Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE BEM IMÓVEL FRACÇÃO AUTÓNOMA FRAÇÃO AUTÓNOMA CREDOR COBRANÇA DE DÍVIDAS DESPESAS DE CONDOMÍNIO RESPONSABILIDADE INTERPRETAÇÃO DA LEI | ||
Data do Acordão: | 01/18/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO DAS SOCIEDADES – LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE. | ||
Doutrina: | -António Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, 1993, p. 245; -Carolina Cunha, Responsabilidade dos sócios pelo passivo superveniente após a extinção da sociedade nos casos de ausência de liquidação, Direito das Sociedades em Revista, III Congresso, 2014, p.174 e 179; -José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, p. 468; -José Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 13.ª Edição, p.435, 445 e ss.; -Paula Costa e Silva e Rui Pinto, DLA (Dissolução e liquidação administrativas, Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, Código das Sociedades Comerciais Anotado (coord. de A. Menezes Cordeiro), 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2011, p. 1381 a 1443; -Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 6.ª Edição 2016, p 1051 e 1054; -Raúl Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina (reimpressão, 1999), p.461 e 496; | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 163.º, 164.º E 165.º, N.º 2. REGIME JURÍDICO DA DISSOLUÇÃO E DA LIQUIDAÇÃO DE ENTIDADES COMERCIAIS (RJPADLEC), APROVADO PELO DL Nº.76-A/2006. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 14-03-2017, PROCESSO N.º 5871/13.8TBMTS.P1.S1; -DE 24-11- 2015, PROCESSO N.º 381/08.8TCFUN.L1.S1. | ||
Sumário : | I - Concluindo-se que a via administrativa para a dissolução de sociedades (o RJPADLEC) não permite acautelar cabalmente legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida, não pode o aplicador do direito resignar-se à conclusão de que o sistema não confere expressamente legitimidade aos credores para promoverem a partilha por via judicial. II - A existência de imóveis (que têm como proprietária uma sociedade dissolvida administrativamente), que não foram objeto de liquidação nem de partilha (porque esta fase não existiu), mas que continuam a gerar passivo (dívidas ao condomínio) não se encontra expressamente prevista nos arts. 163.º e 164.º do CSC. III - Não sendo os ex-sócios diretamente demandáveis pelo pagamento das dívidas ao condomínio, (porque nada receberam da sociedade), há que apurar como pode o património da extinta sociedade responder por aquelas dívidas. IV - Do ponto de vista da correta ordenação da titularidade dos bens, não é admissível que imóveis urbanos, concretamente frações autónomas, não tenham um dono que possa ser responsabilizado pelas dívidas inerentes ao seu específico estatuto imobiliário. Pelo facto de se encontrarem em propriedade horizontal, os imóveis (propriedade da dissolvida sociedade) continuarão, necessariamente, a gerar as dívidas correspondentes às despesas do condomínio. V - Constatando-se a abertura do sistema à via judicial, feita pelo n.º 2 do art. 165.º do CSC, deverá concluir-se que essa via se manterá igualmente aberta quando esteja em causa a reclamada tutela de interesses materialmente idênticos. As hipóteses previstas no art. 165.º do CSC (respeitantes ao destino dos bens das sociedades inválidas) e a hipótese do caso sub judice (insuficiência normativa do procedimento administrativo de dissolução) respeitam a problemas valorativamente equiparáveis, pelo que se justifica a convocação da solução jurídica que conduza aos mesmos efeitos práticos. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
Processo n. 2153/13.9TYLSB.L1
I. RELATÓRIO 1. O Condomínio do prédio sito na Rua ..., n…., em Lisboa, propôs, contra AA, SA, BB, CC e DD, ação com processo comum, distribuída à comarca de Lisboa - Secção de Comércio, pedindo, na qualidade de respetivo credor, a liquidação da EE, Ldª, extinta por força de dissolução administrativa.
2. Os RR não contestaram a ação. 3. A primeira instância entendeu que se verificava a exceção dilatória de impossibilidade da lide e absolveu os RR da instância. 4. A Autora interpôs Recurso de Apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa. 5. Os RR não apresentaram contra-alegações. 6. A segunda instância confirmou a sentença recorrida, com fundamentação coincidente e sem voto de vencido. 7. Deste acórdão a Autora interpôs o presente recurso de Revista Excecional, com base no art.671º, n.1, alíneas a) e b) do CPC. 8. A Recorrente apresentou as conclusões que se transcrevem: · A EE, Lda. foi dissolvida oficiosamente, no âmbito de procedimento administrativo de dissolução e de liquidação de entidades comerciais previsto no RJPADLEC. · Nesse procedimento administrativo, não foi apurada a existência de qualquer ativo e passivo a liquidar e a sociedade foi, imediatamente e sem fase de liquidação, declarada extinta, nos termos do n.º 4 do art.º 11.º do RJPADLEC. · No entanto, a sociedade extinta tem considerável ativo – pelo menos, as duas frações autónomas referidas nos arts.5º e 6º da p.i. - e também passivo, conforme alegou e demonstrou o Recorrente na p.i., resultante de relações jurídicas anteriores à data da extinção e por dívidas vencidas antes da extinção. Termos em que, com o doutíssimo suprimento de v.as Ex.as que, especialmente e face à complexidade da questão sub judice, se requer, deverá ser julgada procedente a presente revista excecional, devendo, consequentemente, prosseguir a presente ação em primeira instância, de acordo com a tramitação formulada pelo recorrente na petição inicial ao abrigo do disposto no art.º 165.º do CSC. Se, porém, doutamente se julgar que a presente ação deveria ter sido intentada ao abrigo de outra tramitação processual e/ou enquadramento jurídico, seja, não obstante e sem conceder quanto ao que antecede, em vez da sua extinção, admitido o prosseguimento – sem prejuízo da eventual necessidade de aperfeiçoamento da petição inicial, que desde já se requer - dos presentes autos em primeira instância. Assim se fazendo, justiça!
9. O recurso foi admitido pela Formação a que alude o artigo 672.º, n.º 3 do CPC, como revista excecional.
II. ANÁLISE E FUNDAMENTAÇÃO a) Objeto do recurso Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, cabe conhecer do seguinte: O problema central trazido a este tribunal é o de saber como pode o condomínio agir para cobrar os montantes de que é credor, respeitantes à quota-parte nas despesas comuns, imputável a duas frações autónomas, cujo titular é uma sociedade dissolvida administrativamente, sem ter havido uma efetiva liquidação e partilha do património. Este problema desdobra-se nas seguintes questões: - Quem é responsável pelo pagamento das dívidas ao condomínio? Os ex-sócios ou a extinta sociedade proprietária das frações? - Existe, nesta matéria, uma lacuna legal? – E, em caso afirmativo, deve tal lacuna ser integrada por aplicação analógica do art.165º, n.2 do Código das Sociedades Comerciais? - Cabe na competência material do juízo de comércio conhecer de uma liquidação judicial baseada no art.165º, n.2 do CSC?
b) Factualidade provada Em primeira instância, foi dada como provada a matéria factual que se transcreve: a) AA, S.A., titular de uma quota no valor nominal de 950.000$00; b) BB, titular de uma quota no valor nominal de 250.000$00; c) CC, titular de uma quota no valor nominal de 250.000$00; c) O Direito: 1. No Acórdão recorrido, que confirmou a sentença da primeira instância (por unanimidade e com fundamentação coincidente), decidiu-se, de forma bastante sucinta, que o art.165º do Código das Sociedades Comerciais se reporta “tão-somente a declaração de nulidade ou anulação do contrato de sociedade - sendo, como tal, inaplicável à situação em que, por força do aludido procedimento administrativo, a sociedade se mostra já extinta. Devendo, neste caso, quando subsista passivo social não satisfeito, ser demandados os primitivos sócios - na medida em que, nos termos do art.163° daquele diploma, os mesmos respondem até ao montante que receberam ou lhes viesse a caber na partilha do património respetivo. Como decidido, se haverá, assim, de concluir pela impossibilidade legal do pedido formulado na ação - improcedendo as alegações do apelante”.
2. Como consta da matéria de facto provada, a EE, Ldª foi extinta, em 2010, através de procedimento administrativo de dissolução e liquidação de entidades comerciais, cujo regime (abreviadamente designado por RJPADLEC) foi aprovado pelo DL n.76-A/2006 e publicado em anexo a este diploma[1]. Como consta da certidão de fls. 53 dos autos, tratou-se de um procedimento instaurado oficiosamente, pela Conservatória do Registo Comercial, com base no art.5º, al. e) do RJPADLEC, ou seja, aplicável quando: “A sociedade não tenha sido objecto de actos de registo comercial obrigatórios durante mais de 20 anos”[2]. Apesar de o art.146º do CSC determinar que a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, naquele concreto procedimento não existiu liquidação do ativo nem consequente partilha dos imóveis em causa. A Conservatória do Registo Comercial de Lisboa declarou, simultaneamente, a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade, nos termos do art.11º, n.4 do RJPADLEC, por não ter sido apurada a existência de qualquer ativo ou passivo a liquidar [vd. certidão de fls. 54]. Não deixa, porém, de causar alguma estranheza que, estando em causa bens sujeitos a registo e efetivamente registados em nome da sociedade dissolvida [vd. certidão de fls. 51], aquela conservatória não tenha detetado a existência de tal património[3]. Deste modo, a extinta sociedade continuou a ser a proprietária das frações, cujas quotizações não pagas (pelo menos entre Fevereiro de 2010 e Dezembro de 2013) constituem passivo superveniente, e estiveram na base da presente ação. A subsistência de relações jurídicas, depois de extinta uma sociedade, é, nas palavras de Raúl Ventura, “matéria delicada, tanto no enquadramento dogmático como na escolha de soluções práticas”[4]. 3. A superveniência tanto de passivo como de ativo encontra-se prevista, respetivamente, nos artigos 163º e 164º do CSC. Todavia, estas duas normas pressupõem que tenha existido liquidação. A hipótese do caso sub judice ou seja, a existência de imóveis (património da sociedade) que não foram objeto de liquidação, mas que continuam a gerar passivo (dívidas ao condomínio) não se encontra expressamente prevista nos artigos 163º e 164º. Por outro lado, no RJPADLEC não se encontram normas que prevejam a hipótese de partilha superveniente, a requerimento dos credores, quando uma sociedade é dissolvida por via administrativa, sem uma efetiva fase de liquidação, por ter sido pressuposta a inexistência de passivo ou ativo. O modo de controlar, em cada caso concreto, a incompletude deste procedimento administrativo reconduz-se à impugnação judicial da decisão do conservador, no prazo de 10 dias a contar da notificação da decisão, como previsto no art.12º do RJPADLEC[5]. Todavia, se nenhum interessado reagir dentro desse prazo, subsiste a questão de saber qual é o estatuto do património não partilhado. Trata-se de um problema que não encontra resposta expressa na letra da lei. Todavia, as insuficiências do RJPADLEC não são ignoradas pela doutrina. Tratando a hipótese de existência de sociedades dissolvidas, através daquele procedimento administrativo, com passivo superveniente, mas sem liquidação, afirma Carolina Cunha: “parece-me muito difícil a verificação de um “património zero” numa sociedade que funcionou durante certo período de tempo; só por grande coincidência o activo societário cobrirá exactamente o passivo, sem faltar nem sobeja”[6]. E acrescenta esta autora: “Em todo o caso, o que não é curial é ignorarmos – como o legislador parece ter feito – que este procedimento de extinção imediata se presta a uma utilização fraudulenta, em detrimento dos credores sociais, tanto mais que se dispensa aqui, qualquer prestação de contas nos moldes exigidos pelo art.149.º CSC, além de não ocorrer (pelo menos aberta ou ostensivamente) a partilha de qualquer activo que possa alicerçar, após a extinção da sociedade, uma pretensão dos credores preteridos contra os sócios nos termos do art.163.º CSC”[7]. As preocupações expressas por esta autora (embora não respeitando, em todos os pontos, ao tipo de circunstâncias do caso sub judice) reforçam a conclusão sobre a insuficiência do direito positivado para dar resposta não apenas ao caso concreto, mas também a questões problematicamente conexas, emergentes da extinção administrativa de uma sociedade, cujo passivo ou ativo vem supervenientemente a ser conhecido. 4. O tipo de débito reclamado pelo condomínio não se esgotará num único pagamento, pois, pela sua própria natureza, continuará a formar-se periodicamente. Deste modo, para além de se apurar quem deverá responder pelo pagamento concretamente peticionado, sempre subsistirá a questão tipológica (que justificou a excecionalidade da presente revista) de saber que solução jurídica devem merecer os casos idênticos. Não sendo raros os casos de sociedades dissolvidas administrativamente, sem existência de uma efetiva fase de liquidação, mas relativamente às quais vem a concluir-se pela existência de passivo ou ativo (como a doutrina supra referida já evidenciou), e não se encontrando na letra da lei uma solução que expressamente preveja estas hipóteses, a questão sub judice comporta uma irradiação problemática que vai para além do caso concreto, tornando-se a sua apreciação claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. 5. Serão os antigos sócios responsáveis pelo pagamento das dívidas ao condomínio, nos termos do art.163º do Código das Sociedades Comerciais, como se entendeu na decisão recorrida? Determina o n.1 do art.163º do CSC: “Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada (…)” Sobre o alcance do art.163º, afirma Carolina Cunha: “O fundamento desta espécie de sucessão restrita no débito societário assenta portanto numa ideia de devolução: se os sócios houverem recebido mais do que lhes pertencia porque havia débitos sociais insatisfeitos, terão de ser eles a satisfazê-los, mais tarde, à custa dos bens que lhes haviam sido entregues”[8]. No caso concreto, dado que os antigos sócios nada receberam da extinta sociedade (porque não existiu partilha), demanda-los para que procedam ao pagamento das dívidas ao condomínio, que os imóveis da sociedade geraram (e continuam a gerar), será uma pretensão, muito provavelmente, improcedente. É o que se conclui do entendimento já expresso pela doutrina[9] e pela jurisprudência[10] sobre o alcance do art.163º. Não sendo os ex-sócios diretamente demandáveis pelo pagamento das dívidas ao condomínio, (porque nada receberam da sociedade), há que apurar como pode o património da extinta sociedade responder por aquelas dívidas. 6. Dispõe o art.164º, n.1 que: “Verificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados, compete aos liquidatários propor a partilha adicional pelos antigos sócios, reduzindo os bens a dinheiro, se não for acordada unanimemente a partilha em espécie”. Esta norma, prevendo a existência de ativo superveniente (ou supervenientemente conhecido), pressupõe, porém, que tenha existido partilha. Trata-se, assim, apenas de uma previsão de partilha adicionar, a ser acionada pelos liquidatários. O art.164º do CSC não prevê, deste modo, a hipótese de não ter existido liquidação; tal como não prevê, em tais circunstâncias, a hipótese de os credores da sociedade promoverem a liquidação de bens não partilhados. Por outro lado, no RJPADLEC (a que alude o art.144º do CSC) também não se encontra qualquer norma que expressamente preveja a hipótese de reabertura, a requerimento dos credores da sociedade, de um procedimento encerrado nos termos do seu art.11º, n.4. 7. Conclui-se, assim, face à existência de passivo superveniente (as dívidas que continuam a ser geradas ao condomínio), bem como à existência de património não partilhado (que gera aquele passivo), que nem no art.163º nem no art.164º do CSC se encontra solução para o caso a decidir. Constata-se, pois, nesta matéria, a existência de uma incompletude do sistema normativo positivado (uma lacuna legal). Esta insuficiência legal não deve, porém, constituir um obstáculo ao aplicador do direito para encontrar a solução teleologicamente adequada ao caso concreto. Não podendo o tribunal abster-se de julgar, invocando a falta de lei, como determina o art.8º, n.1 do Código Civil; estabelecendo a Constituição da República Portuguesa, no seu art.20º, n.1, que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e, no seu art.202º, n.2, que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; determinando o art.2º, n.2 do Código de Processo Civil que a todo o direito corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, impõe-se, no caso concreto, suprir a incompletude normativa da letra da lei. 8. Do ponto de vista da correta ordenação da titularidade dos bens, não é admissível que imóveis urbanos, concretamente frações autónomas, não tenham um dono que possa ser responsabilizado pelas dívidas inerentes ao seu específico estatuto imobiliário. Pelo facto de se encontrarem em propriedade horizontal, os imóveis (propriedade da dissolvida sociedade) continuarão, necessariamente, a gerar as dívidas correspondentes às despesas do condomínio (para além de eventuais despesas extraordinárias respeitantes às partes comuns). Não podendo a entidade titular desses bens ser judicialmente demandada, por não ter personalidade judiciária (já que se encontra extinta), tais bens ficariam assim “isentos” de poderem responder pelas próprias dívidas que continuam a gerar. Sem serem objeto de liquidação e partilha, aquelas frações ficariam numa sui generis situação de quase “património de ninguém”, próximo de uma res nullius. 9. Tornando-se necessário proceder à liquidação da sociedade e consequente partilha do seu património, importa não apenas construir o percurso metodológico da pertinente solução de direito substantivo, mas também justificar a via processual que conduzirá à sua realização prática. Demonstrada a existência de uma lacuna legal[11] (nos termos supra referidos), cabe indagar, no quadro metodológico do art.10º do CC, se na previsão normativa do art.165º do CSC se encontra uma solução teleologicamente adaptável à necessidade de solução do caso decidendo. O art.165º, n.1 do CSC prevê a hipótese de o contrato de sociedade ser declarado nulo ou anulado e impõe aos sócios a obrigação de procederem à liquidação do ente societário que, assim, fica sem personalidade jurídica e judiciária. Esta obrigação de liquidação, a cargo dos sócios, é, em certa medida, equivalente à obrigação que o art.146º do CSC impõe aos sócios de procederem à liquidação quando a sociedade é dissolvida. Todavia, caso a sociedade seja dissolvida, sem que os sócios procedam à respetiva liquidação, o art.146º não prevê expressamente a possibilidade de os credores requererem a liquidação judicial[12]. Esta possibilidade é, porém, prevista pelo n.2 do art.165º do CSC (caso o contrato de sociedade seja declarado nulo ou anulado). Dispõe esta norma: “Nos casos previstos o número anterior qualquer sócio, credor da sociedade ou credor de sócio de responsabilidade ilimitada pode requerer a liquidação judicial, antes de ter sido iniciada a liquidação pelos sócios, ou a continuação judicial da liquidação iniciada, se esta não tiver terminado no prazo legal”. 10. Existirá alguma razão para que aos credores de uma sociedade nula ou anulada seja conferido o direito de requerer a liquidação judicial dessa sociedade e idêntico direito não ser conferido aos credores de uma sociedade dissolvida? Vejamos qual a finalidade da fase da liquidação, tanto após a dissolução da sociedade como após a declaração de nulidade ou anulação do contrato de sociedade. Nas palavras de Raúl Ventura: “a fase da liquidação e o respetivo processo não são exclusivos da dissolução da sociedade, ou, por outras palavras, a dissolução da sociedade não é necessariamente o único facto que justifica o seguimento de uma fase de liquidação. A liquidação pretende atingir determinados fins: assegurar a satisfação dos credores antes de o ativo social ser partilhado pelos sócios; preparar a partilha pela redução do ativo a bens o mais possível partilháveis em condições de igualdade para os sócios. Sempre que tais fins existam, a liquidação deve ser ordenada pelo legislador e esse é o caso das sociedades nulas ou anuladas”[13]. Não seria razoável pressupor que o legislador tivesse querido trata de forma diferente credores da sociedade que apresentam interesses essencialmente idênticos, no que respeita à promoção da fase da liquidação. Ao prever que a liquidação seja promovida oficiosamente pelo serviço de registo competente (art.146º, n.6 do CSC), quando a dissolução da sociedade ocorre por via oficiosa, o legislador terá, certamente, pressuposto que por essa via (mais expedita do que a via judicial[14]) se encontrariam as soluções adequadas à satisfação dos legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida. Concluindo-se que a via administrativa (o RJPADLEC) não permite acautelar cabalmente legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida, não pode o aplicador do direito resignar-se à conclusão de que o sistema não confere legitimidade aos credores para promoverem a partilha por via judicial[15]. Constatando-se a abertura do sistema à via judicial, feita pelo n.2 do art.165º do CSC, deverá concluir-se que essa via se manterá igualmente aberta quando esteja em causa a reclamada tutela de interesses materialmente idênticos, como se verifica no caso concreto. A identidade problemático-valorativa entre a hipótese prevista no art.165º, n.2 do CSC e a questão decidenda autoriza, no quadro do art.10º do CC, a analogia legis ou “judicativo-decisória” (nas palavras de António Castanheira Neves[16]) que permite eleger esse dispositivo legal como critério de realização material do direito do caso concreto. Efetivamente, as hipóteses previstas no art.165ºdo CSC (respeitantes ao destino dos bens das sociedades inválidas) e a hipótese do caso sub judice (insuficiência normativa do procedimento administrativo de dissolução) respeitam a problemas valorativamente equiparáveis, pelo que se justifica a convocação da solução jurídica que conduza aos mesmos efeitos práticos[17]. 11. Admitindo-se, deste modo, o acesso dos credores à via judicial para promoverem a liquidação da extinta sociedade, algumas questões processuais, complementarmente, se levantam: saber qual o processo próprio; e se a ação pode correr no juízo de comércio[18]. O vigente Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.41/2013) não contém previsão legal equivalente ao anterior art.1122º (do CPC de 1995)[19]. Todavia, o facto de ter desaparecido o processo especial de liquidação judicial de sociedades não significa que, face ao peticionado pela Autora, a liquidação não possa continuar a ocorrer por via judicial, aplicando-se o processo comum (art.546º, n.2 do CPC) e observando-se a pertinente adequação formal, como resulta do art.547º do CPC[20]. Quanto à competência do juízo de comércio para conhecer desta ação, ela é expressamente prevista pelo art.128º da Lei n.62/2013 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), o qual estabelece, no seu n.1. Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: e) As ações de liquidação judicial de sociedades.
12. Por outro lado, importa ainda considerar a questão da legitimidade dos sujeitos para aquela ação. Quanto à legitimidade ativa, nos termos do art.165º, n.2, ela pertence a quem tiver a qualidade de credor da sociedade. Ora, como resulta da factualidade provada, o Autor-Condomínio é credor dos montantes correspondentes às quotizações não pagas, entre 2010 e 2013 (aprovados em assembleia de condóminos), respeitantes às frações de que a extinta sociedade é proprietária[21]. Por outro lado, tratando-se de uma ação que se inscreve nos poderes do administrador[22], o condomínio goza da extensão da personalidade judiciária prevista no art.12º, al. e) do CPC.
Quanto à legitimidade passiva dos RR, dado que a sociedade devedora se encontra extinta e, portanto, destituída de personalidade judiciária, a ação destinada à liquidação e partilha do património da sociedade não poderia ser proposta contra esta dissolvida entidade. Encontra-se prevista, no art.162º do CSC, a legitimidade sucedânea dos sócios para assumirem a posição processual da sociedade quando esta seja extinta na pendência de uma ação. Por outro lado, ao admitir que os credores da sociedade possam requerer a liquidação de um ente que foi declarado nulo ou anulado, nos termos do art.165º, n.2, o legislador pressupôs, certamente, que essa ação seria contra os sócios (e não contra um ente carecido de capacidade judiciária). Do mesmo modo, convocando-se a aplicação analógica deste do art.165º, n.2 do CSC (nos termos supra justificados), na hipótese de dissolução de uma sociedade sem fase de liquidação, também a legitimidade passiva deverá caber aos sócios da dissolvida sociedade. Acresce que o processo de liquidação e partilha do património da sociedade afeta interesses dos sócios, pois serão eles os destinatários do património sobejante após a partilha. Conclui-se, assim, que no caso sub judice não existia fundamento para a absolvição da instância, com base em ilegitimidade dos RR. 13. Em síntese, conclui-se que na decisão recorrida existiu errada interpretação e aplicação da lei. Assim, não foi, nomeadamente, feita correta interpretação e aplicação do artigo 163º do CSC (pois não tendo existido liquidação e partilha não é possível exigir aos sócios o pagamento de passivo superveniente); nem do art.165º, n.2 do mesmo diploma (pois a ordem jurídica tem de reconhecer aos credores de uma sociedade extinta sem liquidação, mas com património, o direito de se fazerem pagar pelo património não liquidado). Conclui-se, assim, que não existe uma “impossibilidade originária da lide”, contrariamente ao que se entendeu no acórdão recorrido, o qual confirmou a decisão da primeira instância que, com tal fundamento, absolveu os RR da instância.
III. DECISÃO Nos termos expostos, julga-se a revista procedente, revogando-se o Acórdão recorrido, devendo a ação prosseguir em primeira instância nos termos peticionados, ressalvada a hipótese de se verificar alguma razão superveniente ou ainda não apreciada que a tal obste.
Custas: na apelação e na revista, a cargo dos Recorridos.
Lisboa, 18 de janeiro de 2018
___________________ Maria Olinda Garcia (Relatora)
__________________ Salreta Pereira
__________________ João Camilo _______________________ |