º 780.º do CPC, sobre uma conta bancária que não é titulada pelos executados em determinada ação executiva.
· Quanto à ação prevista no art.º 164.º, também não se alcança como a mesma seria, com o mínimo de probabilidade, admissível, uma vez que não só este artigo pressupõe no seu n.º 1 a existência de uma liquidação prévia, como a legitimidade ativa para interpor e intervir nessa ação destinada a realizar a partilha adicional de bens está expressamente circunscrita aos liquidatários da sociedade extinta, os quais, no caso concreto, não existem, pois, como é evidente, a sociedade em apreço não chegou sequer a entrar em fase de liquidação.
· Atento o teor do n.º 2.º do art.º 2.º do CPC, ao legítimo direito de crédito do ora Recorrente tem de corresponder uma ação judicial adequada a efetivá-lo, ainda que por aplicação analógica de um meio processual previsto para diversa situação.
· O entendimento supra sintetizado é acompanhado por doutrina e jurisprudência relevantes que se identificaram na supra motivação e para as quais, com o devido respeito, uma vez mais se remete.
· Ora, o art.º 165.º do CSC é, precisamente, a única norma que toda a doutrina pesquisada pelo Recorrente e que se pronuncia sobre esta questão, admite poder ser analogicamente aplicada para integração de lacunas suscitadas pelo RJPADLEC, pois os objetivos que visa são amplos e genericamente aplicáveis a inúmeras hipotéticas situações societárias, ou seja, essa norma: i) assegura a satisfação dos interesses dos credores antes do ativo social ser partilhado e a ii) redução do ativo a bens partilháveis em condições de igualdade entre os sócios.
·  In casu, em que também a sociedade deixou de existir, sem que o seu património tenha sido liquidado, impõe-se prosseguir os mesmos objetivos que são visados com o art.º 165.º do CSC.
· Com efeito, o art.º 165 do CSC determina que o sócios procedam à liquidação na sequência da declaração de nulidade ou de anulação do contrato de sociedade - ou seja, nos casos em que a sociedade ou nunca existiu ou deixou de existir, como, precisamente, aconteceu neste caso.
· E, no seu nº 2, o art.º 165.º do CSC, confere legitimidade aos credores da sociedade inexistente para requerer a liquidação judicial, nos casos em que os sócios ou não a iniciaram - como acontece no caso dos autos - ou não a concluíram no prazo legal.
· Por conseguinte, verificam-se, no presente caso omisso, todos os pressupostos de que depende a aplicação analógica do art.º 165.º do CSC, e não há quaisquer obstáculos práticos ou jurídicos à sua aplicação, devendo, portanto, ser este o regime a seguir para que o Recorrente possa lograr obter o reconhecimento judicial do seu legítimo direito de crédito.
· Na douta sentença lavrada pela 1.ª instância, entende-se ainda que, em qualquer caso, o pedido de liquidação seria sempre improcedente em qualquer dos casos do 163.º, 164.º ou 165.º do CSC, pois a liquidação deixou de poder ser realizada judicialmente com a entrada em vigor do RJPADLEC, não prevendo o Novo CPC uma ação especial destinada a esse fim, nem sendo a ação declarativa sob a forma única de processo comum adequada ao mesmo.
· O Recorrente também não se conforma com este entendimento, que é, aliás, erróneo e infirmado pela supra citada doutrina, que aqui nos dispensamos de retranscrever, existindo diversas hipóteses de liquidações que, aliás, só podem ser realizadas judicialmente.
· Deve, nesses casos e não obstante a revogação do processo especial do anterior CPC, o Juiz adequar formalmente o processo comum às vicissitudes de tal desiderato, tendo também em conta o reformulado e mais abrangente princípio da adequação formal previsto no art.º 547.º do Novo CPC, podendo, inclusivamente, ao abrigo deste princípio, repristinar-se ad hoc o pretérito regime de liquidação judicial de sociedades.
· Acresce que a Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, Lei da Organização do Sistema Judiciário, no artigo 128.º, n.º 1, al.ª e), em qualquer das suas redações (bem como a anterior LOFTJ), prevê expressamente as ações de liquidação judicial de sociedades e inserindo-as na competência dos Juízos do Comércio.
· Por último, cumpre referir que, parecendo-nos pacífico que a liquidação judicial de sociedades é legalmente admissível, ainda que fosse validado o entendimento do Tribunal a quo, quanto à inaplicabilidade, por analogia, do art.º 165.º do CSC, enquadrando-se a pretensão do Recorrente ao abrigo dos artigos 163.º e 164º do CSC, não haveria razão alguma para desaproveitar a presente instância absolvendo o Recorrente da mesma.
· De facto, não estando o Tribunal a quo sujeito “às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (n.º 3 do art.º 5.º do CPC), não faria sentido remeter o Recorrente para uma outra instância judicial, tendo nesta chamado todas as partes interessadas, alegado todos os factos essenciais e formulado um pedido, de facto e de direito, possível, ainda que, nesta última vertente, o Tribunal pudesse entender que aos factos alegados e ao pedido formulado se devem aplicar os artigos 163.º e 164.º, em vez do art.º 165.º do CSC.
· O presente recurso excecional de revista é admissível ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC, nos termos explanados e já devidamente sintetizados em supra VII da presente alegação e que aqui se dão por reproduzidos.
· A douta sentença recorrida viola, pois, entre outras, as normas constantes dos artigos 163.º, 164.º e 165.º do CSC; artigos 2.º, n.º 2, n.º 3 do art.º 5, 5.º, n.º 3 e 547.º do

CPC; artigos 121, n.º 1, al. e) da LOSJ; artigo 8.º do CC – norma com valor reforçado, nos termos do artigo 112.º, n.º 3 da CRP – e o artigo 202.º, n.º 2, in fine, da CRP.

            Termos em que, com o doutíssimo suprimento de v.as Ex.as que, especialmente e face à complexidade da questão sub judice, se requer, deverá ser julgada procedente a presente revista excecional, devendo, consequentemente, prosseguir a presente ação em primeira instância, de acordo com a tramitação formulada pelo recorrente na petição inicial ao abrigo do disposto no art.º 165.º do CSC.

Se, porém, doutamente se julgar que a presente ação deveria ter sido intentada ao abrigo de outra tramitação processual e/ou enquadramento jurídico, seja, não obstante e sem conceder quanto ao que antecede, em vez da sua extinção, admitido o prosseguimento – sem prejuízo da eventual necessidade de aperfeiçoamento da petição inicial, que desde já se requer - dos presentes autos em primeira instância. Assim se fazendo, justiça!

 

9. O recurso foi admitido pela Formação a que alude o artigo 672.º, n.º 3 do CPC, como revista excecional.

II. ANÁLISE E FUNDAMENTAÇÃO

a) Objeto do recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, cabe conhecer do seguinte:

O problema central trazido a este tribunal é o de saber como pode o condomínio agir para cobrar os montantes de que é credor, respeitantes à quota-parte nas despesas comuns, imputável a duas frações autónomas, cujo titular é uma sociedade dissolvida administrativamente, sem ter havido uma efetiva liquidação e partilha do património.

Este problema desdobra-se nas seguintes questões:

- Quem é responsável pelo pagamento das dívidas ao condomínio? Os ex-sócios ou a extinta sociedade proprietária das frações?

- Existe, nesta matéria, uma lacuna legal? – E, em caso afirmativo, deve tal lacuna ser integrada por aplicação analógica do art.165º, n.2 do Código das Sociedades Comerciais?

- Cabe na competência material do juízo de comércio conhecer de uma liquidação judicial baseada no art.165º, n.2 do CSC?

b) Factualidade provada

Em primeira instância, foi dada como provada a matéria factual que se transcreve:
“1. EE, Ldª, era uma sociedade comercial por quotas, pessoa coletiva n° ..., com sede na Rua ..., n…., …o, em Lisboa.
2. O objeto social da EE, Ldª, era a administração e exploração de imóveis próprios, rústicos e urbanos.
3. A EE, Ldª, tinha o capital social de 1.700.000$00.
4. Eram sócios da EE, Ldª:

a) AA, S.A., titular de uma quota no valor nominal de 950.000$00;

b) BB, titular de uma quota no valor nominal de 250.000$00;

c) CC, titular de uma quota no valor nominal de 250.000$00;
d) DD, titular de uma quota no valor nominal de 250.000$00.

5. Por decisão de 15/10/2010, proferida no procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais que correu termos sob o n° … na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa foi declarada a dissolução e o encerramento da liquidação da EE, Lda.


6. Na decisão referida em 5) consignou-se que "do procedimento resulta a inexistência de activo e passivo a liquidar conforme dispõe o n.4 do artigo 11° do RJPADLEC”.

7. Pela ap. 82, de 15/10/2010, foi registada a dissolução e encerramento da liquidação da

EE, Lda, e o cancelamento da matrícula.

8. Pela ap. 4, de 17/10/1990, foi registada a favor da EE, Lda, a aquisição do direito de propriedade sobre as frações autónomas designadas pelas letras "" e "" do prédio, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, n. …, e Rua ..., n° …, … e …, em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n° … da freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o art…. da freguesia de ….

9. A assembleia de condóminos do A. aprovou o valor das quotizações devidas pelos condóminos para os anos de 2010 a 2013.
10.   Nas assembleias de condóminos do A., realizadas em 29/6/2000 e em 23/3/2001, foi aprovada a comparticipação dos condóminos no pagamento de obra extraordinária realizada nos elevadores.
11.  A EE, Ldª, não procedeu ao pagamento das quotizações no período entre Fevereiro de 2010 e Dezembro de 2013 e da sua comparticipação na obra dos elevadores”.

c) O Direito:

      1. No Acórdão recorrido, que confirmou a sentença da primeira instância (por unanimidade e com fundamentação coincidente), decidiu-se, de forma bastante sucinta, que o art.165º do Código das Sociedades Comerciais se reporta “tão-somente a declaração de nulidade ou anulação do contrato de sociedade - sendo, como tal, inaplicável à situação em que, por força do aludido procedimento administrativo, a sociedade se mostra já extinta. Devendo, neste caso, quando subsista passivo social não satisfeito, ser demandados os primitivos sócios - na medida em que, nos termos do art.163° daquele diploma, os mesmos respondem até ao montante que receberam ou lhes viesse a caber na partilha do património respetivo. Como decidido, se haverá, assim, de concluir pela impossibilidade legal do pedido formulado na ação - improcedendo as alegações do apelante”.

2. Como consta da matéria de facto provada, a EE, Ldª foi extinta, em 2010, através de procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais, cujo regime (abreviadamente designado por RJPADLEC) foi aprovado pelo DL n.76-A/2006 e publicado em anexo a este diploma[1].

 Como consta da certidão de fls. 53 dos autos, tratou-se de um procedimento instaurado oficiosamente, pela Conservatória do Registo Comercial, com base no art.5º, al. e) do RJPADLEC, ou seja, aplicável quando: “A sociedade não tenha sido objecto de actos de registo comercial obrigatórios durante mais de 20 anos[2].

Apesar de o art.146º do CSC determinar que a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, naquele concreto procedimento não existiu liquidação do ativo nem consequente partilha dos imóveis em causa. A Conservatória do Registo Comercial de Lisboa declarou, simultaneamente, a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade, nos termos do art.11º, n.4 do RJPADLEC, por não ter sido apurada a existência de qualquer ativo ou passivo a liquidar [vd. certidão de fls. 54].

Não deixa, porém, de causar alguma estranheza que, estando em causa bens sujeitos a registo e efetivamente registados em nome da sociedade dissolvida [vd. certidão de fls. 51], aquela conservatória não tenha detetado a existência de tal património[3].

Deste modo, a extinta sociedade continuou a ser a proprietária das frações, cujas quotizações não pagas (pelo menos entre Fevereiro de 2010 e Dezembro de 2013) constituem passivo superveniente, e estiveram na base da presente ação.

A subsistência de relações jurídicas, depois de extinta uma sociedade, é, nas palavras de Raúl Ventura, “matéria delicada, tanto no enquadramento dogmático como na escolha de soluções práticas[4].

3. A superveniência tanto de passivo como de ativo encontra-se prevista, respetivamente, nos artigos 163º e 164º do CSC. Todavia, estas duas normas pressupõem que tenha existido liquidação.

A hipótese do caso sub judice ou seja, a existência de imóveis (património da sociedade) que não foram objeto de liquidação, mas que continuam a gerar passivo (dívidas ao condomínio) não se encontra expressamente prevista nos artigos 163º e 164º. 

Por outro lado, no RJPADLEC não se encontram normas que prevejam a hipótese de partilha superveniente, a requerimento dos credores, quando uma sociedade é dissolvida por via administrativa, sem uma efetiva fase de liquidação, por ter sido pressuposta a inexistência de passivo ou ativo.

O modo de controlar, em cada caso concreto, a incompletude deste procedimento administrativo reconduz-se à impugnação judicial da decisão do conservador, no prazo de 10 dias a contar da notificação da decisão, como previsto no art.12º do RJPADLEC[5].

Todavia, se nenhum interessado reagir dentro desse prazo, subsiste a questão de saber qual é o estatuto do património não partilhado.

Trata-se de um problema que não encontra resposta expressa na letra da lei. Todavia, as insuficiências do RJPADLEC não são ignoradas pela doutrina.

      Tratando a hipótese de existência de sociedades dissolvidas, através daquele procedimento administrativo, com passivo superveniente, mas sem liquidação, afirma Carolina Cunha: “parece-me muito difícil a verificação de um “património zero” numa sociedade que funcionou durante certo período de tempo; só por grande coincidência o activo societário cobrirá exactamente o passivo, sem faltar nem sobeja[6]. E acrescenta esta autora: “Em todo o caso, o que não é curial é ignorarmos – como o legislador parece ter feito – que este procedimento de extinção imediata se presta a uma utilização fraudulenta, em detrimento dos credores sociais, tanto mais que se dispensa aqui, qualquer prestação de contas nos moldes exigidos pelo art.149.º CSC, além de não ocorrer (pelo menos aberta ou ostensivamente) a partilha de qualquer activo que possa alicerçar, após a extinção da sociedade, uma pretensão dos credores preteridos contra os sócios nos termos do art.163.º CSC[7].

As preocupações expressas por esta autora (embora não respeitando, em todos os pontos, ao tipo de circunstâncias do caso sub judice) reforçam a conclusão sobre a insuficiência do direito positivado para dar resposta não apenas ao caso concreto, mas também a questões problematicamente conexas, emergentes da extinção administrativa de uma sociedade, cujo passivo ou ativo vem supervenientemente a ser conhecido. 

4. O tipo de débito reclamado pelo condomínio não se esgotará num único pagamento, pois, pela sua própria natureza, continuará a formar-se periodicamente.

Deste modo, para além de se apurar quem deverá responder pelo pagamento concretamente peticionado, sempre subsistirá a questão tipológica (que justificou a excecionalidade da presente revista) de saber que solução jurídica devem merecer os casos idênticos.

Não sendo raros os casos de sociedades dissolvidas administrativamente, sem existência de uma efetiva fase de liquidação, mas relativamente às quais vem a concluir-se pela existência de passivo ou ativo (como a doutrina supra referida já evidenciou), e não se encontrando na letra da lei uma solução que expressamente preveja estas hipóteses, a questão sub judice comporta uma irradiação problemática que vai para além do caso concreto, tornando-se a sua apreciação claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.  

      5. Serão os antigos sócios responsáveis pelo pagamento das dívidas ao condomínio, nos termos do art.163º do Código das Sociedades Comerciais, como se entendeu na decisão recorrida?

Determina o n.1 do art.163º do CSC:

Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada (…)”

Sobre o alcance do art.163º, afirma Carolina Cunha: “O fundamento desta espécie de sucessão restrita no débito societário assenta portanto numa ideia de devolução: se os sócios houverem recebido mais do que lhes pertencia porque havia débitos sociais insatisfeitos, terão de ser eles a satisfazê-los, mais tarde, à custa dos bens que lhes haviam sido entregues[8].

No caso concreto, dado que os antigos sócios nada receberam da extinta sociedade (porque não existiu partilha), demanda-los para que procedam ao pagamento das dívidas ao condomínio, que os imóveis da sociedade geraram (e continuam a gerar), será uma pretensão, muito provavelmente, improcedente. É o que se conclui do entendimento já expresso pela doutrina[9] e pela jurisprudência[10] sobre o alcance do art.163º. 

Não sendo os ex-sócios diretamente demandáveis pelo pagamento das dívidas ao condomínio, (porque nada receberam da sociedade), há que apurar como pode o património da extinta sociedade responder por aquelas dívidas.

6. Dispõe o art.164º, n.1 que: “Verificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados, compete aos liquidatários propor a partilha adicional pelos antigos sócios, reduzindo os bens a dinheiro, se não for acordada unanimemente a partilha em espécie”.

Esta norma, prevendo a existência de ativo superveniente (ou supervenientemente conhecido), pressupõe, porém, que tenha existido partilha. Trata-se, assim, apenas de uma previsão de partilha adicionar, a ser acionada pelos liquidatários.

O art.164º do CSC não prevê, deste modo, a hipótese de não ter existido liquidação; tal como não prevê, em tais circunstâncias, a hipótese de os credores da sociedade promoverem a liquidação de bens não partilhados. 

Por outro lado, no RJPADLEC (a que alude o art.144º do CSC) também não se encontra qualquer norma que expressamente preveja a hipótese de reabertura, a requerimento dos credores da sociedade, de um procedimento encerrado nos termos do seu art.11º, n.4.

7. Conclui-se, assim, face à existência de passivo superveniente (as dívidas que continuam a ser geradas ao condomínio), bem como à existência de património não partilhado (que gera aquele passivo), que nem no art.163º nem no art.164º do CSC se encontra solução para o caso a decidir.

Constata-se, pois, nesta matéria, a existência de uma incompletude do sistema normativo positivado (uma lacuna legal). Esta insuficiência legal não deve, porém, constituir um obstáculo ao aplicador do direito para encontrar a solução teleologicamente adequada ao caso concreto.

Não podendo o tribunal abster-se de julgar, invocando a falta de lei, como determina o art.8º, n.1 do Código Civil; estabelecendo a Constituição da República Portuguesa, no seu art.20º, n.1, que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e, no seu art.202º, n.2, que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; determinando o art.2º, n.2 do Código de Processo Civil que a todo o direito corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, impõe-se, no caso concreto, suprir a incompletude normativa da letra da lei.

8. Do ponto de vista da correta ordenação da titularidade dos bens, não é admissível que imóveis urbanos, concretamente frações autónomas, não tenham um dono que possa ser responsabilizado pelas dívidas inerentes ao seu específico estatuto imobiliário.

Pelo facto de se encontrarem em propriedade horizontal, os imóveis (propriedade da dissolvida sociedade) continuarão, necessariamente, a gerar as dívidas correspondentes às despesas do condomínio (para além de eventuais despesas extraordinárias respeitantes às partes comuns).

Não podendo a entidade titular desses bens ser judicialmente demandada, por não ter personalidade judiciária (já que se encontra extinta), tais bens ficariam assim “isentos” de poderem responder pelas próprias dívidas que continuam a gerar.

Sem serem objeto de liquidação e partilha, aquelas frações ficariam numa sui generis situação de quase “património de ninguém”, próximo de uma res nullius.

9. Tornando-se necessário proceder à liquidação da sociedade e consequente partilha do seu património, importa não apenas construir o percurso metodológico da pertinente solução de direito substantivo, mas também justificar a via processual que conduzirá à sua realização prática.

Demonstrada a existência de uma lacuna legal[11] (nos termos supra referidos), cabe indagar, no quadro metodológico do art.10º do CC, se na previsão normativa do art.165º do CSC se encontra uma solução teleologicamente adaptável à necessidade de solução do caso decidendo.

O art.165º, n.1 do CSC prevê a hipótese de o contrato de sociedade ser declarado nulo ou anulado e impõe aos sócios a obrigação de procederem à liquidação do ente societário que, assim, fica sem personalidade jurídica e judiciária.

Esta obrigação de liquidação, a cargo dos sócios, é, em certa medida, equivalente à obrigação que o art.146º do CSC impõe aos sócios de procederem à liquidação quando a sociedade é dissolvida.

Todavia, caso a sociedade seja dissolvida, sem que os sócios procedam à respetiva liquidação, o art.146º não prevê expressamente a possibilidade de os credores requererem a liquidação judicial[12].  

Esta possibilidade é, porém, prevista pelo n.2 do art.165º do CSC (caso o contrato de sociedade seja declarado nulo ou anulado). Dispõe esta norma:

Nos casos previstos o número anterior qualquer sócio, credor da sociedade ou credor de sócio de responsabilidade ilimitada pode requerer a liquidação judicial, antes de ter sido iniciada a liquidação pelos sócios, ou a continuação judicial da liquidação iniciada, se esta não tiver terminado no prazo legal”.

10. Existirá alguma razão para que aos credores de uma sociedade nula ou anulada seja conferido o direito de requerer a liquidação judicial dessa sociedade e idêntico direito não ser conferido aos credores de uma sociedade dissolvida?

Vejamos qual a finalidade da fase da liquidação, tanto após a dissolução da sociedade como após a declaração de nulidade ou anulação do contrato de sociedade.

Nas palavras de Raúl Ventura: “a fase da liquidação e o respetivo processo não são exclusivos da dissolução da sociedade, ou, por outras palavras, a dissolução da sociedade não é necessariamente o único facto que justifica o seguimento de uma fase de liquidação. A liquidação pretende atingir determinados fins: assegurar a satisfação dos credores antes de o ativo social ser partilhado pelos sócios; preparar a partilha pela redução do ativo a bens o mais possível partilháveis em condições de igualdade para os sócios. Sempre que tais fins existam, a liquidação deve ser ordenada pelo legislador e esse é o caso das sociedades nulas ou anuladas[13].

Não seria razoável pressupor que o legislador tivesse querido trata de forma diferente credores da sociedade que apresentam interesses essencialmente idênticos, no que respeita à promoção da fase da liquidação.

Ao prever que a liquidação seja promovida oficiosamente pelo serviço de registo competente (art.146º, n.6 do CSC), quando a dissolução da sociedade ocorre por via oficiosa, o legislador terá, certamente, pressuposto que por essa via (mais expedita do que a via judicial[14]) se encontrariam as soluções adequadas à satisfação dos legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida.

Concluindo-se que a via administrativa (o RJPADLEC) não permite acautelar cabalmente legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida, não pode o aplicador do direito resignar-se à conclusão de que o sistema não confere legitimidade aos credores para promoverem a partilha por via judicial[15].

Constatando-se a abertura do sistema à via judicial, feita pelo n.2 do art.165º do CSC, deverá concluir-se que essa via se manterá igualmente aberta quando esteja em causa a reclamada tutela de interesses materialmente idênticos, como se verifica no caso concreto.

A identidade problemático-valorativa entre a hipótese prevista no art.165º, n.2 do CSC e a questão decidenda autoriza, no quadro do art.10º do CC, a analogia legis ou “judicativo-decisória” (nas palavras de António Castanheira Neves[16]) que permite eleger esse dispositivo legal como critério de realização material do direito do caso concreto.

Efetivamente, as hipóteses previstas no art.165ºdo CSC (respeitantes ao destino dos bens das sociedades inválidas) e a hipótese do caso sub judice (insuficiência normativa do procedimento administrativo de dissolução) respeitam a problemas valorativamente equiparáveis, pelo que se justifica a convocação da solução jurídica que conduza aos mesmos efeitos práticos[17].

11. Admitindo-se, deste modo, o acesso dos credores à via judicial para promoverem a liquidação da extinta sociedade, algumas questões processuais, complementarmente, se levantam: saber qual o processo próprio; e se a ação pode correr no juízo de comércio[18].

O vigente Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.41/2013) não contém previsão legal equivalente ao anterior art.1122º (do CPC de 1995)[19]. Todavia, o facto de ter desaparecido o processo especial de liquidação judicial de sociedades não significa que, face ao peticionado pela Autora, a liquidação não possa continuar a ocorrer por via judicial, aplicando-se o processo comum (art.546º, n.2 do CPC) e observando-se a pertinente adequação formal, como resulta do art.547º do CPC[20].

Quanto à competência do juízo de comércio para conhecer desta ação, ela é expressamente prevista pelo art.128º da Lei n.62/2013 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), o qual estabelece, no seu n.1. Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: e) As ações de liquidação judicial de sociedades.

12. Por outro lado, importa ainda considerar a questão da legitimidade dos sujeitos para aquela ação.

Quanto à legitimidade ativa, nos termos do art.165º, n.2, ela pertence a quem tiver a qualidade de credor da sociedade. Ora, como resulta da factualidade provada, o Autor-Condomínio é credor dos montantes correspondentes às quotizações não pagas, entre 2010 e 2013 (aprovados em assembleia de condóminos), respeitantes às frações de que a extinta sociedade é proprietária[21]. Por outro lado, tratando-se de uma ação que se inscreve nos poderes do administrador[22], o condomínio goza da extensão da personalidade judiciária prevista no art.12º, al. e) do CPC.

Quanto à legitimidade passiva dos RR, dado que a sociedade devedora se encontra extinta e, portanto, destituída de personalidade judiciária, a ação destinada à liquidação e partilha do património da sociedade não poderia ser proposta contra esta dissolvida entidade.

Encontra-se prevista, no art.162º do CSC, a legitimidade sucedânea dos sócios para assumirem a posição processual da sociedade quando esta seja extinta na pendência de uma ação. Por outro lado, ao admitir que os credores da sociedade possam requerer a liquidação de um ente que foi declarado nulo ou anulado, nos termos do art.165º, n.2, o legislador pressupôs, certamente, que essa ação seria contra os sócios (e não contra um ente carecido de capacidade judiciária).

 Do mesmo modo, convocando-se a aplicação analógica deste do art.165º, n.2 do CSC (nos termos supra justificados), na hipótese de dissolução de uma sociedade sem fase de liquidação, também a legitimidade passiva deverá caber aos sócios da dissolvida sociedade.

Acresce que o processo de liquidação e partilha do património da sociedade afeta interesses dos sócios, pois serão eles os destinatários do património sobejante após a partilha

Conclui-se, assim, que no caso sub judice não existia fundamento para a absolvição da instância, com base em ilegitimidade dos RR.

13. Em síntese, conclui-se que na decisão recorrida existiu errada interpretação e aplicação da lei. Assim, não foi, nomeadamente, feita correta interpretação e aplicação do artigo 163º do CSC (pois não tendo existido liquidação e partilha não é possível exigir aos sócios o pagamento de passivo superveniente); nem do art.165º, n.2 do mesmo diploma (pois a ordem jurídica tem de reconhecer aos credores de uma sociedade extinta sem liquidação, mas com património, o direito de se fazerem pagar pelo património não liquidado).

Conclui-se, assim, que não existe uma “impossibilidade originária da lide”, contrariamente ao que se entendeu no acórdão recorrido, o qual confirmou a decisão da primeira instância que, com tal fundamento, absolveu os RR da instância.

III. DECISÃO

Nos termos expostos, julga-se a revista procedente, revogando-se o Acórdão recorrido, devendo a ação prosseguir em primeira instância nos termos peticionados, ressalvada a hipótese de se verificar alguma razão superveniente ou ainda não apreciada que a tal obste.

Custas: na apelação e na revista, a cargo dos Recorridos.

Lisboa, 18 de janeiro de 2018

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Maria Olinda Garcia (Relatora)

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Salreta Pereira

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       João Camilo

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[1] Sobre a natureza jurídica deste procedimento, e para uma desenvolvida análise do respetivo regime, vd. Paula Costa e Silva/Rui Pinto, “DLA (Dissolução e liquidação administrativas) – Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais”, em Código das Sociedades Comerciais Anotado (coord. de A. Menezes Cordeiro), 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, páginas 1381 a 1443.
[2] Que Paula Costa Silva/Rui Pinto qualificam como um indício do “quadro fáctico de empresa fictícia ou morta”, op. cit. pág.1406.
[3] Sobre este procedimento, afirmam Paula Costa Silva/Rui Pinto: “A decisão do conservador deve apresentar, apesar do silêncio do presente diploma, uma estrutura e um conteúdo adequados à funcionalidade que prossegue e aos princípios processuais constitucionais gerais”, op. cit. pág.1416. E acrescentam estes autores que, nesse procedimento, “devem ser integradas referências e conclusões sobre a prova produzida”, op. cit. pág.1417.
[4] Dissolução e Liquidação de Sociedades – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais; Almedina (reimpressão, 1999), pág.461.
[5] Não se encontra nos autos qualquer informação que permita saber se algum interessado impugnou judicialmente a decisão do conservador, ao abrigo do art.12º do RJPADLEC.
[6] Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente após a extinção da sociedade nos casos de ausência de liquidação, in Direito das Sociedades em Revista, III Congresso, 2014, pág.179.
[7] Op. cit. pág.179.
[8] Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente após a extinção da sociedade nos casos de ausência de liquidação, in Direito das Sociedades em Revista, III Congresso, 2014, pág.174.
[9] Neste sentido, veja-se, por exemplo, Paulo Olavo Cunha, o qual afirma que caso a sociedade não tenha distribuído bens aos sócios estes não podem ser responsabilizados por dívidas não satisfeitas pelo ativo social; Direito das Sociedades Comerciais, 6ª ed. (2016), pág.1054.
[10]Veja-se, por exemplo: Ac. do STJ, de 14.03.2017 (relator Gabriel Catarino), Proc. n.5871/13.8TBMTS.P1.S1, 1.ª Secção: “A responsabilização dos sócios da sociedade extinta com o encerramento da liquidação depende da alegação e prova de que receberam bens na partilha do património da sociedade”; Ac. do STJ, de 24.11.2015 (relator Silva Salazar), Proc. n. 381/08.8TCFUN.L1.S1, 6.ª Secção: “A responsabilidade dos antigos sócios pelo passivo superveniente está limitada ao valor dos bens do património da sociedade dissolvida que lhes tenham cabido por partilha”.
[11] Uma “lacuna de previsão”, nas palavras de José Oliveira Ascensão; O Direito – Introdução e Teoria Geral (13º ed.), pág.435
[12] Apenas o n.6 do art.146º dispõe: “Nos casos em que tenha ocorrido dissolução administrativa promovida por via oficiosa, a liquidação é igualmente promovida oficiosamente pelo serviço de registo competente”.
[13] Dissolução e liquidação de sociedades – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, (reimpressão, 1999), pág. 496.
[14] Como afirma Paulo Olavo Cunha: “A intenção do legislador, ao introduzir o regime de dissolução e liquidação administrativas, na linha da desjudicialização do Direito Societário, é perfeitamente compreensível, uma vez que, como regra, não se pode dizer que os sócios beneficiem da liquidação judicial, nem sequer os credores – desde que o ativo seja suficiente para satisfazer o passivo – porque a liquidação judicial é sempre naturalmente mais demorada do que a extrajudicial”; Direito das Sociedades Comerciais, 6ª ed. (2016), pág1051.
[15] Pode, a este propósito, convocar-se a afirmação de Paula Costa Silva/Rui Pinto, segundo os quais: “o regime judicial permanece com aptidão para ser usado residualmente sempre que se trate de um caso não expressamente reservado à via administrativa ou quando expressamente o legislador assim o determine”, op. cit. pág. 1389.
[16] Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais; Coimbra Editora (1993), pág. 245.
[17] Na perspetiva de uma integração intrassistemática; José Oliveira Ascensão; O Direito – Introdução e Teoria Geral (13º ed.), pág.445 e seguintes.
[18] Na decisão da primeira instância entendeu-se que a secção de comércio (atual juízo de comercio) não tinha competência para este efeito. O acórdão recorrido não se pronunciou especificamente sobre este ponto, dado que considerou o art.165º do CSC inaplicável ao caso concreto (ficando, nesses termos, a questão sem relevância autónoma).
[19] Determinava o art.1122º do Código de Processo Civil de 1995: “O processo de liquidação judicial do património das sociedades, quer comerciais, quer civis, segue os seus termos no tribunal correspondente à sede social e por dependência da acção de dissolução, declaração de inexistência, nulidade ou anulação da sociedade, quando a tenha havido”. E o art.1123º conferia legitimidade aos credores para esse efeito, nos seguintes termos: “Quando a liquidação deva efectuar-se ou prosseguir judicialmente, será requerida pela própria sociedade, por qualquer sócio ou credor, ou pelo Ministério Público, consoante os casos, devendo o requerente indicar logo quem deva exercer as funções de liquidatário, ou pedir a respectiva nomeação, se esta couber ao juiz”.
[20] Vd. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 468.
[21] Sendo a sociedade a proprietária daquelas duas frações e, por inerência, contitular das partes comuns (art.1420º do CC) é ela quem tem a qualidade de condómino, sendo, por isso, a responsável pelo pagamento dos encargos com o condomínio, como estabelece o art.1424º do Código Civil.
[22] Nos termos dos artigos 1436º e 1437º do Código Civil.