Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2007
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: SEGURO DE VIDA
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
PEDIDO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
INVALIDEZ
INTERPRETAÇÃO DE ARTICULADOS
DECLARAÇÃO INEXACTA
CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
Nº do Documento: SJ200706280020077
Data do Acordão: 06/28/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. O Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar a decisão das instâncias por ilação de facto no sentido que o recorrido, por virtude das lesões oculares, ficou impossibilitado de exercer qualquer actividade.
2. A interpretação do conteúdo das declarações das partes nos articulados deve operar à luz do princípio da impressão do declaratário normal colocado na posição do real declaratário.
3. A condenação da seguradora no pagamento de determinada quantia à Caixa Geral de Depósitos e ao autor não envolve a nulidade do acórdão respectivo por vício de limites por o pedido se não referir expressamente aquela entidade, se tal resultar da interpretação das afirmações imediatamente anteriores constantes na petição inicial.
4. O contrato de seguro de vida é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice e, nas partes omissas, pelo disposto no Código Comercial, ou, na falta de previsão deste último diploma, pelo disposto no Código Civil.
5. Configura-se como contrato a favor de terceiro contrato de seguro de vida por via do qual a seguradora assumiu perante o tomador do seguro a obrigação de prestar a uma instituição de crédito determinada quantia.
6. É de considerar invalidez permanente total a perda no acidente pelo sinistrado do olho direito associada à deficiência visual de que estava afectado em relação ao olho esquerdo aquando da celebração do contrato de seguro de acidentes pessoais.
7. Como a seguradora, ao celebrar o contrato de seguro de acidentes pessoais, conhecia a doença visual do tomador, não funciona contra o tomador o disposto no artigo 429º do Código Comercial e importa considerar ter a primeira assumido o referido risco de invalidez total e permanente do último.
Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
AA intentou, no dia 16 de Maio de 2001, contra a C...E... de Seguros SA, actualmente designada L... Seguros SA acção declarativa de condenação com processo ordinário, pedindo a sua condenação no pagamento de 18 010 960$ relativos a dois contratos de seguro com ela celebrados, um de vida e outro de acidentes pessoais, o primeiro a favor da Caixa Geral de Depósitos SA para garantia de um contrato de mútuo e o último concernente ao risco de incapacitação por cegueira, nos montantes parcelares de 15 000 000$, 3 000 000$ e 10 960$, respectivamente.
A ré, em contestação, afirmou estar vinculada aos referidos contratos de seguro, mas que, ao abrigo do de acidentes pessoais, dever ao autor 750 000$, e impugnou o restante que o autor pediu, alegando que, quanto ao seguro de vida não ter ocorrido o evento justificativo previsto na apólice.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 17 de Novembro de 2003, por via da qual a ré foi condenada a pagar ao autor a quantia de 18 006 200$ e juros de mora à taxa legal desde a citação.
Apelou a autora, e a Relação, por acórdão proferido no dia 15 de Julho de 2003, anulou a sentença a fim de ser ampliada a matéria de facto, e realizou novo julgamento, com a inclusão de seis novos quesitos.
Foi proferida nova sentença no dia 3 de Abril de 2006, por via da qual a ré foi condenada a pagar ao autor € 37 713,91 e juros correspondentes aos valores parcelares de € 22 695,30, € 14 963,94, € 30,93 e € 23,74 atinentes ao diferencial entre o capital do seguro de vida e o devido à beneficiária, ao capital concernente a acidentes pessoais e às despesas com tratamentos.
Apelaram o autor e a ré, e a Relação, por acórdão proferido no dia 19 de Dezembro de 2006, julgou procedente o recurso do primeiro e improcedente o recurso da última, mantendo o conteúdo da sentença, salvo, quanto ao seguro de vida, no pagamento de € 52 124,38 à Caixa Geral de Depósitos SA por conta da dívida do apelante e a este do remanescente.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o recorrido não demonstrou, contra o que lhe incumbia, que a incapacidade de que ficou afectado em consequência da perda de visão do olho direito o impede de exercer qualquer actividade;
- a garantia contratual escolhida pelo recorrido no âmbito de seguro Flexivida, de invalidez absoluta e definitiva, a incapacidade decorrente da perda do olho direito está dela excluída;
- se estivesse abrangida pelo contrato de seguro, não podia a prestação ser total, porque havia nomeado beneficiária da apólice, até determinado montante, a Caixa Geral de Depósitos;
- diferente entendimento viola as cláusulas 1ª e 2ª das condições especiais do contrato de seguro Flexivida e o ponto 1.1.1. das condições – definição de beneficiário – e 236º, nº 1, do Código Civil;
- a condenação da recorrente no pagamento à beneficiária do seguro configura decisão nula, atento o disposto nos artigos 661º, nº 1 e 668º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil;
- ao abrigo da apólice de acidentes pessoais, considerando dever a invalidez de que o recorrido ficou afectado pela perda do olho direito ser calculada de acordo com a tabela anexa ao dito contrato, o grau de invalidez é de vinte e cinco por cento e a prestação devida de 750 000$;
- diferente entendimento viola o disposto no artigo 1.1.1., alínea b), e primeiro ponto da alínea b) da Tabela Anexa ao Contrato de Seguro de acidentes pessoais, e o disposto no artigo 236º, nº 1, do Código Civil;
- o acórdão recorrido deve ser substituído por outro que condene a recorrente parcialmente, nos termos alegados.

Respondeu o recorrido, em síntese de conclusão de alegação:
- deve o recurso ser julgado improcedente;
- procedendo a conclusão 2.6. das conclusões de alegação da recorrente, deve ser ordenada a baixa do processo à Relação a fim de se pronunciar sobre a requerida alteração da matéria de facto;
- deve ser admitido por acordo, nos termos do artigo 490º, nº 2, do Código de Processo Civil que, “quanto ao seguro de acidentes pessoais, nenhuma carta foi enviada ao autor, e só em 19 de Julho de 2000, aquando da sua deslocação aos serviços da ré, no Porto, lhe foram facultadas as condições gerais e especiais”.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. O autor e a ré declararam celebrar, em Maio de 1999, um contrato de seguro de vida, denominado Flexivida, com o capital seguro de 15 000$, em que o primeiro figura como tomador e pessoa segura, e a última como seguradora, e beneficiária em caso de morte ou incapacidade absoluta definitiva a Caixa Geral de Depósitos SA até ao capital em dívida, e o remanescente a pagar ao sobrevivente, a que corresponde a apólice nº 54/777954, de 22 de Junho de 1999.
2. O autor e a ré declararam celebrar, em Maio de 1999, um contrato de seguro de acidentes pessoais, com o capital de 3 000 000$, titulado pela apólice nº 26/705525
3. A proposta do contrato de seguro de vida, denominado Flexivida, e a proposta do contrato de acidentes pessoais, foram acordadas entre o autor e a ré no mesmo dia.
4. O seguro de vida garantia o pagamento do capital de 15 000 000$ se o autor falecesse ou ficasse em estado de invalidez absoluta e definitiva durante o período de vigência do contrato.
5. De harmonia com as condições especiais do contrato de seguro de vida referido «existe invalidez absoluta e definitiva sempre que a pessoa segura esteja total e permanentemente incapacitada de exercer qualquer actividade e, além disso, tenha que recorrer a uma terceira pessoa para efectuar os actos essenciais da vida corrente».
6. Deste seguro são beneficiários a Caixa Geral de Depósitos SA até ao quantitativo correspondente ao montante em dívida de um empréstimo de 10 450 000$, e o autor em relação ao remanescente ou, em caso da sua morte, o conjugue e/ou os filhos.
7. O 1º, nº 1 das condições da apólice 26/705525 expressa que a seguradora garante, em consequência de acidente sofrido durante o período de vigência do contrato, o pagamento da prestação convencionada, em caso de invalidez permanente, conforme tabela anexa.
8. Na tabela anexa mencionada sob 7 consta que à perda completa de um olho corresponde a invalidez permanente de 25%.
9. Consta nas condições especiais do contrato de acidentes pessoais considerar-se invalidez total e permanente sempre que a pessoa segura, em consequência de doença ou acidente, fique incapacitada definitivamente de exercer a sua profissão ou qualquer outra actividade permanente geradora de rendimentos.
10. O autor sofre de miopia no olho esquerdo, com alterações degenerativas da retina graves, determinante de acuidade visual com melhor correcção de 1/60, e, ao preencher e subscrever a proposta de seguro de vida, declarou que sofria desta doença.
11. O autor, ao preencher a proposta de seguro de acidentes pessoais, respondeu negativamente às questões sobre se sofria de enfermidades susceptíveis de determinar acidentes, de agravar as suas consequências ou de demorar a cura das lesões – como, por exemplo, a diminuição das faculdades visuais – e se tinha qualquer defeito físico ou invalidez permanente.
12. Na proposta de seguro do ramo «acidentes pessoais» subscrita pelo autor em Maio de 1999, não consta a referência de que sofria de miopia no olho esquerdo, com alterações degenerativas da retina graves, determinante de acuidade visual com melhor correcção de 1/60, porque a proposta foi preenchida nessa parte pelo mediador da ré.
13. Em regra, as propostas de seguros dos vários ramos são tratadas separadamente por empregados diferentes da ré quando enviadas aos seus escritórios por mediadores e corretores espalhados pelo País.
14. A ré era conhecedora de que o autor padecia de tal enfermidade no olho esquerdo, e ainda assim aceitou o risco e cobrou o prémio.
15. O autor, antes de 8 de Abril de 2000, data do evento, tinha, embora com correcção por óculos, visão de oitenta por cento no olho direito, e, antes dessa data, trabalhava como pedreiro.
16. O autor, no dia 8 de Abril de 2000, quando estava a trabalhar com uma rebarbadora na construção da sua casa, foi atingido no olho direito pelo disco daquela ferramenta, o que lhe originou a perda total do olho direito.
17. O autor, em resultado da perda do olho direito e da reduzida acuidade visual do olho esquerdo, apenas vê os vultos ou as sombras dos objectos ou das pessoas, e é incapaz, sem o auxílio de terceiros, de escolher a roupa e de se vestir, de preparar uma refeição e de a tomar, assim como de se movimentar na rua e em espaços desconhecidos, sendo auxiliado pela esposa na prática desses actos.
18. O autor deslocou-se aos serviços da ré, no Porto, acompanhado da sua mulher, tendo despendido a quantia de 4 760$, e deslocou-se aos serviços de urgência do Hospital Distrital da Figueira da Foz, tendo despendido a quantia de 6 200$.

III
As questões essenciais decidendas são as de saber se o recorrido tem ou não direito a exigir da recorrente o pagamento de € 89 838,28 por virtude de concernente vinculação contratual.
A resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por vício de limites?
- natureza e efeitos dos contratos celebrados entre a recorrente e o recorrido;
- âmbito da cobertura do contrato mencionado sob II 1;
- âmbito da cobertura do contrato mencionado sob II 2;
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela sub-questão de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por virtude de condenação em objecto diverso do pedido.
Alegou a recorrente ser nula a decisão na parte em que a condenou no pagamento à beneficiária do seguro para além do pedido, por violação do disposto nos artigos 661º, nº 1 e 668º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil.
O princípio do pedido é essencialmente estruturante do nosso ordenamento processual civil (artigos 3º, nº 1, 193º, nº 2, 467º, nº 1, alínea a) e 661º, nº 1, do Código de Processo Civil).
De harmonia com o princípio dispositivo, a sentença ou o acórdão não pode condenar para além do pedido (artigos 661º, nº 1, 713º, nº 1 e 726º do Código de Processo Civil).
A infracção do referido normativo determina a sua nulidade que, a verificar-se, implica em relação ao acórdão da Relação, que o Supremo Tribunal de Justiça a supra (artigos 668º, nº 1, alínea b), 716º, nº 1, 726º e 731º, nº 1, do Código de Processo Civil).
No tribunal da primeira instância foi decidido no sentido da não condenação da recorrente no pagamento directo à Caixa Geral de Depósitos SA por falta de pedido do recorrido nesse sentido.
A Relação, revogou o mencionado segmento decisório e condenou a recorrente a pagar o capital seguro directamente à Caixa Geral de Depósitos SA por conta da dívida do recorrido, até ao limite de € 52.124,38, e ao último o remanescente de tal liquidação.
Baseou a referida decisão na interpretação da globalidade da petição inicial no sentido de que o recorrido formulou o referido pedido de condenação da recorrente no pagamento à Caixa Geral de Depósitos SA.
Como se trata de declarações produzidas pelas partes nos processos, a sua interpretação deve ocorrer à luz do princípio da impressão do declaratário normal colocado na posição do real declaratário (artigos 236º, nº 1, 238º, nº 1 e 295º do Código de Processo Civil).
O recorrido afirmou, na petição inicial, por um lado, sob o nº 6, ser a Caixa Geral de Depósitos SA beneficiária em relação montante dívida do empréstimo contraído por ele.
E, por outro, sob o nº 40, imediatamente antes do local do pedido, ascender a 18 010 960$ o montante que a ré devia ao autor - montante em dívida à Caixa Geral de Depósitos SA, relativo ao empréstimo a ser pago directamente a esta instituição bancária.
E logo a seguir pediu a condenação da antecessora da recorrente no pagamento de 18 010 960$, sem se reportar se lhe deveria ser pago a ele ou também à Caixa Geral de Depósitos SA.
Perante este quadro, tendo em conta a estrutura desse pedido e o que consta da parágrafo imediatamente anterior, bem como da causa de pedir concernente, um declaratário normal conhecedor da prática processual judicial, colocado na posição da antecessora da recorrente, interpretaria os termos do referido pedido tal como o fez a Relação no acórdão recorrido.
Não ocorre, por isso, a nulidade do acórdão recorrido por condenação além do pedido, ou seja, por vício de limites, invocada pela recorrente.

2.
Atentemos agora na natureza e nos efeitos dos contratos celebrados entre a antecessora da recorrente e o recorrido.
O contrato de seguro em geral é a convenção pela qual uma seguradora se obriga, mediante retribuição paga pelo segurado, a assumir determinado risco e, caso ele ocorra, a satisfazer ao segurado ou a um terceiro uma indemnização pelo prejuízo ou um montante previamente estipulado.
A estrutura básica do seu regime ainda consta do Código Comercial, que importa ter aqui em consideração.
Dele resulta tratar-se de um contrato formal, certo que a sua validade depende de o respectivo conteúdo ser consubstanciado num documento escrito, denominado apólice, da qual devem constar, além do mais, o nome do segurador, do tomador e do beneficiário do seguro, o respectivo objecto e a natureza e o valor e os riscos cobertos (artigo 426º, § único, do Código Comercial).
Regular-se-á pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Código Comercial (artigo 427º do Código Comercial).
Definindo o contrato de adesão como aquele cujas cláusulas contratuais gerais foram elaboradas sem prévia negociação individual e que proponentes ou destinatários se limitam a subscrever, o contrato de seguro integra-se, em regra, nessa qualificação.
As declarações negociais imputadas à antecessora da recorrente e ao recorrido integram, por um lado, um contrato de seguro de vida com a vertente complementar de invalidez total e permanente associado ao pagamento das prestações concernentes a um contrato de mútuo celebrado entre o último e a Caixa Geral de Depósitos SA.
E, por outro, um contrato de seguro relativo a acidentes pessoais, cuja cobertura envolve a invalidez total e permanente, ou seja, a incapacidade definitiva de exercer a sua profissão ou qualquer outra actividade permanente geradora de rendimentos.
O contrato de seguro de vida, na medida em que a antecessora da recorrente – promitente - assumiu perante o recorrido – promissário - a obrigação de prestar à Caixa Geral de Depósitos SA determinada quantia – beneficiária -, configura-se, nessa parte, como contrato a favor de terceiro (artigo 443º, nº 1, do Código Civil).
Dele resultam para a antecessora da recorrente a obrigação de indemnizar o recorrido pelo montante convencionado, parcialmente por via do oferecimento de determinada prestação à Caixa Geral de Depósitos SA, no caso de se verificar o dano, e para o último a obrigação de pagamento do respectivo prémio.
Assim, o interesse da antecessora da recorrente traduziu-se no recebimento do prémio, contrapartida da assunção do risco envolvente de proporcionar ao recorrido libertar-se da preocupação e da insegurança de vir a suportar o custo derivado da sua invalidez.

3.
Vejamos agora o âmbito da cobertura indemnizatória concernente ao contrato de seguro de vida.
O contrato de seguro do ramo vida reporta-se à pessoa segura total e permanentemente incapacitada de exercer qualquer actividade que tenha de recorrer a uma terceira pessoa para efectuar os actos essenciais da sua vida corrente.
A recorrente alegou que o recorrido não demonstrou que a incapacidade de que ficou afectado em consequência da perda de visão do olho direito o impede de exercer qualquer actividade.
A este propósito está assente, por um lado, que o recorrido trabalhava, antes do evento, como pedreiro, que sofreu a perda total do olho direito ao ser atingido pelo disco de uma rebarbadora quando trabalhava na construção da sua casa.
E, por outro, que em resultado da perda do olho direito e da sua reduzida acuidade visual do olho esquerdo, apenas vê os vultos ou as sombras dos objectos ou das pessoas.
E, finalmente, que é incapaz, sem o auxílio de terceiros, de escolher a roupa e de se vestir, de preparar uma refeição e de a tomar, assim como de se movimentar na rua e em espaços desconhecidos, sendo auxiliado pela esposa na prática dos actos referidos.
Acresce que a Relação, com base naqueles factos, considerou que o recorrido, por virtude das referidas lesões oculares, ficou impossibilitado de exercer qualquer actividade.
Trata-se de ilação extraída pela Relação no quadro dos seus poderes de fixação dos factos materiais da causa, nos termos dos artigos 349º, segunda parte, e 351º do Código Civil.
Este Tribunal, por força da limitação legal dos seus poderes no que concerne à matéria de facto, não pode sindicar a referida ilação da Relação (artigos 729º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Interpretemos agora a mencionada cláusula contratual constante de II 5, segundo a qual ocorre a invalidez absoluta e definitiva sempre que a pessoa segura esteja total e permanentemente incapacitada de exercer qualquer actividade e, além disso, tenha que recorrer a uma terceira pessoa para efectuar os actos essenciais da vida corrente.
O tribunal da primeira instância interpretou a referida cláusula no sentido de abranger a situação de incapacidade de que o recorrido sofre - invalidez absoluta e definitiva - e a Relação confirmou essa interpretação.
Este Tribunal, não obstante a sua limitação legal de sindicância da matéria de facto fixada pela Relação, pode operá-la, por estar em causa a determinação do sentido juridicamente relevante de declarações negociais segundo o critério estabelecido no artigo 236º, n.º 1, e 238º, n.º 1, do Código Civil (artigos 722º, n.º 2, e 729º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
A regra nos negócios jurídicos em geral é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.
A excepção ocorre nos casos em que não seja razoável imputar ao declarante aquele sentido declarativo ou em que o declaratário conheça a vontade real do declarante (artigo 236º do Código Civil).
O sentido decisivo da declaração negocial é, pois, o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente e capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações foram produzidas.
No que concerne aos negócios jurídicos formais, como ocorre no caso vertente, há, porém, o limite de a declaração não poder valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do Código Civil).
Assim, o sentido hipotético da declaração que prevalece no quadro objectivo da respectiva interpretação, como corolário da solenidade do negócio, tem que ter um mínimo de literalidade no texto do documento que o envolve.
Estamos, pois, no caso vertente, perante um negócio jurídico oneroso e formal, pelo que o critério interpretativo segundo a impressão de um declaratário normal colocado na posição do real declaratário está limitado por um mínimo literal constante do texto das condições gerais e particulares do contrato de seguro consubstanciado na respectiva apólice.
Mas na interpretação da vontade dos outorgantes podem relevar várias circunstâncias, designadamente os termos da apólice e da lei aplicável, as prévias negociações entre as partes, a qualidade profissional destas, a terminologia técnico-jurídica utilizada no sector e a conduta de execução do contrato.
Um declaratário normal, colocado na posição do recorrido, interpretaria a referida cláusula contratual geral no sentido de abranger a situação de incapacidade de que o recorrido sofre, tal como definida pela Relação, no exercício dos seus poderes sobre a matéria de facto.
Perante este quadro de facto e de direito, a conclusão é no sentido de que está preenchido o conceito de invalidez absoluta e definitiva de que depende o accionamento do referido contrato de seguro de vida.

4.
Atentemos agora no âmbito da cobertura indemnizatória do contrato de seguro de acidentes pessoais.
A recorrente alegou, relativamente ao contrato de seguro de acidentes pessoais, invocando a respectiva tabela anexa, o artigo 1.1.1., alínea b), do contrato de seguro e o disposto no artigo 236º, nº 1, do Código Civil, e ser de vinte e cinco por cento o grau de invalidez de que o recorrido ficou afectado por virtude da perda do olho direito pelo recorrido.
A este propósito está assente, por um lado, que o recorrido sofre de miopia no olho esquerdo, com alterações degenerativas da retina graves, determinante de acuidade visual com melhor correcção de 1/60, e antes do evento, com correcção por óculos, tinha visão de oitenta por cento no olho direito, e que na proposta de seguro de acidentes pessoais por ele subscrita em Maio de 1999 não consta essa menção, por ter sido preenchida nessa parte pelo mediador da antecessora da recorrente.
E, por outro que, ao preencher a proposta de seguro de acidentes pessoais, respondeu negativamente às questões sobre se sofria de enfermidades susceptíveis de determinar acidentes, de agravar as suas consequências ou de demorar a cura das lesões – como, por exemplo, a diminuição das faculdades visuais – e se tinha qualquer defeito físico ou invalidez permanente.
E, finalmente, que o recorrido, ao preencher e subscrever a proposta de seguro de vida, no mesmo dia da proposta da proposta do contrato de acidentes pessoais, declarou que sofria desta doença, e ser a antecessora da recorrente conhecedora de que o recorrido padecia de tal enfermidade no olho esquerdo, e ainda assim aceitou o risco e cobrou o prémio.
A Relação manteve o referido segmento decisório do tribunal da primeira instância no sentido de a recorrente dever indemnizar o recorrido por via da atribuição da totalidade do capital.
Argumentou, para o efeito, ter a antecessora da recorrente, ao celebrar o contrato de seguro de acidentes pessoais, aceitado a especificidade da situação do recorrido, ou seja, que a perda por este do olho são projectaria como devida a indemnização correspondente à perda total da visão.
Resulta dos factos provados, por um lado, que a antecessora da recorrente garantia o pagamento da prestação convencionada em caso de invalidez permanente, conforme determinada tabela.
E, por outro, que invalidez total e permanente se caracteriza pela definitiva incapacidade por parte da pessoa segura de exercer a sua profissão ou qualquer outra actividade permanente geradora de rendimentos.
Finalmente, resulta assente, por virtude da mencionada tabela, por um lado, que a perda total dos dois olhos ou da visão dos dois olhos a indemnização corresponde invalidez permanente total de cem por cento.
E, por outro, que a perda completa dum olho ou a redução da visão biocular a metade da visão corresponde a invalidez permanente parcial de vinte e cinco por cento.
Estamos no caso vertente perante a perda praticamente total pelo recorrido da sua função visual desencadeada pela perda do olho direito no acidente coberto pelo contrato de seguro em causa.
A perda do olho direito pelo recorrido ocorreu, pois, por via de um acontecimento fortuito, súbito e anormal devido a causa exterior e estranha à vontade do recorrido.
Não se trata, por isso, de mera invalidez permanente parcial, mas de invalidez permanente total, pelo que não é aplicável ao caso o valor de vinte e cinco por cento constante da mencionada tabela, mas o de cem por cento.
Certo é que a perda da visão visual pelo recorrido, de que lhe resultou a incapacidade total permanente, derivou da deficiência visual de que o recorrido estava afectado em relação ao olho esquerdo aquando da celebração do contrato de seguro de acidentes pessoais.
O recorrido não mencionou no instrumento de proposta relativa ao contrato de seguro de acidentes pessoais que o seu olho esquerdo estava afectado de miopia, mas tal não significa que se esteja perante uma situação enquadrável no artigo 429º do Código Comercial.
Reporta-se o mencionado normativo a duas situações distintas, ou seja, por um lado, à declaração inexacta de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou pelo próprio tomador do seguro, isto é, a informação inexacta sobre esses factos ou circunstâncias, e, por outro, à reticência consubstanciada na omissão ou ocultação de uns ou de outras.
A declaração exacta é a certa, correcta ou verdadeira, isto é, a que corresponde à realidade; e a declaração reticente é a que omite voluntariamente algo que devia ter sido declarado.
A este propósito, está assente, por um lado, que o recorrido subscreveu e apresentou a agentes lato sensu da antecessora da recorrente as propostas relativas a ambos os contratos de seguro, de vida e de acidentes pessoais, e que mencionou na do primeiro a referida doença visual.
E, por outro, que a omissão da referência à mencionada doença na proposta concernente ao contrato de seguro de acidentes pessoais decorreu da circunstância de haver sido preenchida por um agente lato sensu da antecessora da recorrente, mas que esta dela tinha conhecimento.
Assim, a prévia deficiência visual do recorrido não a demoveu à celebração do contrato de seguro de acidentes pessoais em causa, cuja cobertura foi a de invalidez total e permanente do primeiro, que ocorreu efectivamente, embora por via da conjugação do resultado do acidente em causa e da doença visual de que aquele sofria.
A antecessora da recorrente conhecia, ao celebrar o contrato de seguro de acidentes pessoais, que o recorrido sofria da mencionada doença visual, assumiu o risco da invalidez total e permanente daquele, e assim foi determinado e pago o respectivo prémio.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos e, no âmbito desse cumprimento, tal como no exercício dos direitos correspondentes devem as partes proceder de boa fé, ou seja, com lealdade e probidade (artigos 3º do Código Comercial e 404º, nº 1 e 762º do Código Civil).
Em consequência, inexiste fundamento legal para alterar o acórdão da Relação na parte que considerou a recorrente responsável pelo pagamento ao recorrido do valor integral do capital objecto do contrato de seguro de acidentes pessoais.

5.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
Da interpretação da petição inicial à luz do princípio da impressão do declaratário normal não decorre que a condenação da recorrente a realizar a prestação em causa à Caixa Geral de Depósitos SA implique a nulidade por falta de pedido.
A antecessora da recorrente e o recorrido celebraram, este como tomador e aquela como seguradora, um contrato de seguro de vida e um contrato de seguro de acidentes pessoais.
Considerando os factos provados e o sentido do clausulado do contrato de seguro de vida, este cobre a situação de incapacidade de que o recorrido ficou a padecer em virtude do acidente que o afectou.
Como a antecessora da recorrente conhecia, aquando da celebração do contrato de seguro de acidentes pessoais, da doença de que o recorrido sofria e, não obstante assumiu o risco de invalidez total e permanente e, nessa perspectiva, cobrou o respectivo prémio, deve assumir esse risco no confronto do recorrido.

Improcede, por isso, o recurso.
Fica, decorrentemente prejudicado o conhecimento da problemática da ampliação do recurso e da matéria de facto condicionalmente suscitada pelo recorrido.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 28 de Junho de 2007

Salvador da Costa (Relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luís