Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A3417
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LOPES PINTO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
RESPOSTAS AOS QUESITOS
ALTERAÇÃO
Nº do Documento: SJ200511080034171
Data do Acordão: 11/08/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 5391/05
Data: 03/01/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - Onerado com a prova sobre a data da constituição do seu crédito e sua anterioridade em relação ao acto impugnado é o autor.
II - Estando-se no domínio das relações imediatas (sacador-sacado) e pretendendo o autor provar através da data que apôs como emissão da letra, e que quesitada mereceu a resposta de non liquet, a anterioridade do seu crédito não é possível, sob a invocação da característica da literalidade da letra, alterá-la para «provado».
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"A", Lª., propôs contra B e mulher C e D acção onde, impugnando a doação pelos 1º réus à 2ª do prédio identificado no art. 9 da petição inicial, pede se reconheça o direito à restituição do bem até ao montante do seu crédito de € 13.791,1 (= 2.764.868$00) a que acrescem juros de mora - e em cujo pagamento requer se condene os 1º réus, bem como o direito de o executar no património dos réus e de praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.
Os réus, em contestação conjunta, excepcionaram o preenchimento abusivo da letra e impugnaram, concluindo pela sua absolvição do pedido.
Prosseguindo, procedeu, a final, a acção por sentença que a Relação confirmou.
De novo inconformados, pediram revista concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações -
- à autora incumbia a prova da anterioridade do seu crédito, o que não logrou;
- o seu crédito sobre os 1º réus é, como resulta das respostas aos ques. 7 e 8, posterior ao acto que se pretende impugnar, pelo que
- devia ter alegado, o que não fez, que o acto foi realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
- há clara contradição entre os factos provados e a sentença proferida;
- violado o disposto nos arts. 9, 342, 344 e 346 CC; 17 da LULL; 513, 515, 516 e 668 CPC.
Sem contraalegações.
Colhidos os vistos.

Matéria de facto que as instâncias deram como provada -
a) - a autora é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto social o comércio de peles e componentes para calçado;
b) - a autora é portadora de uma letra de câmbio no valor de 2.764.868$00 (€ 13.791), com data de vencimento em 01.05.31;
c) - tal letra foi aceite pelos réus B e C;
d) - por escritura pública outorgada em 00.01.20, no Cartório Notarial do Concelho de S. João da Madeira, os 1° réus doaram à 2ª ré por conta da quota disponível e com reserva do direito à habitação o prédio urbano composto de cave ampla, de rés do chão para comércio e primeiro andar destinado à habitação, com a área coberta de 180 m² e descoberta de 720 m², sito no lugar da Costa, freguesia de Cucujães, Concelho de Oliveira de Azeméis, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Cucujães, sob o art. 2725 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis, sob o nº 2721 da freguesia de Cucujães;
e) - os réus B e C são os únicos sócios e gerentes da sociedade "E", Lª";
f) - o réu B mandou o seu funcionário F preparar a letra que se mostra junta aos autos a fls. 4;
g) - esta letra foi preenchida pelos réus apenas quanto ao montante em algarismos com o valor de 2.764.868$0, quanto à data de vencimento com 2001-5-31, tendo os restantes elementos sido preenchidos pela autora;
h) - os réus aceitaram a letra junta aos autos em substituição de cheques emitidos pela sociedade "E", Lª";
i) - a letra de câmbio referida nas als. b) e c) destinou-se ao pagamento de fornecimentos de artigos de comércio da autora;
j) - a autora visando o pagamento da quantia titulada pela letra referida na al. b), entrou em contacto várias vezes com os réus, tendo--lhes enviado ainda a carta que consta de fls. 5 e 6 dos autos;
l) - nas circunstâncias em que efectuaram a doação mencionada na al. d) os 1º réus ficaram quase sem património;
m) - ficaram desprovidos de quaisquer bens susceptíveis de apreensão que não estivessem já apreendidos;
n) - a autora efectuou a "E", Lª", vários fornecimentos de artigos do seu comércio;
o) - a sociedade "E," Lª" por lhe terem faltado alguns clientes deixou de poder efectuar o pagamento de vários cheques, relativos a esses fornecimentos, entre os quais o cheque nº
6638224973 sobre o BNU na quantia de 573.365$00, emitido em 00.02.15;
p) - o então o gerente da autora exigiu do réu B, em substituição daqueles cheques em circulação, a emissão da letra de câmbio junta aos autos;
q) - altura em que tiveram lugar os factos mencionados na al. f);
r) - a data de 2000.01.10 que consta da letra como data da sua emissão foi efectuada pela autora;
s) - a ré C assinou a letra de câmbio junta aos autos como já o havia feito relativamente a documentos da sociedade "E", Lª";
t) - a sociedade "E", Lª" vinha fazendo pagamentos à autora de fornecimentos que esta lhe fazia e iam sendo creditados à mesma sociedade em sistema gráfico de conta corrente.

Decidindo:

1.- «Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição» (CPC 490, n. 1).
O tribunal «só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo de ...» (CPC 664).
Contestando, os réus alegaram que a sociedade, da qual os 1º eram os únicos gerentes, ‘em determinada altura por lhe terem faltado alguns clientes deixou de poder efectuar o pagamento de alguns cheques emitidos pela sociedade a favor da A.’, ‘nomeadamente o cheque ... emitido 15.02.2000’ e que ‘em Janeiro de 2001 o gerente da A. exigiu do 1º réu ... em substituição dos cheques em circulação dos cheques em circulação a emissão de uma letra’ (cont- 10 a 12).
Esta a letra que ‘o 1º réu ... mandou o seu funcionário ... preparar ... junta aos autos’ e que ‘foi entregue à A. em substituição dos cheques em Janeiro de 2001’ (cont- 13 e 16).
A posição tomada pelos réus é clara - a letra foi emitida em substituição dos cheques em circulação em Janeiro de 2001 e nesse mês entregue à autora.
Não é possível interpretar a defesa dos réus como tendo a letra sido emitida e entregue antes de Janeiro de 2001, o que motivou alegando um facto, a seu ver, comprovativo - a emissão de um cheque a favor da autora em 00.02.15, cheque esse cujo valor veio a ser incluído na letra em causa.

2.- Percorrendo a petição inicial, observa-se que a autora não indica a data da emissão mas tão só a do vencimento (art. 2) e alegou ser a dívida anterior à doação que paulianamente impugna (art. 17), o que, apenas por remessa para a letra junta (alegação por documentos, o que é admissível), se poderia, prima facie, observar.
Alegação em que a autora se escuda apenas na literalidade e, além disso, cautelosa já que, através do por si alegado nos arts. 6, 8 e 10, permitia questionar da conformidade como o realmente sucedido.
Replicando, a autora contradiz-se ao expressamente afirmar ter a letra sido aceite para pagamento dos cheques emitidos pela sociedade, letra que o 1º réu (por lapso, escreveu ‘o A.’) mandou o seu funcionário preparar (arts. 1, 2 e 4) e foi preenchida pela autora salvo, como os réus alegavam, quanto ao seu valor e à data do vencimento (art. 5) - se foi aceite para pagamento dos cheques em circulação, nomeadamente o de 00.02.15, em Janeiro de 2001, a data da emissão não poderia ser a de 00.01.10 que a autora, na réplica, disse ser a ‘da entrega da mesma’ (art. 5 in fine).
Ainda quando respondeu ao despacho a convidá-la a esclarecer o art. 17 da petição, talvez por não se ter apercebido da contradição em que caíra na réplica, confirmou o que alegara no art. 3 daquele articulado - ‘destinou-se ao pagamento de fornecimentos de artigos do comércio da A.’ - e a que os réus se arrimaram para evidenciar que a data aposta na letra, como a de emissão, era necessariamente outra e posterior à da doação que aquela impugnava.
Aliás, a autora, na sua petição inicial, não definiu a relação causal - fica indeterminado a quem forneceu os artigos do seu comércio e a expressão ‘destinou-se ao pagamento de fornecimentos’ apenas ganhou sentido quando, confrontada pela contestação, se viu compelida a, em ordem à descoberta da verdade material, completar, na réplica, que os fornecimentos foram efectuados à sociedade de que os 1º réus eram os únicos sócios, e para cuja liquidação, aquela tinha escolhido recorrer aos cheques como meio de pagamento, cheques esses que andavam em circulação e não eram pagos. A relação subjacente consistiu em os seus sócios terem assumido a responsabilidade pelo pagamento à autora aceitando uma letra pelo valor dos mesmos (sem se discutir se com isso esta liberava ou não a sociedade), isto é, em os 1º réus assumirem a responsabilidade pelo pagamento.
Ao definir a relação subjacente, ficou-lhe dificultada a alegação e consequente prova da anterioridade do seu crédito e, não podendo cingir-se à relação cartular, entrou em contradição.

3.- Com o ques. 5 procurava o tribunal indagar se «os 1º réus aceitaram e entregaram à autora a letra de câmbio, mencionada em b) e c), em 10-01-2000» (fls. 56).
A resposta foi «não provado» (fls. 117).
Onerado com a prova sobre a data da constituição do seu crédito e sua anterioridade em relação ao acto impugnado estava a autora (CC 610 a) e 611).
Não é possível, numa circunstância como a presente, sob a invocação da característica da literalidade da letra, alterar a resposta de non liquet para «provado».
Isso não só equivaleria a afastar a possibilidade da descoberta da verdade material em ponto onde tal á possível como subverteria as regras sob repartição do ónus da prova. A característica da literalidade, com efeito, não implica a inversão do ónus da prova; acresce que essa característica funciona em termos que não aproveitam, na sua extensão e força que ela queria, à autora por se estar no domínio das relações imediatas (sacador-sacado).
Não só o non liquet mas ainda, como se viu, o que ressalta da posição das partes nos articulados e do facto confessado pela autora (ter sido ela quem preencheu os elementos da letra, excepto o do seu valor e da data de vencimento), revelam não corresponder a data aposta como a do aceite da letra à realidade e que a mesma foi aceite e foi-lhe entregue em data posterior ao da doação impugnada.

4.- «Os actos que envolvam diminuição da garantia pessoal ... podem ser impugnados pelo credor, se ... a) .... sendo (o crédito) posterior (ao acto), ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor» (CC 610 a)).
Cumpria à autora alegar, para poder vir a provar, ter o acto sido realizado dolosamente com o assinalado fim.
Não satisfez, desde logo, o primeiro ónus - o de alegar factos nesse sentido.
A impugnação pauliana tem de improceder.
Não se trata de nulidade por ‘clara contradição entre os factos dados como provados e a sentença proferida’ (fls. 201), mas de erro de julgamento.

5.- A improcedência da impugnação pauliana não afecta a condenação dos 1º réus no pagamento do crédito da autora nos exactos termos em que foi proferida.
Apesar de terem impugnado serem devedores à autora (cont- 21 e 23), não é objecto do recurso essa condenação (nem o poderia ser, já que não foi objecto da apelação dos réus).
Pretender a absolvição ‘dos vários pedidos contra si formulados’ (fls. 201) nada mais é que simples pretensão, nada tendo sido alegado e, porque tal, concluído nesse sentido.
Razão, portanto, para se não conhecer do que vai além do objecto da revista.

Termos em que se concede a revista e se revoga o acórdão recorrido apenas no tocante à impugnação pauliana (als. c) e d) da sentença, a fls. 125 e vº, acolhidas a fls. 165 e 172 pelo acórdão).
Custas, na revista, pela autora e, nas instâncias, em partes iguais, pela autora e pelos 1º réus.

Lisboa, 8 de Novembro de 2005
Lopes Pinto,
Pinto Monteiro,
Lemos Triunfante.