Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B1650
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
EXTINÇÃO
Nº do Documento: SJ200506160016507
Data do Acordão: 06/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 6593/04
Data: 12/16/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : O artigo 152º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, quando declara que, com a declaração de falência, se extinguem imediatamente os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, não abrange outras garantias que não os privilégios creditórios, designadamente não havendo que aplicar o regime por ele estabelecido às hipotecas legais constituídas a favor da Segurança Social.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Por sentença do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, transitada em julgado, foi declarada a falência de A.

Foi, na sequência, aberto o concurso de credores, tendo sido reclamados créditos que não sofreram qualquer contestação.

Entre os créditos reclamados consta o do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS), no montante de 5.583.321$00 (fls. 77), relativo a falta de pagamento de contribuições à Segurança Social referentes aos meses de Maio de 1999 a Janeiro de 2000 e respectivos juros de mora.

No despacho saneador foram considerados verificados, por falta de impugnação, os créditos reclamados, e aí graduados, tendo o aludido crédito do IGFSS, com fundamento na extinção da hipoteca legal que incidia sobre os imóveis apreendidos, sido considerado e graduado como crédito comum.

Discordando desta decisão, dela apelou o reclamante IGFSS, sem êxito embora, porquanto o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 16 de Dezembro de 2004, julgou a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Interpôs, desta feita, o reclamante recurso de revista, pugnando pela alteração do acórdão recorrido, na parte em que extinguiu as hipotecas legais registadas pela Segurança Social, graduando-se o seu crédito como privilegiado, no lugar competente.

Não foram deduzidas contra-alegações.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

Nas alegações do recurso a recorrente, formulando conclusões que, atento o seu carácter manifestamente argumentativo, nos dispensamos de enunciar, afirmou de relevante apenas que o acórdão recorrido, ao considerar que o legislador quis extinguir as hipotecas legais (constituídas pela Segurança Social para garantia de contribuições em dívida e respectivos juros de mora, relativamente ao produto da liquidação dos imóveis das verbas 64, 65, 66, 67 e 68, que fazem parte integrante da massa falida) tal como extinguiu os privilégios creditórios, decidiu erroneamente.

Na apreciação do recurso importa ter em consideração os factos seguintes:

i) - a acção de recuperação, de que estes autos são apenso, foi instaurada em Março de 2000;

ii) - a falência foi aí declarada em 02/02/2001;

iii) - na sua reclamação - fls. 77 e segs. - o IGFSS incluiu contribuições referentes aos meses de Maio de 1999 a Janeiro de 2000, no montante de 4.710.046$00 e juros de mora vencidos até Fevereiro de 2001, no montante de 873.275$00;

iv) - o crédito da Segurança Social encontra-se garantido com hipoteca legal sobre os imóveis acima referidos, registada em 16/06/2000.

Relativamente à questão suscitada, entendeu, aliás doutamente, o acórdão recorrido que, por força da interpretação extensiva do disposto no art. 152º do CPEREF, essencialmente justificada pela ratio legis daquela norma, os créditos do recorrente tinham passado a créditos comuns.

O recorrente, por seu turno, sustenta que os créditos que reclamou continuam a dever ser considerados como créditos hipotecários, pois aquele preceito legal fala em privilégios creditórios e não podia o intérprete estender tal conceito a outras figuras de garantia das obrigações.

Dispõe o artigo 152º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF) (1) que "com a declaração de falência extinguem-se imediatamente, passando os respectivos créditos a ser exigidos como comuns, os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, excepto os que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou da falência".

Importa, no âmbito do recurso, saber se a hipoteca legal registada pelo recorrente se deve considerar ou não extinta face ao preceituado naquele artigo 152°.

Sobre a solução do problema existe, neste momento, marcada controvérsia na doutrina e jurisprudência nacionais.

Há, na verdade, por um lado, quem sustente que a disposição do artigo 152º do CPEREF se deve estender, para salvaguarda do seu efeito útil, à hipoteca legal, que deve, assim, face à declaração de falência, considerar-se extinta.(2)

Mas, em contrapartida, também se vem defendendo (e esta é, de momento, a orientação que prevalece no Supremo) que, não abrangendo o artigo 152º do CPEREF outras garantias que não os privilégios creditórios, não há que aplicar o regime por ele estabelecido às hipotecas legais constituídas a favor da Segurança Social, antes a estas se há-de aplicar o regime legal e geral, comummente aplicável a tais garantias. (3)

A nossa opinião - adiantamo-la desde já, justificando-a em seguida - coincide com aquele segundo entendimento.

Antes de mais, referindo expressamente os privilégios creditórios da segurança social, não contém o texto da mencionada norma legal qualquer referência a outras garantias dos créditos, designadamente hipotecas legais, pertencentes àquelas entidades.

A nosso ver, a referida norma do art. 152 do CPEREF tem como alcance prático deixar intocadas a generalidade das garantias dos vários créditos reclamados naqueles processos e extinguir os privilégios creditórios pertencentes a entidades públicas ou de utilidade pública (Estado, autarquias locais e instituições de segurança social). Ou seja, cria um regime legal de sentido oposto ao regime geral, que ficou intocado, tendo, por isso, a natureza de uma norma legal excepcional. (4)

Ora, nos termos do art. 11 do C.Civil, as normas excepcionais "não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva", pelo que, mesmo que se considerasse que havia identidade de razões entre a situação dos privilégios creditórios daquelas entidades e as hipotecas legais constituídas para garantias dos seus créditos, não seria lícito aplicar por analogia o regime legal criado por aquele art. 152º a estas últimas. (5)

A não se entender assim, ainda nesse caso se nos afigura que não há motivos para fazer uma interpretação extensiva da primeira parte do referido art. 152º de forma a abranger também a extinção imediata das hipotecas legais das entidades aí indicadas.
Na verdade, a actividade interpretativa destina-se, em derradeira análise, a fixar o sentido e alcance com que o texto da lei deve valer.

Ora, a letra lei é, naturalmente, o ponto de partida da interpretação: é a partir dos textos que se reconstitui o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (art. 9, nº 1, do C.Civil) na presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, nº 3) especialmente quando utiliza expressões da técnica jurídica.

"Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos, qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei". (6)

Ora, tanto na norma em apreço como no preâmbulo da lei, é sempre feita referência, e tão-só, a privilégios creditórios, não se vislumbrando a mínima alusão a outra garantia, nomeadamente à hipoteca legal, e não se detectando quaisquer elementos gramaticais que pudessem sustentar a extensão da previsão legal.

Conclusão que sai reforçada, por apelo ao elemento sistemático, se tivermos presente que, embora ambas sejam "garantias especiais das obrigações (a que o Código Civil dedica o capítulo VI, do título I - livro II), se trata de garantias diferentes, conceptualmente diferenciadas com disciplina legal própria, inserindo-se a hipoteca na secção V daquele capítulo VI e os privilégios creditórios na secção VI do mesmo capítulo.

Donde, de um modo simples, seria possível, desde já concluir, como se fez no Ac. STJ de 29/01/2004 (já citado) que "a lei disse o que queria dizer e não referiu as hipotecas legais; a lei disse o que queria dizer, numa norma que tem natureza excepcional, e o que é excepcional não comporta interpretação analógica; a lei é a expressão da vontade do legislador e é de presumir que o legislador - conhecendo como necessariamente conhece os conceitos e a natureza daquilo que é um privilégio creditório e do que é uma hipoteca legal - se exprime com clareza e rigor; a lei refere os privilégios creditórios para impor a sua extinção com a declaração de falência, e não há identidade (muito menos maioria) de razão que conduza a tratar de igual modo o que não tem uma tradução registral, ficando no desconhecimento dos demais credores de uma dada empresa, daquilo que, através do registo, se pôde tornar claro e conhecido".

Certo é que "interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias situações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva.(7)


Sendo certo que, dessa forma, o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório preambular ou dos trabalhos preparatórios.

Ressalvada a função limitadora do texto (o nº 2 do art. 9º não admite uma interpretação que não tenha no texto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso) pode dizer-se que "a ratio legis é o elemento da interpretação que estabelece o contacto entre a lei e a vida real, conferindo-lhe assim aquela plasticidade ou mobilidade que já se notou, aquele seu poder, isto é, não só de disciplinar novas situações, atraindo-as para a sua órbita e projectando sobre elas um mesmo conteúdo substancialmente inalterado, mas até de se carregar de sentidos novos, de produzir novos conteúdos com que se vá acomodando a novas necessidades práticas e a novos ideais de justiça". (8)

Privilégio creditório é, no dizer do art. 733º do C.Civil, "a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros".

Correspondendo no fundo, à noção já acolhida no art. 878º do Código Civil de 1867, "apenas se tornou mais preciso e delimitado o seu campo, para que não se confunda com outra garantia, seja ela o penhor ou o direito de retenção, ou até a hipoteca".(9)

Assim, pode, a priori, deduzir-se que os privilégios creditórios têm por fonte exclusiva a lei, existem e produzem efeitos independentemente de registo e os credores que deles gozam são privilegiados em atenção à origem dos seus créditos.

Consequentemente, "o grande perigo dos privilégios para a segurança do comércio jurídico provém do facto de eles valerem em face de terceiros, independentemente de registo. Não tendo um mínimo de publicidade a assinalar a sua presença, eles constituem um perigo grave para a navegação comum do comércio jurídico, podendo prejudicar seriamente os terceiros que contratam com o devedor, na ignorância da sua existência e dos reflexos sobre a garantia patrimonial por ele oferecida".(10)

Por seu turno, a hipoteca é a garantia especial que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo" (art. 686°, n° 1, do C.Civil).

De salientar, pois, a natureza do objecto da hipoteca - coisas imóveis ou equiparadas - sendo a natureza (imobiliária) dos bens por ela abrangidos que justifica a solução excepcional de a eficácia da hipoteca depender do seu registo, mesmo em relação às partes (art. 687º).

Ora, nas hipotecas legais - que resultam imediatamente da lei, sem dependência da vontade das partes, e podem constituir-se desde que exista a obrigação a que servem de segurança (art. 704º) - "o acto de registo é que constitui o berço da garantia, porque a hipoteca não tem existência jurídica antes do registo, no qual se especificam os bens onerados e se fixa a identidade, especialmente o montante, do crédito assegurado".(11)


Constituem, pois, os privilégios creditórios e a hipoteca (ainda que legal) garantias diversas, sujeitas a diferentes regimes, e o legislador não podia ignorar essa diversidade.

Por isso, "se deixou no olvido as hipotecas legais, se o legislador entendeu por bem não se pronunciar sobre essa omissão, a interpretação correcta a fazer é no sentido de que estamos perante um caso não regulado (intencionalmente), que não um caso omisso; por outras palavras, justifica-se concluir que deparamos com um silêncio eloquente, significativo de que o legislador não quis abranger aquelas garantias (as hipotecas legais), de que as quis excluir da extinção que decretou, em suma, de que quis restringir essa extinção aos privilégios creditórios e só a eles". (12)

Entendemos desse modo, como começamos por dizer, que a interpretação (extensiva) pretendida não tem, desde logo, qualquer apoio na letra da lei, a qual não alberga, por qualquer forma, a garantia especial que se quer ver acrescentada.

Nenhum elemento de que o intérprete pode legitimamente socorrer-se conduz à conclusão, com a segurança que se exige, de que o legislador disse menos do que queria, de que a letra da lei está aquém do seu espírito.

Ao invés, afigura-se que o legislador, conhecedor da temática envolvente, não quis ir mais além na extinção que operou.

A lei é bem clara: escreveu-se "privilégios creditórios." Seria inconcebível que o legislador não distinguisse privilégio creditório e hipoteca legal: é certo que o legislador quis incentivar os entes públicos a lutarem também eles pela viabilização das empresas, mas não a qualquer preço; ponderou certamente as vantagens e inconvenientes de ir mais ou menos longe. Ficou-se pelos privilégios creditórios." (13)

Ademais, sem esquecer os limites resultantes do texto, é sobretudo tendo em vista considerações relativas à ratio legis do art. 152º do CPEREF que a questão ora em apreço deve ser resolvida, (14) com a opção por um sentido que resulte da interpretação meramente enunciativa, restritiva ou extensiva do preceito.


É bem verdade que já se defendeu que "a consagração de um efeito extintivo da declaração de falência relativamente aos privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social foi uma das principais inovações do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência; que dos trabalhos preparatórios e do relatório preambular do Dec.lei nº 132/93, que aprovou aquele Código, resulta claramente que a intenção subjacente ao preceito é a de terminar com o regime de preferência dos credores públicos para promover o processo de recuperação da empresa; que a existência de classes distintas de credores cria sempre o desinteresse dos titulares de posições privilegiadas quanto à possibilidade de recuperação da empresa e o desinteresse total dos credores comuns (dos primeiros porque a recuperação da empresa é lenta e envolve muitos riscos, enquanto o processo de falência lhes permite normalmente por via dessa sua preferência, uma mais rápida e certa satisfação; dos segundos porque, seja qual for o processo eleito, no confronto com os credores preferentes, raramente obtêm qualquer satisfação); o artigo 152 tem, então, o intuito de mobilizar todos os credores para, sempre que possível, optarem pelo processo de recuperação; da cominação contida no preceito costuma salientar-se este seu efeito virtual ou pedagógico mas não pode esquecer-se a própria cominação, ou seja, se a recuperação não for adequada ou, por alguma circunstância falhar, há lugar à declaração de falência e aplica-se a norma que, produzindo a extinção dos privilégios de certos créditos e acabando com a posição privilegiada de alguns credores, realiza o princípio da par conditio creditorum: é este o efeito directo da norma". (15)

Servindo tais razões para, juntamente com a sustentada afinidade da hipoteca legal com os privilégios creditórios e a irrelevância da cognoscibilidade das garantias reais que deriva do registo, bem assim daquilo que distingue as duas garantias referidas, pugnar pela extensão da norma do art. 152º do CPEREF às hipotecas legais, que da mesma forma que os privilégios creditórios ali previstos, devem considerar-se extintas pela declaração de falência.

Esquece-se, contudo, que "se é certo que o legislador pretendeu evitar desinteresse dos entes públicos pelos processos falenciais, isso não quer significar que os respectivos créditos, uma vez decretada a falência, venham, pura e simplesmente a não ser satisfeitos: do que se trata é apenas de evitar a existência de uma garantia tão intensa como os privilégios - designadamente os imobiliários especiais, por força do art. 751º do C.C.

Todavia, a pressuposta posição de supremacia dos créditos privilegiados - inequívoca relativamente aos créditos com privilégio imobiliário especial (art. 751º do CC) - não é extensível aos privilégios mobiliários e imobiliários concedidos aos créditos da Segurança Social e mesmo a alguns créditos fiscais, os quais, segundo o melhor entendimento, cedem perante quaisquer direitos reais, ainda que de constituição anterior (art. 749º do CC).

Cai, assim, por terra o argumento dos partidários da aplicação do art. 152º às hipotecas legais atribuídas aos sujeitos mencionados naquela norma, com base no qual não se compreenderia que o legislador tivesse suprimido expressamente uma garantia mais forte - o privilégio - deixando incólume uma outra menos forte - a hipoteca: é que nem sempre o primeiro constitui uma garantia mais forte que a segunda. (16)

Por último, importa nunca perder de vista a circunstância de os privilégios a extinguir com a declaração de falência serem outorgados pela lei a créditos que, pela sua especial importância, ocupam uma posição de supremacia entre todos os que gozam de semelhantes garantias (cfr. entre outros art. 747º, n° 1, alínea a) e 748° do C.C. e arts. 10º e 11º do Decreto-Lei n° 103/80, de 9 de Maio) e que, por outro lado, os privilégios - em particular os imobiliários especiais - ocupam, no confronto com as demais causas de preferência, uma posição bastante favorável (art. 751º).

Assim sendo, não parece que o preceito em questão tenha pretendido subverter toda esta lógica, mas tão somente diminuir uma das garantias (das mais fortes) que acompanhava esses créditos, no único intuito de possibilitar a participação desses credores (juntamente com os demais) na viabilização de empresas recuperáveis em situação económica difícil, mas sem esquecer a importância que a satisfação daqueles créditos representa para o bem comum: daí que as demais garantias que os acompanham (excluindo os privilégios) devam permanecer válidas mesmo após a declaração de falência.

A adopção da posição contrária ... implicaria, na prática, a não satisfação destes créditos, objectivo que não esteve nas cogitações do legislador do CPEREF: a pretexto de colocar os credores cujos privilégios se extinguem com a declaração de falência numa posição de igualdade face aos demais - no sentido em que todos devem fazer sacrifícios em prol da empresa em dificuldades - não se pode acabar por colocá-los numa posição de inferioridade face a todos os outros (excepção feita aos credores comuns)". (17)

Além do mais, é ainda óbvio que, no alcance do sentido decisivo da norma, não podem ser admitidas interpretações contra legem justificadas por razões de política legislativa, económica ou social.

Doutro passo, gerada a controvérsia a que nos vimos referindo logo após a entrada em vigor do CPEREF, se fosse intenção do legislador incluir nesse preceito as hipotecas legais, poderia muito bem ter aproveitado a elaboração do Dec.lei nº 317/98 para alterar a norma do art. 152º (que, aliás, foi um dos preceitos que nessa altura sofreu alteração) para o fazer. Não o tendo feito, ressalta necessariamente a ilação de que, conhecedor das divergências, mais uma vez optou pelo seu sentido literal.

E não pode retirar-se diferente significado, da posição do legislador que, mais tarde, fez publicar o actual Dec.lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (18), quando estabeleceu um novo regime no que toca à extinção de privilégios creditórios e garantias reais com a declaração de insolvência, constante do art. 97º:

"1. Extinguem-se, com a declaração de insolvência:

a) Os privilégios creditórios gerais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência;

b) Os privilégios creditórios especiais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social vencidos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência;

c) As hipotecas legais cujo registo haja sido requerido dentro dos dois meses anteriores à data do início do processo de insolvência, e que forem acessórias de créditos sobre a insolvência do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social;

d) Se não forem independentes de registo, as garantias reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo integrantes da massa insolvente, acessórias de créditos sobre a insolvência e já constituídas, mas ainda não registadas nem objecto de pedido de registo;

e) As garantias reais sobre bens integrantes da massa insolvente acessórias dos créditos havidos como subordinados.

2. Declarada a insolvência, não é admissível o registo de hipotecas legais que garantam créditos sobre a insolvência, inclusive após o encerramento do processo, salvo se o pedido respectivo tiver sido apresentado em momento anterior ao da referida declaração, ou, tratando-se das hipotecas a que alude a alínea c) do número anterior, com uma antecedência de dois meses sobre a mesma data".

Com efeito, quando no preâmbulo desse diploma, depois de se esclarecer que se pretende proceder a uma ampla reforma, sem prejuízo da manutenção, ainda que nem sempre com a mesma formulação ou inserção sistemática, de vários dos seus preceitos e aproveitado inúmeros dos seus regimes, aproveitando-se para conceder um privilégio mobiliário geral, graduado em último lugar, aos créditos de que seja titular o credor requerente da declaração de insolvência, se afirma que "o novo regime, adiante referido, quanto à extinção parcial das hipotecas legais e privilégios creditórios que sejam acessórios de créditos detidos pelo Estado, pelas instituições de segurança social e pelas autarquias locais visa constituir um estímulo para que essas entidades não deixem decorrer demasiado tempo desde o incumprimento por parte do devedor" e que "importa assinalar a significativa alteração introduzida no regime das hipotecas legais e dos privilégios creditórios que sejam acessórios de créditos detidos pelo Estado, pelas instituições de segurança social e pelas autarquias locais" não pode deixar de se entender que não houve qualquer intenção interpretativa de norma anterior, antes se intentou uma significativa inovação relativamente ao regime anteriormente constituído.

É assim que se diz que, quanto às primeiras, e suprindo a omissão do CPEREF a esse respeito (intencional certamente) que gerou controvérsia na doutrina e na jurisprudência, prevê-se a extinção apenas das que sejam acessórias dos créditos dessas entidades e cujo registo haja sido requerido nos dois meses anteriores à data de início do processo de insolvência. Quanto aos privilégios creditórios gerais, em lugar da extinção de todos eles, como sucede no CPEREF, declarada que seja a falência, prevê-se a extinção tão-somente daqueles que se hajam constituído nos 12 meses anteriores à data de início do processo de insolvência".

Não pode, pois, extrair-se qualquer ilação do simples facto de o legislador ter alterado o regime anterior, tanto quanto é certo que essa alteração foi muito mais vasta - vejam-se as alíneas d) e e) do art. 97º - não limitada, portanto, à garantia conferida pelas hipotecas legais e pelos privilégios creditórios.

Em consequência, porque entendemos que o artigo 152º do CPEREF ao estabelecer que, com a declaração de falência, se extinguem imediatamente os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, não abrange outras garantias, não havendo, por isso, que aplicar o regime por ele estabelecido às hipotecas legais constituídas a favor da Segurança Social, teremos que dar razão ao recorrente, revogando, como parece adequado, o acórdão recorrido.

Nestes termos, decide-se:

a) - julgar procedente o recurso de revista interposto pelo reclamante Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social;

b) - revogar o acórdão recorrido e, em consequência, na decisão proferida na reclamação de créditos, graduar o crédito da reclamante de 5.583.321$00 para ser pago, pelo produto dos imóveis constantes das verbas nºs 64, 65, 66, 67 e 68 da apreensão, atentas as datas dos registos, pela forma seguinte:

i) - quanto aos imóveis das verbas nºs 64, 65 e 66, imediatamente a seguir ao crédito do Banco Comercial Português;

ii) - pelos imóveis das verbas nºs 67 e 68, logo a seguir aos, créditos do Banco Espírito Santo, SA;

c) - determinar que as custas do recurso sejam suportadas pela massa falida.

Lisboa, 16 de Junho de 2005

Araújo Barros,

Oliveira Barros,

Salvador da Costa.

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(1) Aprovado pelo Dec.lei nº 123/93, de 23 de Abril, com as alterações advindas do Dec.lei nº 315/98, de 20 de Outubro, aqui aplicável atenta a data em que a providência de recuperação foi instaurada.

(2) Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, "Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência", Lisboa, 1999, pag. 404; António Nunes de Carvalho, "Reflexos Laborais do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência", in RDES Ano XXXVII, pag. 86; Catarina Serra in "Cadernos de Direito Privado", nº 2, Abril-Junho de 2003, pags. 73 a 78; Ac. STJ de 27/05/2003, no Proc. 1418/03 da 1ª secção (relator Moreira Camilo); Acs. RC de 30/05/2000, no Proc. 537 (relator Nuno Cameira) e de 23/01/2001, in CJ Ano XXVI, 1, pag. 17 (relator Ferreira de Barros); Acs. RP de 19/10/2000, no Proc. 712/00 da 3ª secção (relator Sousa Leite) e de 07/01/2002, no Proc. 5162/01 da 5ª secção (relator Fonseca Ramos).

(3) Salvador da Costa, "O Concurso de Credores", Coimbra, 1998, pag. 329; António Silva Rito, "Privilégios Creditórios na nova legislação sobre Recuperação e Falência da Empresa", in Revista da Banca nº 27, Julho-Setembro de 1993, pag. 103; Miguel Lucas Pires, "Dos Privilégios Creditórios: Regime Jurídico e sua Influência no Concurso de credores", Coimbra, 2004, pags. 403 a 406; Acs. S.T.J. de 03/03/98, in BMJ nº 475, pag. 548 (relator Nascimento Costa); de 08/02/2001, no Proc. 3968/00 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); de 18/06/2002, in CJSTJ Ano X, 2, pag. 115 (relator Ferreira Ramos); de 25/03/2003, no Proc. 558/03 da 6ª secção (relator Azevedo Ramos); de 27/05/2003, no Proc. 198/03 da 2ª Secção (relator Eduardo Batista); e de 29/01/2004, no Proc. 2779/03 da 7ª secção (relator Pires da Rosa); Acs. RP de 20/03/2003, no Proc. 973/03 da 3ª secção (relator Viriato Bernardo) e de 08/05/2003, no Proc. 1416/03 da 3ª secção (relator João Vaz).


(4) As normas excepcionais, representado um ius singulare, limitam-se a uma parte restrita das relações de facto reguladas pelo direito-regra, consagrando neste sector restrito, por razões privativas dele, um regime oposto àquele regime-regra (Cfr. Baptista Machado, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", Coimbra, 1990, pag. 94.

(5) Cfr. Salvador da Costa, obra citada, pag. 329.
(6) Baptista Machado, obra citada, pag. 182.

(7) Manuel A. Domingues de Andrade, "Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis", 4ª edição, Coimbra, 1987, pag. 26.
(8) Manuel de Andrade, obra citada, pag. 23.

(9) Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, coma colaboração de M. Henrique Mesquita, pag. 754.


(10) Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", vol. II, 4ª edição, Coimbra, 1990, pag. 555.

(11) Antunes Varela, obra e volume citados, pag. 541.

(12) Cfr. Ac. STJ de 18/06/2002, acima mencionado.

(13) Mencionado Ac. STJ de 03/03/98.

(14) Cfr. Miguel Lucas Pires, obra citada, pag. 404.
(15) Catarina Serra, estudo citado, pags. 75 e 76.
(16) Tem maioritariamente o Supremo Tribunal de Justiça entendido que o privilégio imobiliário geral conferido aos trabalhadores pelo crédito resultante de salários em atraso (Lei nº 17/86) deve ser graduado depois da hipoteca.
(17) Miguel Lucas Pires, obra citada, pags. 404, 405 e 406.

(18) Aprovado pelo Dec.lei nº 53/2004, de 18 de Março, e depois alterado pelo Dec.lei nº 200/2004, de 18 de Agosto.