Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1274/15.8T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: AÇÃO DE PREFERÊNCIA
VENDA SUJEITA A REGIME ESPECIAL
INSTITUIÇÕES PARTICULARES DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
COMUNICAÇÃO DOS ELEMENTOS ESSENCIAIS
CONHECIMENTO DOS ELEMENTOS ESSENCIAIS
REGRAS DA BOA FÉ
ABUSO DE DIREITO
CADUCIDADE DO EXERCÍCIO DO DIREITO
LEGITIMIDADE PARA A INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
LIMITES À MODIFICAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA
CASO JULGADO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / PACTOS DE PREFERÊNCIA.
Doutrina:
- Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, Tomo I, 2.ª ed., p. 42.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 631.º, N.º 1, 635.º, N.º 5 E 636.º, N.º 1.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 416.º, N.ºS 1 E 2.
DL N.º 119/83, DE 25 DE FEVEREIRO: - ARTIGO 23.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 28-07-1983, PROCESSO N.º 0709029, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-12-2013, PROCESSO N.º 1801/10;
- DE 16-06-2016, PROCESSO N.º 623/05, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-09-2016, PROCESSO N.º 106/11;
- DE 18-10-2018, PROCESSO N.º 3131/16, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-10-2018, PROCESSO N.º 74300/16.
Sumário :

I. A legitimidade para a interposição de recurso depende unicamente da qualidade de parte principal e do decaimento na ação em face da decisão proferida (art. 631º, nº 1, do CPC); assim, embora na ação de preferência a decisão favorável ao autor tenha como efeito principal o de substituição do comprador, também o vendedor demandado tem legitimidade para interpor recurso da sentença.

II. Nos termos do art. 636º, nº 1, do CPC, constitui ónus do recorrido ampliar o objeto do recurso nas contra-alegações, invocando fundamentos que, tendo sido resolvidos a seu desfavor na decisão recorrida, possam determinar, por outra via concorrente, a procedência da ação ou da defesa.

III. Na sentença proferida no âmbito de ação para exercício do direito de preferência na qual, depois de se reconhecer ao autor o direito de preferência, foi julgada procedente a exceção de caducidade de tal direito, uma vez interposto recurso de apelação pelo autor, o réu tem o ónus de ampliar o objeto do recurso se acaso pretender impugnar o reconhecimento daquele direito, assegurando, ainda que por outra via, a improcedência da ação.

IV. O facto de o recorrido não ter ampliado o objeto do recurso impedia a Relação de modificar a sentença na parte respeitante ao reconhecimento do direito de preferência, apesar de se tratar de uma questão de direito, atento o disposto no art. 635º, nº 5, do CPC. 

V. Em face da redação do art. 1091º do CC anterior à Lei nº 64/18, de 26-10, as regras respeitantes quer à comunicação para exercício do direito de preferência, quer à atuação dos preferentes antes da formalização da venda, nos termos do art. 416º, nºs 1 e 2, do CC, devem compatibilizar-se com eventuais regimes específicos previstos para a alienação de bens.

VI. Decorre do art. 23º do DL nº 119/83, de 25-2, a respeito da venda de bens imóveis propriedade de instituições particulares de solidariedade social (IPSS), que deve ser “feita em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente”, prescrevendo-se que o seja por negociação direta apenas para “quando seja previsível que daí decorram vantagens para a instituição ou por motivo de urgência, fundamentado em ata”.

VII. Deliberada pela IPSS a realização da venda de um imóvel através de “hasta pública”, as exigências atinentes à comunicação do projeto de venda para efeitos do exercício do direito de preferência, nos termos do art. 416º, nº 1, do CC, deverão compatibilizar-se com essa modalidade de venda, sem necessidade de recurso subsidiário a normas do CPC que regulam a venda executiva ou a outros diplomas a que obedece a venda de bens do Estado ou de Institutos Públicos.

VIII. Tanto na apreciação do modo como o transmitente cumpriu a obrigação de comunicação dos elementos essenciais da venda como na apreciação da reação dos preferentes perante os elementos que lhe foram comunicados devem ser privilegiados os elementos de ordem material, em conjugação com as regras da boa fé, de proteção das expetativas legitimamente adquiridas e até de convivência social.

IX. Num caso ocorrido em 2014 (antes da alteração do art. 1091º do CC decorrente da Lei nº 64/18, de 26-10), em que:

a) Foi deliberada a venda de imóvel que era propriedade de uma instituição de Misericórdia (IPSS) na modalidade de “hasta pública”, com editais que continham os elementos essenciais da venda que foram afixados, além do mais, na porta do prédio que iria ser vendido e no qual se localizava o estabelecimento comercial arrendado;

b) Em diversos momentos, os cônjuges arrendatários tiveram conhecimento da intenção de venda projetada pela proprietária, prestando-se, inclusive, um deles a ficar com as chaves do prédio e com o processo documental de venda para consulta por eventuais interessados, constando desse processo designadamente o preço-base da venda (€ 140.000,00), a indicação de que se realizaria através de “hasta pública” e a menção do respetivo local e data;

c) Esse cônjuge arrendatário também teve conhecimento da intenção de compra que lhe foi manifestada pela adquirente, a quem entregou as chaves do prédio aquando das visitas feitas antes da realização da “hasta pública”;

d) A “hasta pública” foi realizada na data anunciada (25-7-2014) e nela foi adjudicado à adquirente o prédio pelo valor de € 142.000,00 nas condições que haviam sido publicitadas;

e) Logo de seguida, em 29-7-2014, a proprietária do prédio comunicou a esse mesmo cônjuge arrendatário que aceitara a proposta de compra que a adquirente lhe apresentou, no referido valor de € 142.000,00, informação que, no início do mês de Agosto, foi confirmada pela mesma adquirente;

f) Em nenhum momento deste processo qualquer dos cônjuges manifestou perante a proprietária do prédio ou perante a adquirente qualquer interesse na aquisição do prédio ou no exercício do direito de preferência, vindo a escritura pública de compra e venda a ser outorgada em 10-11-2014, nos termos que haviam sido anunciados e que ficaram estabilizados na “hasta pública”;

Todos estes elementos, conjugados com a específica modalidade de venda e integrados pelas regras da boa fé, permitem concluir que foi cumprida a obrigação de comunicação prevista no art. 416º, nº 1, do CC, para efeitos do decurso do prazo de 8 dias que consta do nº 2, e que, por via da caducidade, se encontrava extinto o direito de preferência quando, em Maio de 2015, foi proposta a ação.

X. Ainda que não existam elementos que permitam concluir que o comportamento dos arrendatários, quer antes, quer depois da realização da “hasta pública” que precedeu a celebração da escritura de compra e venda, traduziu a renúncia ao exercício do direito de preferência, deve considerar-se que, nas circunstâncias do caso, o exercício deste direito constitui manifestação de abuso de direito por violação manifesta das regras da boa fé.

XI. Litigam de má fé os Autores que na ação para exercício do direito de preferência, além de omitirem factos relacionados com a comunicação dos elementos essenciais da venda, negaram ou alegaram não se recordar de factos que foram invocados pelas RR. relacionados com o processo que precedeu a realização da escritura de compra e venda e que, sendo de natureza pessoal, vieram a provar-se.

Decisão Texto Integral:

I - AA e BB, casados entre si, instauraram ação declarativa, sob a forma do processo comum, contra:

1ª - CCe

2ª - DD, Ldª,

pedindo o reconhecimento do seu direito legal de preferência na aquisição por parte da 2ª R. à 1ª R. do prédio urbano sito na R. ........, freguesia e concelho de Olhão, substituindo-se à 2ª R. compradora, sendo esta condenada a proceder à respetiva entrega.

Alegaram que, na constância do casamento dos AA., celebrado em 3-9-77, sem convenção antenupcial, o A. marido outorgou contrato de trespasse do estabelecimento comercial de papelaria instalado no r/c do identificado prédio que era propriedade da 1ª R., negócio por via do qual lhe foi transmitida a posição de arrendatário dessa parte do imóvel.

Os AA. tomaram conhecimento, em 17-11-14, na sequência de receção de uma carta que lhes foi enviada pela 2ª R., que esta havia adquirido o prédio onde o locado se integra, sendo certo que nenhuma das RR. deu a conhecer aos AA., por qualquer forma, a venda projetada - preço, data, hora e local da outorga da escritura ou outro título de formalização, identificação do comprador, termos e condições do pagamento -, elementos de que apenas vieram a ter conhecimento aquando da obtenção da certidão da escritura pública de compra e venda, em 13-4-15.

Mais alegaram ter recebido da 2ª R., em 30-3-15, uma carta a comunicar a denúncia do contrato de arrendamento e a solicitar a entrega da parte arrendada até ao dia 5-10-15.

A 1ª R. invocou a exceção da caducidade do direito dos AA., alegando ter-lhes dado a conhecer a intenção de venda e os elementos da mesma, em Abril de 2014, tendo-lhes ainda comunicado, já após a realização da hasta pública que foi amplamente publicitada, que o prédio havia sido vendido à 2ª R., com revelação de todos os elementos, nomeadamente do preço final da adjudicação.

Tal comunicação teve lugar no dia 29-7-14 e os AA. nada disseram, sendo certo que a escritura pública de formalização do negócio só veio a ser celebrada em 10-11-14, nas condições há muito conhecidas dos demandantes.

Por isso considera que caducou o direito de preferência que pretendem exercer, quer por nada terem dito no prazo de resposta, quer por terem instaurado a ação para lá do prazo de 6 meses após terem tido conhecimento dos elementos essenciais da venda.

Também a R. DD, Ldª, invocou a exceção da caducidade do direito dos AA., considerando a modalidade de venda, sujeita ao regime constante do DL nº 280/07, de 7-8, tendo ainda invocado a exceção de renúncia ao exercício de direito de preferência e o abuso de direito, para além da falta de depósito do preço dentro do prazo legal.

Deduziu esta 2ª R. contra os AA. pedido reconvencional de condenação no pagamento da quantia de € 85.734,25 ou, sendo a ação julgada improcedente, no montante de € 220.754,75, a título de reparação dos lucros cessantes.

Os AA. responderam à matéria das exceções, alegando que a pretensa comunicação da arrematação não significou a convocação para exercer o direito de preferência legal, nem deu a conhecer todas as cláusulas do negócio, conforme exigido por lei, para habilitar ao exercício do direito.

Ademais alegaram que nas atribuições da 1ª R. CCnão se inclui a possibilidade de promover vendas em hasta pública, termo impropriamente utilizado, não tendo aplicação o DL nº 280/07, de 7-8, citado pela 2ª R. De todo o modo, a entender-se diversamente, a venda seria nula por inobservância das formalidades ali prescritas.

Acrescentaram que o prazo de caducidade previsto no art. 1410º do CC se conta a partir da alienação, coincidindo com a data da celebração da escritura pública que formalizou o negócio, de modo que a ação foi tempestivamente instaurada. Concluíram ainda pela improcedência da reconvenção.

No despacho saneador foi julgada improcedente a exceção perentória de falta de depósito do preço. As demais exceções foram relegadas para a decisão final.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual, depois de se reconhecer que os AA. eram titulares do direito de preferência, foi julgada procedente a exceção da caducidade desse direito, absolvendo as RR. dos pedidos, e declarou prejudicado o conhecimento do primeiro pedido reconvencional e improcedente o segundo. Condenou os AA. como litigantes de má-fé no pagamento de uma multa no valor de 5 UCs e indemnização a favor da 2ª R., a fixar após audição das partes.

Os AA. apelaram e a 2ª R. apelou subordinadamente na parte em que foi julgado improcedente o pedido reconvencional

A Relação proferiu acórdão em que julgou:

a) Procedente o recurso principal interposto pelos AA., reconhecendo-lhes a persistência do direito a preferirem na venda que a R. CC fez à R. DD, Ldª, tendo por objeto o prédio urbano sito na Rua ...., nº ...... em Olhão, inscrito na matriz sob o art. 2864 e descrito na CRP de Olhão com o nº 0000, substituindo-se à compradora que foi condenada a proceder à respetiva entrega, e absolveu os AA. da condenação como litigantes de má-fé;

b) Improcedente o recurso subordinado interposto pela R DD, Ldª, julgando improcedente o pedido reconvencional formulado em 1º lugar.

Ambas as RR. interpuseram recurso de revista.

No recurso de revista interposto pela 2ª R. DD, Ldª, são suscitadas as seguintes questões:

a) Apreciação da legalidade da modificação da decisão da matéria de facto quanto aos pontos 26. e 27. (da sentença), por não ter sido atendido o depoimento de uma testemunha, devendo manter-se a redação do ponto 26. que foi fixada pela 1ª instância;

b) Inexistência do direito de preferência pelo facto de o arrendamento comercial incidir sobre parte não autónoma de prédio urbano, o que foi clarificado pela recente Lei nº 64/18, de 29-10, que alterou o art. 1091º do CC;

c) Tal questão constitui matéria de direito, de modo que o facto de estar provada a qualidade de arrendatários não conduz a que lhes seja reconhecido o direito de preferência, questão que deveria ter sido apreciada pela Relação e que está ao alcance do Supremo;

d) A falta de comunicação aos AA. para exercerem o direito de preferência mostra-se irrelevante, já que os AA. nem sequer invocaram esse facto na petição, nem foi pela falta de comunicação que deixaram de comparecer na hasta pública que foi realizada, de modo que não poderiam os AA. suscitar essa questão depois do julgamento, impossibilitando uma tomada de posição da recorrente nos articulados e inviabilizando a produção de prova designadamente para efeitos de integração do abuso de direito;

e) De todo o modo a comunicação do projeto de venda e condições foi feita aos AA. pela 1ª R., mediante a entrega de cópia do edital e das condições de venda separadamente a cada um dos AA.;

f) As omissões apontadas a este respeito pela Relação são totalmente irrelevantes, já que os próprios AA. alegaram que estavam convencidos de que nada sucederia ao seu contrato de arrendamento, apesar da anunciada venda;

g) Os AA. souberam da intenção de venda em Abril de 2014 e das condições de venda que, atenta a  modalidade, impossibilitavam a prévia indicação do comprador e do preço final, e apenas vieram reagir em Maio de 2015 com a instauração da presente ação;

h) Mesmo depois de saberem o preço da compra e venda e a identidade do comprador que lhes foi comunicada pelas RR., os AA. não manifestaram nenhuma reação e continuaram a pagar as rendas, o que revela que nem o preço nem a identidade do comprador era relevante para si e que os AA. não queriam comprar o prédio ou preferir na compra;

i) Não faz sentido separar o que era do conhecimento de cada um dos AA. que são casados entre e si e vivem na mesma casa;

j) Os AA. não estavam interessados em adquirir o prédio pelo preço mínimo, pelo que também se pode afirmar que não estavam interessado na aquisição por preço superior que veio a se obtido na venda efetuada;

k) A identificação da adquirente foi indiferente para os AA., tanto mais que a A. felicitou a 2ª R. e passou a pagar-lhe a renda, sendo que a identificação do terceiro só terá de ser feita se tal contribuir para a formação da vontade do preferente;

l) A 1ª R. comunicou a cada um dos AA. quer o projeto de venda quer as cláusulas do contrato, entregando-lhes o processo de venda do prédio em causa para que o disponibilizassem a eventuais interessados na compra, como sucedeu com a 2ª R.;

m) O edital a anunciar o ato de venda foi afixado pelo menos 10 dias antes da sua realização, o que permitia aos AA. exercer a preferência em prazo superior aos 8 dias previstos no art. 416º do CC;

n) Os AA. nunca comunicaram que tinham a intenção de preferir na venda, o que deveriam ter feito até ao encerramento da hasta pública, pelo que caducou o direito de preferência;

o) É desajustado entender que a venda dos autos devesse obedecer às disposições legais sobre a venda judicial;

p) De todo o modo a 1ª R. entregou aos AA. a documentação relativa à venda do prédio, o que satisfaz a exigência do art. 819º do CPC sobre a notificação dos preferentes; além disso, os AA. não invocaram na petição nulidade por falta de notificação para a preferência;

q) Os AA. apenas não preferiram porque não quiseram, e não por ter existido qualquer falta ligada à comunicação do projeto de venda ou de outros elementos do negócio, devendo considerar-se caducado o direito de preferência por não ter sido exercido no ato de venda que foi realizado;

r) A interposição da presente ação no contexto que rodeou a venda do imóvel e a atuação dos AA. constitui manifestação de abuso de direito;

s) Condenação dos AA. como litigantes de má fé.

Pelos AA. foram apresentadas contra-alegações onde referiram que não pode ser suscitada a questão da inexistência do direito de preferência, o qual foi reconhecido na sentença da 1ª instância, sem que tenha sido objeto de impugnação, nem sequer através da ampliação do objeto do recurso de apelação

No recurso de revista interposto pela 1ª R. Santa Casa de ...... são suscitadas as seguintes questões:

A) O A. manifestou no seu depoimento que teve conhecimento da intenção da venda do imóvel e das respetivas condições e que não tinha interesse em adquirir o prédio;

B) Ambos os AA. estavam cientes da venda, do respetivo procedimento e das condições desde a data em que o processo lhes foi entregue pela 1ª R.;

C) Para a comunicação da venda não se exige qualquer formalidade especial, sendo relevante que o preferente tenha conhecimento dos elementos essenciais para decidir se exerce o direito de preferência, o que ocorreu no caso concreto;

D) Competia aos AA. comparecer no ato de venda para exercerem o direito de preferência;

E) Além disso, a A. teve conhecimento em 29-7-14 do preço de licitação do imóvel e da identidade da licitante os AA., podendo exercer a preferência no prazo de 8 dias, nos termos do art. 416º do CC;

F) A escritura pública de compra e venda realizada em Novembro de 2014 foi apenas a formalização do negócio que já se tinha concretizado com a arrematação e cujas condições estavam no edital que publicitara o ato de venda, de modo que quando foi proposta a ação, em 7-5-15, já caducara o direito de preferência;

G) Os AA. não são afinal titulares do direito de preferência por serem arrendatários de uma parte não autónoma do prédio.

Pelos AA. foram apresentadas contra-alegações em que foi invocada, além do mais, a ilegitimidade da 1ª R., uma vez que a procedência da ação lhe é objetivamente indiferente. Alegam ainda que não pode ser suscitada a questão nova da inexistência do direito de preferência

II – Quanto à legitimidade da 1ª R.:

Suscitaram os AA. nas contra-alegações a ilegitimidade da 1ª R. para a interposição do seu recurso de revista, considerando que a declaração de procedência da ação de preferência decretada no acórdão recorrido determina apenas a substituição da adquirente pelos ora AA. preferentes. Deste modo, ainda que a 1ª R. seja parte principal na ação, não pode considerar-se vencida, uma vez que o acórdão recorrido não se projeta negativamente na sua esfera jurídica.

Vejamos:

No plano meramente substantivo, a argumentação dos AA. parece encontrar alguma sustentação. Embora a ação de preferência prevista no art. 1410º do CC tenha sido interposta contra a alienante e a adquirente do prédio, o efeito jurídico-patrimonial mais relevante, em caso de procedência, é o de substituição da adquirente pelos preferentes, sem que tal implique a retoma, por parte da transmitente, do direito de propriedade sobre o bem alienado.

Porém, a legitimidade ativa para efeitos de interposição de recurso não se afere apenas através de aspetos de ordem material. Como pressuposto processual, não deixam de ser relevantes também para a sua aferição aspetos de ordem adjetiva, sobressaindo no caso o facto de a 1ª R., alienante, ser parte principal na qualidade de demandada, tendo sido também destinatária do acórdão que favoreceu os AA.

Neste contexto, a legitimidade da ora 1ª R. para a interposição do recurso de revista decorre diretamente da norma do art. 631º, nº 1, do CPC, sem qualquer espécie de dúvida.

Por outro lado, contrariamente ao alegado pelos AA. recorridos, o referido efeito substitutivo não é o único que está em causa quando é declarada a procedência da ação de preferência.

Pressupondo esta a violação, por parte do transmitente, do dever de comunicação do projeto de venda e das condições essenciais do negócio, nos termos do art. 1410º do CC, não está afastada a possibilidade de a decisão que declara a sua procedência poder ser invocada pelo adquirente para eventual responsabilização por danos causalmente ligados àquela atuação.

Nesta medida, de modo complementar, a legitimidade ativa da transmitente relativamente à interposição do recurso de revista também é refletida pelo prejuízo que a procedência da ação lhe poderá acarretar, tendo em conta a sujeição ao dever de comunicação, nos termos do art. 416º, nº 1, do CC.

Por conseguinte, improcede a exceção de ilegitimidade invocada pelos AA., reconhecendo-se à 1ª R. legitimidade para a interposição do recurso de revista.

III - Quanto à matéria de facto:

1. Qualquer das recorrentes questionou a alteração da matéria de facto que foi operada pela Relação, pretendendo que este Supremo Tribunal de Justiça reponha a decisão proferida pela 1ª instância.

1.1. No que concerne à 2ª R., olvida esta que qualquer interferência na decisão da matéria de facto está reservada para os casos previstos no art. 674º, nº 3, do CPC, ou seja, para situações em que tenha havido violação de lei expressa sobre o valor probatório de certos elementos, o que não ocorre no caso concreto.

Na verdade, a pretensão da 2ª R. baseia-se na invocação de que não terá sido ponderado um determinado depoimento testemunhal, matéria em que, como decorre do nº 4 do art. 662º do CPC, a Relação é soberana, já que está unicamente em causa a apreciação de meios de prova sem força probatória plena e sujeitos à livre apreciação, sem qualquer possibilidade de interferência deste Supremo Tribunal de Justiça.

1.2. Diversa é a solução relativamente ao que é pretendido pela 1ª R.

Segundo esta recorrente (conclusão E)) “resultou do depoimento de parte prestado pelo A. marido em sessão realizada no dia 2-2-16 e que ficou registado em suporte digital … e assentada na ata dessa sessão que o A. tomou conhecimento da intenção de venda do imóvel, por parte da 1º R., bem como das respetivas condições na data da sua afixação, também no seu estabelecimento, e que tal documentação foi entregue pessoalmente à A. que a recebeu e se disponibilizou a entregar as chaves a quem fosse visitar o prédio”.

Concluiu ainda que o A. marido, “nessa altura, tomou conhecimento de todas as condições do negócio a realizar pela consulta do processo e que resultou ser em Abril de 2014” e que “manifestou por mais de uma vez no seu depoimento que não tinha manifestado interesse em adquirir o prédio e que não era sequer a sua intenção manifestar quando soube do negócio …” (conclusões F) e H)).

Trata-se de factos que respeitam apenas ao A. marido mas que correspondem ao que, por outra via, foi considerado provado pelas instâncias relativamente à A. mulher.

Ora, as declarações do A. marido, em sede de depoimento de parte, além de terem ficado gravadas, foram registadas, por escrito, na ata da sessão da audiência de julgamento, dela constando, além do mais, que:

- Declarou que “desde que teve conhecimento de que se iria realizar a hasta pública até intentar a presente ação não manifestou junto da 1ª R. a intenção de adquirir o imóvel”;

- Respondeu também que “consultou o processo que lhe foi entregue pela 1ª R.”, precisamente o processo que, segundo o mesmo, a “1ª R. lhes entregou … para facultar tais elementos a quem lá se deslocasse para procurar informações/manifestar interesse”.

A inserção destes factos na matéria facto a considerar provada é possível por via do disposto no art. 674º, nº 3, do CPC, na medida em que a decisão da matéria de facto fixada pelas instâncias não tenha respeitado a força probatória plena da declaração confessória.

Ora, tais declarações mostram-se prejudiciais ao interesse do A. marido, tendo um valor confessório, pelo que o não atendimento das mesmas na decisão da matéria de facto implicou a violação de norma expressa de direito probatório material que a este Supremo Tribunal de Justiça é lícito sindicar, nos termos do nº 3 do art. 674º do CPC.

Por conseguinte, serão introduzidas modificações devidamente assinaladas no enunciado de factos considerados provados.

O A. marido ainda declarou no mesmo depoimento de parte, relativamente à matéria do art. 8º da contestação da 2ª R., que “esteve afixado no estabelecimento o edital”, enquanto as instâncias consideraram provado apenas que o edital esteve afixado na porta principal do prédio.

Quanto a este aspeto factual, decorrendo apenas do depoimento de parte de um dos litisconsortes, mas repercutindo-se negativamente na esfera de ambos os AA., marido e mulher, não é eficaz relativamente à A. mulher, atento o disposto no art. 353º, nº 2, do CC.

Por este motivo, não será aditado ao leque de factos provados, ainda que venha a servir para, no momento oportuno, caracterizar a conduta do A. marido.

2. Factos provados:

1. Os AA. AA e BB casaram em -.....3, sem convenção antenupcial.

2. Por escritura pública datada de -----82, o A. adquiriu por trespasse um estabelecimento comercial instalado em parte do ........, com entrada pelos nºs de polícia ....., do prédio urbano sito na R. ....., nºs ....., em Olhão, inscrito na matriz sob o art. 2864º, atualmente sob o art. 7479º.

3. Nessa data a R. CC tinha inscrito a seu favor, pela ap. 8----- de 1978/08/23, o direito de propriedade do prédio identificado em 2., descrito na CRP de Olhão sob o nº 0000.

4. Os AA. passaram a pagar-lhe a quantia mensal devida pela utilização da parte do imóvel onde estava instalado o estabelecimento comercial e a R. CC passou a dar-lhes o recibo de quitação e passaram a explorar no estabelecimento comercial a atividade de comércio de papelaria e livraria a retalho.

5. Por deliberação tomada em Assembleia Geral da 1ª R., realizada em 28-3-14, foi autorizada a venda em hasta pública do referido prédio.

6. Para o efeito, foi elaborado o edital nº 01/2014, com o seguinte teor:

“CC

Edital nº 01/2014

HASTA PÚBLICA PARA VENDA DE IMÓVEL SITO DA RUA ......, Nº ........ OLHÃO

EE, Provedor da CC:

FAZ SABER que, por deliberação unânime tomada na reunião da Assembleia Geral, realizada no dia 28 de Março do ano em curso, a CC aprovou a VENDA DO IMÓVEL sito na Rua ......, nº ........, em Olhão, inscrito na matriz sob o art. 2864, e descrito na CRP de Olhão com o nº 0000, bem como a autorização para todos os procedimentos necessários à realização da Hasta Pública.

Assim, torna público que:

A Hasta Pública realizar-se-á no dia 25 de Julho de 2014, pelas 15.00 horas, no Salão do Lar Dr. ......, sito na Av. .......... nº...., em Vila .......... perante a Comissão para esse fim designada.

A Hasta Pública tem por objeto a VENDA DO IMÓVEL SITO NA RUA ........, nº ........, em OLHÃO - prédio inscrito na matriz sob o art. 2864 e descrito na CRP de Olhão com o nº 0000.

Ónus e encargos: dois armazéns sitos no ........ do edifício encontram-se onerados com contratos de arrendamento sem prazo.

O valor da base de licitação do prédio é de € 140.000,00.

O processo estará patente na CC, onde também poderão ser dados quaisquer esclarecimentos.

Só poderão participar no ato da Hasta Pública e licitar pessoas singulares ou coletivas que não estejam em dívida para com o Estado.

Caso alguém pretenda licitar em nome de outrem, deverá fazer-se acompanhar de procuração que lhe confira poderes para tal.

No ato de arrematação da Hasta Pública não serão admitidos lanços de valor inferior a € 2.000,00.

O adjudicatário provisório deverá, de imediato, proceder ao pagamento de 25% do valor da adjudicação.

As imposições fiscais ou quaisquer outros encargos serão da conta do adjudicatário.

A adjudicação será formalizada através da realização de escritura pública a realizar em Cartório Notarial e em data a marcar pela Mesa Administrativa da CC, nos 90 dias seguintes ao dia da arrematação.

Em tudo o omisso no presente Edital, rege o disposto na legislação em vigor.

Para constar e devidos efeitos se lavrou o presente Edital que vai ser afixado em vários locais e é objeto de publicação nos jornais regionais editados na área do Município de Vila Real de Santo António e de Olhão, bem como num jornal de âmbito nacional”.

7. Foram ainda estabelecidas as condições gerais da venda, conf. doc. fls. 227/228.

8. O Edital foi afixado em vários locais, designadamente na Câmara Municipal de Olhão, na Junta de Freguesia de Olhão e na porta principal do prédio, e foi publicitado nos jornais “O Olhanense”, edições de 1 a 15-7-14, “Jornal do Algarve”, edições de 19 a 26-6-14 e “Correio da Manhã”, edição de 10-7-14.

9. Em 2-4-14 as chaves do prédio foram entregues pela 1ª R. à A. no estabelecimento comercial, tendo esta mostrado disponibilidade para abrir a porta do edifício principal a eventuais interessados na aquisição.

10. Nessa data foi, também, entregue pela 1ª R. à A., no estabelecimento comercial, a documentação relativa à venda do prédio, nomeadamente o edital, condições gerais, caderneta predial e planta do prédio.

Acresce ainda que, por declaração confessória do A. marido:

“Desde que o A. marido teve conhecimento de que se iria realizar a hasta pública até intentar a presente ação não manifestou junto da 1ª R. a intenção de adquirir o imóvel”;

- O A. marido “consultou o processo que lhe foi entregue pela 1ª R.”, ou seja, o processo que a “1ª R. lhes entregou … para facultar tais elementos a quem lá se deslocasse para procurar informações/manifestar interesse".

11. Desde esta data, os AA. têm conhecimento da intenção de venda do prédio, preço-base, modalidade de licitação, data de realização da hasta pública, condições de participação e data previsível para realização da escritura pública.

12. Em data anterior a 25-7-14 a gerente da 2ª R. dirigiu-se ao estabelecimento comercial, onde foi atendida pela A., manifestando interesse em visitar o prédio e saber das condições da venda e a A. disponibilizou-lhe os documentos mencionados em 10. e as chaves do prédio.

13. Após tiradas as cópias dos documentos e visitado o prédio, os documentos e as chaves foram devolvidas pela gerente da 2ª R. à A.

14. Passados uns dias, a gerente da 2ª R. voltou a visitar o prédio, acompanhada pelo arquiteto FF, solicitando novamente as chaves à A. e as chaves foram outra vez disponibilizadas e, depois de visitado o prédio, devolvidas à A.

15. No dia 25-7-14 realizou-se a hasta pública no local e hora indicados no edital na qual os AA. não compareceram.

16. A 2ª R. compareceu e apresentou uma proposta de aquisição do prédio pelo valor de € 142.000,00, a qual foi aceite.

17. Em 29-7-14 a 1ª R. recolheu as chaves do prédio junto da A., transmitindo-lhe que havia sido aceite a proposta de aquisição apresentada pela 2ª R. na hasta pública, no valor de € 142.000,00.

18. Nos primeiros dias de Agosto de 2014, a 2ª R. solicitou à 1ª R. as chaves do prédio para iniciar os trabalhos de levantamento e avaliação das necessidades de intervenção no prédio.

19. As chaves foram entregues à gerente da 2ª R. que, numa das idas ao prédio, pouco dias depois, encontrou a A. e nesse encontro GG referiu-lhe ter sido aceite a proposta de aquisição do prédio que apresentou na hasta pública, no valor de € 142.000,00.

20. Entre Agosto de 2014 e Novembro de 2014 a gerente da 2ª R. encontrou por diversas vezes a A., a qual mostrou agrado por existirem novos proprietários do prédio.

21. Em Outubro de 2014, o arquiteto FF, com autorização da A., foi tirar fotografias ao prédio, incluindo o estabelecimento comercial dos AA., apresentando-se como o “técnico ao serviço do novo proprietário” indicando que pretendia efetuar um levantamento integral do imóvel para a realização de projetos das obras.

22. Por escritura pública datada de 10-11-14 a 1ª R. declarou vender o prédio à 2ª R. que declarou aceitar, pelo preço de € 142.000,00.

23. Após 10-11-14 a gerente da 2ª R. fez deslocações frequentes ao prédio, com vista à preparação e elaboração dos projetos de alteração mas em nenhuma dessas ocasiões os AA. demonstraram interesse na aquisição do prédio.

24. O A. recebeu em 17-11-14 uma carta, datada de 14-11-14, enviada pela 2ª R., na qual lhe comunicava que havia adquirido o prédio em que se inclui o arrendado por escritura outorgada em 10-11-14 e informava-o de que a partir de 1-12-14 a renda de € 158,86 deveria ser paga por meio de depósito ou transferência bancária a efetuar para a conta indicada.

25. Após a receção da carta os AA. e a gerente da 2ª R. mantiveram relacionamento cordial, passando os AA. a pagar a renda pela forma indicada por esta.

26. Os AA. nunca comunicaram à 1ª R. a intenção de adquirir o prédio.

Acresce ainda que, por declaração confessória do A. marido, este, “desde que teve conhecimento de que se iria realizar a hasta pública até intentar a presente ação, não manifestou junto da 1ª R. a intenção de adquirir o imóvel”.

27. Os AA. aperceberam-se da intenção da 2ª R. realizar obras no prédio e que havia iniciado trabalhos de arquitetura e engenharia.

28. A 2ª R. enviou ao A. marido a carta datada de 30-3-15, subordinada ao assunto “denúncia do contrato de arrendamento urbano de duração indeterminada nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do art. 1101º e do n.º 1 do art. 1103º, ambos do Código Civil” comunicando, na qualidade de senhoria, a denúncia do contrato de arrendamento e solicitando a entrega da parte arrendada até ao dia 5-10-15, invocando a intenção de submeter o locado a obras de demolição e remodelação profunda para construção de uma unidade turística, conf. cópia que consta de fls. 63/64.

29. Os AA. obtiveram uma certidão da escritura pública de compra e venda em 13-4-15.

30. Os AA. não possuíam, em 25-7-14 e 10-11-14, impostos em dívidas.

31. A 2ª R. adquiriu o prédio para revenda.

32. A 2ª R. tem inscrito a seu favor pela ap. 2019 de 10-11-2014, o direito de propriedade do prédio.

33. Com as deslocações ao prédio, preparação e análise do projeto de alteração e licenciamentos do prédio, a gerente da 2ª R. despendeu tempo não apurado; suportou custos com as deslocações entre Olhão e Lisboa em valor não apurado; despendeu € 10.147,50 com o projeto de arquitetura e especialidades para Unidade de Alojamento Turístico a executar no prédio, adjudicado à empresa “HH Ldª”; despendeu € 108,25 com um parecer sobre o projeto de segurança contra incêndios da autoridade nacional de proteção civil para o prédio (recibo de fls. 184, emitido em 7-1-15); despendeu € 12.300,00 com consultoria a investimentos imobiliários, adjudicado à empresa “II, Ldª” (mediante trf. bancária efetuada em 5-2-15 – docs. de fls. 186 a 188); despendeu € 15,00 com certidão de registo predial permanente para anexar ao projeto de arquitetura a entregar na C. M. Olhão, em 25-2-15 (docs. de fls. 189/190); e despendeu € 10,00 com a taxa de entrega do projeto de arquitetura na C. M. Olhão, pagos em 19-3-15 (doc. de fls. 192).

34. A 2ª R. celebrou com a sociedade JJ, S.A., um acordo, constante de fls. 207/215.

35. A 2ª R. submeteu o projeto de arquitetura a apreciação camarária em 19-3-15, vindo a ser notificada da decisão de deferimento em 29-4-15.

IV – Quanto à matéria de direito:

1. Importa decidir, em primeiro lugar, da oportunidade da questão que foi suscitada por ambas as RR. nas alegações de recurso no sentido de se declarar que os AA. nem sequer são titulares do direito de preferência, atenta a sua qualidade de arrendatários comerciais de parte não autónoma de prédio urbano, em face do que se dispunha o art. 1091º do CC na redação vigente em 2014.

1.1. Nos termos do referido normativo, o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda do local arrendado há mais de 3 anos, regulando-se deste modo o direito de preempção de forma algo diversa da que resultava do anterior RAU.

Ainda assim, as dúvidas interpretativas acerca desse regime jurídico não cessaram, continuando a debater-se em torno daquele preceito duas correntes jurisprudenciais e doutrinais, uma no sentido de que o direito real de aquisição era extensivo ao arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal e outra, de sentido oposto, negando o direito nesses casos e reservando-o para aqueles em que o arrendamento incidisse sobre todo o prédio ou sobre parte autónoma de prédio urbano.

O confronto encontra-se enunciado no Ac. do STJ de 18-10-18, 3131/16, em www.dgsi.pt, deste mesmo coletivo, no qual foi aposto o sumário que condensa a tese que então foi assumida, dele constando, além do mais, o seguinte:

“1. Em face do art. 1091º do CC, na versão vigente em 2015, o arrendatário comercial de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não goza do direito legal de preferência na venda do prédio, direito apenas reconhecido ao arrendatário de todo o prédio urbano ou fração autónoma do mesmo prédio objeto de venda ou de dação em cumprimento.

2. O facto de a proprietária do imóvel ter comunicado ao arrendatário o projeto de venda para efeitos de exercício do direito de preferência não é suficiente para constituir na esfera jurídica deste um direito de preferência com eficácia real que seja oponível ao terceiro adquirente”.

O interesse da questão agudiza-se quando se verifica que, entretanto, a Lei nº 64/18, de 26-10, modificou a redação do art. 1091º do CC, passando a prever que nos casos em que, incidindo a venda sobre prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendamento urbano se reporte apenas a uma parcela desse prédio, o direito de preferência é concedido aos arrendatários habitacionais, sendo materializado através da transferência para o mesmo do “direito relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado …” (nº 8, al. a)).

Neste contexto, independentemente do enquadramento jurídico do caso, teria sido oportuno que a questão da titularidade ou da amplitude do direito de preferência tivesse sido suscitada pelas RR. ou oficiosamente apreciada aquando da prolação da sentença da 1ª instância (art. 5º, nº 3, do CPC), tanto mais que, constituindo pura matéria de direito, era de conhecimento oficioso.

Certo é que, por qualquer dessas vias, o resultado da ação poderia ter culminado na improcedência, não por via da caducidade, mas por inverificação do pressuposto básico, ou seja, da titularidade do direito de preferência invocado pelos AA., enquanto arrendatários comerciais de uma parcela não autónoma do prédio urbano.

No entanto, nenhuma das RR. invocou a referida questão nos articulados e dela também não tratou a Mª Juíza de 1ª instância que, ao invés, sem tomar inequívoca posição sobre aquela polémica jurisprudencial e doutrinal, elaborou a sentença no pressuposto de que os AA. eram efetivos titulares do direito de preferência previsto no art. 1091º, nº 1, do CC, na redação então vigente.

Fê-lo nos seguintes termos que são bem elucidativos:

“O direito de preferência em apreço assume carácter legal porquanto decorre da lei, mais concretamente do disposto no art. 1091º, nº 1, al. a), do CC nos termos do qual ….”.

“No caso concreto, dos factos que resultam provados decorre a existência do direito de preferência dos autores, enquanto arrendatários de parte do imóvel alienado – prédio urbano, situado na R. ........, nºs ........, em Olhão, descrito na CRP de Olhão sob o nº 0000, inscrito na matriz sob o art. 7479.

Isto considerando que, por força do trespasse documentado, o estabelecimento comercial instalado em parte do imóvel (nºs 49 a 51) foi transferido para o autor e, consequentemente, o direito ao arrendamento do mesmo, constitui bem comum, atento o regime de bens que vigora entre o casal.

Ademais se dirá que, das contestações apresentadas, parte-se efetivamente do princípio e reconhece-se que tal direito existe, ou seja, não é colocado em causa a qualidade de arrendatários de parte do imóvel.

Questão diversa é saber se os autores tiveram conhecimento do projeto de venda e condições do negócio e, em caso afirmativo, que posição tomaram.

Mais acrescentou que:

“Existindo, como vimos, um direito legal de preferência, impunha-se que a 1ª R., enquanto proprietária, fizesse aos AA. a comunicação a que alude o art. 416º do CC” (fls. 808 e 810) (sublinhado nosso).

1.2. Ainda que a sentença final tenha sido favorável às RR., por via da verificação da exceção perentória de caducidade do exercício do direito de preferência, poderia ter sido impugnada pelas RR. no recurso de apelação que os AA. interpuseram, mediante a ampliação do objeto da apelação o que teria permitido à Relação negar o direito de preferência que os AA. alegaram e que a sentença reconhecera, nos termos do art. 636º, nº 1, do CPC.

É verdade que o mais importante para a parte que deduz uma pretensão ou exerce o direito de defesa é o resultado final que fica condensado na conclusão da sentença ou do acórdão, e não o trajeto jurídico que à mesma tenha conduzido. Com efeito, nos casos em que não seja impugnada a decisão que acolha a pretensão da parte vencedora, com os efeitos delimitados pelo caso julgado assim formado, é indiferente a resposta conferida a outras questões precedentes que lhe eram favoráveis.
Este quadro modifica-se, porém, quando a parte vencida interpõe recurso da decisão. Nesta eventualidade – que se verificou in casu - pode ser importante para a parte recorrida (parte vencedora ou parcialmente vencedora) a resposta que o Tribunal ad quem venha a dar a tais questões. Na eventualidade de este Tribunal reconhecer razão aos fundamentos invocados no recurso interposto pela parte vencida, pode revelar-se importante para a defesa dos interesses da parte vencedora o acolhimento, no âmbito do mesmo recurso, dos fundamentos oportunamente esgrimidos ou de outros que, sendo de conhecimento oficioso, foram objeto de resposta desfavorável ou que foram omitidos. A solução legal prevista para situações de sucumbência circunscrita aos fundamentos da ação ou da defesa proporciona à parte vencedora, com total razoabilidade, a possibilidade de suscitar perante o Tribunal ad quem a reapreciação de questões cuja resposta tenha sido desfavorável, esconjurando os riscos derivados de uma total adesão aos fundamentos apresentados pelo recorrente para alcançar a revogação ou anulação da decisão.

1.3. Ora, a 1ª R. não ampliou o objeto da apelação. Já a 2ª R., apesar de o ter feito, inscreveu nessa ampliação outros fundamentos determinativos da extinção do direito de preferência, considerando quer a data em que os AA. tiveram conhecimento da realização da hasta pública, para efeitos do prazo previsto no art. 1410º do CC, quer o comportamento dos RR. para efeitos de declaração de renúncia ao exercício do direito de preferência e de verificação de abuso de direito. Não incluiu nessa ampliação a impugnação da sentença na parte em que nesta foi reconhecida a existência do direito de preferência.

Como bem o revelam os articulados de contestação e, depois, as contra-alegações dos recursos de apelação, e como se refere na sentença da 1ª instância, ambas as RR. partiram, aliás, do pressuposto de que o direito de preferência era indiscutível. Apenas depois de ter decorrido o prazo para a apresentação das contra-alegações do recurso de apelação, as RR. terão percecionado que à procedência da ação de preferência poderia faltar o referido pressuposto básico, ou seja, o direito de preferência que os AA. invocaram, mas que, numa determinada perspetiva, não encontraria sustentação na norma do art. 1091º do CC.

Tal terá sido despoletado precisamente pelo aresto deste coletivo anteriormente enunciado acerca da interpretação do art. 1091º do CC e consequente exclusão de situações como aquela que os AA. invocaram na presente ação (arrendamento comercial sobre parte não autónoma de prédio urbano). Apenas nessa ocasião as RR. procuraram introduzir a referida questão, a pretexto de que estaria em causa matéria de direito de conhecimento oficioso, nos termos do art. 5º, nº 3, do CPC.

Ora, sem dúvida que o reconhecimento ou não do direito de preferência invocado numa ação de preferência pelo arrendatário comercial, como fundamento da sua pretensão, constitui pura matéria de direito, sendo, assim, de apreciação oficiosa.

Este é, porém, apenas um dos dados da equação. O outro é integrado pelo regime de preclusão que emerge do art. 635º do CPC, do qual resulta que o caso julgado que, por qualquer via, se tenha estabelecido em relação a alguma decisão ou segmento decisório não pode ser perturbado por uma atuação posterior, ainda que de um tribunal hierarquicamente superior (Ac. do STJ de 22-9-16, 106/11, relatado pelo ora relator).

Ora, o facto de o tribunal de 1ª instância não ter afirmado, expressis verbis, na conclusão da sentença o reconhecimento do direito de preferência não obsta à verificação do caso julgado intraprocessual, na medida em que, a todos os títulos, esse reconhecimento foi assumido na fundamentação da sentença e constituiu, aliás, o pressuposto lógico da posterior apreciação da exceção perentória de caducidade desse mesmo direito, nos termos do art. 416º, nº 2, do CC.

Aliás, como o revelam os extratos da sentença, foi assumido pela Mª Juíza da 1ª instância que esse direito de preferência – que, como se disse, as RR. não impugnaram nem discutiram nos articulados – existia e foi a partir daí que enveredou para a declaração de improcedência da ação por via do efeito extintivo derivado da exceção perentória de caducidade daquele direito.

É verdade que em matéria de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso o Tribunal ad quem não está limitado pela iniciativa das partes (art. 5º, nº 3, do CPC). Ou seja, uma vez interposto recurso, em princípio, é lícito ao Tribunal ad quem conhecer oficiosamente de questões relativamente ao segmento decisório sob reapreciação, sejam de natureza processual (v.g. incompetência absoluta, falta de personalidade), sejam de natureza substantiva (v.g. nulidade do contrato por vício formal ou simulação, caducidade em matéria de direitos indisponíveis), desde que os necessários elementos de facto estejam acessíveis e seja respeitado o contraditório. No que concerne a aspetos estritamente jurídicos e com a mesma cautela, o Tribunal é livre de identificar as normas que melhor se ajustem ao caso concreto para qualificar as relações jurídicas ou para delas extrair os efeitos adequados.

Todavia, estes são poderes que apenas interferem a jusante, ou seja, na fase em que o Tribunal ad quem tem de preparar a decisão a proferir, não podendo então olvidar-se o eventual efeito preclusivo decorrente do que anteriormente já foi decidido sobre qualquer outra questão prejudicial, cuja estabilidade deve prevalecer sobre o eventual interesse na melhor aplicação do direito. Trata-se da manifestação do princípio da proibição da reformatio in peius (neste sentido cf. também Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC anot., vol. III, t. I, 2ª ed., p. 42).

Assim, em termos exemplificativos, se apenas uma das partes interpuser recurso relativamente a uma parcela da decisão, o Tribunal ad quem não pode, sob pretexto algum, revogar ou modificar outro segmento decisório em relação ao qual tenha saído vencedora a parte contrária; se o recorrente, de forma expressa ou tácita, restringir o âmbito do recurso, o Tribunal ad quem não pode interferir na parte da sentença que ficou excluída da impugnação; ainda que por algum motivo o Tribunal ad quem determine a anulação do processado, ficam salvaguardados, em definitivo, os efeitos da decisão recorrida, na parte que não tiver sido objeto de recurso; se determinada questão não foi integrada no recurso de apelação, não pode ser suscitada, depois, no recurso de revista interposto pelo apelante (Ac. do STJ de 16-6-16, 623/05, www.dgsi.pt.); não pode ser modificada ex officio pelo Tribunal ad quem a decisão recorrida em termos que se revelem mais desfavoráveis para o recorrente (Ac. do STJ de 18-12-13, 1801/10), nem ultrapassar decisão cujos efeitos se encontrem estabilizados por não ter sido oportunamente impugnada.

1.4. Ora, com mais pormenor, no caso concreto, constata-se o seguinte:

- Os AA. afirmaram-se titulares do direito de preferência, atenta a sua qualidade de arrendatários de parte não autónoma de prédio urbano (art. 26º da petição), alegação que não sofreu qualquer impugnação da parte das RR. nas suas contestações;

- O Mº Juiz, na audiência prévia, fixou o objeto do litígio: discutir “se os AA. gozam do direito de preferência na alienação identificada nos autos ou se, ao invés, caducou o seu direito” (fls. 291);

- Já na sentença foi reconhecida a existência do direito de preferência, e foi a partir desse pressuposto que foi apreciado o facto extintivo de tal direito, ou seja, a exceção perentória de caducidade do direito dos AA., determinando, por esta via, mas não por aquela, a improcedência da ação (fls. 426);

- De tal sentença os AA. interpuseram recurso de apelação insurgindo-se unicamente contra a declaração de procedência da exceção de caducidade do seu direito de preferência, pretensão a que se opuseram ambas as RR. em contra-alegações;

- Nas contra-alegações a 2ª R. (adquirente) ainda formulou o pedido de ampliação do objeto do recurso, mas restringiu tal pretensão à apreciação de outro fundamento de caducidade (que veio a ser considerado prejudicado pela resposta que foi dada na sentença à outra perspetiva da caducidade), à apreciação da renúncia ao direito de preferência e do abuso de direito; nada foi requerido especificamente sobre o referido direito de preferência;

- A fls. 904, a respeito da futura pronúncia sobre os efeitos da modalidade da venda, foi proferido despacho pela Exmª Relatora na Relação onde, além do mais, se referiu que:

“Pese embora os AA. tenham a qualidade de arrendatários apenas de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, não se mostra controvertido nos autos que são titulares do direito de preferência consagrado na al. a) do nº 1 do art. 1091º do CC, direito que na decisão recorrida, tal como as demandadas haviam invocado, foi julgado extinto por caducidade, verificada nos termos do nº 2 do art. 416º do CC”;

- A 2ª R. respondeu (fls. 942), alegando o seguinte:

 “Assim, só a qualidade de arrendatários dos AA. e venda do prédio não são controvertidos; daqui não se deve, nem pode, concluir que, pela aplicação das regras legais, do direito, o direito de preferência reclamado pelos AA. esteja reconhecido e não deve ser reapreciado, o que não é o caso” (fls. 943);

- A fls. 966 e ss. a 2ª R. inseriu uma peça processual em que pede novamente que se considere que não existia direito de preferência; ou seja, apenas quando as RR. foram alertados para o facto de ser questionável o direito de preferência que os AA. invocaram pretenderam reabrir a discussão dessa questão que na sentença tinha obtido resposta favorável aos AA.;

- Foi então elaborado o acórdão recorrido (fls. 1002), no qual se referiu, na parte introdutória:

“Do direito de preferência e da caducidade pelo decurso do prazo previsto no n.º 2 do art. 416º do CC.

Os AA. e agora apelantes vieram a juízo em ordem a ver reconhecido o seu direito a preferirem na venda do imóvel identificado em 6., negócio celebrado entre a 1ª R., como vendedora, e a 2ª, como compradora.

Como se vê da sentença apelada, e nesta parte não impugnada, nela se considerou que os AA., atenta a sua qualidade de arrendatários de parte do imóvel alienado, eram titulares do direito de preferência consagrado na al. a) do nº 1 do art. 1091º do CC, o qual veio a ser julgado extinto por força da procedência da invocada exceção perentória da caducidade, verificada nos termos do nº 2 do art. 416º. Para tanto concluiu a Mmª Juíza que a 1ª R., na sua qualidade de proprietária, efetuou de forma regular a comunicação a que alude o nº 1 do preceito, entendimento que os AA. censuram e ora cabe sindicar”

Foi ainda aposta uma nota de rodapé na qual se refere que “na ampliação do recurso que deduziu a apelante DD Ldª, refere, de forma expressa, que, no caso de procedência da apelação, pretende ver apreciadas as exceções de caducidade do direito de intentar a ação, renúncia e abuso de direito por banda dos AA., sem questionar, pois, aquele segmento da decisão que, assim excluído do objeto do recurso, transitou em julgado, estando por isso interdito a este Tribunal pronunciar-se sobre a questão (art. 635º, nº 5, do CPC)”.

1.5. Neste contexto, posto que a apreciação da referida questão jurídica fosse daquelas que, em abstrato, estava ao alcance de qualquer instância judiciária, incluindo este Supremo Tribunal de Justiça, a estabilidade decorrente do caso julgado que se formou a tal respeito constitui um obstáculo intransponível a que seja reponderada no presente recurso de revista, tal como já o era para a Relação.

Ainda que motivos houvesse – e, como este coletivo já o expressou noutro aresto, havia - para divergir da afirmação da existência desse direito de preferência em face do que dispunha o art. 1091º do CC, na precedente redação, a resolução dessa questão deve considerar-se estabilizada e definitivamente resolvida, uma vez que, no momento oportuno, isto é, nas contra-alegações do recurso de apelação, as RR., únicas interessadas na sua impugnação, não a introduziram, nos termos do art. 636º, nº 1, do CPC.

Improcede, por isso, a pretensão deduzida por cada uma das RR. no sentido de ser, agora, negado aos AA. o direito de preferência que na sentença foi reconhecido com base na sua qualidade de arrendatários comerciais de uma parte não autónoma de prédio urbano, ao abrigo da interpretação que nela foi feita do art. 1091º do CC na sua redação anterior.

Por conseguinte, para todos os efeitos, partir-se-á do pressuposto de que os AA. eram titulares do direito de preferência previsto na anterior redação do art. 1091º do CC.

2. Quanto à alegada caducidade do direito de preferência:

2.1. Para efeitos da aferição da caducidade do direito de preferência, ao abrigo do art. 416º, nº 2, do CC, em conjugação com a anterior redação do art. 1091º, revela-se importante apreciar de que modo e em que momento foi feita ou deve considerar-se feita a comunicação para o exercício do direito de preferência.

Refere-se no acórdão recorrido, a respeito da comunicação para preferir, que “o cumprimento da exigência legal pressupõe que tal comunicação contenha todos os elementos capazes de influenciarem a decisão do preferente de contratar ou não contratar; nas palavras da lei deverá ser dado a conhecer “o projeto de venda e as cláusulas do contrato”, aqui se incluindo necessariamente: i. a indicação de que existe um negócio de venda ou dação em cumprimento projetado; ii. a data da celebração do negócio; iii. o preço pelo qual o obrigado à preferência irá vender o bem e as condições de pagamento; iv. a identificação do terceiro adquirente, indicação que assume inequívoca relevância pelo menos nos casos em que o titular do direito de preferência é o arrendatário”.

São considerações que, em abstrato, se aceitam, por resultarem da lei e da jurisprudência, mas que, in casu, não consideram todos os demais elementos a que pode aceder-se mediante a valorização de pormenores cuja relevância foi desprezada e que emergem da matéria de facto.

A tarefa de resolução de litígios, designadamente em torno do exercício do direito de preferência, jamais pode desligar-se das concretas circunstâncias de cada caso, não devendo ceder-se à ideia de identificar um único paradigma de atuação para nele encaixar os factos que se apuraram, antes deve partir-se dos factos para o ordenamento jurídico e procurar neste a resposta que, sendo formalmente adequada à concreta realidade, seja, em simultâneo, a que com mais razoabilidade respeite o ideal de justiça que sempre deve estar presente.

Este desiderato releva mais da sentença do que do acórdão recorrido, quiçá porque aquela foi proferida por quem dirigiu a audiência final e tomou imediato contacto com os depoimentos que foram prestados, incluindo o depoimento do A. marido que foi amplamente referido na motivação da decisão da matéria de facto. Já o acórdão recorrido evidencia uma excessiva exponenciação de aspetos de ordem formal, desconsiderando atos materiais que cada um dos intervenientes praticou e a que o ordenamento jurídico não pode deixar de dar o adequado relevo.

2.2. De todos os argumentos tecidos no acórdão recorrido sobressai uma orientação que passa, num primeiro momento, pela descaracterização das especificidades do processo de venda que foi empreendido pela 1ª R., como se tratasse de uma venda de natureza especulativa realizada por uma qualquer entidade privada, com a estrita necessidade de obedecer ao programa comunicacional que emerge do art. 416º do CC.

Ora, de modo algum pode desprezar-se a circunstância particular de a vendedora ser uma IPSS - a CC - submetida ao regime jurídico que então estava previsto no DL nº 119/83, de 25-2, cujo art. 23º, que trata da “realização de obras, alienação e arrendamento de imóveis”, determinava o seguinte:

“1. A empreitada de obras de construção ou grande reparação, bem como a alienação e o arrendamento de imóveis pertencentes às instituições, deverá ser feita em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente.

2 - Podem ser efetuadas vendas ou arrendamentos por negociação direta, quando seja previsível que daí decorram vantagens para a instituição ou por motivo de urgência, fundamentado em ata.

…”.

O nº 1 foi entretanto modificado pelo DL nº 172-A/14, de 14-11-14 (e o nº 2 passou a integrar o nº 3), eliminando-se a regra da realização de vendas imobiliárias por concurso ou em hasta pública, passado a ter a seguinte redação:

A empreitada de obras de construção ou grande reparação pertencentes às instituições, devem observar o estabelecido no Código dos Contratos Públicos, com exceção das obras realizadas por administração direta até ao montante máximo de 25 mil euros”.

Porém, no caso concreto, essa alteração é inócua, uma vez que todo o processo de venda (deliberação, modalidade, publicitação, hasta pública e escritura pública) decorreu ainda ao abrigo da lei anterior.

2.3. No caso concreto foi adotada pela proprietária a venda em “hasta pública” e não existe qualquer motivo para considerar que deveria ter sido outra a modalidade, opção que, aliás, não foi questionada pelas partes.

Confrontada com esta modalidade de venda, a Relação concluiu que, na falta de regulamentação, a 1ª R. vendedora deveria ter respeitado o formalismo que consta do CPC sobre a venda executiva ou, então, o que está previsto no DL nº 280/07, de 7-8, sobre o regime jurídico do património imobiliário público.

Tal opção gerou o subsequente enredo em torno de exigências mais elevadas do que aquelas que emergiam dos arts. 416º, nº 1 e 1091º do CC (este, na sua anterior redação), no que concerne à notificação dos AA., como preferentes, levando a concluir que a 1ª R. estaria obrigada, “mercê da modalidade de venda escolhida, a notificar pessoalmente os AA. do dia, hora e local aprazados para a realização da hasta pública, a fim de poderem exercer o seu direito de preferência no próprio ato, aí sendo para este efeito interpelados no caso de aceitação de alguma proposta (cf. art. 896º do CPC, a que sucedeu o art. 823º do CPC atualmente em vigor, e ainda o citado art. 83º do DL nº 280/07, de 7-8”. Sucedeu-se a defesa de que, sendo “uma notificação qualificada – segue as regras da citação, sendo o seu destinatário notificado na qualidade de preferente -, recaindo mais uma vez sobre a alienante o ónus da prova da sua realização com observância dos requisitos prescritos na lei”. Continuou o acórdão referindo que “foi esta prova que, vistos os factos assentes, não foi feita, não satisfazendo, a nosso ver, a exigência legal, o conhecimento que os AA. comprovadamente tiveram do conteúdo do edital. Na verdade, apesar de ter sido afixado pela 1ª R. na porta principal do edifício, acompanhando ainda a documentação que, juntamente com as chaves da porta principal, foram entregues à autora mulher para disponibilizar aos interessados na aquisição, afigura-se não poder substituir a notificação dos AA. - e ambos teriam que ser notificados, atento o disposto no art. 1068º e o regime de bens vigente entre eles - na sua qualidade de titulares do direito de preferência, conforme é exigido por lei”. E finalizou este ponto com o seguinte: “a consequência para a inobservância da aludida formalidade é, no dizer do citado art. 892º do CPC, a mesma que acarreta a falta de notificação ou aviso prévio na venda particular, ou seja, confere aos preferentes não notificados o direito de interporem ação de preferência nos termos gerais, remetendo deste modo para o disposto no art. 1410º”.

Ou seja, a Relação considerou que o procedimento de hasta pública que a 1ª R. empreendeu deveria ter seguido o ritual próprio do processo executivo ou o ritual, não menos rigoroso, do procedimento de alienação de bens do Estado ou de Institutos Públicos.

2.4. Importa reverter, antes de mais, esta opção, na medida em que não existe sustentação legal para a mesma.

Prevendo o referido diploma que regula as vendas imobiliárias empreendidas por entidades qualificadas como IPSS que, em princípio, deve ser seguida a via da “hasta pública”, é esta a única circunstância a que deve atender-se no caso concreto para verificar, em face de tal previsão, se foi ou não suficientemente respeitada pela vendedora a obrigação de comunicação do projeto de venda e das cláusulas essenciais do contrato de forma a permitir aos AA. o exercício oportuno do direito de preferência, dentro dos padrões de razoabilidade e sempre guiados pelas regras da boa fé negocial que tanto atingiam a 1ª R. transmitente como eram oponíveis aos AA. preferentes.

Com efeito, o que foi decidido no Ac. deste STJ de 28-7-83, 0709029, em www.dgsi.pt, citado pela Relação, ocorreu noutro contexto fáctico e ao abrigo de um diverso enquadramento jurídico que então emergia do DL nº 519-G2/79, de 29-12, não sendo adequado transpor o que aí se decidiu para o caso presente, com efeitos que acabaram por superar até as exigências comunicacionais que foram invocadas pelos AA. e cujo alegado incumprimento gerou a interposição desta ação para exercício do direito legal de preferência.

Vejamos:

Decidiu-se nesse aresto deste Supremo que “a venda de bens imóveis das Misericórdias tem de ser feita por concurso público ou em hasta pública, conforme for julgado conveniente – art. 20º do Estatuto aprovado pelo DL nº 519-G2/79, de 29-12”. Daí se concluiu que, “na falta de regulamentação própria e face à norma de direito supletivo contida no art. 93º do mesmo Estatuto, a hasta pública rege-se pelas normas da venda judicial em processo executivo constantes dos arts. 889º e ss. do CPC (de 1961), rematando que “o eventual titular do direito de preferência na compra do imóvel só pode exercer o seu direito no ato da praça quando, finda a licitação, for interpelado para declarar se o quer exercer (nº 4 do art. 897º do CPC), perdendo a oportunidade de o exercer se ele (ou o seu representante) abandonar o local antes de finda a licitação”.

Repare-se, em primeiro lugar, que a remissão para as regras do CPC que em tal aresto foi acolhida foi motivada pelo facto de o art. 93º daquele diploma determinar o recurso à “legislação civil” para regulação dos aspetos omissos.

Ora, para além de a referida remissão genérica não gerar necessariamente a consequência que então foi afirmada, tal diploma foi entretanto substituído pelo já mencionado DL nº 119/83, de 25-2, do qual já não consta essa norma de remissão em branco, o que torna ainda mais problemática a aplicação a um processo de venda de bens imóveis propriedade de IPSS de normas de processo civil destinadas a regular a venda coerciva realizada no âmbito da ação executiva e a que naturalmente subjazem interesses diversos.

Mas, independentemente do enquadramento legislativo, parece manifestamente excessivo que, relativamente a vendas imobiliárias como aquela que foi levada a cabo pela 1ª R. Misericórdia de VRSA, se onerem as entidades com natureza de IPSS com um encargo tão pesado e com consequências tão gravosas quanto as que foram “descobertas” pela Relação, ultrapassando, aliás, o que os próprios AA. haviam alegado na petição inicial acerca da obrigação de comunicação.

Com efeito, os AA. não sustentaram, então, a sua pretensão no facto de não terem sido notificados para comparecer na referida hasta pública, em termos semelhantes aos que estavam previstos pata a venda no âmbito de processo executivo; fundaram a sua pretensão unicamente no facto de que a venda do prédio por escritura pública (isto é, já depois de ter sido aceite a proposta que a 2ª R. apresentara na hasta pública) não lhes teria sido previamente comunicada no que concerne aos elementos essenciais, a fim de poderem exercer, então, a sua preferência nas condições que aí ficaram estabilizadas (art. 23º da petição).

Neste contexto, as maiores exigências formais e a antecipação dessas exigências no processo que culminou com a outorga da escritura pública de compra e venda foram assumidas pela Relação. Correspondendo a uma espécie de reformatio in pejus relativamente ao formalismo que deveria ter sido seguido, e ultrapassando os argumentos de facto e de direito que haviam sido invocados pelos AA. no local apropriado, ou seja, na petição inicial, a Relação avançou para a apreciação do dever de comunicação e da exceção de caducidade com ponderação de aspetos que, não sendo totalmente do campo da aplicação oficiosa do direito, deveriam ter sido invocados pelos AA. que, em primeira linha, tinam o ónus de expor os factos que sustentavam a sua pretensão.

Tendo os AA. circunscrito o incumprimento do dever de comunicação por parte da 1ª R. a um momento posterior à realização da hasta pública, nenhum argumento a seu favor poderia ser encontrado na atuação desta última na fase anterior, designadamente o incumprimento de pretensas formalidades que, num entendimento diverso do que deveria ter sido o percurso negocial, foram inventariadas pela Relação.

2.5. Na resolução do caso concreto não pode ser considerado o que inovadoramente resulta da atual redação do art. 1091º do CC introduzida pela Lei nº 64/18, de 29-10.

Do preceito agora em vigor decorre que “a comunicação prevista no nº 1 do art. 416º é expedida por carta registada com aviso de receção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da receção”.

Assumiu o legislador, expressis verbis, uma forma solene tendente a atribuir um maior nível e segurança ao processo comunicacional, mas tal não implica que, relativamente a situações pregressas, como a que emerge dos autos, se conclua que a comunicação para o exercício da preferência deveria ter respeitado necessariamente tal formalismo ou formalidades semelhantes, sendo ajustado, isso sim, resolver o caso de acordo com a lei anterior e de harmonia com a interpretação que da mesma era feita pela doutrina e pela jurisprudência.

Centrados essencialmente no disposto no art. 416º, nº 1, do CC (e no circunstancialismo de se tratar de uma venda que integrava, como passo necessário, a prévia realização de uma “hasta pública”), importa referir previamente que os direitos legais de preferência são oponíveis erga omnes, implicando uma forte restrição ao direito de propriedade, à liberdade negocial e à atividade dos agentes económica. Daí que não seja curial que, em face de um direito de preferência legal sujeito a regras da tipicidade próprias dos direitos reais, se exponenciem, a respeito do seu exercício, as exigências que recaem sobre os obrigados à preferência, ao mesmo tempo que, em sentido inverso, se indulgencia, até um nível inaceitável, a atuação dos titulares no que respeita à opção de compra.

Uns e outros, em posições contrapostas, devem comportar-se com razoabilidade em qualquer das fases do processo de venda, o que tanto abarca a comunicação do projeto de venda e das cláusulas essenciais do contrato por parte daquele que pretende alienar o bem, como a reação daquele que é confrontado com tais elementos.

Tendo em conta o regime vigente na data em que ocorreu o processo de alienação, o cumprimento da obrigação de comunicação prevista no art. 416º, nº 1, do CC, não passa necessariamente por regras sacramentais e formais, sendo importante que se valorize o que material e substancialmente emergiu das relações e dos contactos havidos, considerando-se cumprida tal obrigação desde que possa concluir-se que os preferentes ficaram em condições de decidir se aceitavam ou não o exercício da preferência nas condições enunciadas pela transmitente.

Para este efeito, não podem tratar-se todos os projetos de venda de forma tabelar, sem distinção das nuances respeitantes a cada um. Em relação ao caso concreto, a 1ª R. estava legitimada e, de certo modo, obrigada a seguir um procedimento pré-contratual diverso do que é oponível a qualquer outra entidade num processo de venda puramente privado. Nessa medida, antes da realização da hasta pública que estava obrigada, nem sequer lhe era possível comunicar aos preferentes a identificação do interessado na aquisição ou o preço de venda, estando ao seu alcance apenas os elementos que efetivamente foram dados a conhecer aos AA., com especial destaque para a realização da “hasta pública” e o preço base pelo qual o prédio “iria à praça”.

A modalidade de venda através de “hasta pública” é o que o conceito integra de forma evidente, ou seja, comporta, em primeiro lugar, a designação de uma data para a realização de licitações (oralmente ou por entrega de carta fechada), normalmente a partir de um preço-base mínimo; prossegue com a apresentação de propostas e com a eventual aceitação pelo transmitente, no final, da proposta correspondente ao preço mais elevado; e culmina com a formalização do contrato de compra e venda mediante outorga de escritura pública.

Neste contexto, não havia qualquer necessidade de inventariar regimes formais mais complexos como aqueles a que aludiu a Relação, sendo bastante o confronto natural com a realidade das coisas:

- Foi designada uma “hasta pública” para realização da venda do prédio;

- Tal diligência foi anunciada publicamente e foi comunicada aos AA., sendo indicado o preço mínimo de € 140.000,00;

- Foi realizada a “hasta pública” da qual resultou a aceitação de uma proposta de € 142.000,00 apresentada pela 2ª R.;

- Ficaram fixadas as condições essenciais da venda;

- Seguiu-se a realização da escritura pública nas condições que haviam sido publicitadas e pelo preço que foi obtido na hasta pública.

2.6. Ainda que não tenha existido uma comunicação formal, por parte da 1ª A. a ambos os RR., do ato preliminar do processo de venda (a “hasta pública”) e das condições em que a venda se realizaria, a realidade que transparece da matéria de facto apurada revela à saciedade que, pelo menos depois de ter sido realizada a “hasta pública”, foram conferidos aos AA. todos os elementos da projetada venda que vieram a ficar refletidos na escritura pública, possibilitando-lhes o exercício da preferência.

Vejamos a sequência de acontecimentos tal como emerge dos factos apurados:

- Num momento preliminar, em 2-4-14, a 1ª R. entregou à A. as chaves do prédio e a documentação relativa à venda projetada, para eventual confiança a terceiros interessados na aquisição;

- Nessa data (2-4-14), ambos os AA. (e não apenas a A. a quem aquela chave e aquela documentação foi fisicamente entregue) passaram a ter conhecimento da intenção de venda do prédio, do preço-base, da modalidade de licitação, da data de realização da “hasta pública”, das condições de participação e da data previsível para realização da escritura pública;

- Depois disso, foi realizada a “hasta pública” – à qual, aliás, nenhum dos AA. compareceu – tendo a 1ª R. comunicado à A. a sua consumação e os elementos essenciais da proposta feita pela 2ª R. e aceite pela 1ª R. para a venda que seria formalizada através de escritura pública a outorgar posteriormente (e que veio efetivamente a ser celebrada), conhecimento que foi reforçado também pela informação dada pela 2ª R. de que fora aceite a sua proposta de aquisição no valor de € 142.000,00;

- Em 29-7-14 a 1ª R. recolheu as chaves do prédio junto da A., transmitindo-lhe que havia sido aceite a proposta de aquisição apresentada pela 2ª R. na hasta pública, no valor de € 142.000,00;

- Nos primeiros dias de Agosto de 2014, a 2ª R. solicitou à 1ª R. as chaves do prédio para iniciar os trabalhos de levantamento e avaliação das necessidades de intervenção no prédio;

- As chaves foram entregues à gerente da 2ª R. que, numa das idas ao prédio, pouco dias depois, encontrou a A. e nesse encontro aquela referiu-lhe ter sido aceite a proposta de aquisição do prédio que apresentou na hasta pública, no valor de € 142.000,00.

2.7. Perante este quadro informativo e em face do enquadramento jurídico aplicável ao caso (anterior, como se disse, ao que emerge da atual redação do art. 1091º do CC), é caso para perguntar: que outros elementos faltavam aos AA. para que, querendo, pudessem manifestar perante a 1ª R. a sua vontade de exercer a preferência pelo preço final que fora fixado na “hasta públic”a?

Pergunta retórica que contém em si a resposta: nenhum outro elemento existia que pusesse em crise o pleno exercício do direito de preferência se acaso os AA. estivessem realmente interessados na aquisição do imóvel, o que comprovadamente não ocorria.

Se porventura os AA. tivessem mostrado interesse na compra, para além de o assinalarem oportunamente às partes envolvidas, poderiam ter comparecido no local e na data anunciada para a “hasta pública”, onde ficariam a conhecer a identidade do licitante final e o preço da venda e onde até poderiam confrontar a 1ª R., nessa data ou nos 8 dias posteriores (art. 416º, nº 2, do CC), com o seu interesse na aquisição do prédio pelo valor alcançado na licitação.

Apesar da especificidade do processo de venda a que a 1ª R. estava vinculada, parece insuficiente, para satisfazer a obrigação de comunicação, a mera indicação de que a venda seria feita através da modalidade de “hasta pública”, a partir de um preço-base que foi fixado. Tal comunicação representava simplesmente um convite feito aos AA. para que comparecessem na “hasta pública”, a fim de licitarem ou tomarem nota da proposta final que seria aceite e, eventualmente, exercerem nessa mesma ocasião o direito de preferência.

Neste contexto, da falta de comparência dos AA. na referida diligência não podem extrair-se consequências tão drásticas como as defendidas pelas RR. no sentido de se considerar que o prazo de caducidade para o exercício do direito de preferência se contaria a partir daquela comunicação ou a partir da data em que foi realizada a “hasta pública”.

O direito de preferência deve ser exercido num quadro de relativa segurança e estabilidade quanto aos elementos essenciais da compra e venda projetada, servindo, no caso, os editais e a “hasta pública” de atos preparatórios do negócio que se projetava, mas cujos elementos essenciais ainda não estavam definidos para que, perante eles, fosse exigível uma atuação positiva dos AA. no sentido de declararem perante a 1ª R. o exercício do direito de preferência.

2.8. Desprezando, assim, para os estritos efeitos do art. 416º do CC, os conhecimentos preliminares que os AA., e mais consistentemente a A., tiveram do processo de venda e das condições que estavam projetadas, do que não pode duvidar-se é que a comunicação da 1ª R. informando que na “hasta pública” tinha sido aceite a proposta de compra apresentada pela 2ª R., corresponde a uma comunicação válida para efeitos do nº 1 do art. 416º do CC.

Independentemente do relevo a atribuir ao conhecimento prévio das condições em que o prédio seria levado à praça, os AA. não poderão de modo algum furtar-se aos efeitos da sua inércia no sentido do exercício do referido direito a partir do momento em que foram comunicados, especialmente pela 1ª R., obrigada à preferência, os elementos essenciais da proposta apresentada pela 2ª R. e por si aceite na aludida “hasta pública”. Pelo menos a partir daí, todos os elementos essenciais da venda que iria ser formalizada por escritura pública ficaram ao alcance dos AA. … se acaso estivessem interessados no exercício do direito de preferência.

Assim o impõem as regras da boa fé que no caso assumem um especial relevo, na medida em que se tratou de uma operação imobiliária relativamente à qual os AA. arrendatários foram informados, com toda a lisura (o que nem sempre acontece), quer da intenção de venda, quer do interesse da compradora, quer ainda do preço que foi estabelecido na “hasta pública” e de todos os demais fatores que razoavelmente lhes permitiam preparar o exercício do direito de preferência.

Não são frequentes, aliás, casos como este em que os arrendatários sejam postos com tanta franqueza a par dos elementos essenciais de uma venda projetada, recebendo inputs simultaneamente da proprietária e da adquirente, o que torna ainda mais incompreensível o resultado que foi declarado pela Relação.

Num quadro em que manifestamente nenhum dos AA. pretendia exercer a preferência nas condições que lhes foram dadas a conhecer, não deve correr-se o risco de sobrecarregar artificialmente a transmitente com mais exigências do que aquelas que foram cumpridas, ao mesmo tempo que, adotando um certo paternalismo, se abreviam os deveres de diligência que também recaíam sobre os AA. na eventualidade – incomprovada – de pretenderem preferir, tanto por tanto, na aquisição do imóvel.

2.9. O ato de comunicação é de sentido duplo: tanto se reporta ao sujeito passivo vinculado à obrigação de comunicar como ao destinatário da comunicação. Por isso, mais do que a análise rigorosa (ou rigorista) de cada momento do processo comunicacional inerente ao exercício do direito de preferência, nos termos do art. 416º, nº 1, do CC, importante, em face da anterior redação do art. 1091º do CC, era a efetiva perceção do negócio que, no caso, depois de ter sido anunciado de forma solene e séria e, mais do que isso, depois de ter ficado estabilizado nos seus aspetos essenciais, acabou por ser realizado como efetivamente fora programado.

Torna-se, assim, legítimo afirmar perante tudo isto que os AA. só não exerceram a preferência porque na realidade não estavam interessados na aquisição do imóvel do qual ocupavam apenas uma parte e não porque tivesse havido défice informativo que, ademais, não teve qualquer influência na opção dos AA.

Não restam dúvidas de que a 1ª R. deu conhecimento da sua intenção de venda, antes e depois da realização da “hasta pública”, resultando evidente que não foi o processo comunicacional empregue que impediu os AA. de exercerem a preferência ou de refletirem sobre o seu interesse nesse exercício. Afinal, o seu “interesse” apenas surgiu num momento muito posterior, depois de terem sido confrontados com uma outra comunicação, agora advinda da adquirente, a respeito de um outro assunto já distanciado do direito de preferência.

Neste quadro, concluir que os elementos que foram fornecidos aos AA. e de que tomaram conhecimento eram insuficientes e que, por isso, não foi cumprido o dever de comunicação que recaía sobre a 1ª R., constitui uma conclusão ao arrepio de tudo quanto a matéria de facto reflete e de tudo quanto a convivência social exige ou do que exigem os padrões da boa fé e o princípio da confiança mútua inerentes à relação jurídica de arrendamento subjacente ao direito de preferência.

Aliás, depois de os AA. terem ignorado esse aspeto na petição inicial, apenas no recurso de apelação que interpuseram, a respeito do dever de comunicação (fls. 846), deixaram de pôr o acento tónico na falta de indicação dos elementos essenciais da compra e venda projetada (depois da “hasta pública”), passando a advogar que o dever de comunicação deveria ter precedido a realização dessa diligência para nela comparecerem na qualidade de preferentes para exercer o direito de preferência.

Por conseguinte, não podemos deixar de considerar que, depois de ter sido realizada a “hasta pública”, foi possibilitado aos AA. o exercício da preferência no prazo supletivo de 8 dias previsto no art. 416º, nº 2, do CC, por remissão do nº 4 do art. 1091º, na sua anterior redação.

Como nesse prazo os AA. não reagiram, deve considerar-se que o direito de preferência que a sentença reconheceu se extinguiu por via de caducidade, nos termos do nº 2 do art. 416º do CC.

Caducidade que se considera também verificada complementarmente por via do art. 1410º do CC, uma vez que a ação foi intentada depois de terem decorrido mais de 6 meses sobre o conhecimento por parte dos AA. dos elementos essenciais da venda que ficaram estabilizados aquando da realização da “hasta pública”.

2.10. Mas dizem os AA. nas contra-alegações, seguindo, aliás, um argumento de que também a Relação se serviu, que, afinal, esta última comunicação (posterior à “hasta pública”) foi dirigida apenas à A. mulher e que, sendo o estabelecimento comercial bem comum do casal (são casados no regime de comunhão de adquiridos desde 1977) e integrando o contrato de arrendamento e o correspondente direito de preferência, a comunicação com os aludidos efeitos extintivos apenas seria eficaz se tivesse sido feita também ao A. marido.

Trata-se de (mais) um argumento que segue a linha da exponenciação de aspetos formais que já anteriormente se recusaram e que, nessa medida, também deixa ocultos os aspetos de ordem material a que deve dar-se prioridade.

Não ficará sem resposta.

Na apreciação de litígios com os contornos que este apresenta não é curial que se valorize apenas um ou outro facto isolado. Os factos que as instâncias consideraram provados emergiram das alegações das partes, sendo certo que na petição inicial e na réplica os AA. negaram a existência de qualquer conhecimento de elementos essenciais da venda e alegaram que apenas os conheceram quando obtiveram certidão da escritura pública de compra e venda.

Tal alegação foi infirmada pela decisão da matéria de facto considerada provada e da qual resultam muitos outros factos anteriores, do conhecimento de ambos os AA., com inegável relevo para o caso. Além disso, no que ao A. marido respeita, os factos que inicialmente negou acabaram por ser admitidos, numa parte substancial, no seu depoimento de parte que foi levado a prestar na audiência final.

Em relação a matéria que fora alegada pela 2ª R., respondeu então o A. marido (fls. 356):

- À matéria do art. 8º da contestação da 2ª R. que “esteve afixado no estabelecimento o edital”, facto que negara nos articulados;

- Sobre a matéria do art. 24º respondeu que “desde que teve conhecimento de que se iria realizar a hasta pública até intentar a presente ação não manifestou junto da 1ª R. a intenção de adquirir o imóvel”, o que também revela contradição relativamente ao que alegou oportunamente a respeito do conhecimento da realização da hasta pública;

- Contra o que o A. alegara, respondeu ainda, quanto ao art. 47º da contestação da 2ª R., que “consultou o processo que lhe foi entregue pela 1ª R.”, precisamente o processo que, segundo o mesmo A., relativamente ao art. 43º, a “1ª R. lhes entregou … para facultar tais elementos a quem lá se deslocasse para procurar informações/manifestar interesse".

Trata-se de respostas que, embora advenham apenas do A. marido – o único que depôs em audiência final - não podem deixar de ser ponderadas para contrapor ao rigor com que a Relação tratou o dever de comunicação num caso como este em que o direito de preferência foi reconhecido a ambos os cônjuges. Tal depoimento vem, aliás, juntar-se a factos que as instâncias consideraram provados e que se reportavam exclusivamente à A. mulher que era quem estava à frente do estabelecimento comercial.

Na fundamentação da decisão da matéria de facto da sentença refere-se que o A. “confirmou que o edital foi afixado no estabelecimento comercial pelo Sr. ... (funcionário da 1ª R.), mencionando a realização da hasta pública”, considerando ainda que “resulta evidente o conhecimento que tinha da intenção de venda e respetivas condições de alienação” (fls. 792). Por outro lado, sendo os AA. casados entre si, afirmaram na petição inicial que era a A. quem diariamente permanecia no estabelecimento, enquanto o A. marido se encarregaria de um outro estabelecimento congénere na mesma zona da cidade de Olhão (arts. 13º e 14º).

Acresce ainda que o estabelecimento comercial constitui um bem comum do casal que qualquer dos cônjuges pode administrar, nos termos do art. 1678º do CC, sendo nesta perspetiva que se devem analisar os contactos que ocorreram entre cada uma das RR. e a A. (e, ainda, naquele primeiro momento, pelo menos, com o A. marido).

Ademais, num processo de alienação que foi longo, os comportamentos dos sujeitos devem ser apreciados em globo, extraindo do conjunto de factos aquilo que efetivamente dele resulta em termos materiais, sendo evidente que também ao A. foram anteriormente dados elementos informativos relevantes para a sua eventual manifestação de interesse na compra do prédio que sempre se verificou inexistente e que apenas surgiu quando foi confrontado com um facto que nenhuma relação direta teve com a compra e venda e que emergiu simplesmente do exercício, pela nova proprietária, de um direito que lhe seria conferido pela lei do arrendamento.

Decorre da matéria de facto provada e também da própria alegação dos AA. que não foi pelo facto de estes últimos contactos diretos terem sido feitos apenas com a A. mulher que ambos os AA. deixaram de exercer qualquer direito, mas simplesmente porque, desde o início e em todas as fases que mediaram entre a comunicação de intenção de venda do imóvel e a formalização por escritura pública, os AA. revelaram que não estavam interessados na aquisição do imóvel. Por isso, foi manifestamente indiferente para ambos o facto de a comunicação da aceitação da proposta de venda por parte da 1ª R. – segundo os factos provados – ter sido dirigida apenas à A., aquela que, na realidade, explorava o estabelecimento a que respeitava o arrendamento em causa.

Da interpenetração entre a matéria de facto e a matéria de direito não podem ficar alheadas também as posições que as partes assumiram ao longo do processo.

Ora, revelam os autos que logo na petição inicial os AA. alegaram que:

- “Nenhum dos RR. deu a conhecer, por qualquer forma, nem verbal nem escrita, nem ao A., nem à A. antes de realizada a compra e venda, de que a venda estava projetada e qual o respetivo preço, data, hora e local de outorga da escritura ou de outro título de formalização, identificação do comprador e termos e condições de pagamento do preço, designadamente” (art. 23º) e que.

- “Só com a notificação efetuada pela R. DD, Ldª, de que tinham um novo senhorio, ficaram os AA. a saber da venda e tiveram conhecimento da identidade do comprador, e só com a obtenção de certidão do título de compra e venda se inteiraram do conteúdo e natureza da alienação” (art. 24º).

Tais factos (de natureza pessoal) não correspondem à verdade, tendo os AA. omitido os diversos contactos anteriores que se apuraram em resultado da sua alegação pelas RR., o que reforça a ideia de que a sua pretensão foi despoletada a partir de uma factualidade diversa daquela de que se serviu a Relação para inverter a decisão da 1ª instância, numa espécie de rewind do processo negocial do qual foram extraídos argumentos que valorizaram aspetos que realmente não foram tidos por relevantes no momento adequado.

Por fim, dir-se-á ainda que, depois de terem sido confrontados com as alegações das RR. nos articulados a respeito dos contactos anteriores à data em que foi celebrada a escritura pública de compra e venda, os AA. se refugiaram, na réplica, com a falta de lembrança da A. e com a alegação de que tais contactos não teriam ocorrido diretamente com o A. marido.

Nenhum dos factos provados e nenhum dos argumentos esgrimidos contraria a conclusão que já se assumiu de que a caducidade do direito de preferência que foi reconhecido na sentença opera em relação a ambos os AA., determinando a revogação do acórdão recorrido e a reposição da sentença da 1ª instância na parte em que considerou procedente tal exceção.

2.11. Posto que o modo como os AA. se comportaram em todo o processo de venda e especialmente depois da realização da hasta pública não seja suficiente para se considerar ter existido renúncia tácita ao exercício do direito de preferência, os factos apurados sempre permitiriam recusar o exercício do direito de preferência por tal constituir uma manifestação de abuso do direito.

No acórdão recorrido ainda se ponderou a verificação desse fator impeditivo relativamente à A. mulher, na medida em que teria adotado um comportamento no sentido de que não exerceria o direito de preferência, revelando esta ação, na sua perspetiva, a figura do venire contra factum proprium. Tal efeito foi recusado, no entanto, relativamente ao A. marido como se circunstâncias que rodeiam o caso permitissem estabelecer uma tal diferenciação de natureza claramente artificial.

Atentas as específicas circunstâncias do caso, a assimilação do comportamento de ambos ao mesmo regime é, além do mais, justificada pelo facto de o A. marido ter assumido no depoimento de parte factos que anteriormente negara, enquanto se viu gorada a possibilidade de ouvir a A. mulher (cujo depoimento também fora requerido), tendo em conta a justificação médica que foi apresentada.

Seja como for, a figura do abuso de direito – que os factos também sustentam - também se destina a evitar que sejam alcançadas soluções diversas relativamente a sujeitos que estão numa posição substancialmente idêntica, como resulta à saciedade dos autos no que concerne a ambos os AA., marido e mulher, que exploram dois estabelecimentos comerciais na mesma zona da cidade de Olhão e que vivem em economia comum.

Para além dos factos anteriores à realização da “hasta pública”, dos quais emerge com maior destaque o conhecimento que a ambos os AA. foi dado de que a venda se iria realizar nessa modalidade, ficando na sua posse o processo documental relativo à venda do prédio a fim de poder ser mostrado a eventuais interessados (sendo que os AA., nesta perspetiva, também eram potenciais interessados), a matéria de facto revela ainda o seguinte:

- Em 29-7-14 a 1ª R. recolheu as chaves do prédio junto da A., transmitindo-lhe que havia sido aceite a proposta de aquisição apresentada pela 2ª R. na hasta pública, no valor de € 142.000,00;

- Nos primeiros dias de Agosto de 2014, a 2ª R. solicitou à 1ª R. as chaves do prédio para iniciar os trabalhos de levantamento e avaliação das necessidades de intervenção no prédio;

- As chaves foram entregues à gerente da 2ª R. que, numa das idas ao prédio, pouco dias depois, encontrou a A. e nesse encontro referiu-lhe ter sido aceite a proposta de aquisição do prédio que apresentou na hasta pública, no valor de € 142.000,00;

- Entre Agosto de 2014 e Novembro de 2014 a gerente da 2ª R. encontrou por diversas vezes a A., a qual mostrou agrado por existirem novos proprietários do prédio;

- Em Outubro de 2014, o arquiteto FF, com autorização da A., foi tirar fotografias ao prédio, incluindo o estabelecimento comercial dos AA., apresentando-se como o “técnico ao serviço do novo proprietário”, indicando que pretendia efetuar um levantamento integral do imóvel para a realização de projetos das obras;

- Após 10-11-14, a gerente da 2ª R. fez deslocações frequentes ao prédio, com vista à preparação e elaboração dos projetos de alteração mas em nenhuma dessas ocasiões os AA. demonstraram interesse na aquisição do prédio;

- Os AA. nunca comunicaram à 1ª R. a intenção de adquirir o prédio;

- Por declaração confessória do A. marido, “desde que teve conhecimento de que se iria realizar a hasta pública até intentar a presente ação, não manifestou junto da 1ª R. a intenção de adquirir o imóvel”;

- Os AA. aperceberam-se da intenção da 2ª R. realizar obras no prédio e que havia iniciado trabalhos de arquitetura e engenharia.

A apreciação destes factos não pode deixar de ser feita em face das circunstâncias objetivas e subjetivas do caso, sendo que ambos os AA. são casados, vivem na mesma casa e trabalham na mesma atividade e na mesma zona.

Neste circunstancialismo específico, não se mostra compreensível, a não ser por violação grave das regras da boa fé, que, depois de ter sido aceite a proposta da 2ª R. que precedeu a celebração da escritura de compra e venda, preparando-se a mesma para a realização de obras no prédio, os AA. continuassem impassíveis, depois da impassividade que já haviam revelado na fase anterior à hasta pública, apesar da lisura com que ambas as RR. se comportaram perante os AA.

Nestas circunstâncias, a instauração da ação de preferência reflete da parte de ambos os AA. uma manifestação de abuso de direito, na modalidade correspondente à violação das regras da boa fé e do fim social e económico do direito de preferência.

Também por esta via se impunha a revogação do acórdão recorrido.

3. Resta apreciar a conduta processual dos AA. que foram condenados como litigantes de má fé pela 1ª instância mas que a Relação absolveu nessa parte por ter considerado que os AA. não faltaram à verdade.

3.1. Sem falsa ironia se pode dizer, a este respeito, que o critério que a Relação utilizou relativamente à apreciação do comportamento processual dos AA., isto é, do modo como se comportaram num campo onde solicitaram a intervenção de Tribunais Judiciais, com necessidade de se orientarem por regras e princípios de Direito Público que orientam a atividade de resolução de litígios e de administração da justiça estadual, foi inversamente proporcional ao rigor que acabou por impor à 1ª R. numa área do Direito Privado.

A má fé processual não emerge apenas da dedução de pretensões cuja falta de fundamento não se devia ignorar (situação que no caso se não verifica), podendo resultar também de uma atuação pautada pela alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa (art. 542º, nº 2, als. a) e b), do CPC.

No caso não está em causa apreciar se os AA., na ocasião em que os factos ocorreram, sabiam ou não o que era uma “comunicação” para efeitos de exercício da preferência ou se alcançaram todos os aspetos de ordem jurídica relacionados com a compra e venda e com o exercício da preferência. Obviamente que não lhes poderiam ser impostas tais exigências de natureza técnico-jurídicas.

O que unicamente está em causa na apreciação da conduta é o comportamento dos AA., devidamente patrocinados por advogado, aquando da instauração da ação e na pendência da mesma, sendo então legítimo exigir o que a lei exige, ou seja, a não alteração da verdade dos factos ou a alegação de factos relevantes para a decisão da causa, exigências que os AA., devidamente assessorados, não poderiam ignorar.

O caso presente revela uma manifesta e insustentável violação do dever de verdade que acompanha o dever de boa fé processual. Posto que fosse legítimo aos AA., num primeiro momento, assentar o seu direito de preferência na realização da escritura pública de compra e venda e na falta de comunicação dos elementos que ficaram a constar dessa escritura, não poderiam de modo algum negar factos pessoais que acabaram por ser alegados pelas RR. e que, depois de terem sido omitidos na petição inicial, foram negados no articulado de réplica.

Confrontados com factos a que não poderiam deixar de dar relevo, na medida em que estavam relacionados com a caducidade do direito de preferência, os AA. continuaram a negar a maior parte deles (e quanto à A. a refugiar-se na falta de lembrança de alguns), sendo que tais factos vieram a apurar-se através da produção de meios de prova a que essa negação obrigou.

Tratava-se de factos de muito relevo para a resolução do litígio, como o revelou logo a sentença de 1ª instância, de forma que, independentemente dos efeitos que daí poderiam advir, era dever processual dos AA. revelarem ou confirmarem os factos pessoais que conheciam.

3.2. O Estado reconhece e garante amplamente os direitos de ação e de defesa, mas com algumas condições. De entre elas destaca-se a seguinte: quem pretenda recorrer à via judicial ou quem aí tenha de intervir na resolução de litígios de natureza privada, por não querer ou por não conseguir fazê-lo extrajudicialmente, tem de se sujeitar às regras fixadas.

Entre outras normas que neste momento não cumpre apreciar, as partes ficam cientes de que, no âmbito da resolução de conflitos de Direito Privado, devem pautar-se pelas regras da cooperação intersubjetiva, pela lealdade e pela boa-fé processual, destacando-se a necessidade de colaborarem na resolução do litígio com a maior brevidade.

A lei não pede a nenhuma das partes que se entregue sem luta. Por isso, a todas é garantida a possibilidade de fazerem vingar as respetivas posições, desde que estejam convencidas da sua legitimidade e não sejam excedidos certos limites além dos quais se considera ilegítimo o exercício dos direitos processuais.

A lei confere uma vasta amplitude ao direito de ação ou de defesa, contudo, não deixa de prever a responsabilidade processual subjetiva para situações mais graves em que a litigação seja caracterizada por comportamentos dolosos ou gravemente culposos, materializadas através da dedução de pretensões ou de oposições manifestamente infundadas, assentes na alteração censurável da verdade dos factos, corporizadas na grave violação do dever de cooperação ou exteriorizadas através de uso ilegítimo dos instrumentos do direito adjetivo, com vista à obtenção de objetivos ilegais, à ocultação da verdade ou ao entorpecimento ou retardamento da atividade dos tribunais.

Estas atuações são consideradas ilícitas e, por isso, merecedoras de sanções de natureza cível, independentemente do resultado final da ação ou da execução.

Através da litigância de má-fé a lei pune a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes, quer ela se apresente como uma forma de conseguir um objetivo considerado ilegítimo pelo direito substantivo, quer como um meio de impedir a descoberta da verdade, quer ainda como forma de emperrar a máquina judiciária, com a colocação de obstáculos ou com a promoção de expedientes meramente dilatórios, quer ainda, mais concretamente, como forma de impedir o trânsito em julgado da decisão e, deste modo, prejudicar a parte na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe seja reconhecido.

Através da qualificação da atuação como má-fé instrumental, procura-se sancionar os comportamentos que, motivados por dolo ou por culpa grave, digam respeito não ao fundo ou mérito da causa, mas à relação jurídica processual.

No caso concreto ficámos longe (bem longe, aliás!) de uma conduta que possa integrar-se no conceito de lide cautelosa que referia Alberto dos Reis ou mesmo da lide simplesmente imprudente. A situação ultrapassou as margens e invadiu os terrenos da lide dolosa manifestada pela omissão de factos relevantes e, mais ainda, pela negação (por ambos os AA.) e alegação de falta de lembrança (pela A.) de factos pessoais que, afinal, vieram a provar-se (cf. no mesmo sentido o Ac. do STJ de 18-10-18, 74300/16).

Pelo exposto, também nesta parte, deve ser reposta a decisão da 1ª instância.

Já quanto à interposição do anterior recurso de apelação ou quanto à atuação dos AA. nos presentes recursos de revista não se verifica a má fé, na medida em que se limitaram a defender a posição que, afinal, acabou por ser aceite pela Relação.

V – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente as revistas, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença da 1ª instância que considerou procedente a exceção de caducidade do direito de preferência e que condenou os AA. como litigantes de má fé.

Custas da revista e nas instâncias a cargo dos AA.

Notifique.

Lisboa, 19 de Junho de 2019

Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo