Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3703
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
ACÇÃO DECLARATIVA
ACÇÃO EXECUTIVA
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
Nº do Documento: SJ200411250037037
Data do Acordão: 11/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 22/04
Data: 03/23/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. O caso julgado material estende-se à decisão das questões preliminares que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado, e, no plano dos seus efeitos processuais, ocorrido que seja o caso julgado por virtude do trânsito da decisão da causa, não pode o tribunal voltar a pronunciar-se sobre o decidido, porque fica vinculado ao seu conteúdo no quadro da autoridade do caso julgado.
2. Inexiste identidade de causas de pedir nas acções declarativa de condenação, executiva baseada em documento particular simples e nos embargos à última se na primeira se invoca a omissão do pagamento de metade do preço de um prédio, na segunda o reconhecimento de direito de crédito sem indicação de causa e, nos últimos, o reconhecimento na primeira da confissão de pagamento em escritura ou antes e o próprio acto de pagamento incluindo o constante do título executivo.
3. Não ocorre identidade de pedidos nas referidas espécies processuais se na primeira é pedida a condenação no pagamento de € 14 983,94, na segunda a citação para pagamento de € 14 983,94 e juros ou para nomeação de bens à penhora e, nos últimos, a declaração da extinção da instância executiva.
4. Tendo o fundamento lógico necessário da absolvição dos réus do pedido na acção declarativa sido o da prova plena da confissão extrajudicial em escritura pública de que eles haviam pago aos autores o preço do prédio e de estes não terem provado pelo meio idóneo que os primeiros só lhe haviam pago metade dele, o trânsito em julgado da respectiva sentença não inviabiliza a instauração pelos últimos contra os primeiros de acção executiva com base em documento com a declaração de reconhecimento de dívida sem indicação de causa.
5. O facto de um documento de reconhecimento de dívida haver sido apresentado numa acção declarativa de condenação como meio de prova não obsta à sua apresentação em ulterior acção executiva como título executivo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
"A" intentou, no dia 6 de Outubro de 2000, contra B e C, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, a fim de haver deles a quantia de 3 000 000$, com base em título executivo envolvente de declaração dita emitida no dia 10 de Maio de 1991 pelos executados, no sentido de se obrigarem a pagar ao exequente aquela quantia em duas prestações, a primeira no dia 10 de Dezembro de 1991 e a segunda no dia 10 de Junho de 1992, com juros de lei.
Os executados deduziram, no dia 8 de Outubro de 2001, embargos de executado, expressando, por um lado, a contradição dos termos da declaração de dívida e ter subjacente uma causa objecto de acção judicial com decisão transitada em julgado no sentido de que tal dívida tinha sido paga e, por outro, que aquela declaração de dívida dizia respeito a parte do preço da compra de um prédio ao embargado já pago na totalidade.
No dia 27 de Junho de 2003, na fase da condensação do processo, foi proferida sentença final que julgou procedente a excepção dilatória de caso julgado, absolveu os embargantes da instância executiva e julgou improcedentes os pedidos de condenação por litigância de má fé que ambas as partes haviam formulado.
O embargado interpôs recurso de apelação e a Relação, por acórdão proferido no dia 23 de Março de 2004, com fundamento na aludida excepção dilatória de caso julgado, tal como considerado fora na sentença recorrida, julgou-o improcedente.

Interpôs o embargado recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça constitui caso julgado nos precisos termos e limites em que julga, e o caso julgado material forma-se unicamente sobre a decisão relativa ao objecto da acção, e é factor da regularidade da decisão a sua adequação aos fundamentos;
- o caso julgado tem como conteúdo primário a afirmação judicial que forma o conteúdo da sentença ou thema decisum, não abrangendo nem o objecto da acção, do pedido, da defesa ou do processo, embora o pedido, a causa de pedir e os fundamentos relevem na interpretação daquele conteúdo;
- a causa de pedir na acção declarativa tinha por base a escritura de compra e venda datada de 9 de Maio de 1991 e a alegada simulação da declaração de pagamento integral do preço em razão de os compradores só haverem pago metade dele;
- a decisão do Supremo Tribunal de Justiça derivou de o documento que agora serve de base à acção executiva não se relacionar com os factos controvertidos na acção;
- a causa de pedir na execução é o documento inserente de declaração em que os recorridos confessam dever ao recorrente 3 000 000$ sem indicação da respectiva causa, obrigação que se presume até prova em contrário, nos termos do artigo 458º do Código Civil;
- a referida obrigação, conforme se refere no aludido acórdão, não é a de pagamento de parte do preço da compra e venda titulada pela escritura de 9 de Maio de 1991;
- cabia aos recorridos ilidir a presunção da existência e validade da obrigação decorrente da assinatura da declaração do título executivo, mas não o fizeram, tendo-se limitado a invocar factos que na acção declarativa foram dados como não provados;
- o acórdão recorrido, ao considerar o caso julgado, não interpretou adequadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 1999, violando os artigos 497º, 498º, 671º, n.º 1 e 673º do Código de Processo Civil.
Responderam os recorridos, em síntese de conclusão de alegação:
- a questão é a de apreciar a relação fundamental subjacente ao documento que o recorrente apresentou como título executivo e não a validade deste;
- na acção declarativa de condenação, o recorrente juntou como meio de prova o documento que constitui o título executivo, e o tribunal declarou subsistir o facto confessado de os recorridos haverem pago a totalidade do preço de 6 000 000$;
- o documento em causa já foi apreciado como meio de prova na acção declarativa onde os factos que agora pretende provar foram dados como não provados e o pedido, idêntico àquele que agora formula, foi julgado improcedente;
- não considerar haver caso julgado e dever prosseguir o processo é forçar o tribunal a conhecer, de novo, tudo o que foi apreciado na acção declarativa;
- há identidade de sujeitos, e de causa de pedir porque a relação material é a mesma, e de pedidos, e a existência da obrigação subjacente ao título executivo que o recorrente apresenta já foi apreciada em sentido negativo na acção declarativa.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. No dia 11 de Março de 1996, A e o seu cônjuge intentaram contra B e C acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 3 000 000$, acrescidos de juros vencidos no montante de 2 002 005$ e vincendos à taxa legal.
2. Alegaram na petição inicial que:
- terem vendido aos réus por escritura de compra e venda de 9 de Maio de 1991, por 6 000 000$, o prédio rústico de terra de cultura arvense, oliveiras, pinheiros e sobreiros, com a área de 10, 7 hectares, sito à Tapadinha, Olival entre Águas e Vale, freguesia do Ninho do Açor, Castelo Branco;
- terem declarado naquela escritura, a pedido dos réus, haverem recebido o preço respectivo, mas somente receberam dos réus 3 000 000$;
- terem os réus, em documento que então subscreveram, confessado serem devedores de 3 000 000$ correspondentes ao preço em dívida e se obrigado a pagá-los em duas prestações, a primeira em 10 de Dezembro de 1991 e a segunda em 10 de Junho de 1992;
- não obstante as diversas diligências junto dos réus para que pagassem o seu débito, só conseguiram receber, em 29 de Setembro de 1992, por conta dos juros vencidos, a quantia de 100 000$.
3. Na contestação, os réus afirmaram que toda a dívida respeitante à compra do prédio, incluindo o montante aludido na declaração, foi paga até à data da escritura de compra e venda.
4. Na sentença proferida no tribunal da primeira instância, foi a acção julgada parcialmente procedente e os réus condenados a pagar aos autores 4 746 437$50, 3 000 000$ a título de capital e o restante de juros de mora vencidos, e os vincendos até integral pagamento.
5. Na sentença mencionada sob 4 referiu-se que os réus não tinham efectivamente pago 6 000 000$ correspondentes ao preço global da venda do imóvel, mas apenas 3 000 000$, e mais 100 000$ a título de juros vencidos.
6. A referida sentença foi confirmada pela Relação, de cujo acórdão os apelantes recorreram, e o Supremo Tribunal de Justiça julgou definitivamente a causa absolvendo os réus do pedido.
7. O título da acção executiva a que foram deduzidos os embargos é o documento particular em que B e C expressam: Declaramos que devemos a importância de 3 000 000$ a A, que será paga até 10 de Maio de 1992 e vencerá o juro da lei, a primeira prestação a 10 de Dezembro e a segunda a 10 de Junho de 1992.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se há ou não fundamento legal para a absolvição dos recorridos da instância executiva.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação do recorrente e dos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- normas processuais aplicáveis nas acções declarativa e executiva e no recurso;
- síntese da decisão da matéria de facto proferida na 1ª instância, mantida pela Relação;
- síntese do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça;
- limites objectivos, efeitos processuais e excepção de caso julgado;
- ocorre ou não no caso espécie a repetição de causas idênticas com relevo para a excepção dilatória de caso julgado?
- solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.
1.
Comecemos por determinar as normas processuais aplicáveis nas acções declarativa e executiva e no recurso.
Considerando que a acção declarativa em causa foi intentada no dia 11 de Março de 1996, são-lhe aplicáveis as pertinentes normas processuais anteriores às do Código de Processo Civil Revisto cujo início de vigência ocorreu no dia 1 de Janeiro de 1997 (artigo 16º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Como a sentença proferida na aludida acção ocorreu no dia 20 de Dezembro de 1996, ao recurso de apelação eram aplicáveis as pertinentes normas processuais anteriores às do Código de Processo Civil Revisto (25º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Uma vez que o acórdão da Relação foi proferido no dia 20 de Outubro de 1998, ao recurso de revista eram aplicáveis as pertinentes normas do Código de Processo Civil Revisto (25º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Tendo em linha de conta que a acção executiva à qual foram deduzidos os embargos foi instaurada no dia 6 de Outubro de 2000, são-lhe aplicáveis as normas processuais do Código de Processo Civil Revisto anteriores à alteração que entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 2003 (artigos 16º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e 4º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 199/2003, de 10 de Setembro)
2.
Vejamos agora a síntese da decisão da matéria de facto proferida na 1ª instância, mantida pela Relação.
Na especificação ou nos factos assentes foi dado como reproduzido o documento mencionado sob II 7.
No quesito primeiro da base instrutória perguntou-se se foi a pedido dos réus que os autores declararam na escritura ter recebido o preço respectivo, e no quesito seguinte se os segundos somente receberam dos primeiros, do preço de venda respeitante a essa escritura, a quantia de 3 000 000$, a ambos tendo sido respondido provado.
No quesito terceiro perguntou-se, por seu turno, se da diferença entre o valor da venda e aquela quantia de 3 000 000$ os autores apenas receberam dos réus, em 29 de Setembro de 1992, por conta dos juros vencidos, a quantia de 100 000$, cuja resposta também foi no sentido de provado.
Finalmente, no quesito décimo perguntou-se se por acordo entre os autores e os réus estes ficaram a dever àqueles duas prestações de 1500 000$ cada, cuja resposta foi no sentido de provado o que constava da declaração agora elencada sob II 7.
O tribunal colectivo declarou fundar a sua convicção na inteligibilidade do conjunto da prova produzida e, em especial, nos depoimentos de parte dos autores e dos réus e de cinco testemunhas e a resposta ao quesito décimo no documento agora mencionado sob II 7.
Com base nessa factualidade, considerou o juiz na sentença e o colectivo de juízes no acórdão recorrido que a escritura pública que titulou o contrato de compra e venda do prédio não fazia prova plena da validade ou eficácia jurídica dos factos atestados pelo notário, e que, por isso, não podia provar que o preço do contrato já estava pago, e concluiu, com base em factos provados por testemunhas terem os autores vendido o prédio por 6 000 000$ e só recebido 3 000 000$ de preço e mais 100 000$ a título de juros de mora.
3.
Vejamos, ora, a síntese do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

O Supremo Tribunal de Justiça revogou o acórdão da Relação e absolveu os réus do pedido.
Considerou, a título de fundamentação, que a afirmação dos autores de que receberam dos réus a totalidade do preço relativo ao contrato de compra e venda constituía, nos termos dos artigos 352º e 354º, n.º 2, do Código Civil, confissão extrajudicial.
Acrescentou, a propósito da força probatória da referida confissão extrajudicial em documento autêntico feita à parte contrária, referindo-se ao disposto no artigo 358º, n.º 2, do Código Civil, que embora a escritura pública não fizesse prova da realidade do pagamento do preço, provava a confissão desse pagamento e, por essa via, a sua realidade.
Expressou, ademais, que a força probatória da confissão em relação ao facto do pagamento do preço só podia ser contrariada por meio de prova do contrário feita pelos autores, nos termos do artigo 347º, mas que o não podiam fazer, face ao disposto nos artigos 393º, n.º 2, e 395º, todos do Código Civil, por via de testemunhas ou de presunções judiciais.
E concluiu que a referida declaração dos autores constituía confissão extrajudicial em documento autêntico e que tinha força probatória plena da realidade do declarado recebimento por eles do preço de 6 000 000$, por essa declaração haver sido feita por eles na presença do notário que a documentou autenticamente.
Depois afirmou que a resposta provado ao quesito onde se perguntava se os autores somente receberam do preço da venda 3 000 000$ resultou de prova testemunhal, contra o disposto nos artigos 347º, 358º, n.º 2, e 393º, n.º 2, do Código Civil.
E, em face disso, concluiu, por um lado, ter havido erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa e declarou não escritos os seguintes factos: ter sido a pedido dos réus que os autores declararam na escritura ter recebido o preço respectivo, os autores somente terem recebido do preço da venda respeitante àquela escritura a quantia de 3 000 000$, e da diferença entre o valor da venda e essa quantia de 3 000 000$.
E, por outro, subsistir o facto confessado de os réus haverem pago aos autores, no acto da escritura ou antes, a totalidade do preço de 6 000 000$, e que, por isso, a acção, mediante a qual os últimos, afirmando só haverem recebido uma parte do preço, pretendiam receber o resto, tinha que improceder.
Por seu turno, a propósito do documento que à acção executiva serve de título, afirmou-se, por um lado, que o recorrente e o cônjuge o ofereceram como princípio de prova escrita de ter sido a pedido dos réus que declararam na escritura terem recebido deles o preço respectivo, de somente terem recebido do preço da venda respeitante à escritura a quantia de 3 000 000$, da diferença entre e o valor da venda e essa quantia de 3 000 000$ apenas terem recebido dos réus, em 29 de Setembro de 1992, por conta dos juros vencidos, a quantia de 100 000$.
E, por outro, que no julgamento se procurou indagar se o referido documento - sem data nem especificação da causa da dívida que nele se diz existir - dizia respeito aos factos controvertidos entre as partes e o que resultou do julgamento é que tal relacionação não foi alcançada.

Seguidamente afirmou-se, por um lado que, por isso, esse documento não integra os fundamentos das respostas aos quesitos quinto a sétimo e ter o tribunal colectivo respondido negativamente aos quesitos sexto, nono e décimo-primeiro a vigésimo e com restrições aos quesitos sétimo, oitavo e décimo.
E, por outro, que isso queria dizer não existir princípio de prova escrita que permitisse a abertura da possibilidade de se provar por testemunhas o facto contrário ao adquirido por confissão.
Finalmente, expressou não poder substituir-se às instâncias no julgamento da matéria de facto em ordem a estabelecer a relação entre aquele documento e os factos censurados no texto do acórdão, na modificação das respostas negativas ou restritivas que o tribunal colectivo deu aos apontados quesitos, nem apreciá-lo para dele, por presunção ou ilação, estabelecer a realidade de qualquer facto.
4.
Atentemos nos limites objectivos e efeitos processuais do caso julgado, começando pelos primeiros.
Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida tem força obrigatória nos limites fixados pelos artigos 497º e 498º do Código de Processo Civil (artigo 671º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
A excepção do caso julgado depende da repetição de uma causa que foi decidida por sentença que não admita recurso ordinário, a qual pressupõe a proposição de uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artigos 497º, n.º 1 e 498º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Há acções idênticas se a decisão da segunda fizer correr o risco de o tribunal contradizer ou reproduzir a decisão da primeira (artigo 497º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
A propósito do alcance do caso julgado, expressa a lei que a sentença constitui caso julgado nos limites e termos em que julga (artigo 673º do Código de Processo Civil).
Como não passou do Código de Processo Civil de 1939 para o actual o § único do artigo 660º, segundo o qual se consideravam resolvidas, em termos de caso julgado, as questões sobre que recaísse decisão expressa e as que constituíssem pressuposto ou consequência necessária desse julgamento, tem vindo a discutir-se o alcance objectivo do caso julgado.
Todavia, a referida circunstância não teve por finalidade a consagração da solução oposta, mas deixar à doutrina o seu estudo mais aprofundado e à jurisprudência a sua solução, caso por caso, mediante os conhecidos processos de integração da lei (Anteprojecto, BMJ, n.º 123, pág. 120).
Ninguém põe em causa que o caso julgado abranja a parte decisória do despacho, da sentença ou do acórdão (artigos 659º, n.º 2, in fine, e 713º, n.º 2 e 726º do Código de Processo Civil).
A questão coloca-se, porém, em relação aos fundamentos enquanto pressupostos necessários do referido segmento decisório, isto é, se se lhes estende ou não o efeito de caso julgado material.
Tem vindo a ser entendido pela jurisprudência abranger o caso julgado a Decisão e os seus fundamentos logicamente necessários, ou a decisão e as questões solucionadas na sentença conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, ou só a própria decisão (Acs. do STJ, de 1.3.79, BMJ, n.º 235, pág. 648; 18.2.99, BMJ, n.º 484, pág. 318; de 6.2.96, BMJ, n.º 454, pág. 599).
O segmento limites e termos em que julga, a que se reporta o artigo 673º do Código de Processo Civil, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou dos pedidos formulados na acção.
E ninguém questiona a asserção de o caso julgado material não abranger as questões meramente instrumentais ou secundárias em relação ao thema decidendum nem as impertinentes, como é o caso de declarações enunciativas, opinativas ou desnecessárias, designadas por obiter dicta.
Todavia há decisões de questões fáctico-jurídicas prévias ou preliminares ao thema decidendum tão lógica e necessariamente conexas com o segmento decisório que este não pode delas ser dissociado na definição do quadro substantivo envolvente.
Com efeito, os segmentos decisórios de sentenças ou acórdãos do tipo de declaração de absolvição, de condenação, de titularidade do direito de propriedade sobre determinada coisa, de resolução de um contrato, de reconhecimento de um direito de preferência e de substituição do comprador pelo preferente no contrato de compra e venda, estão tão lógica e necessariamente ligados a decisões de outras questões, como que constituindo um todo unitário, que os primeiros só fazem sentido se interconexionados com as segundas.
Em consequência, tendo presente a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias e a certeza das relações jurídicas, importa se conclua no sentido da extensão do caso julgado material à decisão das questões preliminares que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado (Acs. do STJ, de 1.3.79, BMJ, n.º 235, pág. 648; de 23.10.86, BMJ, n.º 360, pág. 609; de 24.10.92, BMJ, n.º 419, pág. 648; e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, "Estudos Sobre o Novo Processo Civil", Lisboa, 1997, págs. 578 e 579).
No que concerne aos efeitos processuais do caso julgado, resulta da lei, embora no quadro da estabilidade das decisões judiciais, que, proferida a decisão judicial, se extingue, em regra, o poder decisório do órgão jurisdicional que a proferiu (artigo 666º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil).
E transitada em julgado que seja a decisão, não pode ser objecto de reclamação ou de recurso ordinário (artigo 677º do Código de Processo Civil).
Operado que seja o caso julgado por virtude do trânsito em julgado da decisão da causa, não pode o tribunal voltar a pronunciar-se sobre o decidido e fica vinculado ao respectivo conteúdo, o que se prende com a chamada autoridade do caso julgado decorrente da decisão transitada em julgado.
Infringida que seja a autoridade do caso julgado por desrespeito dos seus efeitos processuais, seja no mesmo processo, seja em processos diversos, ocorre a situação de julgados contraditórios, com a consequência de valer a decisão que primeiramente tenha transitado em julgado (artigo 675º do Código de Processo Civil).
O thema decidendum objecto do recurso, desenvolvido no quadro de duas acções, suscita a questão da prevenção da repetição de causas idênticas por via da arguição pelos recorridos da excepção dilatória de caso julgado a que se reportam os artigos 493º, n.º 2 e 494º, alínea i), do Código de Processo Civil).
5.
Vejamos, ora, se ocorre ou não no caso espécie a repetição de causas idênticas com relevo de excepção dilatória de caso julgado.
A causa de pedir que o recorrente invocou na acção declarativa consistiu essencialmente em factos tendencialmente relevadores da omissão pelos recorridos do pagamento de 3 000 000$ correspondentes a metade do preço correlativo à transmissão do direito de propriedade sobre identificado prédio rústico, e o respectivo pedido consistiu na pretensão de condenação dos recorridos a pagar ao ora recorrente e o seu cônjuge da quantia de 3 000 000$, acrescida de juros moratórios.
Na acção executiva em análise, a causa de pedir é a declaração de reconhecimento por parte dos ora recorridos do direito de crédito do recorrente, sem indicação de causa, a que se reporta o artigo 458º, n.º 1, do Código Civil, constante de um documento particular simples que visa constituir, nos termos do artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil, título executivo, e o respectivo pedido é o de citação dos primeiros para, no prazo de vinte dias, pagarem 3 000 000$ e juros ou nomearem bens à penhora (artigo 811º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Nos embargos de executado, a causa de pedir que os recorridos invocaram foi o facto do reconhecimento em decisão judicial transitada em julgado da confissão do recorrente de que os primeiros lhe pagaram, no acto da escritura ou antes, a totalidade do preço de 6 000 000$, e o seu próprio acto de pagamento dessa quantia, incluindo a parte titulada pelo documento que à acção serve de título executivo, e o pedido por eles formulado no confronto do recorrente foi o de absolvição do pedido, ou seja, em rigor, a declaração da extinção da instância executiva.
Decorre do exposto que os sujeitos da acção declarativa que culminou com o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e os sujeitos da acção executiva e dos embargos de executado conexos, no plano da sua qualidade jurídica, são, na realidade, os mesmos.
Todavia, a causa de pedir e o pedido formulados nos embargos de executado e na acção declarativa que culminou com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 1999 não são idênticos.
Os pedidos formulados na referida acção declarativa e na acção executiva em causa também não são idênticos, porque na primeira o que se visou foi obter uma decisão condenatória na decorrência de um juízo de apreciação de factos e de normas jurídicas, e, na última, num quadro de mera efectivação de um direito violado, a pretensão formulada foi a de citação para pagamento de 3 000 000$ e juros ou nomeação de bens à penhora.
6.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.
Na primeira instância, o documento particular em análise apenas relevou para a especificação do seu conteúdo, mantida pela Relação, ou seja, que ele configurava uma declaração assinada pelos ora recorridos em que declararam, designadamente, dever ao recorrente a importância de 3 000 000$.
Em conexão com a referida especificação foram elaborados os quesitos quinto a sétimo, que tiveram resposta positiva, no sentido de ter sido a pedido dos ora recorridos que o ora recorrente e o seu cônjuge declararam na escritura pública em que outorgaram terem recebido o preço respectivo, somente terem recebido do preço da venda 3 000 000$, e que da diferença entre esta quantia e o valor da venda só haviam recebido, em 29 de Setembro de 1992, por conta dos juros vencidos, 100 000$.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Junho de 1999, revogou-se parcialmente a aludida decisão da matéria de facto, que havia sido confirmada pela Relação, concernente à resposta aos mencionados quesitos, salvo o segmento do último sob a expressão terem o ora recorrente e o seu cônjuge recebido dos ora recorridos, a título de juros, a quantia de 100 000$, mas com o esclarecimento de que não estava provada a relação entre esses juros e a compra por via da escritura outorgada no dia 9 de Maio de 1991.
Assentou a referida decisão revogatória da matéria de facto, que por seu turno motivou a decisão fáctico-jurídica de absolvição dos ora recorridos do pedido, na prova plena derivada da confissão pelo ora recorrente e seu cônjuge na escritura de haverem recebido o preço, e na ilegalidade de sobre a matéria haver sido produzida prova testemunhal.
Não obstante o referido documento haver sido oferecido pelo ora recorrente e pelo seu cônjuge na referida acção declarativa, como meio de prova do seu conteúdo, e motivado a especificação acima referida, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu, por um lado, não ter sido alcançada no julgamento a relacionação entre ele e os factos controvertidos e, por outro, inexistir o princípio de prova escrita que permitisse a prova de factos contrários aos resultantes da confissão operada na escritura por via testemunhal e não poder substituir-se às instâncias no estabelecimento da relação entre o documento e os factos que censurara no acórdão.
Assim, em síntese, o Supremo Tribunal de Justiça absolveu os ora recorridos do pedido sob o fundamento único de a confissão da recepção da totalidade do preço constante da escritura fazer prova plena contra os confitentes e de o documento aludido não ter relacionação com os factos controvertidos pelas partes e que, por isso, inexistia prova escrita que possibilitasse a admissibilidade da prova testemunhal para infirmar a prova derivada da confissão.
Não foi, pois, decidido na referida acção declarativa pelo Supremo Tribunal de Justiça que o referido documento não tinha eficácia probatória por estar desvalorizado pelo conteúdo contrário da escritura pública que fazia prova plena.
Nessa decisão não foi declarado que os recorridos pagaram ao ora recorrente e ao seu cônjuge todo o preço declarado na escritura de compra e venda, mas apenas que os meios de prova utilizados, ou seja, a prova testemunhal, não podia, só por si, na espécie, infirmar o facto confessado naquela escritura de que ocorrera o pagamento integral.
Aquela acção não teve por objecto a determinação do valor intrínseco e substancial do documento em causa, e a lei não obsta a que o mesmo documento tenha nela sido utilizado como meio de prova e agora o seja como título executivo numa acção executiva, e a circunstância de na primeira não haver tido o relevo pretendido por quem o apresentou não significa que o não possa vir a ter na segunda.
Os ora recorridos foram absolvidos do pedido sob o fundamento lógico e necessário da prova plena derivada da confissão extrajudicial em escritura pública de que os últimos tinham pago ao ora recorrente e ao cônjuge o preço concernente ao contrato de compra e venda.
A motivação indirecta dessa absolvição assentou na circunstância de o ora recorrente e o seu cônjuge não haverem provado, pelo meio idóneo, que os ora recorridos só lhe haviam pago metade do referido preço.
Com efeito, da fundamentação do decidido decorre claramente que se partiu do entendimento de que não havia sido alcançada no julgamento das instâncias a relacionação do aludido documento com os factos controvertidos no quadro da posição de ambas as partes.
Por conseguinte, o caso julgado em causa não envolve a declaração judicial de que os ora recorridos hajam pago ao ora recorrente e ao seu cônjuge a totalidade do preço relativo ao mencionado contrato de compra e venda.
É certo que o documento em causa já foi apreciado, como meio de prova, numa acção declarativa, mas em termos de ser considerado sem conexão com os factos controvertidos e, por isso, sem a virtualidade de constituir princípio de prova justificativa da admissibilidade da prova testemunhal.
O facto de o documento em causa haver sido apresentado na acção declarativa como meio de prova não obsta, como é natural, a que relevantemente sirva de título na acção executiva, ou seja, como meio de prova da obrigação exequenda.
Decorre da lei que nos embargos se pode discutir não só a inexistência da relação fundamental que está ou esteve subjacente à dívida confessada como também se o documento em causa vale ou não como título executivo e qual o âmbito da sua eficácia (artigos 813º, alínea a) e 815º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Discute-se nos embargos a existência ou a inexistência da relação subjacente à declaração de reconhecimento de um direito de crédito consubstanciado em documento susceptível de constituir título executivo em termos de poder implicar a controvérsia já suscitada na acção declarativa sobre se os ora recorridos pagaram ao recorrente e ao cônjuge metade ou todo o preço relativo ao contrato de compra e venda do prédio.
Mas ainda não está apurada a factualidade tendente à demonstração pelos recorridos da inexistência da relação jurídica subjacente à confissão de dívida, certo que não consta minimamente do requerimento executivo e só foi articulada no respectivo instrumento de contestação e sobre a qual ainda não houve juízo de prova.
A circunstância de haver sido discutido noutro processo, isto é, na referida acção declarativa, se os ora recorridos deviam ou não ao recorrente e ao seu cônjuge parte do preço relativo ao contrato de compra e venda, tendo em conta o conteúdo da decisão que transitou em julgado e os respectivos fundamentos, não impede que se discuta nos embargos a existência ou a inexistência do direito de crédito do recorrente consubstanciado no documento em causa.
E os recorridos podem, por via da prova que arrolem, demonstrar a inexistência do referido direito de crédito, ou seja, que a confissão da dívida não tem causa justificativa.

Ao invés do que os recorridos afirmaram, o prosseguimento da fase declarativa dos embargos não implica necessariamente, como é natural, que a prova a realizar se limite a reproduzir aquela que foi arrolada no âmbito da referida acção declarativa.
Decorrentemente, não ocorre, na espécie, o pressuposto da excepção dilatória de caso julgado consubstanciada na repetição de causa idêntica a que se reportam os artigos 497º, n.º 1, e 498º do Código de Processo Civil.
Não ocorre, por isso, caso julgado que implique não poder o tribunal conhecer do mérito dos embargos, ou seja, se existe ou não o direito de crédito a que se reporta a declaração de reconhecimento consubstanciada no documento que serve de título à acção executiva em causa.
Procede, por isso, o recurso, com a consequência da revogação do acórdão recorrido e da sentença proferida na primeira instância, e de o procedimento de embargos dever prosseguir nos seus ulteriores e regulares termos.
Vencidos, são os recorridos responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, revoga-se o acórdão recorrido, e determina-se o prosseguimento do procedimento de embargos, e condenam-se os recorridos no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 25 de Novembro de 2004.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís