Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P2599
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: BURLA
ACÇÃO JUDICIAL
ELEMENTOS
FRAUDE CIVIL
DISTINÇÃO
Nº do Documento: SJ200710040025995
Data do Acordão: 10/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1 – A questão de saber se é censurada penalmente a “burla processual”, com recurso à instauração de acção judicial, há-de ser, numa primeira fase, resolvida à luz do disposto no art. 217.º, n.º 1 do C. Penal, determinando-se se se verificam, no caso concreto, os elementos do respectivo tipo de crime.
2 - E não se diga em contrário que o legislador a não a quis abranger, pois conhecedor da polémica sobre ela, «não tomou ainda a opção de a consagrar», diferentemente do que fez em relação à burlas relativas a seguros, para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, burla informática e nas comunicações e relativa a trabalho ou emprego, quando nada sobre matéria tão inovadora resultou dos trabalhos preparatórios. É que, se a controvérsia existia e os trabalhos preparatórios nada dizem sobre a questão, não se pode atribuir a este “silêncio” do legislador um sentido que perturbe a configuração do tipo legal do crime de burla, então feito, e que abrange este tipo de burla, pois seria necessária pronúncia sobre a questão que esclarecesse não se pretender, apesar do carácter amplo da previsão, contemplar tais situações.
3 - Por outro lado, a circunstância de o legislador não ter autonomizado este tipo situações, diferentemente do que fez em relação aos tipos já indicados, significa seguramente que o legislador entendeu que tal se não justificava no caso, em função das modalidades de acção, da sua especificidade ou do seu particular objecto de acção ilícita.

4 - O crime de burla é uma forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos:

– intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;

– por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;

– determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.

5 - É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.

3 – Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, podendo limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta, ou tratar-se de processos rebuscados ou engenhosos, envolvendo contratos verdadeiros ou falsos e acções judiciais.

4 - Mas não se deve esquecer que neste crime, a matéria punível não é a fraude mesma, o engano ou o induzir em erro, mas a locupletação ilícita ou a injusta lesão patrimonial, sendo o engano somente um momento precursor do crime, concepção que se traduz, aliás, na inserção sistemática do respectivo tipo entre os crimes contra o património.

5 – Pode verificar-se uma identificação, de modo e de finalidade, entre a fraude que integra a burla e o dolo que vicia os contratos de carácter económico, e fraudes civis distintas da fraude penal, bastando considerar o dano culposo, o esbulho possessório sem violência ou ameaça grave, o incumprimento de contrato (em geral), a acção de condenação de dívida não vencida, a lide temerária, o abuso de direito, o recebimento culposo do não devido, como actos ilícitos que, no entanto, a lei não define como crimes.

6 – Numa opção, em que muitas vezes não é imediatamente reconhecível um rigoroso científico ou distinção ontológica entre tais fatos, por razões de política criminal, o legislador efectua uma selecção, elegendo as condutas penalmente censuráveis entre as quais não inclui o facto contra direito que não provoque alarme colectivo, caso em que se contenta com os meios próprios do direito civil, como sancionamento. Parte assim, da maior gravidade do delito penal, da mais extensa e intensa perturbação social que causa.

7 –A linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.

8 – Há, assim, fraude penal:

– quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico:

– quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;

– quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;

– quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;

– quando há uma impossibilidade de se reparar o dano;

– quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio

9 - Na verdade, nos negócios, em que estão presentes mecanismos de livre concorrência, o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros, determina o sucesso, apresentando-se o erro como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, sem que se chegue a integrar um ilícito criminal; mas pode também a fraude penal pode manifestar-se numa simples operação civil, quando esta não passa de engodo fraudulento usado para envolver e espoliar a vítima, com desprezo pelo princípio da boa fé, traduzindo-se num desvalor da acção que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena.

10 – Há crime de burla se se está perante um contrato de promessa de compre e venda que depois foi usado numa acção cível destinada a obter a entrega dos bens, falsamente prometidos vender e falsamente já pagos, em que não havendo contrato celebrado, nunca houve vontade de realizar o negócio correspondente, mas antes não só uma decisão pré-concebida de não cumprir o contrato de promessa, mas de o utilizar exclusivamente na acção judicial, como elemento do engano.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

O Tribunal Colectivo do 1º Juízo da Comarca de Bragança (proc. n.° 1481 99.2) condenou AA pela prática em autoria material de um crime de burla qualificada dos art.ºs 217°, n.° 1, 218°, n.º 2, al. a), 202°, al. b), 26°, 1.ª parte, e 14°, n.° 1, do C. Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, tendo declarado perdoado (art.ºs 1°, n.° 1, e 5° da Lei n.° 29/99, de 12 de Maio) 1 ano da pena de prisão, sob a condição resolutiva de a mesma, nos 90 dias imediatos à sua notificação desta decisão, pagar à Fazenda Nacional a quantia indemnizatória de 26.264,22, acrescida de juros de mora à taxa legal.

Julgou procedente o pedido de indemnização civil deduzido a fls. 524 a 526 e condenou a demandada a pagar à Fazenda Nacional a importância de 26.264,22 acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido até integral pagamento, e remetidas as partes quanto ao mais peticionado para os tribunais civis, nos termos do disposto art. 82°, n.° 3, do CPP.

A arguida recorreu do despacho que indeferiu um pedido que formulara de suspensão da instância (fls. 685), considerando que os presentes autos deveriam ser suspensos até ser proferida decisão final no processo n° 229/99 que corre seus termos no 2.° Juízo do Tribunal de Bragança, já que é necessário para conhecer da existência do crime e do pedido cível a procedência ou não dessa acção.

E recorreu da decisão condenatório para a Relação do Porto.

Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 11.4.2007, revogou a decisão recorrida, concedendo provimento ao recurso interposto pela arguida que foi absolvida da autoria do crime de burla qualificada dos art.ºs 217.º, n.° 1, 218°, n.º 2, al. a) do C. Penal e julgou também extinto o recurso interposto do despacho de fls. 665, por inutilidade superveniente da lide (arts. 4.° do CPP e 287.º, al. e) do CPC).

Recorre agora o Ministério Público, para este Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a revogação do acórdão recorrido, na parte em que considerou procedente a 2.ª questão prévia (quanto à chamada «burla processual») e a sua substituição por outro que considere que a tipificação do crime de burla abrange qualquer conduta que provoque erro ou engano de que advenha enriquecimento ilegítimo e prejuízo patrimonial, dele não sendo ressalvada a burla cometida por intermédio de um processo civil ou no quadro da respectiva actividade processual, e que, consequentemente, conheça das demais questões suscitadas pela arguida no seu recurso (recurso interlocutório incluído).

Respondeu a arguida reafirmando que não é possível cometer-se o crime de burla através do recurso a uma acção cível, havendo no caso sujeito falta dos pressupostos típicos erro ou engano astuciosamente provocados, pelo que deve ser mantido o acórdão recorrido.

Neste Supremo Tribunal de Justiça teve vista o Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência. Nela o Ministério Público acompanhou a posição assumida no recurso e a defesa remeteu para a resposta apresentada.

Cumpre, assim, conhecer e decidir.

2.1.

E conhecendo.

É a seguinte a factualidade apurada pelas instâncias.

Factos provados.

1) No dia 21/11/1985, faleceu em Bragança, solteira e sem herdeiros conhecidos, BB, que ali residiu na rua do Loreto, n.° ....

2) A falecida BB tinha como únicos parentes, em grau muito afastado e não sucessíveis, os irmãos CC, DD, EE FF e GG, os quais ajudou a criar, por serem órfãos de mãe, e viviam numa casa situada na rua do Loreto, n.° .., em Bragança.

3) Do património da BB faziam parte os seguintes prédios:

a) Fracção AC do imóvel sito na Avenida Fontes Pereira de Meio, n.° ..., em Lisboa, descrito na & Conservatória do Registo Predial sob o n.° 13/9311992 0701;

b) Prédio urbano, sito na Rua da Boa vista, freguesia da Sê, em Bragança, composto por r/c e 1° andar, com a área de 90 m2, e quintal, com a área de 75 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° 01433/1 00491 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 4°;

c) Prédio urbano, sito na Rua do Loreto, freguesia da Sé, em Bragança, composto por r/c, 1° e 2° andar e quintal, com a área coberta de 130 m2 e descoberta de 231 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° 01434/100491 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 23°;

d) Prédio rústico, sito no Loreto ou Boa vista, freguesia da Sé, em Bragança, composto de terra de vinha com árvores, com a área de 1.000 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° 01435/100491 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 305;

e) Prédio rústico, sito na Boavista, freguesia da Sé, em Bragança, composto de terra de cultura, com a área de 1.200 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 01578/060192 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 303.

4) À BB pertencia também o conteúdo de um cofre de aluguer do Montepio Geral, dependência de Bragança, que tinha o n.º 128.

5) A data da sua morte, a BB era titular das seguintes contas bancárias, as quais apresentavam, naquela data, os seguintes saldos:

– Banco Totta & Açores, Lisboa, conta n.º 18810361001 - 905.798$60;

– Banco Totta & Açores, Bragança, conta n.º 9059295/00 1 - 25.605$30;

– Banco Nacional Ultramarino, Bragança, conta n.º 2 10/16822 - 258. 452 $00; e

– Montepio Geral, Bragança, conta n. ° 554/4 - 103.941$80.

6) Por volta de 1975, a BB manifestou aos irmãos ... a sua intenção de lhes deixar o prédio urbano identificado em 3) b) e os prédios rústicos identifica dos em 3) d) e e).

7) Por volta de 1980, a BB deu conhecimento à família ... e a outras pessoas da sua confiança que era sua intenção fazer testamento, com vista a que os seus bens referidos em 3) b), d) e e) ficassem para os irmãos ..., o seu bem aludido em 3) o) para a Cruz Vermelha de Bragança e o seu bem referido em 3) a) para os sobrinhos de um seu falecido cunhado.

8) Ao tempo do óbito da BB, o CC estudava no Porto e tinha como companheiros na residência universitária onde se alojava dois filhos da arguida, HH e II.

9) Nessa altura, o CC comentou com ambos os referidos irmãos que procurava descobrir onde teria a falecida BB feito testamento ou doação dos seus bens, uma vez que esperava ser contemplado, tendo-se os mesmos prontificado a apresentá-lo a uma sua tia de Ovar, com a justificação de que ela o poderia ajudar em tal descoberta.

10) Contactada tal tia, a mesma nada descobriu, tendo sido então que a arguida, que estava ao corrente de todo o caso, se prontificou a solucioná-lo ela própria, mantendo para o efeito alguns contactos com o CC, onde se apresentou como pessoa muito diligente e bem relacionada com notários e magistrados e por isso capaz de resolver o assunto.

11) Para esse fim, o CC entregou à arguida um conjunto de documentos com a descrição e identificação dos bens imóveis, a identificação do cofre do Montepio, o bilhete de identidade da BB e todos os dados a ela relativos, nomeadamente a data da sua morte, tendo-a informado também da inexistência de sucessíveis legais e de que por isso a herança poderia reverter para o Estado.

12) Na posse dessas informações, em lugar e data não concretamente apurados, mas após 21/11/1985 e antes de 28/04/1986, a arguida forjou o contrato-promessa de compra e venda que constitui fls. 157, 158 e 501 dos autos e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, nos termos do qual e em síntese a BB promete vender à arguida, e esta promete comprar-lhe, todos os bens imóveis da primeira identificados em 3), pelo preço global de 30.000.000$00, quantia que a promitente compradora entregava à promitente vendedora no acto da assinatura do contrato e de que por isso se dava no mesmo contrato plena quitação.

13) A arguida, pelo seu próprio punho ou pelo punho de alguém a seu mando, após no dito contrato-promessa, imitando-a, a assinatura da BB como primeira outorgante, ou seja, como promitente-vendedora.

14) Em 28/04/1986, a arguida instaurou na comarca do Porto uma acção cível contra o Estado, que foi distribuída à 22 secção da 58 vara com o n.° 5937/86, na qual pedia se reconhecesse este como herdeiro da BB, acção essa que foi julgada procedente.

15) Tendo a BB morrido intestada e sem herdeiros conhecidos, foi instaurada pelo Ministério Público no tribunal desta comarca, acção especial para liquidação de herança a favor do Estado, que correu seus termos sob o n.° 23/87, da 28 secção, acção esta que foi julgada procedente e por via da qual o Estado recebeu e tomou-se proprietário de todos os bens móveis e imóveis da BB, nomeadamente dos acima identificados em 3).

16) Em 2/11/1992, a arguida intentou na comarca do Porto uma acção cível contra o Estado Português, que foi distribuída à lª secção da 98 vara cível e correu seus termos sob o n.° 8114/92, na qual formulou o pedido de condenação do réu como incumpridor do contrato-promessa referido em 12) e que se sentenciasse no sentido de declaração negocial que produzisse os efeitos do contrato prometido.

17) Tal acção fundava-se no contrato-promessa referido em 12), que a arguida juntou com a petição inicial como meio de prova, sendo que, com base no mesmo e no depoimento de algumas testemunhas, a mencionada acção n.° 8114/92 foi julgada procedente por sentença de 6/05/1996, tendo sido declarada transmitida a propriedade dos imóveis da BB para a titularidade da arguida e seu marido, pelo preço de 30.000.000$00, que se julgou pago.

18) Por via dessa sentença, que transitou em julgado em 17/06/1996, a arguida entrou na titularidade do direito de propriedade dos imóveis referidos em 3), que estando registados a favor do Estado Português, foram registados pela arguida a seu favor, nas competentes Conservatórias do Registo Predial e nas seguintes datas: em 22/03/2001, a fracção referida em 3) a); e em 30/05/1997, os prédios referidos em 3) b), c), d) e e).

19) A BB não celebrou com a arguida o contrato-promessa referido em 12), nem recebeu desta qualquer quantia, já que nem sequer se conheceram nem se viram jamais, sendo o referido contrato forjado e a assinatura nele aposta da BB imitada.

20) Ao intentar a acção cível aludida em 16), invocando e usando como prova o contrato-promessa referido em 12) e apresentando testemunhas que por si industriadas sustentaram essa mentira, a arguida induziu o tribunal cível do Porto em erro e levou o juiz desse processo a produzir sentença com base em factos que nunca ocorreram, como sejam a realização do dito contrato-promessa e o pagamento do respectivo preço.

21) Por meio desse engano, a arguida obteve uma sentença favorável, que se louvou amplamente no depoimento da arguida, no falso contrato-promessa e no depoimento falso das testemunhas que esta apresentou, sentença que a final condenou o Estado a transmitir para arguida e seu marido a propriedade dos bens imóveis aludidos em 3), bens esses que têm valor global não inferior a €643.449,24.

22) A arguida agiu de forma livre e consciente, com o intuito de obter para si um património de valor não inferior a 643.449,24, ao qual não tinha direito, tendo logrado os seus intentos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei

23) A fracção referida em 3) a) está arrendada à sociedade Empresa-A -

24) Por força da transferência da propriedade da Fazenda Nacional para a arguida, esta passou a receber as rendas do locado, nos seguintes montantes anuais: 1996 1.869,54; 1997 a 908,26; 1998 991,91; 1999 4.053,01; 2000 4.156,47; 2001 4.260,20; e 2002 4.024, 83, num total de 26.264,22.

25) DD, EE, FF, CC e GG instauraram uma acção cível contra o Estado Português, a aqui arguida AA e marido e Empresa-B “, pedindo, entre o mais, se declarem os autores donos e legítimos proprietários dos prédios acima identificados em 3) b), d) e e), encontrando-se os respectivos autos a aguardar nos termos do artigo 510 do Código das Custas Judiciais.

26) A arguida é viúva, professora aposentada e vive com dois filhos maiores.

27) A arguida não assumiu qualquer atitude demonstrativa de arrependimento.

28) A arguida não tem antecedentes criminais.

Factos não provados

Não se provou a restante matéria de facto constante da acusação e do pedido de indemnização civil, designadamente e com relevo para o conhecimento do mérito da causa, não se provou a seguinte matéria de facto:

a) A arguida agiu conluiada com o seu marido JJ, executando plano prévia e conjuntamente delineado.

b) A demandada/arguida entregou ao Estado 3.939,63, respeitante a 15% da verba recebida, e contribuição autárquica no valor de 2.050,00.

c) A arguida/demandada realizou obras de melhoramentos na fracção referida em 3) a) no valor de 15.000,00 e pagou despesas de condomínio no valor de 12.500,00.

2.3.

Suscita o Ministério Público a questão da punibilidade da chamada «burla processual», sustentando que a tipificação do crime de burla abrange qualquer conduta que provoque erro ou engano de que advenha enriquecimento ilegítimo e prejuízo patrimonial, dele não sendo ressalvada a burla cometida por intermédio de um processo civil ou no quadro da respectiva actividade processual.

Considera que a concepção contrária carece de apoio legal e radica numa exacerbada concepção dos princípios da inintangibilidade do caso julgado cível e da infalibilidade do juiz, e vai ao arrepio da evolução entretanto operada no âmbito do processo civil (conclusão 2), pois o exercício do direito de acção, ou de qualquer outro direito processual, encontra-se sujeito aos limites impostos pela proibição do abuso de direito, e que mais não é do que uma concretização do princípio da boa fé (conclusão 3), não se confundindo, no entanto, a má fé com o abuso de direito, uma e outra são susceptíveis de ser sancionadas, ou no próprio processo (no caso da litigância de má fé), ou através de uma acção própria (no caso do abuso de direito) (conclusão 4).

Refere depois, que, também o exercício do direito de acção judicial, acompanhado de comportamentos processuais ilícitos e que causem danos à parte contrária ou a terceiros, é susceptível de envolver responsabilidade civil nos termos gerais, independentemente da verificação da litigância de má fé, ou do abuso de direito de acção (conclusão 5), permitindo a convocação das formas de sancionamento da actuação ilícita e danosa no âmbito de um processo, seja através da litigância de má fé, do abuso de direito ou da efectivação da responsabilidade civil, concluir, em particular nestes dois últimos casos, atenta o seu processamento em acção própria, ad hoc, que o princípio da intangibilidade das decisão judicial transitada em julgado, ou mesmo de uma certa concepção da infalibilidade do juiz (o juiz não erra, nem é enganado....), não permite excluir a responsabilização deste tipo de comportamentos realizadas através do processo ou num quadro da actividade processual (conclusão 6).

De outro modo – diz – ficarem sem tutela direitos substantivos (maxime direitos fundamentais) que possam ser lesados por actuações, não só processualmente infundadas e reprováveis, mas, mais ainda, por actos ilícitos e culposos praticados no processo ou através deste (conclusão 7), evolução operada no âmbito do processo civil que acarreta, necessariamente, uma outra compreensão para os casos em que o crime de burla é praticado no âmbito de uma acção judicial ou no quadro da respectiva actividade processual (conclusão 8);

Tanto mais que, o mesmo comportamento humano pode constituir, de acordo com o critério de valoração e os pressupostos específicos do direito civil, um ilícito civil, e constituir, também, segundo a específica valoração jurídico-penal, um ilícito criminal (conclusão 9), não existindo, pois, obstáculos a que um agente possa ser responsabilizado criminalmente, nomeadamente através da incriminação pela comissão de crime de burla, verificados que sejam os seus elementos constitutivos (conclusão 10).

O ter o respectivo iter criminis ter passado pela propositura de uma acção civil não constitui causa de justificação da ilicitude, nem qualquer causa de desocupação (conclusão 11), apenas revelando, no caso, a persistência da arguida na execução do seu desígnio criminoso, e que constitui mais uma «mise-en-scéne» no seu já elaborado artifício fraudulento, de molde a poder atingir os seus fins (conclusão 12);

O ter sido a conduta típica do agente intermediada por um acto do juiz não significa a interrupção do nexo de causalidade entre a conduta típica e o prejuízo sofrido pelo lesado (conclusão 13), pelo que a chamada «burla processual» não pode ser autonomizada como uma categoria não punível, devendo, antes, reconduzida à tipificação geral do crime de burla, e considerada, a par de muitos outros, como uma forma mais do comportamento astucioso e do artifício que integra o elemento objectivo do ilícito-típco em causa (conclusão 14);

Teria, assim, a decisão recorrida violado o disposto nos art°s 217°, n° 1 e 218°, n° 2, al. a) do C. Penal (conclusão 15).

A Relação do Porto, depois de citar doutrina e jurisprudência nacional e estrangeira, decidiu:

«Deste acervo de dados, é possível extrairmos as seguintes conclusões:

A controvérsia acerca desta possibilidade de cometimento do crime de burla é já secular.

Em lugar de se considerar em vias de solução, pelo contrário, e adensou-se a sua complexidade, dado que chegou ao nível da consagração na norma positiva.

Não é minimamente plausível que o legislador português tenha desconhecido esta figura.

Contudo, não tomou ainda a opção de a consagrar.

Poderá dizer-se que a mesma pode ver-se desenhada no tipo geral do art.° 217.° do CP.

Sublinhando-se que nada sobre matéria tão inovadora resultou dos trabalhos preparatórios, há que ver que o legislador, por outro lado, autonomizou determinadas modalidades de acção, em função da sua especificidade, do seu particular objecto de acção ilícita: 219.° (burla relativa a seguros), 220.° (burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços) , 221.° (burla informática e nas comunicações), 222.° (burla relativa a trabalho ou emprego).

Também há que referir que a fisionomia do processo civil vigente não permite a asserção que o mesmo se reporta a um modelo dispositivo ou próximo do dispositivo puro.

Recorde-se que no presente caso, foi o Estado demandado em acção cível e, consequentemente, esteve representado em audiência pelo M.° P.°, na defesa dos seus interesses.

Não parece defensável que o quadro abstracto que viabilizaria acção criminosa em análise seria simplesmente uma atitude homologatória do tribunal em relação à relevância do contrato promessa cuja apreciação lhe foi cometida.

É que o Código de Processo Civil não aponta para tal tipo de intervenção judicial.

Ela é mais própria de um modelo no qual o juiz mantém atitude de passividade e de inércia, assistindo à luta entre as partes, conduzindo o processo como árbitro e elaborando a sentença.

E a que entre nós vigora não é a correspondente a justiça formal e de fachada, resultado de mera convenção entre as partes.

Nos termos do disposto no artigo 265.°, n.° 3 do CPC incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é licito conhecer”.

Entende em geral a doutrina e a jurisprudência que estes factos serão geralmente os notórios e os factos instrumentais dos factos principais alegados pelas partes.

Por outro lado, no que toca à autenticidade dos documentos, aqui em debate, também nos arts. 568.° e ss. do CPC é prevista a possibilidade de realização de prova pericial, podendo ser determinada oficiosamente.

Este conjunto de poderes que ao tribunal estão atribuídos certamente terão contribuído para que não se conheça caso algum em que a jurisprudência dos Tribunais Superiores tenha sustentado a possibilidade de um crime de burla, pressupondo como processo executivo do mesmo uma intervenção judicial.

Quanto ao recurso interlocutório interposto pela arguida relativamente ao despacho de fls. 665 , que indeferiu o pedido de suspensão da instância: mostrando-se o conhecimento do seu mérito como instrumental relativamente ao desfecho do recurso principal supra apreciado; e considerando o teor também supra enunciado, viabilizando o seu bom fundamento, por se ter considerado que os factos objecto do processo não constituem o crime de burla pela qual a arguida foi condenada, impõe-se a conclusão que tal recurso inicial não tem nesta altura qualquer utilidade para a lide — arts. 49º do CPP e 287º, al. e) do CPC.»

É certo que a questão tem sido controvertida na doutrina, designadamente estrangeira, como se vê do elenco constante da decisão recorrida e que não é conhecida jurisprudência produzida sobre o art. 217.º do C. Penal, na óptica da “burla processual”, o que não quer dizer que não exista jurisprudência, designadamente deste Supremo Tribunal, com interesse para a solução da questão colocada, como melhor veremos.

O teor daquele art. 217.º, designadamente do n.º 1, com os elementos do tipo de crime que consagra, é a chave para a solução dessa questão, como se verá melhor.

Mesmo a decisão recorrida, como se viu, aceita que este tipo de burla se pode considerar abrangida, «desenhada no tipo geral do art.° 217.° do CP», embora considere que assim o não quis o legislador, pois conhecedor da polémica sobre ela, «não tomou ainda a opção de a consagrar», diferentemente do que fez em relação à burla relativa a seguros (art. 219.°), burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços (art. 220.°), burla informática e nas comunicações (art. 221.°) e burla relativa a trabalho ou emprego (222.°).

Mas reconhece igualmente a Relação que «que nada sobre matéria tão inovadora resultou dos trabalhos preparatórios».

Ora, se a controvérsia existia e os trabalhos preparatórios nada dizem sobre a questão, não se pode atribuir a este “silêncio” do legislador um sentido que perturbe a configuração do tipo legal do crime de burla, então feito, e que abrange este tipo de burla.

Na verdade, abrangendo o tipo de crime fundamental, na sua previsão, situações como a presente, seria necessária pronúncia sobre a questão que esclarecesse não se pretender, apesar do carácter amplo da previsão, contemplar tais situações.

Por outro lado, a circunstância de o legislador não ter autonomizado este tipo situações, diferentemente do que fez em relação aos tipos já indicados, significa seguramente que o legislador entendeu que tal se não justificava no caso, em função das modalidades de acção, da sua especificidade ou do seu particular objecto de acção ilícita.

Mas o dispor sobre aqueles tipos, autonomizando-os nada diz sobre a vontade de excluir do tipo fundamental outras e diversas situações: as previstas no tipo fundamental do art. 217.º.

Na análise da decisão recorrida releva que ela se arrima, como argumentação coadjuvante, à consideração da natureza do processo civil, aos poderes do juiz e subliminarmente às sanções próprias. Mas também aqui importa considerar a jurisprudência deste Tribunal a que se fez referência.

Tem entendido este Supremo Tribunal de Justiça à luz do disposto no n.º 1 do art. 217.º do C. Penal que

1 – O crime de burla desenha-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos:

– intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;

– por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;

– determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.

2 – É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.

3 – Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, não sendo, no entanto, inevitável que se trate de processos rebuscados ou engenhosos, podendo o burlão, numa "economia de esforço", limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta. (…)

5 – O n.º 1 do art. 417.º do C. Penal não se refere somente ao prejuízo causado ao burlado, mas também ao prejuízo patrimonial causado a outra pessoa, pela prática dos actos praticados, por meio do erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocado pelo burlão. (cfr., entre outros, os AcSTJ de 18/1/2001, Acs STJ, IX, 1, 218, de de 8/2/2001, proc. nº 2745/00-5, de 12/12/2002, proc. nº 3722/02-5, de 23/5/2002, Acs STJ, X, 2, 212, de 20/3/2003, proc. nº 241/03-5, de 3/2/2005, proc. nº 4745/04-5, de 9/6/2005, proc. nº 1302/05-5, todos com o mesmo relator).

Como já entendeu este Tribunal, entendimento que se mantém, (Ac. de 18-10-2001, 2362/01-5, também subscrito pelo mesmo relator), a astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros. O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos. Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado.

Como refere Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, VII, 168) «com os seus variadíssimos processos, a fraude é bem o atestado do poder de inventiva e perspicácia do homo sapiens. Tem espécies e subespécies, padrões clássicos e expedientes de acaso. Há a fraude reconhecível a olho nu como infracção penal e a parva calliditas, que se abriga à sombra de uma proclamada naturalis licentia decipiendi. Há a fraude corriqueira dos clientes habituais da prisão e a fraude subtil daquela “criminosos astutos e afortunados” de que nos conta FERRIANI. Há as trapaças minúsculas do comércio a varejo e as burlas maiúsculas dos jogos de Bolsa. Há a fraude grosseira, de empulhar pascácios, e a fraude de alta escola, de embair os mais argutos.»

Mas não se deve esquecer que neste crime, a matéria punível não é a fraude mesma, o engano ou o induzir em erro, mas a locupletação ilícita ou a injusta lesão patrimonial, sendo o engano somente um momento precursor do crime. Esta concepção, hoje adquirida pelo direito penal, traduz-se, aliás, na inserção sistemática do respectivo tipo entre os crimes contra o património.

Por outro lado, pode verificar-se uma identificação, de modo e de finalidade, entre a fraude que integra a burla e o dolo que vicia os contratos de carácter económico, o que levou a questionar-se se haveria, então, uma fraude civil distinta de uma fraude penal; questão a que logo o direito positivo responde positivamente, bastando considerar o dano culposo, o esbulho possessório sem violência ou ameaça grave, o incumprimento de contrato (em geral), a acção de condenação de dívida não vencida, a lide temerária, o abuso de direito, o recebimento culposo do não devido, como actos ilícitos que, no entanto, a lei não define como crimes.

Numa opção, em que muitas vezes não é imediatamente reconhecível um rigoroso científico ou distinção ontológica entre tais fatos, por razões de política criminal, o legislador efectua uma selecção, elegendo as condutas penalmente censuráveis entre as quais não inclui o facto contra direito que não provoque alarme colectivo, caso em que se contenta com os meios próprios do direito civil, como sancionamento. Parte assim, da maior gravidade do delito penal, da mais extensa e intensa perturbação social que causa.

Não obstante serem múltiplas são as teorias que se apresentaram para clarificar esta distinção (cfr. Nelson Hungria, op. cit., 171-191, sobre a sua consideração), é de aceitar, face às dificuldades, incluindo práticas, de estabelecer uma distinção ontológica entre o injusto penal e o civil, pelo menos em face do direito positivo, o único critério discriminativo aceitável será, pois, o critério relativo e não apriorístico da suficiência ou insuficiência das sanções não-penais, de forma a que, só quando a sanção civil se apresenta como ineficaz para a reintegração da ordem jurídica, é que surge a necessidade da sanção penal, o último dos recursos.

O que obviamente nos remete para o domínio aplicativo, para o juiz penal e sua visão prudencial sobre o caso concreto.

Refere-se T. S. Vives Anton (Compendio de Derecho Penal, Parte Especial, 497-8) no título engano e dolo “in contrahendo”, à linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil: «Na doutrina civil o “dolo in contrahendo” determinante da nulidade do contrato (dolo grave ou causante) configura-se em termos praticamente idênticos ao engano constitutivo da burla (vid. Díez Picazo), inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo.

Em consequência, a linha divisória entre a burla e o ilícito civil, determinante da nulidade do contrato, radicará na existência ou inexistência de prejuízo obtido ou tentado – (vid. Sentença de 6.2.89, Ar. 1.479 – que afirma que o dolo “in contrahendo” é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla).

Deve destacar-se que, na prática, em geral a conduta será classificada como burla, ou tida por civilmente ilícita em função da via processual eleita pelo prejudicado, como chega a insinuar a sentença antes citada.» (tradução do relator).

Também Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal II, 19.ª Edição, pá. 297-8) lembra que foram sugeridos vários critérios para se fazer a distinção entre a fraude civil e a fraude penal.

«Afirma-se que existe esta (fraude penal) apenas quando: há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena; há fraude capaz de iludir o diligente pai de família; há evidente perversidade e impostura; há uma mise-en-scène para iludir; há uma impossibilidade de se reparar o dano; há o intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio etc. Afirma Hungria que, “tirante a hipótese de ardil grosseiro, a que a vítima se tenha rendido por indesculpável inadvertência ou omissão de sua habitual prudência, o inadimplemento preordenado ou preconcebido é talvez o menos incerto dos sinais. orientadores na fixação de uma linha divisória nesse terreno contestado da fraude”. Na verdade; não há diferença de natureza, antológica, entre a fraude civil e a penal; Não há fraude penal e fraude civil, a fraude é uma só. Pretendida distinção sobre o assunto é supérflua, arbitrária e fonte de danosíssimas confusões (JTACrSP58/210; RT423/401). O que importa verificar, pois, é se, em determinado facto, se configuram todos os requisitos do estelionato, caso em que o fato é sempre punível, sejam quais forem as relações, a modalidade e a contingência do mesmo (RT 543/347-348).

E acrescenta este Autor: «tem-se entendida que há fraude penal quando o escopo do agente é o lucro ilícito e não o do negócio (RT423/344) Isso, porque a fraude penal pode manifestar-se na simples operação civil, não passando esta, na realidade, de engodo fraudulento que envolve e espolia a vítima (RT329/121), Mas é comum nas transacções civis ou comerciais certa malícia entre as partes, que procuram, por meio da ocultação de defeitos ou inconveniências da coisa, ou de uma depreciação, justa ou não, efectuar operação mais vantajosa. Mesmo em tais hipóteses, o que, se tem é o dolo civil, que poderá dar lugar à anulação do negócio, por vício de consentimento, com as consequentes perdas e danos (arts. 147, II, e 1.103 do CC), não, porém, do dolo configurador do estelionato (RT 547l34g) Não há crime na ausência de fraude, e o mero descumprimento do contrato, mesmo doloso, é mero ilícito civil (JTACrSP 49/173, 50/79, 51/405, RT 423/394, RTJ 93/978) (...).

Configura-se o crime: (...) no obtenção de financiamento com garantia fiduciária inexistente; na compra a crédito com nome falso (JTACrSP 59/261, 62/171); na inadimplência contratual preconcebida (JTACRSP 44/166) etc.»

Não se pode, pois, esquecer nesta problemática, uma particularidade do crime de burla: um processo executivo que comporta a intervenção de um ser autónomo e livre (na verdade é o próprio sujeito passivo que pratica os actos de diminuição patrimonial), sendo certo que compete a cada pessoa cuidar dos seus interesses. A assunção social da obrigação de salvaguardar bens alheios não pode deixar, pois, de ter um carácter subsidiário e residual; nos negócios, em que estão presentes mecanismos de livre concorrência, o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros, determina o sucesso, apresentando-se o erro como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, sem que se chegue a integrar um ilícito criminal.

Importa, assim, procurar delimitar o âmbito de protecção da norma, do ilícito subjacente ao crime de burla, como já se adiantou. Almeida Costa (Comentário Conimbricense, II, pág. 300) refere que no plano criminal se exige que «a consumação do delito dependa, não de um qualquer domínio-do-erro (ainda que efectivo) mas de um domínio-do erro jurídico-penalmente relevante», tendo em consideração uma restrição adicional do desvalor de acção subjacente à burla, cuja definição remete para o princípio da boa fé (em sentido objectivo): «uma exigência de consideração pelos interesses legítimos da outra parte, nele radica o decisivo critério da lealdade que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, portanto, o limite da relevância do domínio-do-erro no quadro da burla».

Ora é este desvalor da acção que permite responder à dificuldade com se pode ser confrontado, a propósito da criminalização da vida colectiva. Como se disse acima, há um dano social e não puramente individual; há a violação do mínimo ético; há um perigo social, mediato ou indirecto; há uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena.

Como se disse já, como referir-se o ilícito penal como a violação da ordem jurídica, contra a qual, pela sua intensidade ou gravidade, a única sanção adequada é a pena, enquanto o ilícito civil é a violação da ordem jurídica, para cuja debelação bastam as sanções da indemnização, da execução forçada ou in natura, da restituição ao satu quo ante, da anulação do acto.

O que obviamente nos remete para o domínio aplicativo, para o juiz penal e sua visão prudencial sobre o caso concreto.

Este Supremo Tribunal de Justiça, respondendo ao apelo ao julgador que se referiu, têm-se efectivamente pronunciado, em diversos arestos, sobre situações de charneira na distinção que se vem fazendo, adoptando os critérios que se enunciaram, como se pode ver pela síntese seguinte:

«Não são dolosos, quer para efeitos penais quer para efeitos civilísticos, as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes do comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções.» (Ac. de 13-01-1993, BMJ 423-214, Relator Cons. Ferreira Vidigal)

«(1) No crime de burla é necessário que o elemento «agir astuciosamente» se junte limitativamente ao dolo específico, de tal forma que, mesmo havendo a intenção de enriquecimento ilegítimo, o modo pelo qual se realiza essa intenção se revele engenhoso, enganoso, criando a aparência de realidades que não existem, ou falseando directamente a realidade. (2) O arguido, que obteve um empréstimo com a alegação de que o mesmo se destinava à compra de um armazém, que, depois, daria de hipoteca ao credor, livre de quaisquer ónus ou encargos, fazendo-se a prova de que o credor não lhe concederia tal empréstimo se soubesse que, afinal, ele já tinha, não apenas comprado o armazém, como até arrendado, comete um crime de burla. (Ac. do STJ de 19.5.1994, Acs STJ II, 2, 216, Relator: Cons. Sousa Guedes)

«Cometem crime de burla aqueles que celebram contratos promessa de compra e venda de andares, recebendo os respectivos sinais, enganando os ofendidos sobre as realidades condicionantes desses contratos, visando aproveitar a aparência de uma organização empresarial, para sacarem dos ofendidos prestações contra a criação de uma mera expectativa de venda, que nunca pretendiam concretizar, até por falta de licenças de habitabilidade ou por existência de ónus sobre os prédios.» (Ac. de 28-03-1996, proc 48951, Relator: Cons. Sá Nogueira)

«Comete o crime de burla aquele que representando que por um seu terreno iria passar uma estrada que o inutilizaria, depois de publicar um anúncio num jornal de grande tiragem a anunciá-lo como óptimo para construção de vivenda, junto de zona de praia, vem a vendê-lo ao ofendido, porque disso ficou convencido.» (Ac de 05-06-1996, Acs STJ pag 191, Relator: Cons. Augusto Alves)

«Cometem o crime de burla agravada os arguidos que vendem um veículo automóvel ao ofendido, pelo preço de 2.387.000$00, fazendo-o crer que o mesmo é novo e fabricado em 92, quando na verdade o mesmo era usado, acidentado e do ano de 89.» (Ac. de 14-11-1996, proc n.º 593/96, Relator: Cons. Bessa Pacheco)

«Cometem o crime de burla qualificada, os arguidos que, tendo conhecimento de que a casa tinha infiltrações de água, procederam à pintura de diversos compartimentos, substituíram alcatifas, não reparando, no entanto, as anomalias que causavam as infiltrações. Deste modo, procuraram ocultar as anomalias, dissimulando que vendiam uma casa em perfeito estado, provocando astuciosamente um engano no comprador.» (Ac de 04-12-1996, proc. n.º 333/96, Relator: Cons. Augusto Alves)

«(4) Comete o crime de burla aquele que representando que por um seu terreno iria passar uma estrada que o inutilizaria, depois de publicar um anúncio num jornal de grande tiragem a anunciá-lo como óptimo para construção de vivenda, junto de zona de praia, vem a vendê-lo ao ofendido, porque disso ficou convencido. (5) Isto, apesar de o arguido ter sido absolvido do pedido de anulação da compra e venda em anterior acção cível proposta.» (Ac de 05-06-1997, 48871, Augusto Alves)

«Comete o crime de burla agravada, p. p. pelos art.ºs 313 e 314, al. c), do C. Penal de 82 (hoje p. p. pelos art.ºs 217 e 218, al. a), do C. Penal de 95), o arguido que celebra com os ofendidos um contrato promessa de compra e venda de uma fracção, numa base ilegítima (não ter poderes para o acto, "falta de procuração"), determinando, com a sua conduta, que aqueles lhe entregassem 1.500.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento, afectando-o em seu proveito próprio.» (Ac. de 07-05-1998, proc n.º 1230/97, Relator: Cons. Oliveira Guimarães)

«(2) Integram o conceito de artifício fraudulento do tipo legal do crime de burla, além de outros, os chamados actos concludentes: condutas que não consubstanciam em si qualquer declaração mas que, em virtude de um critério objectivo, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros sociais vigentes num sector de actividade, se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre determinado facto passado, presente ou futuro. (3) Assim, pratica um crime de burla, a arguida que se apresenta como compradora de um veículo automóvel e, para pagamento do preço do mesmo, entrega dois cheques referentes a uma conta bancária que sabia estar cancelada, deste modo agindo por forma a convencer o vendedor que tal conta existia e que, nas datas respectivas, possuiria fundos suficientes para o pagamento em causa, assim o levando a entregar-lhe o referido veículo, com o que lhe veio a causar prejuízos e conseguiu um enriquecimento que sabia ser ilegítimo» (Ac. de 10-05-2000, proc. n.º 838)

(1) Como se colhe da leitura do artigo 217.º do CP, são elementos do tipo do crime de burla, a intenção pelo agente de enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou e a prática consequente de actos pela vítima, que a si, ou a outrem, causem prejuízo patrimonial. (2) A astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros. (3) O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos. (4) Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. (5) A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado. (6) Haverá no entanto que sublinhar, que no mundo dos negócios no contexto da economia de mercado, assente nos mecanismos da livre concorrência, o sucesso emerge muitas vezes do superior conhecimento do sujeito acerca das características do concreto sector e, assim, em termos comparativos, do erro ou ignorância dos seus competidores, pelo que não será qualquer domínio-do-erro que importa consumação do delito, mas a sua instrumentalização em termos de atingir o cerne do princípio da boa fé objectiva, o que pode ser julgado em função das circunstâncias de cada caso, "aí compreendida a configuração material da conduta do agente" e a intolerabilidade concreta da eventual leviandade, passividade, ou mesmo, ingenuidade, patenteada pelo lesado. (7) Tendo os arguidos, depois de uma deliberação social em que foi acordado um aumento de capital, feito chegar aos assistentes, também eles sócios, um impresso em que estes deveriam declarar renunciar ao seu direito de preferência na subscrição desse aumento - alegando tratar-se de uma exigência do notário para lavrar a escritura do correspondente acto - e tendo aqueles assinado, os primeiros, quando logo subscreveram o capital deixado livre pela renúncia, não preencheram com tal conduta a previsão típica do crime de burla. (8) Com efeito, quem lida com deliberações sociais, mormente como no caso, relativas a sociedades comerciais, sabe - tem de saber - que o mundo dos negócios não é, rigorosamente, domínio privilegiado para actuações inocentes, mormente quando se trata, como tratou, de conceder uma declaração escrita de renúncia de direitos, pelo que mandava o mais elementar dever de diligência e bom senso que, antes da assinatura da falada declaração de renúncia, consultassem um técnico de direito ou mesmo o notário, questionando a valia e possíveis efeitos da invocada exigência, pelo que dificilmente se concebe que o domínio-do-erro, por banda dos arguidos, tivesse assumido conformação jurídico-penalmente relevante. (9) Por outro lado, devendo o exigido prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro corresponder, ao enriquecimento ilegítimo, do lado activo, nada indica que a renúncia do direito de preferência por banda dos assistentes e correlativo ingresso na esfera dos restantes sócios tivesse em si mesmo um valor patrimonial (era antes previsível que a sociedade viria a ter prejuízos), para além do que, para obtenção das respectivas acções, os adquirentes tiveram de desembolsar o correspondente capital. (Ac de 18-10-2001, proc. n.º 2362/01-5, Relator: Cons. Pereira Madeira).

(4) No caso dos autos, o erro da vítima foi ocasionado “não expressis verbis mas através de actos concludentes, i. e., de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo - a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade - , se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro”. (5) A experiência comum e os padrões ético-sociais vigentes - as excepções só confirmam a regra - são de molde a interiorizar, pelos destinatários, que aqueles que agem em nome do Tribunal, numa concreta venda extra-judicial o fazem de boa fé, informando exacta e lealmente de todas as circunstâncias implicadas. (6) O recorrente agiu com dolo ao fabricar, perante a firma ofendida, através de factos concludentes, a aparência de um negócio regular de transmissão do direito ao trespasse e arrendamento, pela quantia e restantes condições acordadas.» (Ac de 22-05-2002, Acs STJ X, 2, 206, Relator: Cons. Dinis Alves)

Mas teve também este Tribunal ocasião para precisar os critérios atendíveis nciar, designadamente nos já mencionados Acórdãos de 20/3/2003 (proc. nº 241/03-5) e de 3/2/2005 (proc. n.º 4745/04-5, ambos com o mesmo relator e os mesmos adjuntos).

E entendeu, entendimento que se renova, que os actos astuciosos de que se serve o agente, além de astuciosos devem ser aptos a enganar, podendo o burlão utilizar expedientes constituídos ou integrados também por contratos civis.

Que a linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.

Há, assim, fraude penal:

– quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico:

– quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;

– quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;

– quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;

– quando há uma impossibilidade de se reparar o dano;

– quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio

Na verdade, nos negócios, em que estão presentes mecanismos de livre concorrência, o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros, determina o sucesso, apresentando-se o erro como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, sem que se chegue a integrar um ilícito criminal; mas pode também a fraude penal pode manifestar-se numa simples operação civil, quando esta não passa de engodo fraudulento usado para envolver e espoliar a vítima, com desprezo pelo princípio da boa fé, traduzindo-se num desvalor da acção que, por sua intensidade ou gravidade, tem como única sanção adequada a pena.

No caso concreto, está-se perante um contrato civil falsificado que depois foi usado numa acção cível destinada a obter a entrega dos bens, falsamente prometidos vender e falsamente já pagos, em que não havendo contrato celebrado, nunca houve vontade de realizar o negócio correspondente, mas antes não só uma decisão pré-concebida de não cumprir o contrato de promessa. O contrato civil falsificado não foi mais do que elemento do engano astuciosamente elaborado pela arguida, que necessitava dele para cumprir o plano meticulosamente laborado e executado, obtendo todas as contrapartidas “prometidas” no contrato que a nada corresponde, numa demonstração de patente má fé por parte da arguida, de absoluta deslealdade e desrespeito pelos legítimos interesses do Estado, a justificar uma reacção social traduzida numa pena criminal, toda a vez que estão presentes todos os outros elementos do tipo legal da burla.

Procede, assim, a pretensão do recorrente Ministério Público.

3.

Pelo exposto, acordam os juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso trazido pelo Ministério Público e em consequência revogar o acórdão recorrido, devendo a Relação do Porto, pelos mesmos juízes se possível, tendo em consideração o que aqui se decidiu quanto à verificação do crime de burla qualificada, conheça das restantes questões que teve por prejudicadas.

Sem custas.

Lisboa, 4 de Outubro de 2007

Simas Santos (Relator)
Santos Carvalho
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa