Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98B643
Nº Convencional: JSTJ00034075
Relator: DIONÍSIO CORREIA
Descritores: ESPECIFICAÇÃO
CASO JULGADO
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ199809230006432
Data do Acordão: 09/23/1998
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 872/96
Data: 03/20/1997
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 342 N1 ARTIGO 483.
CPC67 ARTIGO 666 N3 ARTIGO 667 N1.
Jurisprudência Nacional: ASSENTO STJ DE 1994/05/26 IN DR IS-A DE 1994/10/04.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/02/15 IN CJSTJ ANOI TOMOII PAG59.
ACÓRDÃO STJ PROC994/96 DE 1997/04/10.
Sumário : I - A especificação, tenha ou não havido reclamações, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio - Assento de 26-5-94.
II - É questão de facto apurar, no plano naturalístico, se a conduta do agente foi condição concreta do dano.
III - É todavia questão de direito determinar se, no plano geral e abstracto, a condição verificada é causa adequada do dano, isto é, se dada a sua natureza geral, era de todo indiferente para a verificação do dano e só o provocou em virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto.
IV - Sobre o lesado A. impende o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual previstos no art. 483 do CCIV 66.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - A, por si e na qualidade de representante legal do filho menor B propôs, com apoio judiciário, acção com processo sumário pedindo a condenação de Sociedade Portuguesa de Seguros, SA no pagamento da quantia de 16000000 escudos, como indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que descrimina, em consequência da colisão, ocorrida na rua Comandante Sacadura Cabral, em Santo António de Cavaleiros, entre o velocípede com motor de três rodas, 1-LRS-26-78 rebocando uma caixa de carga, conduzido no sentido Lisboa-Loures pelo seu proprietário, C marido e pai dos AA., que veio a falecer, e o automóvel ligeiro de mercadorias QP-14-18, seguro na R. e conduzido, em sentido contrário, pelo seu proprietário D, por culpa deste que saiu da sua mão de trânsito e foi colher o velocípede com motor.
A Ré impugna a versão do acidente e os danos e conclui pela improcedência.
O Centro Nacional de Pensões, oficiosamente mandado citar, pediu o reembolso das prestações por morte pagas à viúva do sinistrado, no montante de 240600 escudos.
Foi proferido despacho saneador e organizou-se, por remissão, especificação e questionário. Sob reclamação do CNP foram aditadas, igualmente por remissão, duas alíneas - L) e M) - à especificação.
Na sequência da tramitação processual veio a ser proferida sentença que julgou improcedentes a acção e o pedido de reembolso da CNP.
A A, interpôs recurso de apelação, mas a Relação confirmou a sentença.
Recorre agora de revista e, pretendendo ver revogado o acórdão da Relação, alegou e concluiu:
1º - A alínea A) e, «mutatis mutandis», a alínea L) da especificação não podiam ter sido alteradas, depois da produção de prova e das respostas aos quesitos;
2º - O facto constante das referidas alíneas ficou assente por acordo das partes e consistiu em que o sinistrado C faleceu em consequência do acidente dos autos;
3º - A justificação apresentada pelas instâncias, para alterar a expressão «em consequência do acidente» por na «sequência do acidente», foi a de que a redacção inicial se ficou a dever a lapso manifesto, uma vez que, de outro modo, não se compreenderia a formulação do quesito 7º do questionário;
4º - Porém, é por demais manifesto que a formulação do quesito 7º nada tem a ver com aquela matéria que já se encontrava especificada;
5º - Com efeito, o quesito 7º contém matéria que foi impugnada e diz, apenas respeito ao nexo causal entre os ferimentos constantes da autópsia e a morte do sinistrado;
6º - E por se tratar, como é óbvio, de matéria de facto, não está ela no âmbito deste Supremo Tribunal;
7º Aliás, da resposta negativa ao referido quesito não resulta que não foi o acidente dos autos que não causou a morte do sinistrado C;
8º - Não se tratou, assim, de «erro material» ou «lapso manifesto» a que se referem os arts. 666 e 667 do Cód. Proc. Civil, para que pudesse ter sido alterada a especificação;
9º - Além disso, não havia qualquer fundamento de facto ou de direito para a alteração em apreço, de acordo com o Assento deste Supremo Tribunal, de 26 de Maio de 1994, uma vez que aquela alteração só podia efectuar-se, respeitando os factos admitidos por acordo, nos termos do art. 659, n. 3 do Cód. Proc. Civil;
10º - Mantendo-se, assim, o facto assente na especificação, impende sobre a ré seguradora o dever de indemnizar a autora, ora recorrente, nos termos do art. 563 do Código Civil, por todos os danos resultantes do acidente dos autos e que vitimou o sinistrado;
11º - E porque já se encontram apurados nos autos todos os atinentes factos, incluindo os respeitantes à culpabilidade do causador do acidente, deverão os mesmos baixar para a fixação do «quantum» indemnizatório;
12º - As instâncias violaram todos os dispositivos legais apontados, tanto de direito substantivo como adjectivo e não respeitaram a «doutrina do Assento».
Não houve alegações da recorrida.
2. - A Relação fixou a matéria de facto nos termos seguintes (mencionam-se entre parêntesis curvos as alíneas da especificação ou os ordinais das respostas aos quesitos; e meteram-se dentro de parêntesis rectos tudo o que, incluído entre a matéria provada, respeita a justificações de alterações introduzidas):
«A primeira Autora, A foi casada com C, falecido na sequência do acidente de viação de que tratam os autos e o segundo Autor, é filho do casal (A)
[Embora na redacção inicial desta alínea figurasse a expressão «em consequência» em vez da expressão «na sequência», agora introduzida, essa redacção inicial ficou a dever-se a lapso evidente; com efeito, sem esse lapso não se compreenderia a formulação do quesito 7º cuja matéria que se prende com o nexo causal entre o evento e a morte do sinistrado, matéria que foi expressamente impugnada pela R. no art. 17 da contestação; daí a alteração agora introduzida à al. A) da especificação, ao abrigo dos arts. 666 n. 3 e 667 n. 1 do C.P.C. e do Assento do S.T.J. de 26-5-94, publicado no D.R. 1ª série A, de 4-10-94] - sic.
- No dia 28-6-91, cerca das 0h30m, circulava na Rua Comandante Sacadura Cabral o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula QP-14-18, conduzido pelo seu proprietário D (B).
- O referido veículo circulava naquela rua no sentido norte-sul, ou seja, na direcção de Loures para Lisboa (C).
- À mesma hora e no mesmo local circulava de Lisboa para Loures o velocípede com motor de matrícula 1-LRS-26-78, conduzido pelo seu proprietário, o sinistrado C (D).
- Este veículo era um velocípede de 3 rodas e tinha acoplada uma caixa destinada a carga (E).
- Na Rua Comandante Sacadura Cabral ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de mercadorias e o triciclo motorizado (2º)
-O veículo de mercadorias veio a ficar estacionado junto do muro da faixa contrária àquela em que seguia (F).
- O pavimento estava molhado pois que momentos antes do sinistro, tinha sido lavado pelos funcionários camarários (G).
- O condutor do velocípede faleceu no dia 3-7-91 - doc. fls. 10 (H).
- O sinistrado tinha, à data do acidente, 41 anos, pois nasceu em 8-3-50, conforme certidão junta a fls. 15 (I).
- A R. celebrou com o seu segurado, D, um contrato de seguro titulado pela apólice nº 73369 até ao montante de 20000000 escudos com o máximo de 12000000 escudos por lesado - doc. de fls. 30 (J).
- Com base no falecimento em 3-7-91 do beneficiário nº 121787131, C, na sequência do acidente de viação a que respeitam os autos, foram requeridas no Centro Nacional de Pensões, pela viúva A, por si e na qualidade de representante legal dos filhos menores F e G, as respectivas prestações por morte, as quais foram deferidas (doc. de fls. 35) - (M, por lapso de escrita, em vez de «L»).
[Valem aqui, mutatis mutandis, as considerações tecidas a propósito da redacção da alínea A.] - sic.
- Em consequência, a C.N.P. pagou à referida A, a título de subsídio por morte, o montante de 240000 escudos (N, por lapso de escrita, em vez de M).
- A referida caixa de carga do velocípede transportava cerca de 100 kg de peixe fresco que tinha sido comprado em Lisboa pelo condutor e sinistrado C e destinava-se a ser vendido no mercado de Loures pela primeira A. (1º).
- Em consequência do acidente, a parte da frente do triciclo ficou imobilizada junto ao eixo da via, na sua mão de trânsito, com o seu condutor ferido, ao volante do mesmo veículo (3º).
- Em consequência do embate a caixa de carga do triciclo desprendeu-se deste, vindo a ficar imobilizada na estrada (4º).
- O veículo de mercadorias veio a ficar tombado, com o tejadilho voltado para o triciclo (5º).
- Minutos após o acidente, o condutor do veículo de mercadorias afirmou no local que tinha adormecido e que se assustou quando viu o triciclo (6º).
- O sinistrado era o único amparo do casal (8º).
- O sinistrado ganhava por mês a quantia de 76400 escudos ilíquidos como funcionário dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Loures (9º).
- O falecido C era bom marido, além de pai cumpridor dos deveres educacionais (11º)
- Os AA. sofreram grande desgosto e dor pela morte de seu marido e pai (12º)".
Com base nestes factos a acção improcedeu por se não ter provado que a morte do lesado tenha sido causada por ferimentos resultantes do acidente.
A Relação também concluiu que «não se demonstrou qualquer conexão» entre o acidente e a morte do lesado.
3. - As questões a decidir são estas: a) se as alíneas A) e L) da especificação não podiam ser alteradas; b) a serem inalteráveis, impende sobre a R. a obrigação de indemnizar os danos invocados como resultantes do acidente.
Ao elaborar a sentença, o Memº Juiz modificou (e a Relação confirmou) a alínea A) da especificação - «A primeira A., foi casada com C, falecido em consequência do acidente de viação de que tratam os autos e o segundo Autor, B, é filho do casal» - substituindo a expressão sublinhada por "na sequência". E do mesmo modo procedeu com a alínea L) que, por lapso de escrita, designou como «M» na mesma peça (lapso mantido pela Relação): «Com base no falecimento em 3-7-91 do beneficiário nº 121787131, C, em consequência do acidente de viação a que respeitam os autos, foram requeridas no Centro Nacional de Pensões, pela viúva A, por si e na qualidade de representante legal dos filhos menores F e G, as respectivas prestações por morte, as quais foram deferidas».
As instâncias uniformemente entenderam o seguinte: «a redacção inicial ficou a dever-se a lapso evidente; com efeito, sem esse lapso não se compreenderia a formulação do quesito 7º cuja matéria que se prende com o nexo causal entre o evento e a morte do sinistrado, matéria que foi expressamente impugnada pela R. no art. 17º da contestação; daí a alteração agora introduzida à al. A) da especificação, ao abrigo dos arts. 666 n. 3 e 667 n. 1 do C.P.C. e do Assento do S.T.J. de 26-5-94, publicado no D.R., 1ª série A, de 4-10-94».
Segundo aquele Assento, a «especificação, tenha ou não havido reclamações, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio». Esta doutrina, com larga fundamentação no texto do acórdão em que foi formulado o Assento, agora com o valor de jurisprudência uniformizada (art. 17, n. 2 do DL 329-A/95, de 12/12), é aplicável à situação dos autos.
Na verdade, a R., no art. 17 da contestação, impugnara expressamente que o sinistrado tivesse falecido, como alegava a A., nos artigos 1º da petição, «em consequência» do acidente ocorrido. Por isso, a menção, constante das alíneas A) e L) da especificação elaboradas por remissão, de falecimento «em consequência» do acidente de viação, só poderia dever-se a lapso, ou desatenção evidentes, porventura por tal facto vir referido incidentalmente a propósito de o falecido ser, respectivamente, marido e pai da A. e do filho, por ela representado, e de ter a A. pedido as pensões por morte à C.N.P. Daí que a sentença final viesse a corrigir aqueles erros ou deficiências da especificação, de modo a pô-la de acordo com a matéria alegada e o resultado da prova - resposta dada ao quesito 7º quanto ao facto, impugnado expressamente, do falecimento do sinistrado «em consequência» do acidente de viação.
Não assiste, assim, razão à recorrente quanto à modificação ou alteração introduzida pelas instâncias àquelas alíneas A) e L), e não tem qualquer fundamento a afirmação da recorrente de que estava admitido por acordo que a morte ocorrera em consequência do acidente, dada a sua impugnação especificada pela R., como se referiu.
Sobre a A. impendia o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, previstos no art. 483, por força do estatuído no art. 342, n. 1, ambos do CC. A determinação da verificação de um desses pressupostos, o «nexo de causalidade», definido no art. 563, segundo o qual só existe obrigação de indemnizar em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fora a lesão, constitui uma questão de facto e uma questão de direito. Cfr. neste sentido Ac. deste Tribunal de 15-2-93, CJ, t2, pág. 59 (Miranda Gusmão) e de 10-4-97, proc. 994/96 (Sousa Inês). É questão de facto apurar no plano naturalístico se a conduta do agente foi condição concreta do dano. É questão de direito determinar se, no plano geral e abstracto, a condição verificada é causa adequada do dano, isto é, se dada a sua natureza geral era de todo indiferente para a verificação do dano e só o provocou em virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto, conforme sublinha Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5ª edição pág. 448.
Ora tendo-se provado que, em consequência do acidente o triciclo conduzido por C ficou imobilizado, com o seu condutor ferido ao volante (resposta ao quesito 3º), a resposta negativa ao quesito 7º sobre se os ferimentos descritos na autópsia foram causa da morte daquele lesado exclui que o embate e ferimentos fossem condição naturalística da morte do primeiro. E, assim, fica excluída em sede de facto o nexo de causalidade, em face da resposta que este Tribunal tem de acatar.

Decisão:

- Nega-se a revista e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrido.
- Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 23 de Setembro de 1998.
Dionísio Correia,
Miranda Gusmão,
Sousa Inês.