Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6066/05.OTVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: TESTAMENTO
CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
ANULAÇÃO DE TESTAMENTO
ANULAÇÃO DE DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
NULIDADE
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
ACTO MÉDICO
Data do Acordão: 09/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS SUCESSÕES - SUCESSÃO LEGITIMÁRIA - SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA
Doutrina: - Antunes Varela Código Civil Anotado, 1998, Vol VI, págs. 315, 316, 331.
- Cunha de Sá , “Indisponibilidade Relativa em Sucessão Testamentária”, Revista dos Tribunais, Ano 94.º 1976, pág. 294/295 e 299.
- Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Vol IX, 1934, págs. 580, 668, 669, 671.
- Duarte Pinheiro, Legado em Substituição da legítima, 1996, Edição Cosmos, pág. 206.
- Eduardo dos Santos, Direito das Sucessões, 2002, AAFDL, pág. 406 e segs..
- Inocêncio Galvão Telles, “Legado por Conta da legítima e Legado em Substituição da Legítima (Estudo de Direito Luso-Brasileiro)”,O Direito, Ano 121.º, 1989, II (Abril/Junho), pág. 243, 244, 250; Direito das Sucessões. Trabalhos Preparatórios do Código Civil, 1972, Lisboa, Centro de Estudos de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pág. 300.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 247.º, 252.º, 2030.º, NºS 2 E 4, 2165.º, 2168.º, 2169.º, 2171.º, 2174.º, N.º2, 2194.º, 2201.º, 2202.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CC): - ARTIGOS 660.º, 722.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 13-5-2004,C.J., 2, PÁG. 58.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO.
- C.J., 2006, IV, PÁG. 163.
Sumário :
I - O art. 2194.º do CC fulmina com a nulidade (presunção juris et de jure) a disposição testamentária a favor de médico ou enfermeiro que trate do testador, ou do sacerdote que lhe preste assistência espiritual, se o testamento for feito durante a doença e o seu autor vier a falecer dela, valendo o preceito para os casos em que os actos de tratamento da doença sejam efectuados por quem, não sendo médico ou enfermeiro, se arrogue tal qualidade ou se assuma como conhecedor das artes da medicina e da enfermagem ou ainda por quem, objectivamente, atentas as circunstâncias do caso, trate da doença, praticando actos de médico ou serviços de enfermagem.

II - Em todas essas circunstâncias é de considerar verificada uma situação de dependência psicológica entre o doente e a pessoa que dele trata.
Decisão Texto Integral:

 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

 1. AA intentou acção declarativa constitutiva com processo ordinário contra BB, CC, DD e EE deduzindo os seguintes pedidos:

- De anulação do testamento por erro da testadora (2201.º do Código Civil).

- Se assim não se considerar, devem ser declaradas nulas todas as disposições testamentárias por violação do disposto nos artigos 2163.º e 2165.º do Código Civil.

- Em qualquer caso, devem igualmente ser declaradas nulas as disposições testamentárias a favor dos 1.º, 2.º e 3.º réus por força do disposto no artigo 2194.º do Código Civil.

 2. O autor, quanto ao primeiro pedido, considera que todo o testamento deve ser anulado por erro da testadora que distribuiu toda a herança em legados, erro esse essencial; essencial porque a testadora assim dispôs por estar convencida de que, por estar casada em regime de separação de bens, podia dispor livremente de toda a herança.

 3. Quanto ao segundo pedido, de natureza subsidiária, portanto a valer se não proceder o primeiro pedido, sustenta o autor que as disposições testamentárias referentes aos legados são nulas, pois o testador não pode designar os bens que devem preencher a legítima contra a vontade do herdeiro, não se podendo entender que o fez em substituição da legítima pois ele nada disse expressamente nesse sentido.

 4. Por fim, relativamente ao último pedido, e no que respeita à ré DD, única recorrente, e vencedora do recurso interposto da sentença de primeira instância, agora recorrida face à revista interposta pelo autor do acórdão da Relação, sustentou o autor que o legado de que esta ré beneficiou é nulo; nulo porque, quando  o testamento foi lavrado, a testadora vivia no lar onde trabalhava esta ré como auxiliar de enfermagem e foi esta ré que a tratou durante a doença (cancro da mama e traumatismos resultantes do atropelamento), doenças de que veio a falecer.

 5. A sentença de 1ª instância julgou parcialmente procedente, por provada, a acção e, por via disso, anulou o testamento celebrado por FF em 22 de Setembro de 2003 no 23º Cartório Notarial de Lisboa.

 6. Nessa sentença considerou-se o seguinte:

- Que o invocado erro não decorre do teor do testamento e que é irrelevante, não aproveitando o desconhecimento da lei a ninguém, incluindo, no caso, o próprio demandante (artigos 6.º, 2202.º e 2203.º do Código Civil).

- Que da violação do disposto no artigo 2163.º do Código Civil que proíbe o testador de impor encargos sobre a legítima e designar os bens que a hão-de preencher, contra a vontade do herdeiro legitimário, tais liberalidades não podem ser reduzidas oficiosamente, pois não podem ser consideradas isoladamente dado serem feitas em conjunto aos 4 réus e, a serem consideradas válidas, “a situação já não era a que a testadora havia querido, ou seja, a de deixar a nua propriedade de tais bens à sobrinha [sobrinha EE que nada tem a ver com os demais réus, trabalhadores do Lar onde viveu a A. até Novembro de 2003] e aos demais réus - isto quanto aos imóveis - e sim apenas àquela, o que não tem qualquer expressão no texto do testamento.

- Que é nula a disposição testamentária que instituiu legatária a ré DD visto que trabalhava no Lar, prestava serviços inerentes à função de enfermeira, posto que não exclusivos do pessoal de enfermagem, inserindo-se a sua actividade na de “ pessoal pelo menos auxiliar de enfermagem o que vem a ter os mesmos efeitos em termos de dependência psicológica do doente, devido à carência dos tratamentos”; “as lesões de que era tratada não decorriam do próprio acidente em si, apenas e também da doença que lhe veio a determinar a morte, ou seja, o adenocarcinoma da mama mestatizado e a celulite bilateral dos membros inferiores”.

 7. O acórdão da Relação julgou a acção parcialmente procedente, julgando ineficaz a deixa testamentária que instituiu como legatário  o autor;  no mais, julgou a acção improcedente, por não provada, absolvendo a ré DD do pedido formulado.

 8. O autor finaliza a minuta da revista com as seguintes conclusões:

- Quanto à anulabilidade do testamento nos termos do artigo 2201.º do Código Civil com vista ao artigo 251.º do mesmo Código:

- Que a testadora, ao dispor livremente de todos os seus bens, ignorando o facto de o marido, ora recorrente, ser seu herdeiro legitimário, violou por erro manifesto, quanto à qualidade da pessoa (neste caso , o recorrente) o disposto no artigo 2165.º do Código Civil.

- E esse erro resulta claramente do testamento, pois o valor da raiz dos bens imóveis é necessariamente muito superior ao valor do usufruto, especialmente atendendo à idade do usufrutuário (78 anos) , o mesmo se verificando quanto a dinheiros (60% para terceiros e 40% para o herdeiro legitimário).

- Como ensinam os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela “ agora há conformidade entre a vontade real e a vontade declarada. Somente formou-se a vontade real em consequência de erro. Se não fosse ele, a pessoa não teria pretendido realizar o negócio pelo menos nos termos em que o efectuou.

- Não se trata aqui de aceitar uma designação de bens para compor a legítima (artigo 2163.º do Código Civil) pois não é isso que consta ou se infere do testamento, nem de aceitar um legado em substituição da legítima (artigo 2165.º do Código Civil) dado que também não é isso que é pretendido ou se infere do testamento

- Como se deixou dito na alegação para o Tribunal da Relação, a propósito da aplicação das disposições dos artigos 2163.º e 2165.º do Código Civil, todo o testamento deverá ser considerado inválido, pois o recorrente ao não aceitar os bens que lhe foram legados e sendo herdeiro legitimário, isso implicaria necessariamente uma distribuição dos bens da herança diferente da pretendida pela testadora, o que não poderia ser obtido simplesmente através da redução por inoficiosidade que apenas pode corrigir quantitativamente a vontade da testadora, mas não serve para alterar qualitativamente essa mesma vontade

- Quanto à nulidade do testamento nos termos do artigo 2194.º do Código Civil:

- A recorrida, tal como a ré CC, prestava serviços inerentes à função de auxiliar de enfermagem, pois não só aplicava pomada nas pernas da falecida FF (testadora) mas também auxiliava nos tratamentos ao ombro esquerdo e às pernas da mesma que são serviços próprios de quem exerce enfermagem

- A testadora fez o testamento enquanto viveu no Lar, foi tratada pela recorrida ( e pelos outros réus) que lhe prestou serviços como auxiliar de enfermagem, no âmbito das doenças que tinha, o adenocarcinoma da mama mestatizado e a celulite bilateral das pernas ( e igualmente as lesões e sequelas decorrentes  do atropelamento) e foi destas mesmas doenças que veio a falecer.

- Ao contrário do que entende o acórdão recorrido, deverá ser feita uma interpretação abrangente do artigo 2194.º do Código Civil de modo a incluir-se no mesmo o exercício ilegal da enfermagem na qual se integra a ora recorrida, sendo nulas as disposições testamentárias a favor da ora recorrida nos termos do artigo 2194.º do Código Civil.

- Quanto à nulidade do testamento por prosseguir um fim contrário à lei (artigo 2186.º do Código Civil):

- Que da interpretação do testamento resulta claramente que a testadora quis afastar da sucessão a filha do marido ( o ora recorrente)  ao deixar a este apenas o usufruto dos imóveis, o que implicaria a não transmissão desses bens para a mesma filha.

- Que esta interpretação da vontade da testadora, e, consequentemente, do testamento foi confirmada pelas testemunhas da ré CC, como é referido pela sentença de 1º instância, reportando-se à fundamentação das respostas aos quesitos.

- E a testadora ao pretender alterar com o testamento as regras legais de sucessão, pretendeu necessariamente um fim contrário à lei pelo que tem, por isso, razão a sentença de 1ª instância ao considerar também nulo o testamento por força da citada disposição do artigo 2186.º do Código Civil.

 9. Nas contra-alegações a recorrida, invocando o disposto no artigo 684.º-A do C.P.C.(ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido) entende reiterar questões que ficaram prejudicadas, não tratadas no acórdão, a saber:

- Que o Tribunal deu como provado que as causas da morte da testadora “ foram o adenocarcinoma da mama mestatizado e a celulite bilateral dos membros inferiores, louvando-se no teor do doc. n.º13 que acompanhou a petição inicial, indicando tal documento como causa directas do decesso apenas o adenocarcinoma da mama mestatizado, não sendo a celulite dos membros inferiores da falecida invocada por ter tido intervenção causal na morte da testadora.

- Que a sinistrada ingressou no Lar a expensas da Tranquilidade e, obviamente, não foi para cuidar daquelas patologias pré-existentes ( geradoras de IPP de 86%) mas apenas para debelar os efeitos do sinistro, continuando, enquanto permaneceu no Lar, a ir ao Hospital de S. José para receber os tratamentos do foro oncológico de que carecia e ao Hospital Curry Cabral para os tratamentos atinentes às lesões resultantes do atropelamento.

- Que, concedida alta pelos serviços clínicos competentes, a sinistrada regressou a casa sem que a recorrente tivesse com ela mais qualquer contacto.

 10. Factos provados:

1 - FF, de 77 anos de idade, faleceu no dia 27 de Outubro de 2005, no estado de casada com AA, tendo como última residência habitual a Av. ..........., nº ....., .., em Lisboa, tendo falecido no Hospital de São José, em Lisboa ( al. A) da esp. ).

2 - O autor e a referida FF contraíram casamento civil, segundo o regime imperativo da separação de bens, no dia 25 de Janeiro de 2003, casamento dissolvido pelo óbito do cônjuge mulher referido em 1 - ( al. B) da esp.).

3 - No dia 22 de Setembro de 2003, no 23º Cartório Notarial de Lisboa, FF declarou ser casada no regime da separação de bens com o autor e não ter descendentes nem ascendentes e que por testamento distribuía a sua herança pela seguinte forma:

a) FF declarou deixar ao autor, seu marido, o usufruto vitalício de todas as fracções autónomas que possuía, ou seja: a fracção autónoma designada pela letra “ C “, correspondente ao primeiro andar Dtº do prédio urbano sito no antigo .........., sito na Av. ........, em São João do Estoril, freguesia do Estoril, concelho de Cascais, inscrito na matriz sob o art.º ....; a fracção autónoma designada pela letra “ H “, correspondente ao 3º andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua .........., nºs. .., 13-A, .. e .., freguesia de São João de Deus, concelho de Lisboa, inscrito na matriz sob o art.º 665 e a fracção autónoma designada pela letra “ C “, correspondente ao 2º andar do prédio urbano sito na Av. ..........., nº ..... e .....-A, freguesia do Campo Grande, concelho de Lisboa;

b) Mais declarou FF deixar a raiz das referidas fracções autónomas, com o direito de acrescer, a: EE, ( sobrinha da mesma por afinidade, filha da irmã mais nova do autor), a esta com a cláusula de incomunicabilidade, a CC, a DD e a BB;

c) FF declarou ainda deixar o certificado de aforro – série B, com o nº 00000000000, ao seu marido, ora autor;

d) FF declarou deixar quarenta por cento de todas as contas bancárias que possuía a seu marido, sendo o restante para os referidos EE, a esta com a cláusula de incomunicabilidade, CC, DD e BB, com o direito de acrescer;

e) FF declarou então deixar os livros de arte, trinta moedas de ouro italianas, uma libra de ouro e o enxoval de linho bordado à mão a EE;

f) FF declarou ainda que a conta poupança reformado ficava em exclusivo para o autor, seu marido e que, com tais disposições, dava por findo o testamento ( al. C) da esp. ).

4 - Foram testemunhas do testamento referido em 3 - GG e HH ( al. D) da esp. ).

5 - FF viveu no Lar dos Pastorinhos, sito na Av. ..........., nº...., ..º e.., em Lisboa, entre Novembro de 2000 e Novembro de 2003 ( al. E) da esp. ).

6 - FF sofria de cancro da mama ( al. F) da esp. ).

7 - Enquanto esteve no lar referido FF ia fazer regularmente tratamentos ao Hospital de São José, em virtude da sua doença oncológica e, devido aos traumatismos resultantes do atropelamento, ia regularmente fazer tratamentos ao Hospital Curry Cabral ( al. G) da esp. ).

8 - Ao fazer o testamento referido FF partiu do pressuposto de que podia dispor livremente de todos os seus bens ( resposta ao quesito 1º) ).

9 - O autor não aceitaria nem aceita os legados referidos ( resposta ao quesito 2º) ).

10 - A doença referida em 6 - foi diagnosticada a FF em 1996 ( resposta ao quesito 3º).

11 - No dia 10 de Junho de 2000 FF foi atropelada na Av. ..........., em Lisboa (resposta ao quesito 4º).

12 - Tendo-o sido pelo veículo de matrícula 00-00-00 ( resposta ao quesito 5º).

13 - Conduzido por II( resposta ao quesito 6º).

14 - E em consequência de tal atropelamento FF sofreu lesões ao nível dos membros superior e inferior esquerdos ( resposta ao quesito 7º).

15 - E esteve, por isso, internada no Hospital Curry Cabral cerca de cinco meses ( resposta ao quesito 8º).

16 - Após o que foi para o lar referido em 5 – ( resposta ao quesito 9º).

17 - Enquanto viveu no lar referido FF foi sempre assistida por um enfermeiro do próprio lar ( resposta ao quesito 10º).

18 - Devido às sequelas do atropelamento (resposta ao quesito 11º).

19 - E à doença referida em 6 – ( resposta ao quesito 12º) ).

20 - Tal enfermeiro era o Réu BB ( resposta ao quesito 13º).

21 - As Rés CC e DD trabalhavam no mesmo lar ( resposta ao quesito 14º) .

22 – A própria falecida referiu a várias pessoas que a Ré DD tinha umas boas mãos para lhe aplicar a pomada nas pernas e que ambas as rés auxiliavam nos tratamentos ao ombro esquerdo da falecida e às pernas ( resposta ao quesito 15º).

23 - Desde o ano de 2000 que FF apresentava uma incapacidade permanente global de 86% ( resposta ao quesito 16º).

24 - As causas da morte de FF foram o adenocarcinoma da mama metastizado e a celulite bilateral dos membros inferiores ( resposta ao quesito 17º).

25 - O réu BB prescrevia tratamentos a administrar à falecida no lar em causa, sendo os mesmos relacionados com os problemas que a mesma tinha nas pernas – feridas e fístulas – e ao ombro, tendo o mesmo administrado à mesma pelo menos uma injecção numa determinada ocasião e prescrevia-lhe analgésicos para as dores, que no lar lhe eram dados, além de a referida FF ali tomar medicamentos para a doença oncológica de que padecia, sendo o aludido réu que tratava dos cuidados clínicos dos demais internados no lar ou os prescrevia ( resposta ao quesito 18º).

26 – Durante algum tempo FF foi assistida no lar por uma fisiotepareuta para tratamento das lesões sofridas em consequência do acidente de viação e com vista à recuperação das funções do dia a dia ( resposta ao quesito 19º).

27 – As fracções autónomas referidas em 3 – têm um valor presumível de mercado de 394.400 Euros (relatório de perícia de fls. 286 a 291 dos autos).

28 – O autor indicou como sendo o valor dos demais bens deixados por óbito de FF – contas bancárias, certificados de aforro, livros de arte, moedas, uma libra de ouro e enxoval, além de conta poupança reformado - o de 146.421,42 Euros.

 Apreciando:

 11. O autor considera que o testamento é anulável por erro  da testadora pois, ignorando ela o facto de o marido ser seu herdeiro legitimário, não teria realizado o negócio ou, pelo menos, não o teria realizado nos termos em que o efectuou.

 12. Provou-se, é certo,  que “ ao fazer o testamento FF partiu do pressuposto de que podia dispor livremente de todos os seus bens” (ver 8 da matéria de facto).

 13. O erro, a ter aqui em consideração, seria, não o erro na declaração (artigo 247.º do Código Civil) ou o erro sobre a pessoa ou pessoas beneficiárias do testamento, que manifestamente não ocorre, mas o erro nos motivos (artigo 252.º conjugado com o artigo 2202.º do Código Civil).

 14. Prescreve o artigo 2202.º do Código Civil sob a epígrafe “ Erro sobre os motivos”:

O erro, de facto ou de direito, que recaia sobre o motivo da disposição testamentária só é causa de anulação quando resultar do próprio testamento que o testador não teria feito a disposição se conhecesse a falsidade do motivo.

 15. Assim, por exemplo, à luz do artigo 1748.º do Código Civil de Seabra, escreveu Cunha Gonçalves “ o erro de direito sobre a causa anulará a instituição; […] quando o testador diz ‘deixo ao meu afilhado a quantia de 5$ mensais para seus alimentos, porque a lei me impõe este dever, sendo certo que a obrigação alimentar não se estende aos afilhados[…]. Nula será a instituição feita por um português residente em França, nos temos seguintes: ‘deixo a Fulano, meu filho adoptivo, metade dos meus bens a título de legítima; pois a nossa lei não admite os filhos adoptivos e não lhes reconhece o direito à legítima. Em todo os caso, o erro deve ter sido invocado no testamento” (Tratado de Direito Civil, Vol IX, 1934,pág 580).

 16. Antunes Varela salienta que “ o erro sobre os motivos da disposição só pode determinar  a anulação desta, quando o motivo da disposição conste do testamento. Quando no próprio testamento nenhuma referência se faça ao motivo da disposição, nenhum erro se pode alegar acerca do motivo omitido e, por conseguinte, nenhuma prova se poderá fazer acerca da essencialidade do motivo” (Código Civil Anotado, 1998, Vol VI, pág. 331).

 17. Ora, no caso vertente, nenhuma referência se faz no próprio testamento a que a testadora deixava aos instituídos legatários os bens referenciados no testamento porque era livre de dispor de todos os seus bens por não existir nenhum herdeiro necessário.

 18. Se uma tal declaração constasse do documento, podia então admitir-se prova complementar tendo em vista  determinar se essa declaração era essencial no sentido de que, se soubesse a testadora que o marido era herdeiro legitimário, não teria outorgado testamento.

 19. Os termos em que a testadora instituiu os legados, quantitativamente mais favoráveis aos réus do que ao autor, não constitui indicação do motivo que é exigida no mencionado artigo 2201.º do Código Civil sendo certo que as disposições testamentárias podiam ter sido consignadas, tal como foram, mesmo existindo um herdeiro legitimário.

 20. Com efeito, ainda que o autor aceitasse o legado de usufruto vitalício sobre os imóveis, essa aceitação não implicava que, caso o seu valor ficasse aquém da legítima, não pudesse ele exigir o que falta para atingir o montante legal da quota legitimária. Assim o diz Duarte Pinheiro, justificando deste modo o seu entendimento:

O chamado legado por conta da legítima não é um verdadeiro legado. É uma herança ex re certa, uma quota preenchida. O legado por conta corresponde à própria legítima concretizada. No entanto, o legitimário que repudia o “legado” pode adquirir “ a legítima abstracta”.O destinatário não tem de optar entre legado e legítima mas sim entre legítima preenchida e legítima por preencher. Por isso, havendo  aceitação do legado por conta e sendo o valor deste inferior ao da legítima, o aceitante pode exigir o que falta para atingir o montante legal da quota legitimária” (Legado em Substituição da legítima, 1996, Edição Cosmos, pág. 206).

 21. Por isso, as disposições testamentárias tal como ficaram exaradas não podem ser consideradas um equivalente à indicação da razão ou motivo da instituição de legados. E se tais disposições não se pudessem manter por haver herdeiro legitimário, não se nos depararia uma causa de anulação fundada no artigo 2202.º do Código Civil mas uma causa de anulação fundada na incompatibilidade legal entre a instituição de legatário quando há herdeiros legitimários, o que é coisa diferente e não está aqui obviamente em discussão, pois não existe um tal obstáculo de ordem legal.

 22. Da declaração constante do testamento em que a testadora institui legatário o seu marido - deixou-lhe legado de usufruto vitalício dos imóveis, do certificado de aforro, de 40% das contas bancárias e da conta poupança-reformado (artigo 2030.º/2 e 4 do Código Civil) - não resulta que a deixa tenha sido efectuada em substituição da legítima.

 23. Inocêncio Galvão Telles refere a este propósito o seguinte:

O testador que forme o propósito de deixar bens determinados a um herdeiro necessário, mas sem que tais bens acresçam à respectiva legítima, deve ser particularmente cuidadoso na redacção da disposição testamentária, a fim de que não venha a suscitar-se dúvidas sobre qual a modalidade escolhida - se o legado em integração da legítima, se o legado em substituição da legítima, pois diversas são as suas naturezas e diversos os seus regimes , como ficou exposto.

Na prática será talvez aconselhável, na generalidade dos casos, optar pela primeira fórmula, porque a segunda oferece carácter aleatório para o herdeiro. Este, na prática, virá a receber mais ou menos do que aquilo a que tinha direito, e isso pode frustrar as expectativas e desígnios do autor da sucessão, tendo em conta sobretudo as oscilações do valor que o seu património é susceptível de sofrer no intervalo entre o testamento e a morte (“Legado por Conta da legítima e Legado em Substituição da Legítima (Estudo de Direito Luso-Brasileiro)”,O Direito, Ano 121.º, 1989, II (Abril/Junho), pág. 250).

 24. Ora precisamente porque no legado em substituição da legítima, a sua aceitação implica a perda do direito à legítima sendo imputado na quota indisponível e, pelo excesso, se excesso houver, na quota disponível ( artigo 2165.º do Código Civil), já no legado por conta da legítima (artigo 2163.º do Código Civil), uma vez aceite, se o herdeiro obtiver apenas pagamento parcial da legítima, assiste-lhe, como se disse, “direito a um complemento, que também sairá da quota indisponível mas segundo o mecanismo geral da partilha” (Galvão Telles, loc. cit, pág. 244).

 25. No caso de legado em substituição da legítima, “ o cânone da intangibilidade  da legítima mantém-se incólume, visto que o legado destinado a preencher ou a fazer as vezes da legítima não pode ser imposto ao herdeiro, sempre dependendo do seu assentimento. O herdeiro é livre de a ele aderir ou não, bem podendo optar pela legítima, como a lei lhe assegura, intacta na sua pureza de quinhão abstracto no acervo hereditário” (Galvão Telles, loc. cit, pág. 243).

 26. Não havendo no legado por conta da legítima a possibilidade de renúncia à legítima, se houver renúncia do legado, e esta é admissível, fica ao herdeiro a legítima em abstracto; não havendo renúncia ao legado, a legítima ficará total ou parcialmente coberta pelos bens integrativos do legado.

 27. Já se decidiu, o que está em consonância com a linha de orientação exposta, que, ignorando-se a intenção do testador e não  fornecendo o testamento qualquer pista, os legados devem ser tidos por conta da legítima (Ac. da Relação do Porto - Cura Mariano - C.J., 2006, IV, pág. 163) e deste modo se deve também, a nosso ver, entender no caso em apreço.

 28. Logo daqui decorre que sempre ficaria salvo ao legatário, que não renunciou ao legado, o direito ao preenchimento da legítima se o valor dos bens legados não fosse suficiente para a preencher e, por isso, impor-se-ia a redução dos legados por inoficiosidade (artigo 2168.º, 2169.º, 2171.º do Código Civil) o que pode levar, mesmo neste caso, a que a distribuição dos bens venha a ser alterada, designadamente quando os bens são indivisíveis (artigo 2174.º/2 do Código Civil) caso em que “ se a importância da redução exceder metade do valor dos bens, estes pertencem integralmente ao herdeiro legitimário, e o legatário ou donatário, haverá o resto em dinheiro”.

 29. De igual modo, havendo renúncia ao legado por conta da legítima, como no caso sucedeu ( ver 9 da matéria de facto), é evidente que a intangibilidade da legítima impõe que o quinhão do herdeiro legitimário seja preenchido por via da redução dos bens legados sob pena de inoficiosidade.

 30. No entanto, porque a redução não exclui a reposição de bens (artigos 1365.º a 1368.º do C.P.C. redacção anterior  à Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho), ou seja, o herdeiro legitimário pode ser inteirado em bens legados, uma tal possibilidade não desencadeia a anulação do testamento. A redução pode fazer-se em espécie ou substância e em valor (sobre modos de redução, ver Eduardo dos Santos, Direito das Sucessões, 2002, AAFDL, pág. 406 e segs).

 31. Daqui resulta, tal como se considerou no acórdão recorrido, que, sendo vontade da testadora que, por morte do marido, usufrutuário vitalício, a propriedade dos imóveis se consolidasse na pessoa dos legatários, tendo estabelecido entre eles o ”direito de acrescer”, ”não aceite o usufruto, o direito sobre os imóveis deixou de ficar cindido, ficando a propriedade perfeita. O legado tem, então, que ser respeitado nessa vertente”. E prossegue o acórdão: “em sede de inventário, que já não nesta acção, haverá então que se apurar se o património da testadora, excluídos os legados atribuídos à recorrente, é ou não suficiente para preencher a legítima do A. marido. Se o for, os legados cumprir-se-ão; se o não for, os legados haverão de ser reduzidos, por inoficiosidade, na estreita medida necessária ao preenchimento dessa legítima – art.º 2168.º do CC”.

 32. Não podendo ser ofendida a legítima pela testadora, esta, se quisesse evitar que os imóveis viessem um dia a integrar o património da filha do seu marido, deveria socorrer-se da instituição do legado em substituição da legítima, mas, também aqui, a vontade do testador não se impõe por si, pois a lei exige a aceitação do legado (artigo 2165.º do Código Civil).

 33. Por aqui se vê como é inócua a argumentação do recorrente quando invoca uma contrariedade aos fins da lei com a outorga deste testamento.

 34. E ainda que a vontade da testadora fosse a de, pela instituição de legados, obstar a que o seu património um dia viesse a beneficiar a filha de seu marido - o que nem sequer está provado - um tal propósito nada tem de ilegal, bem podendo o testador servir-se dos meios que a lei põe à sua disposição para satisfazer a sua vontade, não se evidenciando, pela leitura das disposições testamentárias, que a testadora quisesse privar um dia a filha de seu marido de beneficiar do seu património pois o seu marido foi inteirado em património mobiliário. Esta questão não tem, porém, pelo exposto, qualquer interesse para o litígio visto que de modo nenhum poderiam ser anuladas as disposições testamentárias por tal motivo.

 35. Fica-nos a questão de saber se o legado deixado à recorrida DD deve ser considerado nulo nos termos do disposto no artigo 2194.º do Código Civil.

 36. Refira-se que, quanto aos demais legatários que trabalhavam no lar onde a testadora esteve internada, a sentença de 1ª instância transitou em julgado conforme salientou o acórdão da Relação com argumentação extensa e fundamentada de que nos permitimos transcrever a parte final:

Claro que não sendo caso de litisconsórcio necessário e estando então o âmbito do recurso limitado ao direito da R DD, transitada que está a decisão em relação dos RR não recorrentes, que anulou o testamento, caso proceda o presente recurso, poderemos chegar a uma situação de julgar válida a deixa testamentária em relação à recorrente, quando a mesma foi julgada inválida em relação aos demais, o que, obviamente beneficiará a recorrente. Injustamente? Não pensamos que o seja, dado que a testadora estabeleceu entre os RR o “direito de acrescer”. Logo, à mesma situação seriamos reconduzidos caso os demais legatários não quisessem aceitar os legados.

Conclui-se, pois, não estarmos perante um caso de litisconsórcio necessário e, logo, o recurso da recorrente DD não abrange os demais RR.

 37. Refira-se também que os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, no plano de facto, estão limitados nos termos do artigo 722.º/2 do C.P.C., razão por que a pretendida ampliação do recurso ( ver 9) tendo em vista os pontos de facto salientados não releva no âmbito da revista.

- Atente-se que a determinação da causa da morte foi objecto de quesito (17) houve produção de prova sobre essa matéria, e qualificada, tendo o Tribunal respondido ao quesito nos termos do facto provado (facto 24 supra da matéria de facto) o que nem sequer é contrariado pelo doc. de fls. 176.

- Atente-se que está provado que a testadora foi assistida no Lar por um enfermeiro do próprio Lar devido às sequelas do atropelamento e à doença referida em 6, ou seja, o cancro da mama ( ver factos supra 17, 18 e 19) e que eram prescritos pelo enfermeiro tratamentos a administrar à falecida no Lar, sendo os mesmos relacionados com os problemas que a mesma tinha nas pernas - feridas e fístulas - e ao ombro e prescrevia-lhe analgésicos para as dores (ver 25). As rés auxiliavam nos tratamentos ao ombro esquerdo da falecida e às pernas (22).

 38. Ou seja, a recorrida prestava tratamentos, não se limitando apenas, como agora pretende fazer incutir em matéria de facto, a aplicar uma meras pomadas. Não se olvide que a celulite bilateral dos membros inferiores é uma infecção bacteriana a tratar com antibióticos, dolorosa, a exigir tratamentos na área infectada, podendo dar-se disseminação da infecção sob a pele com morte tecidual. Ao sofrimento causado por esta infecção acresce o sofrimento causado pelo tumor maligno do cancro da mama. Esta é a realidade de facto que está evidenciada na singeleza das respostas que obviamente resultam de uma produção de prova circunstanciada que as justifica e que o Supremo Tribunal e as partes não podem deixar de acatar, pois já está ultrapassado o momento da discussão da matéria de facto.  

 39. Prescreve o artigo 2194.º do Código Civil sob a epígrafe “ Médicos, enfermeiros e sacerdotes”:

É nula a disposição a favor do médico ou enfermeiro que tratar do testador, ou do sacerdote que lhe prestar assistência espiritual, se o testamento for feito durante a doença e o seu autor vier a falecer dela.

 40. É inequívoco que a nulidade da disposição a favor do médico, enfermeiro ou sacerdote que tratarem do testador apenas se verifica se (a) o testamento for feito durante a doença (b) e o seu autor vier a falecer dela.

 41. Estes pressupostos estão preenchidos no caso em apreço, importando salientar o seguinte:

-  O testamento foi lavrado em 22-9-2003, a testadora faleceu em 27-10-2005 e casou-se com o autor em 25-1-2003.

- A testadora, ao tempo do testamento, vivia no Lar onde a legatária recorrente ( e demais legatários, salvo a sobrinha do autor) trabalhava, sofrendo de cancro da mama.

- A testadora foi vítima de atropelamento em 10-6-2000 e, depois de estar internada no Hospital cerca de cinco meses, foi viver para o referido Lar.

- Nesse Lar foi assistida por enfermeiro do próprio Lar ( um dos legatários) devido às sequelas do atropelamento (lesões ao nível dos membros superior e inferior esquerdos) e à doença cancerígena de que padecia desde 1996.

- As causas da morte da testadora foram o adenocarcinoma da mama metastizado e a celulite bilateral dos membros inferiores.

 42. Adquirido em sede de facto está que o testamento foi feito durante a doença da testadora e dela veio a falecer. E que a causa da morte não foi apenas o tumor mamário para ela contribuindo também a celulite bilateral dos membros inferiores sendo certo que a testadora desde o ano 2000 apresentava uma incapacidade permanente global de 86%.

 43. O actual preceito (artigo 2194.º do Código Civil) tem origem no artigo 1769.º do Código Civil de 1867 que dizia:

Não produzirão efeito as disposições do enfermo em favor dos facultativos, que lhe assistirem na sua moléstia, ou dos confessores que, durante ela,  confessarem, se morrer dessa moléstia.

 44. Cunha Gonçalves referia a propósito deste preceito o seguinte:

O enfermo, que se encontra in articulo mortis ou prostrado com doença mortal, tendo o corpo e o espírito deprimidos, desapegado dos bens terrenos e aterrado com a perspectiva da vida futura , facilmente pode ser vítima da captação da sua herança, quer pelo facultativo que promete salvá-lo  apesar de sabê-lo incurável, quer pelo confessor, que lhe promete a absolvição dos seus pecados e lhe garante a entrada no Céu. É como precaução contra estas captações que o artigo 1769.º foi consignado neste Código” (Tratado, Vol IX, pág. 668).

 E mais adiante salienta o mesmo autor:

A  palavra ‘facultativos’ refere-se, decerto, a médicos diplomados; mas, em muitos lugares, não existem médicos, e os tratamentos são feitos por farmacêuticos, enfermeiros, parteiras, curandeiros, charlatães, magnetizadores. Todos estes indivíduos devem ser incluídos no termo ‘facultativos’ , pois a captação é muito mais de recear da parte destes médicos de contrabando, já porque não oferecem garantias de probidade, já porque a sua clientela é, quase sempre, composta de pessoas incultas e facilmente sugestionáveis, como os numerosos tolos, que se deixam ludibriar  com o estafado ‘conto do vigário’ (loc. cit, pág. 669).

 45. Infere-se deste texto a admissibilidade da sua interpretação extensiva por ela se visando todos aqueles que se assumem conhecedores da arte da medicina e hoje, por virtude da inclusão da categoria de enfermeiro no correspondente preceito do Código Civil de 1966 (artigo 2194.º do Código Civil), daqueles que se assumem conhecedores das técnicas de execução terapêutica ou outras destinadas a aliviar os padecimentos do doente.

 46. Está, portanto, em causa a “ dependência psicológica mórbida” (Antunes Varela, loc. cit, pág. 315), “a influência captatória” (Cunha Gonçalves, loc. cit. pág. 671) que é exercida por médicos e enfermeiros, ou por quem as suas vezes faz, nos enfermos de doença mortal que, debilitados física e psicologicamente, não podem, nem se sentem livres de dizer que não querem fazer testamento ou que, fazendo-o, não desejam contemplar aqueles que os estão a tratar.

 47. Assim, e como refere Cunha de Sá,

havemos, pois, de nos interrogar sobre a razão de ser do presente caso de indisponibilidade relativa. Ou seja: sobre o motivo que levou o ordenamento jurídico a recusar validade à disposição testamentária a favor do enfermeiro que tratou o testador, quando aquela tenha sido feita durante a doença que vitimou o seu autor.

A ratio legis só pode ser a de evitar o aproveitamento da dependência psicológica do testador, em relação à pessoa que o trata na sua doença, por esta mesma pessoa. Afinal, que a liberdade de testar seja violada por quem, desempenhando embora uma tarefa objectivamente humanitária, se serve ou pode servir-se dela para recolher benefícios cuja obtenção em tais condições o ordenamento jurídico reprova.

A nulidade de tal disposição é a consequência sancionatória da possibilidade  ou eventualidade de um atentado à liberdade que deve presidir à feitura do testamento. Baseada na mera susceptibilidade de tal evento, cuja ocorrência a prática experimental de tais situações ensina e comprova, a lei não exige sequer a prova da efectiva perda ou cerceamento da liberdade de testar;  contenta-se com a verificação objectiva da feitura do testamento durante a doença do testador a favor da pessoa que o trata como enfermeiro […]

Mas, sob esta perspectiva, afigura-se de todo em todo irrelevante que tal pessoa seja profissional de enfermagem: o que importa é apurar se ela desempenhou essa função ou actividade junto do testador, colocando-o numa situação de dependência, susceptível de fazer presumir, por si só, a captação da disposição testamentária a seu favor […] (“Indisponibilidade Relativa em Sucessão Testamentária” F.A. Cunha de Sá, Revista dos Tribunais, Ano 94.º 1976, pág. 294/295).

 48. Conclui este autor cujas considerações acompanhamos que “ o antigo auxiliar de enfermagem, o falso enfermeiro ou o mero enfermeiro de facto não dispõem de menor autoridade e ascendente sobre o doente do que o enfermeiro diplomado. A existência ou inexistência de título legal para o exercício da enfermagem é, em relação a este aspecto (único que o artigo 2194.º) considera totalmente indiferente” ( loc. cit, pág. 295).

 49. Refira-se que o texto final teve na sua origem  o artigo 198.º do Anteprojecto apresentado pelo Prof. I. Galvão Telles que dizia: “ são nulas as disposições a favor dos médicos que tratarem o testador, ou dos sacerdotes que o confessarem, durante doença de que ele falecer” e, face às observações então feitas, ficou encarregado o autor do anteprojecto de “ procurar uma redacção que abranja os enfermeiros e bem assim aqueles que, embora ilegalmente, exercem de facto funções médicas” (Direito das Sucessões. Trabalhos Preparatórios do Código Civil, 1972, Lisboa, Centro de Estudos  de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pág. 300).

 50. Constata-se que logo na 1ª Revisão Ministerial o preceito (artigo 2253.º/1) surge com uma redacção, mantida na 2ª Revisão Ministerial, em que se dizia que “ é nula a disposição a favor do médico ou do enfermeiro que tratar o testador, ou do sacerdote que lhe prestar assistência espiritual, durante a doença de que ele falecer” o que inculca que, com a expressão, “ a favor do médico ou do enfermeiro que tratar o testador” (Direito das Sucessões, loc. cit, pág. 409 e 511) se teve em vista não separar o médico do enfermeiro no sentido em que se o preceito valer para o médico de facto, valerá igualmente para o enfermeiro de facto, não se excluindo essa possibilidade; ainda que assim se não entenda, a interpretação extensiva sempre se imporia pois não seria lógico que o médico ou enfermeiro diplomados não pudessem ser beneficiados, mas já o pudesse ser o charlatão, o curioso ou o simples interessado, altruísta ou não, que tratem os doentes, praticando actos do médico ou do enfermeiro.

 51. Não se desconhece que, precisamente com base no texto dos trabalhos preparatórios, entendeu este mesmo Tribunal - Ac. de 13-5-2004 (Araújo Barros) C.J.,2, pág. 58 - que a referência de Vaz Serra a uma redacção que incluísse a expressão “ os que no exercício da profissão tratarem o doente” pareceu ao autor do Anteprojecto “ demasiado ampla” e que a inclusão de nova redacção “ que abranja os enfermeiros e, bem assim, aqueles que, embora ilegalmente, exercem de facto funções médicas” parece transmitir a ideia de que apenas em relação aos médicos se incluíam os que exercessem legalmente a profissão.

 52. Temos, no entanto, para nós, até pelas razões que já vinham do Código de Seabra, que a fórmula referida não exclui o médico ou o enfermeiro de facto, justificando-se sempre, porque não se vê razão para cingir aos referidos profissionais a indisponibilidade relativa do testador, deixando de fora aqueles que em primeira linha nunca deviam ser beneficiados ( ver Cunha e Sá, loc. cit. pág. 297).

 53. Ao referir-se à demarcação dos critérios objectivos que a lei não pode deixar de prescrever, o ponto sublinhado por Antunes Varela não é de saber se o médico de facto ou o enfermeiro de facto devem considerar-se sob o campo previsional do preceito, mas o da objectiva comprovação “ de a disposição ter sido lavrada ( a favor do médico, do enfermeiro ou do sacerdote) durante a doença do qual o testador veio a falecer - e não durante outra doença anterior” (Código Civil Anotado, loc. cit. pág. 316).

 54. E não se crê que quem age por caridade ou altruísmo junto de pessoa idosa o deixe de fazer por não poder ser contemplado com disposição testamentária até porque, em boa verdade, o que verdadeiramente releva, atento o escopo da lei, é a dependência psicológica do doente final face a todos aqueles que são ou se assumem como profissionais da saúde e que tratam do doente durante a doença que o há-de vitimar.

 55. Por outras palavras, e concretizando: não parece estar sob a alçada deste preceito o vizinho, o amigo, o empregado doméstico que lembram ao doente a hora de tomar o remédio, ou que o acompanham ao hospital, ou que lhe compram e até lhe ministram os fármacos prescritos ou que cuidam da sua higiene se considerarmos que, quando a lei fala em “tratar do testador”, não tem em vista estes meros actos de auxílio pessoal ou de apoio ou assistência a um doente.

 56. Não parece haver nesses casos, de mero auxílio e de apoio, razão para presumir a dependência psicológica, que afecta a liberdade de acção, de quem sente que a sua vida está nas mãos  - passe a expressão - da pessoa que , prestando serviços de cariz profissional como se profissional fosse, quando o não seja, adquire ipso facto o estatuto de autoridade e de ascendente sobre o doente que nela vê, não a  pessoa que o ajuda nas coisas da vida, mas o profissional, o técnico, o conhecedor de saúde, qual médico ou enfermeiro, que o vai salvar ou, pelo menos, contribuir para minorar ou mesmo eliminar o seu sofrimento.

 57. Claro que também nestas situações de apoio desinteressado (ou aparentemente desinteressado) se pode criar uma dependência psicológica porque o doente, e logo o doente/idoso, se encontra numa objectiva situação de debilidade.

 58. A lei não quer que haja aproveitamento dessa situação de dependência e, por isso, parece que se justifica distinguir os casos: se houve aproveitamento da natural debilidade do doente para lograrem aqueles que auxiliam o doente um testamento a seu favor, não é, por via da indisponibilidade a que se refere o artigo 2194.º do Código Civil que a disposição testamentária será anulada:  veja-se o Ac. do S.T.J., já mencionado, em que se remetem tais situações para o campo dos vícios de vontade ou da incapacidade acidental, importando a anulação do testamento a prova de tais situações.

 59. No entanto, se estamos face a uma dependência causada por uma actuação assumida por profissional de saúde ou de quem as suas vezes faz, tratando o testador, então já nos situamos no campo previsional do artigo 2194.º do Código Civil.

 60. A lei diz que “ é nula a disposição a favor do médico ou do enfermeiro que tratar do testador” se (a) o testamento for feito durante a doença (b) e o seu autor vier a falecer dela. Fala-se em “ tratar do testador” e não em “ tratar o testador da doença” e, por isso, pode parecer que quaisquer actos de tratamento que sejam efectuados durante a doença, ainda que não sejam actos de tratamento visando a doença, levariam a que o médico ou o enfermeiro, ou de quem as suas vezes faz, não se pudessem aproveitar de testamento efectuado durante a doença. Este entendimento não nos parece de aceitar, pois não se afigura razoável, por exemplo, que o estomatologista que tratou o seu amigo de sempre a moléstia dentária, amigo que há longos anos sofria de tumor maligno no estômago, e apenas porque tal tratamento se deu durante a doença de que o amigo veio a morrer, não possa ser beneficiado pelo testador que entretanto lavrou testamento. É que, nestas e noutras circunstâncias similares, não se pode presumir que o testador estivesse, perante este médico, na situação  de dependência psicológica em que se encontra face ao médico que o tratava da sua doença incurável.

 61. Reconhece-se que pode não ser muito fácil, nos casos concretos da vida, inteirarmo-nos sobre se estamos diante de actos de mero auxílio ou de apoio prestado a um doente ou diante de actos que constituem tratamentos do doente a reconduzir ao âmbito do artigo 2194.º do Código Civil; sucede ainda que em muitos casos a influência exercida pode resultar precisamente da prática de actos que se inserem nas actividades de enfermagem mas que não têm qualquer tipo de especificidade;  quanto a estes, Cunha e Sá fala-nos dos “serviços próprios da enfermagem”, o que parece abrir as portas à ideia de que os actos de tratamento não próprios de médico ou de enfermeiro podem não relevar, não constituindo fundamento de nulidade da disposição testamentária. A nosso ver, se o forem, ainda que não específicos ou exclusivos, não se duvida de que o enfermeiro de facto ou o médico de facto não escapam à nulidade imposta pelo artigo 2194.º do Código Civil.

 62. Diz este autor:

Mas que importa também à sociedade e que juízo formaria a sociedade daquele que deliberadamente recusa o auxílio que deve ao próximo para preservar, em relação a ele, a capacidade testamentária passiva?

Ou que valor teria a caridade daquele que trata um doente porque sabendo que mantém relativamente a ela tal capacidade  espera recolher os frutos da sua actuação “ desinteressada”?

A opção legislativa é - e tem de ser - essencialmente axiológica. Na materialidade concreta dos comportamentos humanos que o ordenamento jurídico é chamado a disciplinar, vem ínsita uma valoração que importa reconhecer, fomentar e recriar para a juridicidade. A finalidade ajuda ao próximo doente em termos de prestação esporádica e não titulada dos serviços próprios da enfermagem (ao que aqui importa) não pode obter-se , pois, pela óptica canhestra de isentar o voluntário da indisponibilidade relativa do artigo 2194.º (loc. cit. pág. 299).

 63. Também nos parece que o médico ou o enfermeiro, ou quem como tal actue junto do doente, que pratiquem actos de tratamento da doença de que ele sofre e da qual veio a falecer, sejam eles quais forem, não podem beneficiar da disposição testamentária que o testador lhes fez durante a doença face ao disposto no artigo 2194.º do Código Civil por se dever presumir juris et de jure que o testador não agiu livre de dependência psicológica relativamente aos instituídos herdeiros ou legatários.

 64. Retomando o caso em apreço, a atento o exposto, constata-se que as rés trabalhavam no Lar onde estava internada a testadora desde que esta , vítima de acidente de viação, deixara o Hospital, largamente incapacitada; ora a testadora era assistida em actos próprios da enfermagem - os factos falam por si: ver 17, 20 e 25 da matéria de facto - praticando as rés , no âmbito da sua actividade profissional, actos que constituíam tratamento visando atenuar as dores de que ela sofria e que, aliás, são actos bem inseridos numa actividade auxiliar da enfermagem; não releva que não se tenha, para este efeito, provado, sim ou não, se “ as rés ajudavam nos serviços de enfermagem como auxiliares” (quesito 15 cuja resposta consta do facto 22) pois o que se provou evidencia que, sendo elas profissionais do Lar, praticavam actos que se traduziam na aplicação de tratamentos prescritos pelo enfermeiro, integradas, portanto, na organização dos serviços de tratamento de enfermagem que o lar dispensava à testadora que eram dirigidos e orientados pelo enfermeiro a quem a testadora legou parte do seu património juntamente com as rés que trabalhavam no Lar.

 65. Aliás, diga-se, não é admissível supor que as empregadas profissionais de um Lar que abrigou, ao que parece sob a responsabilidade de companhia seguradora, uma doente vítima de acidente de viação e sofrendo já de  tumor maligno, a carecer de analgésicos e de alívio de dores, fossem aplicar a seu bel talante tratamentos fora da prescrição estabelecida pelo próprio enfermeiro. E, se o fizessem, não podia deixar de se considerar que estavam elas a agir como enfermeiras de facto, exercendo inegável dependência psicológica na testadora sempre se subsumindo o seu comportamento ao disposto no artigo 2194.º do Código Civil.

 66. Pode, porém, dar-se o caso de o doente que lavrou o testamento nas aludidas condições captatórias vir a falecer mais tarde num momento em que já não estava em contacto com o médico ou o enfermeiro que num determinado momento da doença o assistiram. Nestes casos, a disposição testamentária parece dever considerar-se válida porque o testador recuperou o império da sua vontade esclarecida e se não revogou o testamento foi porque não o quis fazer.

 67. Pretende agora ( ver contra-alegações a fls. 485) a recorrente que foi isto afinal o que se passou pois “ concedida a alta pelos serviços clínicos competentes, a sinistrada regressou a casa, sem que a recorrente tivesse tido com ela mais qualquer contacto”. Estamos, no entanto, diante de uma questão nova tanto no plano de facto como no plano de direito (artigo 660.º do C.P.C.) da qual não se pode conhecer. Não podemos ter adquirido nos autos que com a alta deixou a recorrida de contactar com a testadora, não lhe prestando mais nenhuma assistência. A ora recorrida não contestou a acção e os réus que contestaram e que vieram a desistir do recurso interposto da sentença não alegaram a este propósito, nas contestações apresentadas, quaisquer factos.   

 68. Resulta do exposto que não pode deixar de se considerar que todas as rés - e para o caso que aqui importa, a ora recorrida - actuaram como profissionais de saúde, o que fizeram âmbito do exercício da sua actividade profissional no Lar em que a testadora fora recolhida e onde era assistida, praticando actos que se devem considerar próprios da enfermagem ( tal o caso de aplicação de pomadas, de massagens e de tratamentos ao ombro esquerdo a uma doente de tumor maligno doloroso, vítima de atropelamento, com feridas ou fístulas nas pernas) e, por conseguinte, verifica-se a presunção juris et de jure consagrada no artigo 2194.º do Código Civil a impor que se considere nula a disposição testamentária a favor da recorrida.

 Concluindo:

 I- O artigo 2194.º do Código Civil fulmina com a nulidade (presunção juris et de jure) a disposição testamentária a favor de médico ou enfermeiro que trate do testador, ou do sacerdote que lhe preste assistência espiritual, se o testamento for feito durante a doença e o seu autor vier a falecer dela, valendo o preceito para os casos em que os actos de tratamento da doença sejam efectuados por quem, não sendo médico ou enfermeiro,  se arrogue tal qualidade ou se assuma como conhecedor das artes da medicina e da enfermagem ou ainda por quem, objectivamente, atentas as circunstâncias do caso,  trate da doença, praticando actos de médico ou serviços de enfermagem.

II- Em todas essas circunstâncias é de considerar verificada uma situação de dependência psicológica entre o doente e a pessoa que dele trata.

Decisão: concede-se revista parcial, julgando nula a disposição testamentária a favor da ré DD, confirmando-se quanto ao mais o acórdão recorrido

Custas pela recorrida no Supremo e na Relação.

 

Lisboa,13 de Setembro de 2011

 

Salazar Casanova (Relator)

Fernandes do Vale

Marques Pereira

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[1] Processo distribuído no dia 7-6-2011 [P. 2011/607 6066/05]