Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10/04.9TBSTB.E1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
ACIDENTE DE TRABALHO
NORMAS DE SEGURANÇA
TERCEIRO
SEGURO OBRIGATÓRIO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
Data do Acordão: 11/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO OBRIGATÓRIO / SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL ( POR FACTOS ILÍCITOS ) / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
– Abílio Neto, Novo “Código de Processo Civil” Anotado, 2.ª edição Revista e Ampliada, Janeiro 2014, 773.
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª edição, 766.
- Antunes Varela, Direito das Obrigações em Geral, I Volume, 7.ª edição, 885.
- Heirinch Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português -Teoria Geral do Direito Civil, 1992, 511, 512.
- Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil” Anotado, 3.° vol., tomo I, 2.ª ed., 2008, 41 a 43.
- Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita, 1995, 208.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, vol. I, 233, em nota ao artigo 236.º do Código Civil.
- Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., 1997, 466 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 236.º, 238.º, 483.º, N.º1, 493.º, N.º2, 563.º, 570.º, N.º1.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 426.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 671.º, N.º 3.
D.L. N.º 446/85, DE 25-10: - ARTIGOS 10.º E 15.º.
DECRETO-LEI N.º 7/2008, DE 16.4 (LEI DO CONTRATO DE SEGURO).
LEI N.º 41/2013, DE 26-6: - ARTIGO 7.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 14.1.1997, IN CJSTJ, 1997, 1, 47.
-DE 20.6.2006, IN CJSTJ, 2006, II, 119.
-DE 10.9.2009, PROC. N.º 602/04.6TBVFR.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSIS.PT
Sumário :
As regras de segurança contidas em legislação sobre higiene e segurança no trabalho visam, em primeira linha, a protecção dos trabalhadores de certa entidade patronal, que, ademais, estão civilmente abrangidos pela obrigatoriedade do seguro de acidente de trabalho: se violadas essas normas, em concreto, geram responsabilidade civil, por acção ou omissão do responsável infractor; mas as mesmas normas, reflexamente, protegem terceiros que sofram danos, mesmo que não causados por acidente em íntima conexão com a sua actividade no contexto da relação de trabalho, ou seja, um terceiro que, por causa da violação daquelas normas protectoras, seja vítima de acidente, ainda o é por causa da conduta de quem violou as regras de segurança que não foram culposamente observadas.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

SEGURO AA, S.A., actualmente SEGURO AA, S.A. instaurou, em 31.12.2003, no Tribunal Judicial da Comarca de …, acção declarativa, com processo ordinário, contra:

1. BB, Lda., e;

2. SEGURO CC, S.A., actualmente, “SEGURO CC, S.A.”

Pedindo que as Rés sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de € 17.721,48, acrescida de juros vencidos calculados sobre o capital em dívida, a contar desde a citação até integral pagamento e, ainda, as pensões que se vencerem e que forem pagas na pendência da acção, mais as pensões que se vencerem no futuro, a liquidar em execução de sentença.

Alegou, em síntese, que, no exercício da sua actividade seguradora, celebrou com a sociedade DD, Lda. um seguro de acidentes de trabalho.

O trabalhador dessa empresa, EE, estava abrangido pelas garantias da apólice respectiva, sucedendo que, no dia 4 de Dezembro de 2001, nas instalações da 1ª Ré e quando estava ao serviço da sua entidade patronal, o referido EE sofreu um acidente do qual resultou a sua morte, imputando a autora a ocorrência desse acidente à 1ª ré.

Mais alegou que, no âmbito de contrato de seguro celebrado com a entidade patronal do mencionado trabalhador, pagou a terceiros e aos familiares do falecido várias quantias, nomeadamente despesas médicas e pensões, das quais se quer ver reembolsada.

A “DD, Lda.” requereu a sua intervenção principal ao lado da autora contra as mesmas rés, alegando, no essencial, os mesmos fundamentos da autora e pedindo que as rés sejam condenadas a pagar-lhe:

- a quantia de € 19.859,39 acrescida de juros vincendos calculados sobre o montante em dívida, a contar da citação até integral pagamento;

- as pensões que se vencerem e que forem pagas na pendência da presente acção;

- as pensões vitalícias a pagar à viúva que se vencerem no futuro;

- as pensões futuras a pagar aos filhos menores até perfazerem 18, 22 ou 25 anos;

- todos os encargos bancários presentes e futuros, relacionados com garantia bancária prestada, tudo a liquidar em execução de sentença.

A SEGURO CC, S.A. (2ª ré), com a actual denominação de SEGURO CC, S.A. contestou, afirmando que a culpa do acidente se deveu à conduta da ré BB (1ª ré), que não implementou no local as medidas de segurança necessárias a evitar o acidente, pelo que os danos decorrentes daquele acidente estão excluídos da cobertura do seguro celebrado entre si e aquela ré.

A 1ª ré contestou, dizendo ser parte ilegítima por o valor do pedido estar abrangido pela cobertura do seguro celebrado com a 2ª ré, alegando não ter qualquer responsabilidade na ocorrência do sinistro.

Pediu a intervenção principal de FF, Lda., afirmando que esta se encontrava a executar uma obra no local e que era à mesma que cabia a implementação das medidas de segurança necessárias a evitar a ocorrência de acidentes.

Terminou, pedindo pela improcedência da acção no que a ela respeita.

Foram admitidas as intervenções de “DD” e de “FF”, tendo esta contestado e declinado qualquer responsabilidade na ocorrência do acidente em discussão nos autos.

Na audiência preliminar, a 1ª Ré desistiu da invocação da excepção da sua ilegitimidade, o que foi admitido.

Saneado o processo e discriminados os factos assentes e os controvertidos, prosseguiu aquele a sua tramitação, vindo a realizar-se audiência de julgamento com decisão da matéria de facto controvertida.

***

Foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou o seguinte:

Nos termos que se deixam expostos, condeno solidariamente as Rés e Interveniente, respectivamente, BB, Lda., SEGURO CC, S.A. e FF, Lda., esta representada pelos seus sócios GG e HH a pagar à Autora SEGURO AA, S.A. a quantia total de € 52.074,45 (cinquenta e dois mil, setenta e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos) (80% da soma: 58.669,48+4010,28+1908,07+505,23) e à Autora DD, Lda. a quantia de € 15.916,28 (quinze mil, novecentos e dezasseis euros e vinte e oito cêntimos) (80% da soma 14.555,34+ 514,37+2.760,66+2.064,99).

Sobre as quantias acima referidas são devidos juros de mora vencidos e vincendos, calculados desde a citação até integral pagamento relativamente ao pedido inicial e desde a notificação respetiva relativamente à ampliação do pedido, à taxa vigente para os juros civis.

Os sócios da extinta FF, Lda. respondem pela dívida da sua representada na medida do que receberam na liquidação dessa sociedade.

Custas na proporção de decaimento”.

***

Inconformadas, a 2ª Ré e as Autoras apelaram da sentença, para o Tribunal da Relação de …, que, por Acórdão de 17.12.2015 – fls. 1183 a 1206 – sentenciou:

“Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedentes os recursos da Ré SEGURO CC, S.A. e da Autora DD e improcedente o recurso da autora SEGURO AA, S.A. e, em consequência, alteram a sentença nos seguintes termos:

a) Condenam-se solidariamente as rés e interveniente, respectivamente, BB, Lda., SEGURO CC, SA e FF, Lda., esta representada pelos seus sócios GG e HH, a pagar à Autora SEGURO AA, S.A. a quantia total de € 52.074,45 [80% da soma de 58.669,48+4010,28+1908,07+505,23], deduzindo-se a franquia de € 4.978,98 relativamente à ré SEGURO CC;

b) Condenam-se solidariamente as mesmas rés e interveniente a pagar à Autora DD, Lda. a quantia de € 15.916,28 [80% da soma de 14.555,34+ 514,37+2.760,66+2.064,99], deduzindo-se a franquia de € 1.591,63 relativamente à ré SEGURO CC, bem como as pensões vencidas e pagas na pendência da presente acção, as pensões vitalícias a pagar à viúva que se vencerem no futuro, as pensões futuras a pagar aos filhos menores até perfazerem 18, 22 ou 25 anos e todos os encargos bancários presentes e futuros, relacionados com garantia bancária prestada, tudo a apurar em incidente de liquidação.

           

c) Manter no mais a sentença recorrida.

Custas pelas partes, na proporção do respectivo vencimento, tal como resulta deste acórdão, em ambas as instâncias.”

***

Inconformada a Ré SEGURO CC, S.A. (que anteriormente num primeiro momento se denominou SEGURO CC, S.A. e num segundo, SEGURO CC, S.A.), recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, e alegando, formulou as seguintes conclusões:

1- O contrato de seguro celebrado entre a Recorrente SEGURO CC, S.A. e a Ré BB, Lda., não foi celebrado no cumprimento de um dever legal de segurar, antes correspondendo ao exercício, por parte da entidade tomadora do seguro, de uma faculdade que lhe não é imposta lei;

2- A lei não, e muito menos relativamente a contrato de seguro cuja celebração não releve da obrigação de segurar, a delimitação do âmbito das coberturas, e a definição do que fica coberto e do que resta excluído da garantia de seguro, podendo as partes estipular o que a tal título pretendam

3- O contrato de seguro sub judice” em vigor à data do acidente que nos autos se discute, era um contrato formal, na medida em que a redução a escrito do mesmo era, ao tempo, uma exigência legal condicionante da legalidade do mesmo.

4- A exclusão da cobertura, constante da al. b) do n°1 do art. 4° das Condições Gerais da apólice de seguro que titula o contrato de seguro referido na conclusão 1, releva do princípio da liberdade de contratação e estipulação próprias do direito privado, estando reduzida a escrito.

5- A referida alínea, interpretada de um ponto de vista sistemático e tendo em consideração a totalidade das cláusulas (artigos) do mencionado contrato de seguro não pode ser interpretada como dizendo respeito (e muito menos dizendo somente respeito) a acidentes sofridos por empregados da entidade tomadora do seguro/segurada, pois que a exclusão de tal tipo de sinistros se encontra expressamente prevista na alínea i) do n°1 desse mesmíssimo artigo contratual;

10 - Em sentido contrário ao acabado de referir e, nomeadamente a interpretação restritiva que o douto acórdão recorrido faz da alínea b) do n° l do art. 4° das Condições Gerais do seguro sub judice”, a o texto contratual de tal modo que, a prevalecer, a declaração negocial dele constante deixaria de ter um mínimo de correspondência com o clausulado escrito, do contrato:

7- O acidente que nos autos cabe no âmbito da alínea b) do nº1 do art. 4º das Condições da apólice, estando por isso excluído da cobertura de seguro;

8 - Ao assim não ter entendido o douto acórdão sob recurso violou o disposto nos arts. 236º, n º1, e 238º, nº1, do Código Civil;

9- A exclusão constante da alínea b) do n°l do art. 4° das Condições Gerais do contrato de seguro, não esvazia o objecto da cobertura de seguro, não ofende a boa fé contratual e muito menos pode ser considerada uma cláusula abusiva;

10 - Ao assim não ter entendido o douto acórdão recorrido violou o disposto nos arts.10º e 11º do Dec.-Lei n° 446/85 de 25 de Outubro:

11 – Atenta a matéria de facto assente a comparticipação culposa da vítima deveria ter sido valorada na proporção de metade;

12 - Ao assim não ter entendido o douto acórdão recorrido violou o disposto no art. 571º, n°1, do Código Civil[2].

13- Deve por isso ser dado provimento à revista deduzida pela ora Recorrente, considerando que, face à matéria de facto assente e ao direito aplicável, o acidente que nos autos se discute cai na previsão da exclusão da cobertura de seguro constante da al. b) do nºl do art. 4° das Condições Gerais e Especiais da apólice absolvendo-se a Ré ora recorrente, e na totalidade, do pedido;

14 - Caso assim se não entendesse, o que só por mera hipótese de raciocínio e dever de patrocínio se aduz, sempre a Ré ora recorrente só poderia ser condenada a pagar 50% do valor arbitrado, deduzido que ao mesmo ainda fosse o montante de € 4.897,98 correspondente à franquia contratual.

Justiça.

A recorrida SEGURO AA, S.A., contra-alegou sustentando ser o recurso parcialmente inadmissível por existir dupla conforme quanto à percentagem de divisão de culpa, entre o sinistrado e as Rés, facto que a recorrente aceitou, pese embora o erro ao referir que tais percentagens que são de igual proporção – 50%. Na verdade, as instâncias consideraram ser de 20% para a vítima e 80% para aquelas Rés.

           

A assim não se entender pugnou pela improcedência do recurso.

A Ré BB contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.

***

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1 - A Autora SEGURO AA é uma sociedade que se dedica à actividade seguradora.

2 - No âmbito da sua actividade, a SEGURO AA, S.A., celebrou com a sociedade DD, Lda. o contrato de seguro do ramo “acidentes de trabalho”, através do qual assumiu a responsabilidade pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho.

3 - No âmbito do referido contrato, encontrava-se coberto pelas garantias da referida apólice o trabalhador da DD, Lda., EE, com categoria de motorista de pesados.

4 - No dia 4 de Dezembro de 2001, pelas 13.30 h, nas instalações da ora 1ª Ré, sitas em …, ocorreu um acidente com o referido EE.

5 - O acidente ocorreu quando o trabalhador sinistrado se encontrava, na sequência de instruções da sua entidade patronal, no desempenho das suas funções de motorista, a transportar matéria-prima para as instalações da ora 1ª Ré.

6 - Com o intuito de descarregar o camião cisterna que conduzia, ao chegar às instalações da ora 1ª Ré, o sinistrado na tentativa de encontrar algum funcionário desta que procedesse às análises da matéria-prima que transportava, entrou dentro da fábrica.

7 - Após percorrer todo o perímetro da mesma numa distância de cerca de 140 metros, entrou num local por trás do laboratório de controlo de qualidade.

8 - No interior do referido local ao nível do chão encontravam-se dois tanques cheios de água quente – 80º Célsius.

9 - Tendo o sinistrado caído dentro de um daqueles tanques.

10 - Os referidos tanques têm 3 metros de cumprimento, 1,5 metros de largura e 1,60 de profundidade.

11 - A superfície da água existente nos referidos tanques, encontrava-se totalmente coberta por pequenas esferas, destinadas a manter a temperatura da água a 80º graus Celsius.

12 - Como consequência da queda, veio a sofrer graves queimaduras por todo o corpo.

13 - O sinistrado foi transportado de helicóptero para o Hospital de …, vindo, posteriormente, a falecer em resultado das lesões sofridas.

14 - Na sequência do acidente acima referido correu termos no Tribunal de Trabalho de … o processo nº 173/02, onde foi feita a conciliação das partes nos termos constantes do documento de fls. 46 a 53.

15 - Na sequência do sinistro, a segurada da Autora participou o acidente a esta por forma a accionar o contrato de seguro existente.

16 - A ré BB, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 000/00000009/000, transferiu para a ré SEGURO CC, S.A a responsabilidade civil decorrente da Exploração e de Produtos.

17 - As esferas existentes por cima da água, não permitiam a quem não conhecesse o local, verificar que se estava perante tanques de água quente.

18 - Os tanques em causa não possuíam guarda corpos ou corrimão de resguardo.

19 - A porta de acesso àquelas instalações estava franqueada.

20 – Em data posterior ao sinistro a ora 1ª Ré procedeu à implementação das necessárias medidas de protecção no local do acidente, designadamente avisos de perigo e guarda corpos junto aos tanques.

21 - A provisão matemática neste caso é de € 77.613,92.

22 - A autora DD pagou à viúva e aos filhos menores, na sequência da conciliação obtida no tribunal de Trabalho de ..., a quantia de € 14.555,34, acrescida de subsídio de Natal de 2003 no montante de € 514,37.

           

23 – A Sociedade DD, Lda. despendeu ainda em consequência do sinistro a quantia de € 2,760,66 que pagou à SEGURO AA a título de despesas médicas e diversas.

24 - E foi obrigada a caucionar as pensões a pagar à viúva e aos filhos menores do sinistrado mediante garantia bancária.

25 - Com a prestação de caução através de garantia bancária despendeu a título de encargos bancários a quantia de € 2.064,99.

26 - Na hora do acidente a recepção da empresa BB, Lda. encontrava-se encerrada por ser hora de almoço.

27 - Qualquer indivíduo estranho às instalações deve dirigir-se à recepção.

28 - O sinistrado conhecia este procedimento por se ter já deslocado àquela empresa em outras ocasiões.

29 - Sabendo também que para proceder à descarga da matéria-prima esta teria de ser previamente objecto de uma análise por um técnico de laboratório de qualidade da BB.

30 - Após ser retirada a amostra o condutor do camião cisterna ficava a aguardar junto do seu veículo até receber instruções para efectuar a descarga.

31 - Essa análise leva cerca de 15/30 minutos a realizar.

32 - Os locais para descarga da matéria-prima ficam a cerca de 20 metros da entrada, ficando o camião cisterna aí estacionado durante a descarga.

33 - Os tanques acima mencionados não se encontravam a ser utilizados por estarem a ser efectuados testes de temperatura aos mesmos.

           

34 - E não se encontravam finalizados os trabalhos de instalação dos tanques.

35 – A empresa FF, Lda. encontrava-se a efectuar a instalação dos mencionados tanques.

36 - O tanque onde caiu o sinistrado tinha em seu redor, no pavimento, uma grelha metálica desde a entrada até ao tanque.

37 - O tanque encontra-se a cerca de um metro do portão.

38 - Qualquer indivíduo para abrir o portão ficaria inclinado em sentido diverso do da localização do tanque.

39 – No âmbito dos autos referidos no ponto 14 a Autora já pagou aos beneficiários II, JJ e KK as seguintes quantias:

- pensões de 16/12/2001 a 30/6/2014 – 58,669,48€;

- subsídio por morte – 4.010,28€.

40 – A Autora despendeu a quantia de € 1908,07 a título de despesas médicas e a quantia de € 505,23 a título de despesas diversas, devido ao sinistro em causa nos autos.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações da Recorrente, que se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- Se o sinistro que vitimou EE, atentas as circunstâncias em que ocorreu, está excluído do contrato de seguro celebrado entre a Recorrente SEGURO CC e a Ré BB, por se tratar de um contrato seguro facultativo, dada ainda a previsão contida na cláusula inserta no art. 4º, nº1, al. b) das suas Condições Gerais e Especiais:

- A assim não ser considerado, se deve ser alterada para 50% a culpa na produção do acidente imputável à vítima, cabendo os demais 50% à Ré BB e à interveniente DD, Lda., com a inerente repercussão na quantia a pagar pela Recorrente.

Antes, porém, cumpre saber se o recurso é parcialmente inadmissível, como sustenta a recorrida SEGURO AA, que entende existir dupla conformidade no que concerne ao inciso condenatório que manteve a repartição de culpas concorrentes em 20% para a vítima mortal e 50% para “BB, Lda.” e para a interveniente “DD, Lda.”.

           

É certo que a Relação considerou, e manteve, essa concorrência de culpas.

Todavia, não existe dupla conforme, desde logo, tendo em conta o disposto no art. 7º, nº1, da Lei nº41/2013, de 26.6 (que aprovou o Código de Processo Civil, em vigor desde 1.9.2013, ut. seu art. 8º), que estatui – “Aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei em ações instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008 aplica-se o regime de recursos decorrente do Decreto-Lei n.°303//2007, de 24 de Agosto, com as alterações agora introduzidas, com exceção do disposto no n.°3 do artigo 671º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei.”. A acção foi intentada em 31.12.2003 e o Acórdão recorrido foi proferido em 17.12.2015, pelo que se aplica o regime do DL. 303/2007, de 24 de Agosto, mas sem a restrição da dupla conforme por inexistir à data da propositura da acção.

Mesmo que assim não fosse, uma vez que o Acórdão supriu nulidades da sentença, consubstanciadas na omissão de pronúncia em relação a questão decisiva, (porque a montante da questão da concorrência de culpas): qual seja a da apreciação e interpretação da cláusula de exclusão no contrato de seguro, assentando a sua decisão, apesar de consonante numa fundamentação nem sequer aventada (omissão de pronúncia) na sentença apelada, inquestionavelmente que existe fundamentação essencialmente diferente obstativa da dupla conformidade como previsto no art. 671º, nº3, do nCódigo de Processo Civil.

Desconsidera-se, assim, a questão suscitada pela recorrida SEGURO AA, sendo o recurso admissível.

Vejamos a 1ª questão.

Entende a Recorrente que o contrato de seguro que celebrou com a ré BB não é um contrato de seguro obrigatório, do ramo de acidentes de trabalho, mas antes um contrato de seguro celebrado ao abrigo da liberdade contratual, podendo as partes neles incluir e excluir os riscos acordados negocialmente, pelo que é lícito excluir certos riscos.

Censura o Acórdão recorrido quanto à interpretação que fez da cláusula de exclusão, que abordaremos.

Consta provado, na alínea P) dos factos assentes, que a Ré BB, por contrato de seguro titulado pela apólice nº000/00000009, transferiu para a Recorrente “a responsabilidade civil decorrente da exploração e de produtos”.

O nº1 do artigo 2º das Condições Gerais do Contrato de Seguro, em causa, sob a epígrafe, “Objecto do Contrato”, dispõe que: “O presente contrato tem por objecto a garantia da Responsabilidade Civil extracontratual que, ao abrigo da Lei Civil, seja imputável ao Segurado enquanto na qualidade ou exercício da actividade expressamente definida nas condições Particulares”.

No artigo lº, nº1, a) e b) da Condição Especial -Responsabilidade Civil Exploração – o contrato de seguro, dispõe acerca do âmbito de cobertura do seguro:

“Quando contratada a presente cobertura, o contrato garante, até aos limites fixados nas Condições Particulares, as indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao segurado pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, em consequência do exercício das actividades definidas nas Condições Particulares, nomeadamente:

a) Por actos ou omissões do Segurado, seus administradores, gerentes, empregados, assalariados ou mandatários, quando em serviço e por quem seja civilmente responsável:

b) Por animais, instalações, imóveis e parqueamentos, utilizados pelo Segurado para o exercício das suas actividades.”

A Recorrente “SEGURO CC” argumenta que, em virtude da 1ª ré BB, sua segurada, não ter implementado as medidas de segurança no trabalho legalmente exigidas, e considerando o disposto no art. 4º, nº1, al. b), das Condições Gerais e Especiais, estão excluídas da garantia do contrato de seguro as lesões causadas à vítima mortal EE.

A questão contende com a interpretação da cláusula de exclusão constante do referido art. 4º, nº1, al. b), da apólice de seguro de Exploração e Produtos, em que se corporiza o contrato de seguro estabelecido entre as rés seguradora e a segurada tomadora do seguro, abrangendo a responsabilidade civil decorrente da Exploração e de Produtos da actividade da ré BB (fabrico e montagem de tubos para redes de gás).

Dispõe o art. 4º:

1. O presente contrato exclui sempre:

a) (…)

b) Danos resultantes da inobservância das disposições legais e/ou regulamentares, nomeadamente sobre segurança e prevenção”.      

Sustenta a Recorrente que, em função dos factos provados, a Ré, sua segurada, violou, causalmente, as regras de segurança no trabalho do ponto em que infringiu o disposto no art.89°, n°1, do Regulamento Geral de Segurança e Higiene do Trabalho nos Estabelecimentos Industriais, aprovado pela Portaria n°53/71, de 3 de Fevereiro, alterado pela Portaria n°702/80 de 22 de Dezembro, e o previsto no art. 8°, nºs 1 e 2, als. a), b), c), f) e j), e n° 4 do Decreto-Lei n°441/91, de 14 de Novembro, ao não ter implementado as medidas preventivas previstas em tais normativos, pelo que, em face do que dispõe o art. 4°, n°1, al. b) das Condições Gerais e Especiais do contrato de seguro, se encontra excluído da garantia do seguro o risco que vitimou EE.

Tal evento é um acidente de trabalho tendo em conta que, foi ao serviço da sua entidade patronal “DD, Lda.”, como motorista de um auto tanque, que no dia 4.12.2003, nas instalações da BB, onde foi entregar matéria-prima, EE perdeu a vida.

A relação juslaboral estabeleceu-se entre ele e aquela empresa, para quem trabalhava, subordinadamente. Com efeito, como se provou, com o intuito de descarregar o camião cisterna que conduzia, ao chegar às instalações da 1ª Ré, (BB) o sinistrado, na tentativa de encontrar algum funcionário desta que procedesse à análise da matéria-prima que transportava, entrou na fábrica. Após percorrer todo o perímetro da mesma, numa distância de cerca de 140 metros, entrou num local por trás do laboratório de controlo de qualidade. No interior do referido local, ao nível do chão, encontravam-se dois tanques cheios de água quente – 80° Célsius – tendo o sinistrado caído dentro de um daqueles tanques…como consequência da queda, veio a sofrer graves queimaduras por todo o corpo, tendo sido transportado de helicóptero para o Hospital de …, vindo, posteriormente, a falecer em resultado das lesões sofridas.

O Contrato de seguro, em função da lei vigente à data da sua celebração, era um contrato formal – sendo obrigatoriamente reduzido a escrito num documento denominado apólice – art. 426º do Código Comercial. Na actual Lei do Contrato de Seguro – Decreto-lei nº7/2008, de 16.4 – o contrato de seguro não é um contrato formal, podendo ser celebrado verbalmente. O facto de ser um contrato formal postula a aplicação das regras interpretativas do art. 236º e, peculiarmente, do art. 238º do Código Civil, não podendo valer um sentido declarativo que não tenha no texto um mínimo de correspondência, sem prejuízo da regra “falsa demonstratio non nocet” que não é excluída pela solenização da vinculação negocial.

O artigo 236º (Sentido normal da declaração) estatui:

1.A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

2.Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

Deve pois, enjeitar-se o entendimento que se apegue, somente, à estrita literalidade do texto –  “quantum verba sonant” desconsiderando a real intenção das partes,

 “Na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, "a vontade real do declarante", sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (...)”. – Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.1.1997, in CJSTJ, 1997, 1, 47.

Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 233, em nota ao art. 236º do Código Civil, ensinam:

“... A regra estabelecida no nº l, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.

Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).

(...) O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir. Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista.

(...) A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.”

O declaratário normal deve ser uma pessoa com – “Razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita”, 1995, 208.

O artigo 238.° (Negócios formais) dispõe:

“1. Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.          

2. Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.”

Apesar do contrato ser formal, é relevante a chamada “falsa demonstratio”.

Esta ocorre em “...situações em que declarante e declaratário se exprimem mal e se entendem bem, apesar de este entendimento comum contrariar o uso linguístico ou o sentido normal das expressões empregues” –  “A Parte Geral do Código Civil Português -Teoria Geral do Direito Civil”, 1992, pág.511, de Heirinch Ewald Hörster.

Mais adiante, pág.512, o mesmo autor escreve:

“Quanto aos negócios formais, seja legal ou voluntária a forma adoptada, determina o nº1 do art. 238º que em princípio a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (...).

No entanto, um sentido que não tenha esta correspondência sempre pode valer se corresponder à vontade real das partes do negócio e as razões determinantes de forma se não opuserem a essa validade (art. 238, nº 2).”

O contrato de seguro em apreciação, tendo por objecto, latamente, a responsabilidade civil extracontratual da segurada BB, excluindo os “danos resultantes da inobservância das disposições legais e/ou regulamentares, nomeadamente sobre segurança e prevenção”, dever ser interpretado à luz dos cânones hermenêuticos previstos nos citados normativos do Código Civil e, ainda, porque se trata de um contrato de adesão, regido pelo DL. 446/85, de 25.10, à luz do critério reforçado da boa fé e do princípio da confiança – arts. 10º e 15º, tendo em conta que as cláusulas ambíguas devem ser interpretadas segundo o regime próprio especial constante do art.11º, “in dubio contra stipulatorem[3], se não for possível fixar o sentido que delas teria um aderente normal colocado na posição do aderente real.

Numa interpretação literal, que parece ser a perfilhada pela Recorrente, constando que o acidente se deu em virtude da inobservância de disposições regulamentares sobre segurança e prevenção na execução de actividades laborais (a segurada BB, por causa do acidente, foi alvo de processo movido pela Inspecção Geral do Trabalho, por contra-ordenação grave, tendo-lhe sido aplicada uma coima no valor de € 972,66 por decisão daquela entidade de 23.9.2003 – ut. documentos de fls. 141 a 146.), essa circunstância, ipso facto, seria excludente da responsabilidade da segurada, por o sinistrado ser terceiro (não era trabalhador da BB): essa interpretação é de um rigor que não se compagina com a finalidade do seguro e do risco acautelado pelo contrato em causa.

Com efeito, o contrato de seguro em causa é, como bem diz a recorrente, um contrato facultativo: visa a protecção de terceiros não envolvidos na relação juslaboral em que a segurada é entidade patronal da vítima; ademais, repete-se, a vítima não era trabalhador da segurada BB. O acidente foi de trabalho, no contexto da relação contratual que vigorava entre EE e “DD, Lda.”, ao serviço de quem era motorista profissional no âmbito de indisputado contrato de trabalho.

Qualquer pessoa que, como a vítima, tivesse entrado nas instalações da BB e tivesse perecido nas circunstâncias em que ela pereceu, estava ou não abrangida pelo risco prevenido no contrato de seguro? Respondemos afirmativamente, na reflectida ponderação de que, sãmente interpretado, o contrato de seguro abrange o risco inerente à actividade industrial da BB, como procuraremos demonstrar.

A vítima, temerariamente, é certo, percorreu as instalações fabris da ré BB, destinatária de matéria-prima, a quem devia entregar, mas a razão determinante do acidente foi o facto de, no local situado nas instalações da segurada, existirem dois tanques ao nível do chão, cheios de água quente, totalmente cobertos por pequenas esferas destinadas a manter a temperatura da água a 80º graus Célsius. Porque inexistia qualquer sinalização, advertindo para o patente perigo, nem sequer estando interdito o acesso ao local, a vítima caiu num dos tanques sofrendo queimaduras gravíssimas que lhe causaram a morte.

O acidente, numa perspectiva de causa/efeito, acha-se inserido na actividade industrial da BB, sendo a vítima um terceiro. O acidente está coberto pelo risco previsto no contrato de seguro, que abrange a responsabilidade civil extracontratual do segurado, no caso, assente na violação da regras de segurança das instalações fabris, e, ainda, no dever de prevenção do perigo a cargo de quem, como a ré segurada, sob o seu domínio, exercia uma actividade perigosa – art. 493º, nº2, do Código Civil – como é a que, indiscutivelmente, era exercida pela Ré BB, no imóvel onde tem as suas instalações fabris.

As regras de segurança contidas na legislação sobre higiene e segurança no trabalho visam, em primeira linha, a protecção dos trabalhadores de certa entidade patronal, que, ademais, estão civilmente abrangidos pela obrigatoriedade do seguro de acidente de trabalho: se violadas essas normas, em concreto, geram responsabilidade civil, por acção ou omissão do responsável infractor; mas as mesmas normas, reflexamente, protegem terceiros que sofram danos mesmo que não causados por acidente em íntima conexão com a sua actividade no contexto da relação de trabalho, ou seja, um terceiro que, por causa da violação daquelas normas protectoras, seja vítima de acidente, ainda o é por causa da conduta de quem violou as regras de segurança que não foram culposamente observadas.

No caso foi a Ré BB que, exercendo uma actividade perigosa, pela sua conduta omissiva, potenciou o elevado risco de causação de danos, e como tal, não pode a cláusula em apreço ser interpretada de modo a que, com base no contrato de seguro de responsabilidade civil extracontratual, se possa eximir da reparação do dano que ocorreu, como causa adequada da sua actuação culposa por omissão. 

 

O acidente que vitimou EE não é um acidente de trabalho em relação às Rés seguradora e ao seu segurado, antes se reporta à responsabilidade civil extracontratual (e não laboral), relativamente à Ré BB, pelo que não cabe na exclusão prevista art. 4º, nº 1, al. b) do Contrato de Seguro que não comporta os “danos resultantes da inobservância das disposições legais e/ou regulamentares, nomeadamente sobre segurança e prevenção”. Esta previsão apenas excluiria da cobertura do seguro as situações em que o fundamento da indemnização devida pela seguradora resultasse de acidente infortunístico, sofrido por um trabalhador, ao serviço da empresa segurada.

Neste sentido o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10.9.2009 – Proc. 602/04.6TBVFR.S1 – Relator Lopes do Rego – aresto acessível em www.dgsis.pt – citado na decisão recorrida, versando sobre caso com afinidade com a questão em apreço, onde se afirma:

“Na verdade, se se compreende que uma apólice de seguro facultativo de responsabilidade civil possa excluir a cobertura dos acrescidos “riscos profissionais” decorrentes de uma actividade produtiva levada a cabo sob a direcção e ao serviço da própria empresa que figura como tomadora de seguro, já se configuraria como totalmente desprovida de racionalidade a solução que pretendesse precludir a cobertura da responsabilidade civil extracontratual, assumida perante o tomador de seguro relativamente aos típicos riscos de laboração de certa máquina, apenas com base na invocação de uma relação “externa” do lesado com terceiro – e que, de forma insólita, levaria a que a cobertura convencionada quanto aos danos funcionasse ou não exclusivamente em função de um elemento totalmente aleatório e completamente estranho aos riscos assumidos […]”

“ […] No sentido ora propugnado, pode invocar-se o decidido no acórdão, proferido neste Supremo em 4/10/2004 (in CJ, Ano XII, Tomo III/2004, págs. 39 e segs) em que, perante situação análoga à dos autos se entendeu que a cláusula aposta em contrato de seguro de responsabilidade civil, configurável como contrato de adesão, segundo a qual não ficam garantidas as indemnizações devidas nos termos da legislação de trabalho, deve ser interpretada no sentido de que as partes só quiseram excluir da cobertura do seguro as situações em que o fundamento da indemnização devida pela seguradora adviesse de um acidente de trabalho sofrido por um dos seus trabalhadores e não as indemnizações emergentes de acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores de terceiro, mas por factos imputáveis à segurada – acentuando que tal resultado interpretativo é o mais consentâneo, não apenas com o texto da cláusula, mas com os princípios da boa fé e a própria intenção negocial das partes.”

Apreciando a 2ª questão suscitada pela Recorrente:

Discordando da percentagem atribuída, em sede de juízo de conculpabilidade, à vítima e à Ré BB e à Interveniente FF, Lda., – respectivamente de 20% e 80% –, sustenta a recorrente que deveria, antes, ser atribuída a proporção de 50% para aquela e 50% para estas (conjuntamente).

O Acórdão considerou existir culpa da vítima, com fundamento nos seguintes factos:

Com o intuito de descarregar o camião cisterna que conduzia, ao chegar às instalações da ora 1ª Ré, o sinistrado na tentativa de encontrar algum funcionário desta que procedesse às análises da matéria-prima que transportava, entrou na fábrica;

- após percorrer todo o perímetro da mesma numa distância de cerca de 140 metros, entrou num local por trás do laboratório de controlo de qualidade;

- no interior do referido local ao nível do chão encontravam-se dois tanques cheios de água quente – 80º Célsius;

- tendo o sinistrado caído dentro de um daqueles tanques;

- a superfície da água existente nos referidos tanques, encontrava-se totalmente coberta por pequenas esferas, destinadas a manter a temperatura da água a 80º graus Célsius;

- as esferas existentes por cima da água, não permitiam a quem não conhecesse o local, verificar que se estava perante tanques de água quente;

- os tanques em causa não possuíam guarda corpos ou corrimão de resguardo;

- a empresa FF, Lda. encontrava-se a efectuar a instalação dos mencionados tanques;

- a porta de acesso àquelas instalações estava franqueada;

- na hora do acidente a recepção da empresa BB encontrava-se encerrada por ser hora de almoço;

- qualquer indivíduo estranho às instalações deve dirigir-se à recepção.

 - o sinistrado conhecia este procedimento por se ter já deslocado àquela empresa em outras ocasiões;

- sabendo também que para proceder à descarga da matéria-prima esta teria de ser previamente objecto de uma análise por um técnico de laboratório de qualidade da BB;

- após ser retirada a amostra o condutor do camião cisterna ficava a aguardar junto do seu veículo até receber instruções para efectuar a descarga;

- os locais para descarga da matéria-prima ficam a cerca de 20 metros da entrada, ficando o camião cisterna aí estacionado durante a descarga.”

Não sendo possível, nem a reformatio in melius, nem a reformatio in pejus[4], não tendo sido interposto recurso subordinado pela Autora, não pode este tribunal proferir decisão mais gravosa para a recorrente, como seria o caso de considerar que o lesado nenhuma culpa teve na eclosão do acidente, o que agravaria o valor a pagar pelas Rés, ou seja, não pode este Tribunal considerar que o lesado não teve culpa alguma na produção do acidente.

No caso, sempre diremos que a apreciação da culpa do lesado é indissociável da questão do nexo de causalidade entre a sua conduta e o dano sofrido por si, como pressupostos da responsabilidade civil extracontratual – art. 483º, nº1, do Código Civil.

O artigo 570º, nº1, do Código Civil, consigna: “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”.

Dispõe o art. 563.° do Código Civil – “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

Este normativo consagra a teoria da causalidade adequada na formulação negativa de Ennnecerus Nipperdey. Como ensina Antunes Varela, in “Direito das Obrigações em Geral”, I Volume, 7ª edição, pág.885;

“Há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado, isto é, o agente só responde pelos danos para cuja produção a sua conduta era adequada.

Se o agente produziu a causa donde resultou o dano, sem dúvida que a sua conduta é adequada ao resultado, mesmo que, concomitantemente com a sua conduta, haja a conduta de terceiros a concorrer para esse resultado ou, pelo menos, a não o evitar.

Com efeito “desde que o devedor ou lesante praticou um facto ilícito, e este actuou como condição de certo dano”, justifica-se perfeitamente que o prejuízo (embora devido a caso fortuito ou, em certos termos, à conduta de terceiro) recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano”.

Sentenciou este Supremo Tribunal, no Acórdão de 20.6.2006, in CJSTJ, 2006, II, 119: “I – Tal como decorre da redacção do artigo 563º do Código Civil o nosso sistema jurídico acolheu a doutrina da causalidade adequada, a qual, todavia, não pressupõe a exclusividade de uma causa ou condição.

II – Muito embora tal conceito legal comporte qualquer das formulações da referida teoria – na formulação positiva ou negativa –, vem-se, porém, entendendo que, provindo a lesão de um facto ilícito (contratual ou extracontratual), seja de acolher e seguir a formulação negativa, – segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano.

III – Causalidade adequada essa que se refere – e não apenas ao facto ou dano isoladamente considerados – a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano.

IV – Muito embora sejam as circunstâncias a definir a adequação da causa, contudo, não se deve perder de vista, por um lado, que para a produção do dano pode haver a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, e, por outro, que a causalidade não tem necessariamente de ser directa e imediata, bastando que a acção condicionante desencadeie outra condição que, directamente, suscita o dano (causalidade indirecta).

V – Sempre que ocorra um concurso de causas adequadas, qualquer dos seus autores é responsável pela reparação de todo o dano.

VI – No nosso ordenamento jurídico o nexo de causalidade apresenta-se com uma dupla função: como pressuposto da responsabilidade e como medida da obrigação de indemnizar.”

Como ensina o Professor Almeida Costa, in “Direito das Obrigações” – 11ª edição – pág. 766: “Assim como não se impõe que o nexo causal entre o facto e o dano se apresente directo ou imediato, pois basta uma causalidade indirecta ou mediata. Será suficiente, sem dúvida, que o facto, embora não tenha ele mesmo provocado o dano, desencadeie outra condição que directamente o produza, contanto que esta segunda condição se mostre uma consequência adequada do facto que deu origem à primeira.

A solução justifica-se, porque o dano, muitas apenas se torna possível pela intermediação de factores de diversa ordem (factos naturais, acções ou omissões do próprio lesado ou de terceiro), sendo razoável que o agente responda por esses factos posteriores, desde que especialmente favorecidos pela sua conduta ou tão-só prováveis segundo o curso normal das coisas.

 Acrescenta-se, como última observação, que a doutrina da causalidade adequada não postula especificamente a previsibilidade do dano.

Tal previsibilidade apenas será necessária, como sabemos, em relação ao facto constitutivo da responsabilidade, sempre que esta pressuponha culpa do agente, mas não para os danos dele derivados (…)”.

Em termos de causalidade adequada, pese embora a existência de um comportamento que, na perspectiva da exigida actuação prudente pode ser censurado: o facto da vítima não ter aguardado que o veículo transportador da carga destinada à Ré fosse recepcionado por esta nas suas instalações mediante a observação dos procedimentos que a esta competia executar e que não deveria ter percorrido as instalações a pé. Dir-se-ia, que, não fora essa  actuação da vítima, o acidente não teria ocorrido.

 

Mas, em termos de causalidade adequada, poder-se-á questionar se a sua actuação foi a causa adequada, em certo sentido, a causa eficiente, a causa sem a qual o dano não se teria produzido.

 Todavia, porque a causalidade adequada se refere não apenas ao facto ou ao dano isoladamente considerados – mas a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano, não repugna considerar que o lesado, com a sua actuação imprudente, também contribuiu para o acidente, posto que a sua actuação, no confronto com a censurabilidade da actuação da 1ª Ré e da Interveniente, seja muito menos intensa.

O Acórdão não merece censura também no que respeita a esta questão.

Sumário – art. 663º, nº7 do Código de Processo Civil

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 22 de novembro de 2016

Fonseca Ramos - Relator

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

_______________________________________________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.
[2] Certamente querer-se-ia mencionar o art.570º, nº1, do Código Civil.
[3] Artigo 11º – Cláusulas ambíguas: 1 – As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real. 2 – Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.”
[4] “No processo civil, vigoram os princípios da proibição da reformatio in melius (vid. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., 1997, ps. 466 e ss; Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anot., 3. ° vol., tomo I, 2ª ed., 2008, ps. 41 a 43) e da reformatio in pejus (art. 684.4) [agora art.635º,nº4, do nCódigo de Processo Civil], ou seja, o tribunal não pode conceder ao recorrente mais do que ele pede no recurso interposto, assim como a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável ao recorrente do que a decisão recorrida.” – Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª edição Revista e Ampliada/Janeiro 2014, pag.773.