Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B3886
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: PATROCÍNIO JUDICIÁRIO
RATIFICAÇÃO DA GESTÃO
RECURSO
SEGREDO PROFISSIONAL
ADVOGADO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
LETRA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
CLÁUSULA PENAL
REDUÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ200903310038862
Data do Acordão: 03/31/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. A gestão de negócios verifica-se quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizado.

2. Ainda que tenha sido referido, no requerimento inicial ou na petição inicial, pelo advogado subscritor que não junta procuração da parte respectiva, que age a título de gestão de negócios, não há lugar à ratificação a que alude o n.º 2 do art. 41º do CPC se, posteriormente, aquele causídico faz ingressar no processo procuração passada em data anterior à da apresentação em juízo daquela peça processual.

3. Os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas.

4. O advogado está obrigado, ética e juridicamente, a guardar segredo de todos os factos de que tome conhecimento, de forma directa ou indirecta, no exercício da sua actividade profissional, só podendo revelar factos abrangidos pelo sigilo profissional mediante prévia autorização da Ordem dos Advogados.

5. Mas a extensão do sigilo profissional do advogado está directamente relacionada com a existência efectiva de um segredo, pelo que, para prestar depoimento como testemunha, só será necessária aquela autorização se o depoimento recair sobre factos sujeitos a segredo.

6. Em sede de interpretação dos negócios jurídicos constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes, sendo matéria de direito a fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial, i.e., a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts. 236º/1 e 238º/1 do CC.

7. Na busca do sentido da declaração, nos termos do n.º 1 do art. 236º, são atendíveis todos os elementos e circunstâncias que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, colocado na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta: os termos do negócio e os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, etc.

8. A compreensão por esse declaratário normalizado é o critério positivo da interpretação; o conjunto dos sentidos admissíveis constitui o limite da imputabilidade ao declarante do sentido apurado por tal critério. “Para que o sentido apurado em função do declaratário normal seja o sentido relevante é condição necessária e suficiente que aquele sentido pertença ao domínio dos sentidos admissíveis para um declarante razoável”.

9. Verifica-se preenchimento abusivo de uma letra de câmbio (art. 10º da LULL) quando esta, incompleta no momento em que é passada, é completada contrariamente aos acordos realizados.

10. No domínio das relações imediatas, o preenchimento abusivo de uma letra, traduzido num excesso – preenchimento com um montante mais elevado ou em condições mais onerosas – não arreda toda e qualquer pretensão cambiária do portador: o subscritor responde cambiariamente nos limites do acordo de preenchimento, desde que se trate de reduzir a esses limites aquilo que na letra se escreveu ao preenchê-la.

11. A cláusula penal é uma cláusula de responsabilidade civil, uma convenção prévia de incumprimento com determinação da prestação, normalmente em dinheiro, que o devedor terá de satisfazer ao credor em caso de não cumprimento pontual da obrigação a que se acha adstrito para com este.

12. A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente, sendo nula qualquer estipulação em contrário.

13. É sobre o devedor que impende o ónus de alegar e provar os factos que inculquem ou demonstrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula penal e o valor dos danos a ressarcir.

14. Na ponderação do carácter manifestamente excessivo da cláusula penal deve considerar-se a situação que tal cláusula visou acautelar, a actuação de ambas as partes ao longo da vida do contrato, a gravidade da culpa do devedor, a natureza do contrato e as circunstâncias em que foi celebrado, o tempo da sua efectiva vigência e os efeitos patrimoniais do incumprimento na esfera jurídico-patrimonial do credor, as vantagens que para o devedor advieram do incumprimento, e quaisquer outras circunstâncias que, à luz da justiça, devam ter-se por relevantes, sem esquecer que, com a redução, não se cura de reduzir o montante estipulado de modo a fazê-lo coincidir exactamente com os prejuízos efectivos.

15. Não se surpreendendo, na conduta processual da autora ao longo do processo, ofensa do dever de verdade e de probidade (do dever de agir de boa fé) que, ao recorrer a juízo, sobre ela recai, não se mostrando, pois, que tenha adoptado comportamento processual inadequado à ideia de um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito, não há lugar à sua condenação como litigante de má fé.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA – COMÉRCIO DE COMBUSTÍVEIS E LUBRIFICANTES, L.DA intentou, em 15.02.2006, na 6ª Vara Cível do Porto, contra
BB, L.DA,
CC,
DD, e
EE,
acção com processo ordinário, pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe a quantia de € 154.596,64, acrescida de juros de mora à taxa legal de 12%, desde 05.12.2005 até efectivo e integral pagamento.
Alegou que no exercício da sua actividade comercial celebrou com a ré BB, L.da dois contratos de fornecimento de combustíveis líquidos, gasosos e lubrificantes, sendo que em ambos os contratos era exigida a prestação por esta de uma caução bancária “first demand”, para garantia do bom pagamento dos produtos fornecidos; mas, não tendo a ré prestado a referida garantia bancária, foi esta substituída por uma livrança subscrita pelos réus CC e DD, sócios gerentes da dita ré, vindo também esta livrança a ser posteriormente substituída por uma letra de câmbio, aceite pela ré BB, L.da e avalizada pelos três outros réus. Devido à falta de pagamento de vários fornecimentos que efectuou à ré BB, L.da, a autora denunciou os dois aludidos contratos, sendo certo que se encontram por liquidar várias facturas cujo montante ascende a € 117.595,76 e de que pretende ser paga.
Reclama ainda as quantias de € 30.000,00, montante da cláusula penal estabelecida nos contratos, e de várias outras, que totalizam € 6.837,26 e respeitam ao valor do equipamento em falta, rendas em atraso, encargos tributários não liquidados pelos réus, despesas de reparação de material por eles danificado bem como despesas bancárias que teve de suportar em consequência da devolução de cheques emitidos pelos demandados e encargos bancários com empréstimo que teve de contrair face ao não pagamento dos abastecimentos de combustível efectuados.

Em contestação, os réus impugnaram alguns dos factos alegados pela demandante e deduziram defesa por excepção, sustentando a ilegitimidade dos 2º, 3º e 4º réus, defendendo ainda que a cláusula penal constante dos contratos firmados com a 1ª ré é inexigível ou, caso assim se não entenda, sempre deverá ser equitativamente reduzida, por ser manifestamente excessiva.

A deduzida arguição de ilegitimidade foi rejeitada no despacho saneador.

A fls. 290/298 apresentaram os réus um articulado, no qual deduzem a excepção de ilegitimidade da autora, alegando que esta pede o pagamento de quantias que não lhe são devidas, mas sim a outra sociedade. Pedem ainda se dê sem efeito o processado pelo mandatário da autora e se absolvam os réus da instância por irregularidade ou insuficiência do mandato, se julgue extemporânea a apresentação do rol de testemunhas da demandante e se condene esta como litigante de má fé.
Na audiência de julgamento foi, conforme consta da respectiva acta (fls. 312 e 313), proferido despacho que indeferiu todas as pretensões dos réus vazadas no citado requerimento de fls. 290/298.
Deste despacho, bem como do exarado a fls. 314/315, que admitiu a inquirição de uma testemunha arrolada pela autora, interpuseram os réus recurso de agravo.

Concluída a audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os réus, solidariamente, a pagarem à autora a quantia de € 147.595,76, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos até efectivo pagamento.

Da sentença interpuseram os três primeiros réus o pertinente recurso de apelação.
Não lograram, porém, qualquer êxito, pois a Relação do Porto, em acórdão oportunamente proferido, negou provimento aos agravos e julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Continuando inconformados, os mesmos réus trazem agora a este Supremo Tribunal o presente recurso de revista, em cujas alegações formulam um vasto leque de conclusões, que dão corpo às seguintes questões:
1ª - Indevido patrocínio do autor a título de gestão de negócios e respectivas consequências;
2ª - Falta de notificação dos réus, nos termos do disposto no art. 512º-A, n.º 1 do CPC, na sequência do aditamento, pela autora, do respectivo rol de testemunhas, e consequências dessa falta;
3ª - Violação do disposto no art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e consequente nulidade do testemunho prestado em audiência por advogada sem prévia autorização da OA;
4ª - Preenchimento abusivo da letra e consequente violação do art. 10º da LULL;
5ª - Manifesto exagero das cláusulas penais inseridas nos contratos celebrados;
6ª - Litigância de má fé por parte da autora.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre agora conhecer e decidir do mérito do recurso.
2.

As instâncias deram como provados os factos seguintes:
1) - A autora tem por objecto o comércio de combustíveis e lubrificantes como actividade principal, se bem que ainda inclui no seu objecto o comércio de produtos e acessórios para o ramo automóvel e o estudo, projectos e fiscalização de obras de construção civil (alínea A) da matéria de facto assente);

2) - A ré “BB, L.da”, tem por objecto a instalação e exploração de sistema de lavagem automóvel, bem como importação, exportação, representação e comercialização de veículos automóveis, peças e acessórios para veículos automóveis (alínea B));

3) - No âmbito do seu objecto, a autora celebrou com a ré “BB, L.da”, no dia 30 de Junho de 2004, o contrato que se mostra junto de fls. 18 a 22 dos autos, que denominaram de fornecimento de combustíveis líquidos, gasosos e lubrificantes, para serem comercializados no Posto de Abastecimento sito no ................s, Vandoma – Paredes (alínea C));

4) - No dia 20 de Agosto de 2004, a autora celebrou com a ré “BB, L.da” o contrato que se mostra junto de fls. 23 a 26 dos autos, que denominaram de fornecimento de combustíveis líquidos, gasosos e lubrificantes, para serem comercializados no Posto de Abastecimento sito no Lugar de Crespos, freguesia de Britelo, concelho de Celorico de Basto (alínea D));

5) - Em ambos os contratos, era exigida à ré a prestação de uma caução bancária "first demand", para garantia do bom pagamento do fornecimento dos produtos, realizado pela autora à ré (alínea E));

6) - Entre a autora e os 1°, 2º e 3º réus foi celebrado o pacto que se mostra junto a fls. 27/28, denominado “Pacto de Emissão e Preenchimento de Livrança”, no qual apuseram as respectivas assinaturas (alínea F));

7) - Desde o início dos contratos referidos nos n.os 3) e 4), a ré “BB, L.da”, atrasou-se no pagamento dos fornecimentos, sendo que nos termos aí convencionados o prazo de pagamento era de 15 dias a contar da data da entrega dos combustíveis à ré, sendo de 30 dias com relação aos lubrificantes (alínea G));

8) - Em 12 de Janeiro de 2005 os réus subscreveram a declaração que se mostra junta a fls. 29 dos autos (alínea H));

9) - No dia 15 de Fevereiro de 2005, e depois de a ré “BB, L.da” ter sucessivamente violado o prazo estabelecido na cláusula segunda no seu ponto dois, a autora acordou em alterar esta cláusula segunda, ponto dois, de ambos os contratos, alterando-se o prazo para pagamento dos combustíveis líquidos para 25 dias a contar da entrega e mantendo-se o prazo para pagamento dos lubrificantes nos 30 dias (alínea I));

10) - As facturas n.os 166, 167 e 168 foram pagas 39 dias depois do fornecimento, as facturas n.os 170, 171 e 172 foram pagas 32 dias depois do fornecimento, as facturas n.os 173 e 174 foram pagas 32 dias depois, as facturas n.os 175 e 176 foram pagas 32 dias depois, as facturas n.os 177 e 178 foram pagas 31 dias depois, as facturas n.os 179 e 180 foram pagas 32 dias depois, a factura n.º 181 foi paga 37 dias depois, as facturas n.os 182, 183 e 184 foram pagas 40 dias depois, a factura n.º 185 foi paga 39 dias depois, a factura n.º 186 foi paga 40 dias depois, as facturas n.os 187, 188 e 189 foram pagas 37 dias depois, a factura n.º 190 foi paga 38 dias depois e a factura n.º 191 foi paga na totalidade apenas 49 dias depois do fornecimento (alínea J));

11) - Datada de 23 de Novembro de 2005, a autora remeteu à 1ª ré, que a recebeu, a missiva que se mostra junta a fls. 43 dos autos (alínea L));

12) - Datada de 5 de Dezembro de 2005, a autora enviou à 1ª ré, que a recebeu, a carta que se mostra junta a fls. 45 dos autos (alínea M));

13) - Encontram-se vencidas e não pagas as facturas n.os 194, 197, 198, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 210 e 211, perfazendo a quantia total de € 117.595,76 (cento e dezassete mil, quinhentos e noventa e cinco euros e setenta e seis cêntimos) – a título de fornecimentos variados e não pagos de combustíveis (alínea N));

14) - Foi entregue à autora a letra de câmbio que se mostra junta a fls. 149 a qual continha, pelo menos, no lugar do sacado a assinatura da ré CC, contendo igualmente a assinatura desta e do réu DD no canto esquerdo do anverso da letra, contendo igualmente no seu verso os dizeres dela constantes (alínea O));

15) - Para pagamento de fornecimentos feitos pela autora a ré BB, L.da e o réu DD emitiram cheques que se revelaram não terem cobertura quando foram apresentados a pagamento (resposta ao n.º 1) da b.i.);

16) - A autora pagou, em despesas de devolução de cheques emitidos pelos réus, a importância de € 121,42 (resposta ao n.º 8) da b.i.);

17) - Em consequência do não pagamento pelos réus dos fornecimentos efectuados pela autora teve esta de recorrer a financiamento que importou num encargo de € 285,04, pagando ainda trimestralmente a quantia de € 383,33 a título de juros (respostas aos n.os 9) e 10) da b.i.).
3.

Estando já enunciadas as questões submetidas à apreciação deste Supremo Tribunal, cabe, agora, analisar cada uma delas, reexaminando o tratamento que mereceram por parte do tribunal a quo.

Vejamos, pois.

3.1. A questão do indevido patrocínio do autor a título de gestão de negócios e respectivas consequências

Para cabal apreciação desta questão importa ter em conta o respectivo enquadramento fáctico, a saber:

Em 23.12.2005 foi requerida, pela aqui autora, a providência cautelar de arresto a que respeita o processo cautelar apenso; com o requerimento inicial não foi junta procuração a favor do advogado subscritor, que, protestando juntá-la “logo que possível”, fez também constar a menção de que actuava em gestão de negócios.

Em 15.02.2006 a autora intentou a presente acção, e o mesmo advogado, que assina a petição inicial, não juntou procuração forense, protestando fazê-lo logo que possível, e fazendo anteceder a sua assinatura da menção: “O Advogado em Gestão de negócios”.

Em 01.03.2006 operou-se a apensação do processo de providência cautelar – que corria termos na 8ª Vara Cível – aos presentes autos.

Efectuada a apensação, o magistrado titular do processo determinou, em 03.03.2006, a notificação do advogado subscritor do requerimento inicial da providência (e da petição inicial da acção) “para, em 5 dias, juntar aos autos a respectiva procuração forense, com ratificação, se necessário, do processado” (fls. 134 do processo cautelar).

E em 09.03.2006 a ora recorrida juntou duas procurações, de teor rigorosamente igual, ambas datadas de 1 de Fevereiro de 2005, uma destinada aos autos de arresto apensos e outra ao processo principal, tendo sido ambas, por manifesto lapso, juntas ao apenso (fls. 161 e 163 do mesmo processo). Em ambas, a autora constituiu aquele advogado “seu bastante procurador”, conferindo-lhe “os mais amplos poderes forenses em direito permitidos”.

Sustentam, no entanto, os recorrentes que ocorreu violação do disposto nos n.os 1 e 3 do art. 41º do CPC.

A gestão de negócios só opera em casos de urgência (n.º 1) – e nenhuma urgência ou impossibilidade de contactar a autora foram invocadas, em qualquer das aludidas peças processuais, pelo causídico que as subscreveu. Logo – concluem os recorrentes – elas não deviam ter sido recebidas ou ter o seguimento que tiveram.

Por outro lado, não é lógico nem admissível que se intentem acções com base em gestão de negócios que nem sequer está justificada, e se junte, posteriormente, uma procuração emitida com dez meses de antecedência: ou a gestão de negócios não se justificava ou a procuração não foi emitida na data que dela consta.

Acresce que a aqui recorrida – requerente da providência e autora na acção – não foi, como devia (n.º 3 do citado art.), notificada pessoalmente para ratificar a gestão.

Esta manifesta violação do art. 41º – rematam os recorrentes – imporia que os autos fossem de imediato arquivados.

É, porém, seguro que lhes falece razão.

Como assinala a doutrina P(1)., a situação a que provê o art. 41º do CPC é muito semelhante àquela a que se reporta o art. 40º: em ambas o advogado ou o procurador actuam em juízo, representando a parte, sem estarem munidos de procuração. A diferença está na qualidade que invocam – no caso do art. 40º, a de mandatário, no do art. 41º a de gestor.

O que importa, porém, é que a anomalia que subjaz a cada uma destas situações seja remediada, em termos de a representação judiciária da parte, o patrocínio judiciário, estar assegurado nos termos em que a lei processual o disciplina.

E é o que acontece no caso em apreço.

Invocada, embora, actuação “em gestão de negócios”, parece evidente que não é disso que aqui se trata.

Conceitualmente, a gestão de negócios verifica-se quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada (Cód. Civil, art. 464º).

A falta de autorização é, pois, um dos seus requisitos.

Ora, de falta de autorização não pode validamente falar-se, pois que o mandatário forense da autora veio juntar aos autos (do procedimento cautelar) procuração passada em data anterior à apresentação em juízo do requerimento inicial da providência.

Daí que não se configure, no caso, uma situação de patrocínio a título de gestão de negócios, pois que, como bem se expressa o despacho judicial de fls. 313, “apesar de o ilustre subscritor da petição inicial ter referido que o fazia na qualidade de gestor de negócios, facto é que na data em que tal articulado foi produzido já se havia estabelecido o mandato forense nos termos do disposto no art. 35º do Cód. Processo Civil”.

Aliás, e como já ficou referido, o aludido causídico, no final do requerimento inicial e da p.i., protesta juntar a procuração «logo que possível», o que inculca que esta já existia, embora, por razão não explicada, não pudesse ser junta com aqueles articulados. É dizer: já existia o mandato, e mesmo o respectivo instrumento, a procuração (embora esta não tenha sido logo junta), o que descaracteriza a situação como de gestão de negócios, pois nesta falta o próprio mandato, a autorização para o exercício do patrocínio.

Ou, dizendo de outro modo: já havia mandatário judicial validamente constituído – só não estava no processo documento que tal comprovasse.

Daí que, mal qualificada a situação como de actuação a título de gestão de negócios, não lhe é aplicável o disposto no art. 41º do CPC.

Assim, comprovada essa deficiente qualificação com a junção da procuração e a constatação de que esta fora passada em data anterior à actuação em juízo do advogado constituído (2) , é óbvio que não tinha de haver qualquer ratificação, pois, como bem se refere no já aludido despacho judicial de fls. 313, “este acto jurídico somente se justifica quando se esteja em presença de uma situação de falta de poderes o que, como se notou, não é o caso (...)”.

Deve, aliás, repelir-se o argumento dos recorrentes que pretende que, caso não tivesse sido invocada a gestão de negócios, a providência cautelar não podia ser aceite pela secretaria e decretada. Não é verdade: a falta de apresentação da procuração não é motivo de recusa de recebimento da petição inicial (art. 474º do CPC), antes desencadeia o procedimento previsto no n.º 2 do art. 40º. E nem são assim tão raros os casos em que a acção é proposta sem a junção imediata da procuração, e o causídico protesta juntá-la mais tarde, sem que daí advenham quaisquer consequências nefastas para a parte ...

Não merece, pois, reparo o decidido pelas instâncias a propósito desta questão, sufragando-se inteiramente a síntese conclusiva da Relação:

Em síntese, sendo interesse da lei que a irregularidade da falta ou insuficiência do mandato seja sanada a qualquer momento, a circunstância de o advogado subscritor referir que o faz como gestor de negócios não impede que posteriormente venha a apresentar uma procuração que cobre, com a data em que foi outorgada, todos os actos praticados, e que deva considerar-se regularizado o mandato sem outras exigências legais, pois o que interessa não é saber que existia ou não gestão de negócios mas sim se os actos praticados foram regularizados, ou pela ratificação da parte ou através de procuração cuja data torne regular todo o patrocínio.

Improcede, destarte, a arguição de irregularidade ou insuficiência do mandato.

3.2. A alegada falta de notificação dos réus, imposta pelo n.º 1 do art. 512º-A do CPC

A autora, logo na p.i., arrolou duas testemunhas.

Em 12.10.2006, finda a audiência preliminar com a selecção da matéria de facto assente e a elaboração da base instrutória, pelos mandatários das partes foi, além do mais, requerida a gravação da audiência e a concessão do prazo de 10 dias para a apresentação dos meios de prova (fls. 174), tendo o juiz proferido despacho a deferir.

E em 20.11.2006, a autora apresentou o requerimento de fls. 196/197, em que, além do mais, impetrava a adição ao rol de testemunhas apresentado na p.i., de quatro testemunhas – uma das quais indicada como Dr.ª FF.

A apresentação deste requerimento foi, pelo mandatário da autora, notificada à mandatária dos réus, “nos termos do art. 229º-A do CPC e em conformidade com o art. 260º-A”, tendo esta, na sua resposta, alegado que o requerimento era manifestamente extemporâneo, devendo, por isso, ser desentranhado (fls. 242) – pretensão que, como já ficou referido, reiterou no requerimento de fls. 290/298.

Indeferida que foi tal pretensão, e interposto o pertinente recurso de agravo – fundado, nesta parte, na violação do disposto nos arts. 512º e 631º do CPC, na medida em que “foi indevidamente admitido rol de testemunhas extemporâneo e a substituição de testemunhas que não foi requerida”, e que não poderia ter sido admitida tal substituição, sendo nulo, por inadmissível, o depoimento das testemunhas da autora” – foi-lhe negado provimento pela Relação, como também já se deixou evidenciado.

Abonou-se a Relação, para assim decidir, nas seguintes considerações:

Observemos que teve lugar audiência preliminar na qual foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória (fls. 164 a 174) e foi concedido às partes (em 12 de Outubro de 2006) 10 dias para apresentarem os meios de prova.

Nos termos do art. 467 do CPC estabelece-se que no final da petição o autor pode, desde logo, apresentar o seu rol de testemunhas pelo que se conclui que tendo sido feita esta apresentação como a autora o fez, qualquer outro meio de prova que ela venha a apresentar, mormente outras testemunhas que indique, serão sempre um aditamento a estas pela simples razão de que aditar é, por exigências de conceito, acrescentar algo a alguma coisa que já pré-existe, da mesma forma que alterar é modificar uma realidade que já existe antes.

Assim é que, quando a autora vem apresentar novas testemunhas com o seu requerimento de fls. 196 e 197, porque já antes havia arrolado outras, o que ela pretende é que todas elas sejam ouvidas, quer as primeiras, quer estas outras que identifica posteriormente, constituindo esse requerimento, e quanto às testemunhas um verdadeiro aditamento cuja regularidade deverá ser aferida pelo art. 512º-A do CPC, não merecendo censura o juízo de tempestividade da decisão recorrida blasonado na jurisprudência do acórdão da Relação do Porto de 12.12.2002 que aí é citado.

Ainda que a autora, como requerente, pudesse ter julgado que o seu requerimento era extemporâneo e pretendesse justificar o seu atraso através de justificação médica, o tribunal não está dependente dessa arguição e deve reger-se pela lei e enquadrar nela a situação que a decidir, motivo pelo qual actuou correctamente o tribunal recorrido quando se pronunciou pela tempestividade do requerimento e o qualificou como um aditamento ao rol de testemunhas apresentado com a petição inicial.

Vêm, agora, os recorrentes, reconhecer o acerto de tais considerações, aceitando que “tendo junto a autora rol de testemunhas com a p.i., qualquer outro requerimento de prova que seja posterior é, de facto, um aditamento, apresentável até 20 dias antes da data do julgamento”.

Mas, em inusitado “golpe de rins”, acrescentam que, conforme alegaram no agravo para a Relação, “não foram notificados para usar a faculdade do art. 512º-A, n.º 1 do CPC, ou seja, para usar a faculdade de, no prazo de 5 dias, alterar ou aditar o seu rol de testemunhas”, e que tal facto prejudicou, objectivamente, a sua defesa, pois “tiveram de se contentar com as provas que tinham”, sendo que, se tivessem sido notificados, teriam usado a faculdade legal, e “o decurso dos autos teria certamente sido bem diferente”.

E, assim – concluem, agora, os recorrentes – tendo em conta que a aludida falta de notificação os prejudicou, “terão de ser dados sem efeito todos os actos processuais praticados a seguir e notificados para usarem de tal faculdade, só depois podendo prosseguir os autos normalmente e sem mais falhas processuais graves”.

A argumentação dos recorrentes claudica, a vários níveis.

Desde logo, e ao contrário do que alegam, não fundaram o seu agravo para a Relação nesta agora invocada falta de notificação.

É certo que, no corpo da alegação, aludem, en passant, a esse facto (n.º 83 da alegação). Mas, nas conclusões, nada disseram: não retiraram nenhum efeito da sumária alegação vazada no dito n.º 83.

A conclusão que expressaram, respeitante à matéria em causa – desenvolvida, no corpo da alegação recursória, sob esclarecedora epígrafe “Da extemporaneidade do requerimento probatório” – foi apenas esta:

3. Foi indevidamente admitido rol de testemunhas extemporâneo e a substituição de testemunhas que não foi requerida.

E nem sequer na indicação das normas jurídicas violadas consta menção do art. 512º-A do CPC: são apenas referidos, quanto a este tema, os arts. 512º e 631º.

Ora, como é sabido, nos recursos o thema decidendum é fixado pelas conclusões da alegação do recorrente, só abrangendo, em princípio, as questões nelas abrangidas (para além destas, só as questões de conhecimento oficioso podem ser apreciadas pelo tribunal ad quem).

Assim, a questão da putativa falta de notificação, não envolvendo nulidade de conhecimento oficioso (art. 202º do CPC) nem tendo sido suscitada nas conclusões da alegação dos agravantes, não podia ser – como não foi – objecto de apreciação por parte da Relação.

E, por isso mesmo, perfila-se agora, no presente recurso, como questão nova.

Ora, como decorre dos arts. 676º/1 e 690º/1 do CPC, e é jurisprudência pacífica, os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo, e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas. Eles são meios para obter a reforma das decisões dos tribunais inferiores, e não vias jurisdicionais para alcançar decisões novas. Daí que o tribunal de recurso não deva conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha de cuidar.

Sendo essa a situação vertente, não se conhece desta questão, ora suscitada pelos recorrentes.

3.3. A invocada nulidade do testemunho prestado em audiência por advogada, sem prévia autorização da Ordem dos Advogados

Já acima ficou referido que uma das testemunhas indicada como FF

Na audiência de julgamento – como se colhe da acta respectiva (fls. 314) – a aludida testemunha disse chamar-se FF, e ser advogada. Aos costumes disse ter sido mandatária dos réus. Foi advertida pelo M.mo Juiz “de que deverá escusar-se a depor caso os factos de que tenha conhecimento estejam abrangidos pelo segredo profissional”.

Tendo declarado que pretendia depor, e prestado o juramento legal, logo o Ex.mo advogado dos réus, por requerimento ditado para a acta, impugnou a admissão da testemunha com fundamento na relação profissional mantida com os réus e no segredo profissional a que, enquanto advogada, se achava vinculada, requerendo que não fosse admitida a depor.

O Ex.mo Juiz, depois de ouvir o mandatário da parte contrária – que disse não haver razão para a impugnação, “uma vez que o depoimento da Ex.ma advogada não se insere no âmbito de factos a que teve acesso enquanto esteve mandatada, mas sim a um pressuposto que não implica violação do sigilo profissional” – inquiriu a testemunha sobre a matéria da impugnação e, entendendo que não estavam em causa factos abrangidos pelo segredo profissional, admitiu-a a depor.

Terminado o incidente, a testemunha foi indicada para ser ouvida à matéria do quesito 5º da base instrutória – “A letra referida em O) foi entregue à autora não contendo qualquer carimbo da 1ª co-ré?” – que veio a ser considerado como “não provado”.

Entendem os recorrentes que ocorreu violação do art. 87º do EOA, que só permite que o segredo profissional cesse com prévia autorização da Ordem dos Advogados, sendo irrelevante que a matéria do quesito haja sido considerada improvada: em qualquer circunstância, o depoimento é nulo.

É, porém, gritante a sem-razão dos recorrentes.

E a Relação demonstrou-o de modo exemplar, mal se entendendo a persistência daqueles em agitar de novo a questão.

Poderíamos, por isso, limitar-nos a remeter para as considerações a propósito expressas no acórdão recorrido, valendo-nos do disposto no n.º 5 do art. 713º e no art. 726º do CPC.

Não deixaremos, porém, de aduzir algumas considerações em reforço do que, nesse aresto, foi referido.

O advogado está obrigado, ética e juridicamente, a guardar segredo de todos os factos e documentos de que tome conhecimento, de forma directa ou indirecta, no exercício da sua actividade profissional. Esta obrigação é decorrência, não só da necessidade de tutela da relação de confiança que deve existir entre o cliente e o seu advogado (cfr. art. 92º/1 do EOA (3).), como também do interesse público da função do advogado.

A enunciação, meramente exemplificativa, dos factos sujeitos a sigilo profissional, contida no n.º 1 do art. 87º do EOA, referencia, desde logo, os factos conhecidos exclusivamente por revelação do cliente ou revelados por ordem deste [al. a)], os comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante [al. d)], e aqueles de que lhe tenha sido dado conhecimento pela parte contrária do cliente ou seus representantes, durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio [al. e)], ou de que tenha tido conhecimento no âmbito de negociações malogradas em que tenha intervindo [al. f)]. Por seu turno, o n.º 3 do mesmo preceito alarga o sigilo aos “documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo”.

Mas o segredo profissional não é um valor absoluto.

O advogado pode – é certo que mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo – revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, quando tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes (n.º 4 do art. 87º).

Fora disso, o advogado deve escusar-se a depor como testemunha, quando a matéria da inquirição esteja a coberto do segredo profissional – tal como, aliás, dispõem o n.º 3 do art. 618º e o n.º 3.c) do art. 519º do CPC.

Aliás, os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo (n.º 5 do supra citado art. 87º).

Importa, porém, ter-se em conta que a extensão do segredo profissional está directamente relacionada com a existência efectiva de um segredo, o que vale dizer que “devem excluir-se do âmbito do segredo profissional factos notórios, factos de domínio público, factos revelados pelas partes, factos provados em juízo, documentos autênticos e autenticados” (4).

Ora, no caso em apreço, o Ex.mo Juiz advertiu a Ex.ma advogada, arrolada como testemunha, de que deveria escusar-se a depor caso os factos do seu conhecimento estivessem abrangidos pelo segredo profissional, obtendo dela a resposta de que queria depor.

E não está demonstrado, nem de perto nem de longe, que o depoimento da Ex.ma advogada tenha incidido sobre factos abrangidos pelo segredo profissional: ela respondeu apenas à matéria do n.º 5 da base instrutória, já acima transcrita, que mal se vê como possa abrigar-se sob o manto protector do sigilo profissional, que não se basta – como ressalta do que acima deixámos sublinhado e ao contrário do que pensam os recorrentes – com o mero facto da relação profissional por aquela anteriormente mantida com os réus.

Não se mostra, pois, violado o disposto no art. 87º do EOA, designadamente o seu n.º 4: só seria necessária a prévia autorização da Ordem se o depoimento recaísse sobre factos sujeitos a segredo, o que, repete-se, não se demonstra ser o caso.

Não é, ademais, irrelevante – como bem o demonstra o acórdão recorrido – a circunstância de, à matéria a que a Ex.ma advogada foi inquirida, ter o tribunal respondido “não provado”.

Cabe, antes de mais, salientar que tal matéria foi alegada pelos réus, ora recorrentes, e sobre eles impendia o respectivo ónus probatório.

Ora, se atentarmos na motivação da decisão de facto (fls. 329 e ss.), verificamos que o Ex.mo Juiz considerou que a resposta “assentou na circunstância de a parte a quem competia o respectivo onus probandi não ter produzido prova tendente a confirmar a facticidade aí vertida”.

E, mais adiante, aquele Magistrado densificou o seu entendimento, escrevendo:

Já no que concerne à factualidade vertida no facto controvertido n.º 5 a testemunha a este respeito inquirida prestou depoimento que se revelou pouco consistente, o qual, de qualquer modo, na sua essencialidade, se terá de reputar como depoimento indirecto, porquanto se estribou no que a esse propósito os demandados lhe haviam confidenciado, sendo ainda de salientar que da exegese dos documentos juntos a fls. 29 e 149 deflui que na data da entrega da letra de câmbio junta a fls. 149 foi igualmente entregue o respectivo pacto de preenchimento (cfr. fls. 29) do qual consta que tal título de crédito foi entregue à ora autora contendo as assinaturas das pessoas que nele se assumiram como responsáveis cambiários.

A «testemunha a este respeito inquirida», a que alude o Ex.mo Juiz, é a arrolada pelos réus, ora recorrentes, GGl, que depôs a toda a matéria da base instrutória (cfr. fls. 315).

Como é sabido, a resposta negativa a um quesito significa, não a prova do facto contrário, mas apenas que a matéria respectiva não ficou provada, tudo se passando como se não tivesse sido alegada.

E, a ser assim – como é – é caso para perguntar qual o efeito útil, de natureza processual ou substantiva, que os recorrentes entendem ser de extrair da invocada nulidade do depoimento da Ex.ma advogada. É que nenhum se enxerga ...!

3.4. Preenchimento abusivo da letra, em violação do art. 10º da LULL

Na sentença da 1ª instância, a ré BB, L.da foi condenada a pagar à autora a quantia de € 147.595,76, correspondente ao valor dos fornecimentos que lhe foram feitos pela autora e que aquela não pagou (117.595,76), acrescido de € 30.000,00 respeitantes à cláusula penal previamente acordada como indemnização para a cessação do(s) contrato(s) em consequência de incumprimento por qualquer das partes.

Os demais réus foram condenados no mesmo quantitativo, solidariamente com aquela ré, enquanto subscritores, como avalistas da sociedade, da letra-caução emitida em branco, com aceite desta, para servir de garantia das responsabilidades decorrentes, para a mesma sociedade, do seu relacionamento comercial com a autora – letra posteriormente preenchida pela autora (com a quantia de € 153.412,09).

Ora, os recorrentes sustentam que existiu abuso no preenchimento do título, no que se refere ao montante nele inscrito, que não observou o constante do pacto de preenchimento de fls. 29 [a que alude o n.º 8) dos factos assentes], do qual resulta, na tese daqueles, que a letra deveria incluir apenas o montante dos juros de mora, e não também o capital em dívida, correspondente ao valor dos fornecimentos, ou outros valores, como os relativos à cláusula penal.

Este entendimento não encontrou, porém, a mínima aceitação no acórdão recorrido, que o rejeitou sem margem para dúvidas.

Não obstante, os recorrentes retomam o tema, e reafirmam, no presente recurso, a sua argumentação, que fazem assentar na menção “capital de juros”, constante da cláusula 3ª do pacto de preenchimento de fls. 29. «Capital de juros» e «capital e juros», dizem, são coisas diferentes, pelo que só era legítimo à autora preencher a letra com o valor dos juros de mora que estivessem em dívida, e não com quaisquer outras quantias, não estando provado que “o que a autora pretendia era capital e juros e que os réus não tivessem entendido, pelo que estava escrito, que a garantia era apenas e só para os juros”, sendo, ademais, certo que o documento foi elaborado pela autora e não pelos réus; e, de qualquer modo, mesmo que se entendesse que tal menção significava «capital e juros», sempre estaria excluído o montante respeitante à cláusula penal dos contratos.

Assim – concluem os recorrentes – a recorrida inseriu na letra valores a que sabia não ter direito, pelo que, face ao preenchimento abusivo, o título é nulo, tendo sido violado o art. 10º da LULL.

Que dizer?

Vejamos, antes de mais, aquilo a que os recorrentes chamam de “pacto de preenchimento” da letra – o documento junto a fls. 29 dos autos, de que se faz menção no n.º 8) dos “factos provados”.

Trata-se de uma “Declaração” datada de 12.01.2005, e subscrita pela ré sociedade – representada pela sócia gerente, a ré CC – e pelos demais réus – a referida CC, proprio nomine, DD, também sócio, e EE, indicado como avalista – com o seguinte teor:

1. A firma BB, L.da dedica-se à comercialização de combustíveis e lubrificantes como actividade principal. Pois, no exercício da sua actividade adquire combustíveis líquidos, gasosos e lubrificantes à AA, L.da. Os pagamentos decorrentes da aquisição de combustíveis líquidos, gasosos e lubrificantes deverão ser efectuados pontualmente.

2. Para garantia das responsabilidades decorrentes das relações comerciais supra referidas, os declarantes, nesta data, entregam uma letra em branco, avalizada pelos seus sócios e avalista supra identificados, e aceite pela AA L.da, que por esta via passa a ser legítima portadora da letra.

3. Expressamente autorizam a AA o, L.da a preenchê-la, quanto ao valor, pelas quantias que estiverem em dívida (capital de juros à taxa legal em vigor), e quanto à data, inscrevendo o dia correspondente ao dia seguinte ao vencimento de qualquer responsabilidade.

4. Conferem à AA L.da a faculdade de dar à letra o destino e uso que mais lhes convier.

Os recorrentes afirmam que este documento foi elaborado pela própria autora, o que não está demonstrado nos autos; e nem tal documento expressa qualquer declaração negocial da autora, que nele não tem qualquer intervenção, mas apenas dos réus. O que está demonstrado é que se trata de um documento que se achava em poder da demandante e que foi por esta junto aos autos.

Quanto à interpretação da declaração negocial expressa no n.º 3 do documento, importa ter em conta o seguinte:

Conforme refere F. AMÂNCIO FERREIRA, constitui hoje entendimento assumido por este Supremo Tribunal, em sede de interpretação dos negócios jurídicos, o de que constitui matéria de facto o apuramento da vontade psicologicamente determinável das partes; já quando se trate de fixar o sentido juridicamente relevante da vontade negocial, estamos no âmbito da matéria de direito. Não há coincidência entre aquela (vontade psicológica) e esta (vontade juridicamente relevante).

Daí que o apuramento da vontade real do declarante e o conhecimento dessa vontade pelo declaratário constitua matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, que, por isso, o Supremo não pode reapreciar; mas já envolve matéria de direito a determinação do sentido a atribuir à declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts. 236º, n.º 1 e 238º, n.º 1 do CC, competindo ao Supremo apreciar se a Relação, na actividade interpretativa, observou esses critérios legais, se se conteve ou não dentro dos limites desses critérios.

No caso em análise, a Relação teve por evidente que “aquilo que se quis dizer e foi entendido pelos subscritores desse acordo, que eram não só os avalistas como também o devedor principal, foi que o título compreenderia as quantias em dívida, valendo a expressão entre parêntesis como pretendendo dizer que nessa dívida estaria nomeadamente o capital e os juros de mora à taxa em vigor.

Isto porque “outro entendimento retiraria significado ao valor do título como garantia das responsabilidades decorrentes das relações entre a sociedade ré e a autora, como se diz na cláusula 1ª do mesmo, e deixaria destituída de sentido a finalidade prosseguida pelo acordo negocial (a garantia), os usos da prática quer em matéria terminológica quer os de evidência legal onde os juros aparecem como frutos civis e, por isso, como acessórios do crédito (vd. art. 212º do CC) não sendo de desconhecer que já anteriormente a autora e três dos quatro réus haviam celebrado um acordo semelhante (fls. 27 e 28 dos autos) e a garantia era, aí também, a falta de pagamento de qualquer dívida existente e eventuais juros de mora à taxa legal em vigor”. Este acordo anterior permite – diz ainda a Relação – compreender e enquadrar o acordo aqui em análise, no sentido de concluir que a garantia em questão se reportava às responsabilidades decorrentes das relações comerciais existentes entre a autora e a ré sociedade.

Afigurou-se-lhe “de todo incongruente, na economia das relações que se pretendiam estabelecer entre os réus pessoas singulares como avalistas, a ré sociedade como devedora e a autora como credora, que as garantias que fossem queridas prestar o fossem apenas quanto aos montantes dos juros de mora vencidos com exclusão do capital da dívida e da responsabilidade a título de cláusula penal”. Isto porque não só não se diz expressamente que a garantia era apenas para efeitos de juros vencidos com exclusão de qualquer outra responsabilidade (o que, pelo inusitado da situação, se justificava que ficasse expresso sem ambiguidade) como também se verifica que a expressão utilizada no acordo negocial refere que o preenchimento do título será feito pelas quantias que estiverem em dívida escrevendo-se, depois, entre parêntesis, (capital de juros à taxa legal em vigor).

Parece, pois, inevitável concluir que não estamos no domínio da indagação da vontade real das partes e, portanto, no quadro de uma averiguação fáctica da Relação, mas sim perante a procura do sentido juridicamente relevante da declaração, operada por apelo a critérios normativos, e, por isso, perante matéria de direito, sindicável por este Supremo Tribunal.

Ora, a tal respeito, temos por certo que não procede a argumentação dos recorrentes.

Como se alcança do que vem de ser referido, a Relação abordou proficientemente a questão, em termos que merecem a nossa total adesão.

Na verdade, o n.º 1 do art. 236º do CC, que consagra a chamada teoria da impressão do destinatário, dispõe que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante. A prevalência deste sentido, correspondente à impressão do destinatário, sofre, porém, uma limitação, estabelecida na parte final do preceito: é preciso, para que ele possa relevar, que o declarante pudesse razoavelmente contar com ele, isto é, que seja possível imputar tal sentido ao declarante.

Todavia (n.º 2 do art. 236º), sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida («falsa demonstratio non nocet»).

Na busca do sentido da declaração, nos termos do n.º 1 do art. 236º, são atendíveis todos os elementos e circunstâncias que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, colocado na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta: os termos do negócio e os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, etc. (5)

A interpretação feita pela Relação não se desviou do critério normativo definido no n.º 1 do citado art. 236º, fixando à declaração um sentido objectivo, o sentido que lhe atribuiria um declaratário razoável colocado na posição concreta do declaratário efectivo (aqui, a autora).

A cláusula em apreço não pode deixar de interpretar-se no contexto do documento em que se insere, e em consonância com o mais que nele se refere, designadamente nos seus pontos n.os 1 e 2, que evidencia que a letra foi entregue para garantia das responsabilidades decorrentes das relações comerciais entre a autora e a ré sociedade, traduzidas na aquisição, por esta, de combustíveis líquidos e gasosos e lubrificantes fornecidos pela AA e definidas e reguladas nos dois contratos ditos “de fornecimento” aludidos nos n.os 3) e 4) dos “factos provados”.

A tese dos réus/recorrentes não se acomoda à interpretação razoável da cláusula, da qual ignoram a clara referência principal – “autorizam a AA, L.da a preenchê-la (a letra), quanto ao valor, pelas quantias que estiverem em dívida – pondo, ao invés, em relevo a dúbia menção acessória (capital de juros à taxa legal em vigor), sem terem mesmo em conta a posição que haviam expressado anteriormente, no seu articulado de fls. 153/155 – que constituiu a sua resposta à apresentação, pela autora, na audiência preliminar (fls. 150/151), da letra a que vimos aludindo – em que referem (art. 2º), ao arrepio do que agora sustentam, que

A referida letra foi, no entanto, entregue à autora, por excessivas pressões desta, sem qualquer carimbo da sociedade, 1ª ré, estando a autora apenas e tão só autorizada a preencher a letra quanto ao valor pelas quantias que estivessem em dívida e quanto à data, nos termos acordados (sublinhado de nossa autoria).

O sentido juridicamente relevante da cláusula em apreço, correspondente à compreensão virtual do declaratário tido como padrão pelo n.º 1 do art. 236º citado, não pode, pois, deixar de ser o que lhe atribuiu o acórdão recorrido – abrangendo, pois, as responsabilidades decorrentes dos montantes dos fornecimentos em dívida, dos juros respectivos, e da cláusula penal, que também constitui “quantia em dívida” e também resulta do relacionamento contratual entre a autora e a demandada sociedade.

E – temo-lo por seguro – não se trata de sentido com que os declarantes não pudessem contar.

A compreensão pelo declaratário normalizado, a que fizemos referência, é o critério positivo da interpretação; o conjunto dos sentidos admissíveis constitui o limite da imputabilidade ao declarante do sentido apurado por aquele critério.

“Para que o sentido apurado em função do declaratário normal seja o sentido relevante é condição necessária e suficiente que aquele sentido pertença ao domínio dos sentidos admissíveis para um declarante razoável” (6) .

É o que, manifestamente acontece com o sentido feito valer na decisão recorrida.

A questão não se esgota, porém, nas considerações que vêm de ser expressas.

Na verdade, apurado que foi que a responsabilidade da ré BB, L.da para com a autora ascendia a € 147.595,76 (€ 117.595,76 + € 30.000,00), não deveria a letra ser preenchida apenas por esse montante, a que servia de garantia? Tendo nela sido inscrito montante (€ 153.412,09) diferente – e mais elevado – não terá de reconhecer-se razão aos recorrentes quando esgrimem com o preenchimento abusivo do título e a consequente nulidade deste?

Esta matéria não foi tratada pelas instâncias, mas cremos que não pode deixar de ser aqui enfrentada e decidida.

Quando se fala em «preenchimento abusivo» pretende-se aludir, como flui do art. 10º da LULL, ao facto de uma letra incompleta no momento em que é passada ser completada contrariamente aos acordos realizados. Quem emite uma letra em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos; se o preenchimento desrespeita esses termos diz-se que houve preenchimento abusivo.

Ocorreu, no caso, preenchimento abusivo?

A nosso ver, a resposta não pode relevar apenas aquela discrepância entre o montante que traduz as responsabilidades da ré sociedade perante a autora e o quantum inscrito no título: aquele montante não integra ainda os juros moratórios correspondentes, sendo certo que, como ficou demonstrado, a letra garante igualmente a responsabilidade daquela ré por esse juros.

Mas, admitindo, sem conceder, que a quantia nela inscrita sobreleva as responsabilidades da ré BB, L.da, qual seria a consequência?

Dito de outro modo: a excepção de preenchimento abusivo, quando oponível, arreda qualquer pretensão cambiária do portador da letra, ou apenas tem como efeito reconduzir a obrigação cambiária aos termos e limites do acordo de preenchimento?

Debalde se procurará resposta nos preceitos da LULL.

Para ABEL P. DELGADO, demonstrada a excepção, nos casos em que é oponível, impõe-se a absolvição do devedor de toda a responsabilidade (7)..

Trata-se, parece-nos, de uma posição estribada no carácter literal e abstracto da obrigação cambiária: o devedor não pode responder, cambiariamente, por aquilo que da letra não consta.

Mas, certo que é que, no domínio das relações imediatas, aqueles princípios da literalidade e da abstracção deixam de funcionar (art. 17º da LULL), assume inteira pertinência a pergunta acima colocada.

E a resposta, a nosso ver, deve seguir o entendimento do Prof. VAZ SERRA (8).

Segundo este ilustre Professor e eminente jurista haverá que distinguir, no caso de letra em branco abusivamente preenchida, entre duas situações: a de o preenchimento abusivo consistir num “excesso”, num “mais” (preenchimento com um montante mais elevado – € 100.000,00 em vez de € 50.000,00) ou em condições mais onerosas (vencimento em 01.01.2009 em vez de 01.06.2009) ou a de se traduzir num aliud. O subscritor responde cambiariamente nos limites do acordo de preenchimento, desde que se trate de reduzir aquilo que na letra se escreveu ao preenchê-la (como sucede naqueles indicados exemplos) e não de substituir o que dela consta por coisa diversa. “É que naquele caso o acordo obteve na letra uma tradução, embora em excesso; ao passo que neste, não obteve tradução alguma”.

Assim se salvaguarda, segundo aquele preclaro Mestre, o princípio de que a obrigação deve emergir do título, sem que tal princípio se leve tão longe que exclua a possibilidade de o subscritor responder por quantia menor ou por obrigação menos onerosa do que as constantes da letra preenchida.

E a solução propugnada pode confortar-se com a analogia do art. 69º da LULL, e com a consideração de que inexiste razão para isentar o subscritor de responsabilidade cambiária na medida do acordo, isto é, na medida por ele querida. “Nessa medida o preenchimento corresponde à sua vontade e não parece admissível que se prevaleça do abuso para se considerar livre de qualquer responsabilidade cambiária”.

Claudica, pois, também aqui, a argumentação dos recorrentes.

3.5. Redução da cláusula penal

Em cada um dos contratos referidos nos n.os 3) e 4) dos “factos provados” foi inserida uma cláusula (a 7ª) com a seguinte redacção:

Em caso de cessação de vigência do presente contrato, antes de decorrido o prazo estabelecido, por incumprimento de qualquer uma das partes, fica esta na obrigação de indemnizar a outra parte, por todos os prejuízos decorrentes de tal incumprimento, em montante que se fixa desde já, a título de cláusula penal de Euros 15.000 (quinze mil euros), a aplicar com validade de execução, logo após a assinatura pelas duas partes do presente contrato, independentemente da data da tomada de posse do posto de abastecimento. Este valor é considerado à data da celebração do contrato, devendo ser actualizado na data de fixação da indemnização de acordo com os índices de inflação entretanto verificados.

Trata-se, inquestionavelmente, de uma cláusula penal, afeiçoada que se mostra ao modelo normativo desenhado no art. 810º/1 do CC – uma estipulação por via da qual as partes num determinado contrato fixam o quantitativo da indemnização para a hipótese de incumprimento por qualquer delas.

Mas, para os recorrentes, as duas cláusulas são de montante exagerado, pois correspondem a mais de 25% do valor da obrigação principal (a 25,51%, pelas suas contas), o que constitui violação do “princípio do equilíbrio das partes e da boa fé negocial”. Devem, pois, “ser reduzidas ao seu valor residual, ou seja de € 789,79”, que é o valor dos prejuízos dados como provados pelo incumprimento da ré.

Será assim?

Não importa discutir, aqui e agora, a natureza ou as diferentes modalidades da cláusula penal.

Dir-se-á apenas que se trata de uma cláusula de responsabilidade civil, geradora de uma autónoma obrigação de indemnizar caso o devedor, por facto que lhe seja imputável, não cumpra, ou retarde o cumprimento, da prestação a que se obrigou; ou, por outras palavras, que é uma convenção prévia de incumprimento com determinação da prestação, normalmente em dinheiro, que o devedor terá de satisfazer ao credor em caso de não cumprimento pontual da obrigação a que se acha adstrito para com este.

Em suma: a figura em apreço reduz-se a uma liquidação antecipada do dano ou a uma pré-avaliação do montante de indemnização, visando obviar às dificuldades e aos custos do apuramento judicial da indemnização pelo incumprimento contratual, prefixando o cálculo e o montante do prejuízo (9)..

O principal objectivo da cláusula penal é evitar dúvidas futuras e litígios entre as partes quanto à determinação do montante da indemnização (10). O que se consegue, em grande medida, com a consagração da regra constante do n.º 2 do art. 811º do CC, segundo a qual o estabelecimento da cláusula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente (salvo convenção em contrário).

No caso em apreço, a cláusula penal visa ressarcir o dano decorrente, para qualquer uma das partes contratantes, do incumprimento, pela contraparte, dos dois contratos que entre si celebraram – pressupondo que esse incumprimento conduza à cessação desses contratos antes de decorrido o prazo respectivo. Traduz, assim, a fixação do montante que as partes tiveram por adequado, e a que livremente se vincularam, para o caso de, por incumprimento de qualquer delas, ocorrer o termo antecipado dos contratos, em violação do interesse do contraente cumpridor na manutenção destes até ao final do prazo convencionado.

A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente, sendo nula qualquer estipulação em contrário (art. 812º/1).

Em face da razão de ser e dos objectivos que a cláusula penal visa assegurar, não recai sobre o credor obrigação ou ónus de demonstrar a efectiva verificação de danos ou prejuízos em consequência do incumprimento do contrato e dos respectivos montantes: como já se deixou assinalado, a sua prefixação tem em mira, precisamente, dispensar averiguações sobre essa matéria.

Na lógica deste entendimento segue-se que – como o vem reiteradamente afirmando a jurisprudência (11). – é sobre o devedor que impende o ónus de alegar e provar os factos que inculquem ou demonstrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula penal e o valor dos danos a ressarcir ou o excesso do valor da cláusula em relação aos danos causados. Como refere a Relação, impõe-se ao devedor que alegue, em concreto, “factos de onde se possa concluir pelo carácter manifestamente excessivo da cláusula, nomeadamente à luz do caso concreto, balizadores do julgamento por equidade que a lei reclama para a redução, ou seja, os factos que forneçam ao julgador elementos para determinação dos limites do abuso”.

Sucede, porém, que as regras legais que disciplinam a figura não fornecem indicação alguma sobre as precisas circunstâncias em que se deva taxar de manifestamente excessivo o montante da cláusula penal.

Como refere o Prof. A. MENEZES CORDEIRO, o Código Civil, quando remete para a equidade – e fá-lo em diversas das suas disposições (12). – “tem em vista situações dominadas pela vaguidade ou por certa indeterminação, numa situação que apenas in concreto pode ser superada. Não se trata, porém, de conjunções nas quais, de todo em todo, o julgador possa decidir como entender, sem observar bitolas prefixadas de decisão”.

Nalguns desses casos, a lei traça os limites dentro dos quais operará a equidade: assim sucede, v.g., nas situações previstas nos arts. 494º e 496º; mas, como já ficou referido, quanto à redução da cláusula penal, o legislador guardou prudente silêncio no que tange às circunstâncias a ponderar pelo julgador para, em juízo de equidade, reputar de “manifestamente excessiva” uma dada cláusula penal.

Como ensina CASTANHEIRA NEVES, a equidade é “um momento da concreta realização do direito”. E, por isso, parece-nos, na linha do entendimento que ganhou expressão nos acórdãos de 09.10.2003 e de 24.06.2004, deste Supremo Tribunal (13). , que a indicação do art. 494º, apontando para factores de ponderação, reportados “às circunstâncias do caso”, não pode deixar de servir como critério de referência, que deve ser também aqui tido em conta na busca das regras que permitam a obtenção da justiça do caso concreto.

Deve, pois, considerar-se a situação que a cláusula penal visou acautelar, a actuação de ambas as partes ao longo da vida dos contratos, a gravidade da culpa do devedor, a natureza dos contratos e as circunstâncias em que foram celebrados, o tempo da sua efectiva vigência e os efeitos patrimoniais do incumprimento na esfera jurídico-patrimonial do credor, as vantagens que para o devedor advieram do incumprimento, e quaisquer outras circunstâncias que, à luz da justiça, devam ter-se por relevantes.

Tudo isto sem perder de vista que o funcionamento da “válvula de escape” da redução não depende apenas da excessividade da cláusula penal, mas sim da conclusão de ser ela «manifestamente excessiva», ainda que por causa superveniente.

E também sem esquecer que com a redução não se cura de reduzir o montante estipulado de modo a fazê-lo coincidir exactamente com os prejuízos efectivos, pois que, como ensina o Prof. I. GALVÃO TELLES, outro é o seu objectivo.

Seu objectivo não é fazer coincidir a indemnização com os prejuízos reais ou até eliminá-la se prejuízos não existem. É sim rever a cláusula em razão do seu manifesto exagero, de modo a torná-la equitativa. Esse manifesto exagero deve definir-se em função do valor dos interesses em jogo e não em atenção à circunstância fortuita de – eventualmente – os prejuízos se revelarem muito mais baixos ou até inexistentes. Não se pode ter a preocupação de reduzir a indemnização convencionada ao valor dos prejuízos reais ou eliminá-la no caso de ausência de danos, pois isso seria desvirtuar a índole própria da cláusula penal (14).

Pois bem!

Estamos perante cláusula penal estabelecida em dois contratos pelos quais a autora se obrigou a fornecer e a ré sociedade se vinculou a adquirir, em regime de exclusividade, os combustíveis líquidos e lubrificantes que iria comercializar em dois diferentes postos de abastecimento, sendo as requisições de combustível efectuadas por esta ré no quantitativo mínimo de 22.000 litros cada uma, que a autora deveria satisfazer em 48 horas.

Foi acordado que os dois contratos vigorariam pelo prazo que fosse estabelecido no contrato de cessão de exploração entre as sociedades que exploravam os postos de abastecimento e a ré sociedade, considerando-se prorrogado automática e sucessivamente por iguais períodos, salvo se fosse denunciado por qualquer das partes, nas condições acordadas.

Foi ainda acordado que a autora venderia à ré os combustíveis com um desconto por litro sobre os valores atribuídos quinzenalmente pela SHELL e pela BP à primeira, nos moldes acordados, e os lubrificantes com um desconto de 25% da tabela produtor/importador, podendo a ré fixar, dentro dos limites legais, o preço de revenda ao público dos combustíveis.

Sem prejuízo da cláusula penal fixada, ficou ainda a constar dos contratos que, em caso de incumprimento por qualquer das partes, a parte não faltosa teria o direito de recurso à execução específica prevista no art. 830º do CC.

Em ambos os contratos foi incluída ainda uma cláusula estabelecendo que, para garantia do bom pagamento dos fornecimentos efectuados, a ré sociedade entregaria à autora uma garantia bancária “on first demand”, nos valores de € 40.000,00 (1º contrato) e de € 35.000,00 (2º contrato), que veio a ser substituída por uma livrança de € 100.000,00, emitida pela dita ré e avalizada pelos 2º e 3º réus, sócios desta, sendo que este título veio a ser também substituído pela letra em branco acima aludida.

O 1º contrato teve apenas cerca de 17 meses de vigência efectiva (de 01.07.2004 a 23.11.2005), e o segundo cerca de 15 meses (de 01.09.2004 a 05.12.2005), tendo sido resolvidos por falta de pagamento de vários fornecimentos.

De anotar ainda que os factos provados revelam que a autora mostrou interesse na manutenção dos contratos, pois que, perante os sucessivos atrasos da ré no pagamento dos fornecimentos de combustíveis e lubrificantes, aceitou alargar o prazo de pagamento das partidas de combustível, de 15 para 25 dias a contar da entrega, e condescendeu no pagamento de várias das correspondentes facturas muito para além deste prazo.

A resolução contratual ocorreu depois de múltiplos incumprimentos por parte da ré, que envolveram até a emissão de cheques sem provisão bancária, e foi actuada quando a dívida ascendia já a valores significativos – € 117.595,76.

Estamos perante contratos de valor e significado económico relevantes, de cujo cumprimento e eventuais renovações resultaria um relacionamento comercial envolvendo somas consideráveis, e cujo incumprimento apontava, à partida, para prejuízos avultados para o contraente inocente, fosse este a autora ou a ré. Daí que bem se entenda o estabelecimento da cláusula penal, nos termos em que o foi – não apenas estabelecida para acautelar os interesses de uma das partes contratantes, mas funcionando nos dois sentidos, salvaguardando o interesse da parte lesada pelo incumprimento da contraparte.

Ademais, do ponto em que esta cláusula penal representa o acordo último quanto às garantias de ambos os contratos, ela envolve uma manifesta cedência da autora, que abdicou, sucessivamente, de duas importantes garantias estabelecidas apenas em seu favor, aceitando esta cláusula penal bifronte, que funcionaria contra ela, se fosse ela a incumpridora.

Neste enquadramento fáctico, à luz de um juízo de equidade e de proporcionalidade, não se encontra justificação para a pretendida redução da cláusula penal, sendo certo que os argumentos ex adversu apresentados pelos recorrentes não abalam esta conclusão.

Não podemos deixar de avocar a lição do Prof. GALVÃO TELLES, que emerge da transcrição supra: dela decorre a ineficácia do argumento fundado no prejuízo que os recorrentes dizem ser o resultante do incumprimento da ré sociedade – € 789,79. É, antes de mais, óbvio, que este número não traduz os prejuízos sofridos pela autora, aqui recorrida, em consequência da “cessação de vigência” dos contratos antes de decorrido o prazo respectivo – e estes é que foram os prejuízos tidos em vista com a liquidação a forfait operada na cláusula 7ª de ambos os contratos; e, de todo o modo, a faculdade legal de redução não visa diminuir o quantitativo estipulado de modo a fazê-lo coincidir exactamente com os prejuízos efectivos.

Por outro lado, também não é bastante, para defender a excessividade da cláusula penal, relacionar e cotejar o seu montante com o valor dos fornecimentos ainda em dívida, que os recorrentes tomam, erradamente, como “valor da obrigação principal”. A obrigação da ré não se esgota(va) no pagamento atempado dos fornecimentos que, periodicamente, a autora lhe fazia; competia-lhe ainda, porque a tanto se obrigou, assegurar a vigência dos contratos pelo lapso temporal acordado (pacta sunt servanda).

Não se detecta, pois, a alegada manifesta excessividade, originária ou superveniente, que leve a considerar, à luz das prestações em causa nos contratos, da repercussão do incumprimento na esfera jurídico-patrimonial das partes e das demais circunstâncias atendíveis e já aludidas, que a indemnização convencionada, por iniquamente elevada, deva ser reduzida.

3.6. A questão da litigância de má fé

Retomando a argumentação apresentada no recurso para a Relação, os recorrentes reincidem no pedido de condenação da autora, como litigante de má fé.

Assentam a sua pretensão no facto de ter esta formulado pedidos que sabia não lhe serem devidos, mantendo essa posição até final. A autora tentou, no dizer dos recorrentes, receber quantias que sabia não lhe serem devidas, formulando pedidos “em nome de outras entidades que não a sua”.

A questão foi apreciada, no acórdão recorrido, em termos que merecem a nossa inteira adesão. Daí que se justificasse remeter, sem mais, para os fundamentos da decisão impugnada, nos termos do n.º 5 do art. 713º, aplicável ex vi do art. 726º, ambos do CPC.

Não deixaremos, porém, de juntar algumas considerações ao discurso da Relação.

O conceito de litigância de má fé vem retratado no art. 456º do CPC.
Diz-se litigante de má fé – art. 456º/2 do CPC – quem, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Esta definição legal comporta no seu âmbito situações de má fé subjectiva, caracterizadas pelo conhecimento ou não ignorância da parte, e objectiva, resultantes da violação dos padrões de comportamento exigíveis.
Na redacção anterior à reforma do Código de 1995/96, a má fé era identificada como uma modalidade do dolo processual, consistindo, na expressiva síntese de Manuel de Andrade, na “utilização maliciosa e abusiva do processo”.
Como reflexo da filosofia que lhe está subjacente, a reforma alargou o conceito, estendendo-o justificadamente às condutas processuais gravemente negligentes. Basta, pois, uma falta grave de diligência para justificar o juízo de má fé da parte.
Distinguem-se claramente, na formulação legal, a má fé substancial – que se verifica quando a actuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 456º, supra transcrito – e a má fé instrumental (al. c) e d) do apontado normativo). Mas em ambas está presente ou uma intenção maliciosa, ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação ou de censura e idêntica reacção punitiva.
Ora, nem aquela intenção maliciosa nem esta negligência grosseira se surpreendem na conduta processual da autora, não se vislumbrando, na sua concreta actuação ao longo do processo, ofensa do dever de verdade e de probidade (do dever de agir de boa fé) que, ao recorrer a juízo, sobre ela recaía.

Não se mostra, isto é, que a autora tenha adoptado comportamento processual inadequado à ideia de um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito.
Daí que, também nesta parte, não possa lograr acolhimento a pretensão dos recorrentes.

4.

Por todo o exposto, acorda-se em negar a revista.
Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 31 de Março de 2009


Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva

__________________________

(1) Prof. ALBERTO DOS REIS, Comentário, vol. I, 2ª ed., pág. 56 e Anotado, vol. I, 3.ª ed., pág. 138 e JACINTO RODRIGUES BASTOS, Notas ao Cód. Proc. Civil, vol. I, 2ª ed., pág. 141.

(2) Sem que, como anota o acórdão recorrido, ninguém tenha questionado a legalidade desta procuração, a sua genuinidade.

(3) O vigente Estatuto da Ordem dos Advogados foi aprovado pela Lei 15/2005, de 26 de Janeiro.
(4) Cfr. J. ADRIANO CARLOS, A responsabilidade do advogado por violação do segredo profissional, in ROA, ano 58, II (Julho 1998), pág. 1047.
(5) Cfr. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, L.da – 1976, pág. 421 e CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1996, pág. 344.
(6) Prof. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Interpretação do Contrato, artigo publicado na revista O Direito, ano 124º - 1992, tomo IV (Out.- Dez.), págs. 629 e ss. (cfr. fls. 639/640).
(7) Lei Uniforme sobre Letras e Livranças anotada, 3ª ed., 1976, pág. 59.
(8)BMJ 61, págs. 288 e ss.
(9) Cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal, de 09.10.2003, disponível em www.dgsi.pt/jstj (Proc. 03B2503).
(10)P.LIMA/A. VARELA, Cód. Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., pág. 73.
(11) Cfr. os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 09.02.99 (Col. Jur. – Acs. do STJ, ano VII, tomo I, pág. 97), de 05.12.2002 (Revista 3629/02, da 1ª Sec., in Sumários de 2002), de 24.06.2004 (Proc. 04B1701), de 18.11.2004 (Proc. 04B3837), e de 17.04.2008 (Proc. 08A630), os três últimos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
(12) Uma enunciação de normas que remetem para a equidade pode ver-se no estudo de MENEZES CORDEIRO “A decisão segundo a equidade”, publicado na revista O Direito, ano 122º, 1990, tomo II, págs. 261 e ss. (cfr. págs. 268/269).
(13) Proferidos nos Proc. n.º 03B2503 e n.º 04B1701, e ambos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
(14) Autor cit., Direito das Obrigações, 6ª ed., Coimbra Editora, L.da – 1989, pág. 445.