Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
294/12.9TBPTB.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
PREÇO
PAGAMENTO
CONFISSÃO
PROVA TESTEMUNHAL
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
DOCUMENTO
ADMISSIBILIDADE
INDIVISIBILIDADE
INEXACTIDÃO
INEXATIDÃO
CONFISSÃO JUDICIAL
FALTA DA VONTADE
VÍCIOS DA VONTADE
FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS / CONFISSÃO / PROVA TESTEMUNHAL.
Doutrina:
- Antunes Varela e Pires de Lima, “Código Civil” Anotado, Vol. I, 4.ª edição, 342.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 357.º, 358.º, N.ºS 1 E 2, 360.º, 371.º, 393.º, N.ºS 2 E 3, 863.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 674.º, N.º3.
Sumário :
I - A indivisibilidade da confissão (art. 360.º do CC) é afastada quando se prova a inexatidão dos factos confessados desfavoráveis ao depoente; ora isso sucede quando essa inexatidão resulta evidenciada pela análise do próprio contexto da escritura em conjugação com a alegação dos compradores (art. 393.º, n.º 3, do CC), relevando a não impugnação dos compradores de que o preço de venda pelos autores da metade do imóvel não foi no caso vertente pago, não se alegando nem evidenciando a escritura que o preço acordado foi objecto de remissão.

II - Assim sendo, pode considerar-se provado por confissão judicial que o preço estipulado na escritura de compra e venda não foi pago, considerando-se, por tal motivo, anulada a declaração confessória anterior contrária que consta da escritura.

III - Nestas circunstâncias, está prejudicada a discussão em torno da questão de saber se o facto, provado apenas com base na prova testemunhal de que o preço do imóvel não foi pago pelos compradores, deve ser dado como não provado caso se aceite que a declaração constante da escritura de que o preço já foi recebido assume natureza confessória; é que, assim sendo, não é admissível prova testemunhal em contrário por força do disposto nos arts. 358.º, n.os 1 e 2, e 393.º, n.º 2, do CC.

IV - No caso de se considerar que a declaração constante da escritura de que o preço já foi recebido constitui uma declaração confessória, mesmo nesse caso nada obsta à produção de prova testemunhal tendo em vista provar que a vontade dos vendedores, quando declararam, na escritura, já recebido o preço, resultou de erro induzido pelos compradores de que iriam pagar ulteriormente a dívida, confiando os vendedores que assim sucederia.

V - A considerar-se que essa declaração constitui declaração confessória, o que já não é aceitável é dar-se como provado com base apenas em prova testemunhal que o preço não foi recebido a partir do momento em que claudicou a prova dos demais factos alegados tendentes a provar o erro em que o incorreu o declarante vendedor visto que a prova testemunhal apenas é admissível para a prova do erro ou de outro invocado vício de vontade ou da sua falta que haja sido alegado.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. AA e BB intentaram no dia 24-9-2012 ação com processo comum sob a forma ordinária contra CC e DD, EE e FF pedindo a condenação dos RR na restituição da quantia de 68.622,97€, sendo 37.409,84€ de capital e 31.213,13€ de juros vencidos, à taxa legal, bem como os juros vincendos até efetivo pagamento.

2. Os AA outorgaram escritura de compra e venda de metade indivisa de prédio urbano no dia 15-7-1997 pelo preço de 7.500.000$00.

3. Nessa escritura declararam ter recebido o preço, mas tal declaração não corresponde à verdade porque nada receberam.

4. Considerando as relações familiares entre AA e rés, sobrinhas dos AA, o pagamento foi sendo adiado até ao presente.

5. Os réus contestaram considerando ser falso que o preço de venda do imóvel fosse de 7.500.000$00, pois o preço real de venda corresponde à soma de ambas as dívidas transmitidas pelos AA para as Rés CC e EE, ou seja, 8.800.000$00, não tendo, por isso, nada a pagar.

6. Na mencionada escritura de 15-7-1997 intervieram também GG e HH, progenitores das RR CC e EE; intervieram também representantes da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do ... que consentiram na transmissão para as rés da dívida no montante de 4.300.000$00 que é a parte dos AA na dívida contraída pelos AA e pelos progenitores das rés junto da Caixa de Crédito quando da aquisição por eles do imóvel por escritura de 15-7-1993; imóvel de que os AA agora alienaram metade indivisa às sobrinhas; a outra metade continua a pertencer aos pais delas.  

7. Os restantes 4.500.000$00, isto segundo a contestação, foram transmitidos, mediante acordo, pelos AA para as referidas rés, transmissão consentida pelos credores que são os anteriores proprietários do imóvel a quem os AA e os pais das sobrinhas adquiriram o imóvel em compropriedade.

8. Este montante de 4.500.000$00, segundo a contestação, corresponde ao valor em dívida das rés para com as anteriores proprietárias do imóvel que, pela quantia de 25.000.000$00 - valor real, pois o  declarado na escritura de 15-7-1993 junta aos autos foi de 15.000.00$00  -, foi vendido, como se disse, aos pais das rés e aos tios, estes últimos agora autores.

9. Os compradores, assim sendo, pagaram 1.000.000$00 de sinal e 15.000.000$00, valor do preço declarado na escritura respeitante ao imóvel sobre o qual foi contraído mútuo hipotecário.

10. Dos 9.000.000$00 em dívida (25.000.000$00-16.000.000$00), a parte dos autores, tios das rés, era de 4.500.000$00.

11. Foi este valor que também foi acordado ser assumido pelas rés, assim se obtendo o total de 8.800.000$00.

12. Os réus juntaram aos autos a escritura de compra e venda de 15-7-1993 onde constam como vendedores II e JJ e como compradores AA e BB, estes os autores da presente ação, tios das rés, e GG e HH, pais das rés. Dessa escritura consta a compra e venda no dia 15-7-1993 do imóvel pela já mencionada quantia de 15.000.000$00 tendo sido mutuada essa quantia com garantia real sobre o imóvel.

13. Organizada base instrutória, procedeu-se a julgamento tendo sido ouvidas sobre a matéria de facto controvertida as testemunhas arroladas pelas partes.

14. O Tribunal respondeu à base instrutória da forma constante da sentença dando como não provados os factos arrolados pelos RR que incidiam sobre a matéria que constituía a sua contestação e dando como provado o facto 1 infra: que os RR não procederam à entrega aos AA do valor correspondente ao preço de venda do imóvel declarado na escritura no montante de 7.500.000$00.

15. Os RR não põem em causa que não pagaram esta quantia de 7.500.000$00 - "em lado algum […] alegaram terem algum dia entregue aos apelados a quantia correspondente ao preço declarado na escritura de compra e venda do imóvel e que aqueles declararam ter recebido na mesma escritura" - o que é exato, porque consideram que o preço de venda no montante de 8.800.000$00 estava liquidado por força da assunção de dívida dos AA para com a instituição de crédito mutuante (4.300.000$00, valor que consta da escritura) e também para com os vendedores do imóvel (4.500.000$00).

16. Os RR, na apelação, consideram que a prova produzida não permitia dar-se por provado que não procederam à entrega da aludida quantia e mais alegaram que os AA, na petição inicial, se limitaram a alegar que não corresponde à verdade a declaração constante da escritura de que receberam o preço, nenhum outro facto tendo sido aduzido nessa peça, nem posteriormente, de cuja demonstração resultasse a prova de que na formação da vontade conducente à emissão da declaração houvesse qualquer erro ou vício, cumprindo-lhes o ónus da prova de que, declarando ter recebido o pagamento, erraram ou foram vítimas de vício da vontade.

17. O acórdão recorrido, que confirmou a sentença condenatória, salienta que foram os próprios réus que assumiram que nada pagaram no ato da escritura, não pugnando para que se considere provada a matéria alegada que constava da base instrutória; mais considera que o conteúdo das declarações, ou a veracidade das mesmas, não faz prova plena uma vez que o notário não percecionou tais factos.

18. A revista excecional interposta pelos réus com fundamento em contradição na jurisprudência foi admitida. Os acórdãos em confronto são os Ac. do STJ de 15-4-2015 (P.28247/10.4T2SNT-A-L1.S1 - rel. Pires da Rosa -) onde se considera que a declaração por parte do vendedor de que já recebeu o preço admite a prova da sua não correspondência à verdade, cumprindo ao vendedor o ónus da prova desse facto que pode ser feita por qualquer forma maxime a prova testemunhal e o Ac. do STJ de 6-12-2011 (rel. Gregório da Silva Jesus) onde se considera que tal declaração constitui confissão extrajudicial de tal sorte que a força probatória plena pode ser afastada por duas vias, ou por via da alegação da falsidade do título que integra a declaração confessória ou por via da impugnação da confissão extrajudicial mediante a prova da falta ou vícios de vontade que inquinam tal declaração, cumprindo o ónus da prova do não recebimento do preço à vendedora que declarou em escritura ter recebido o preço.

19. A revista excecional foi admitida nestes termos: "no acórdão recorrido entendeu-se que a declaração feita em escritura pública faz prova plena quanto à sua realidade, mas não quanto ao declarado. Assim, este é já da livre apreciação do tribunal. Já no acórdão fundamento, junto aos autos, depois de se consignar, em princípio, o mesmo entendimento, refere-se que, consistindo o declarado no reconhecimento pelo comprador de que já recebeu o preço, estamos perante uma confissão que faz prova plena, a qual só pode ser impugnada alegando a falsidade do documento de que consta, ou algum vício de vontade na declaração. Perante isto é de concluir pela oposição de julgados"

20. Os apelantes concluem a minuta de recurso de revista nestes termos:

1.ª- O presente recurso vem interposto do douto acórdão proferido nos referenciados autos, que confirmou os termos da douta sentença proferida em 1ª instância, julgando procedente a ação interposta pelos ora apelados e, em consequência, condenou os apelantes a pagar aos apelados a quantia de 37.409,84€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde 4 de outubro de 2007 até integral pagamento, pelo facto de nele se considerar que recaía sobre os apelantes o ónus da prova de terem pago aos apelados o preço da compra  do imóvel identificado nos autos, destinado a restaurante, e que estes últimos declararam ter recebido em escritura pública.

2.ª- o douto acórdão, ora sob escrutínio, mostra-se em manifesta contradição com o douto acórdão proferido pela 1ª secção deste Vendº STJ em 6-12-2011, no Proc. n.º 2916/01TACB.C1.S1,já transitado em julgado, obtenível em www.dgsi.pt, relativamente à mesma questão de direito.

3.ª- Questão essa que consiste em saber se a declaração de que o vendedor recebeu a quantia indicada a título de preço pode ser impugnada por qualquer das partes sem necessidade de arguição da falsidade do documento.

4ª- Não merece acolhimento a tese expendida no douto acórdão recorrido, segundo a qual " a declaração de que o vendedor recebeu a quantia indicada a título de preço valerá se, e enquanto o declarante não alegar e provar que a mesma não contém o facto de que o declarante disse conter, podendo tal prova ser feita por qualquer forma, maxime a prova testemunhal".

5.ª- Outrossim, merece total acolhimento a tese expendida no douto acórdão fundamento, segundo a qual a escritura pública de compra e venda, não fazendo prova plena do pagamento do preço aos vendedores, fá-lo, no entanto, da sua declaração de já ter recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas perceções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável e que o artigo 352.º do CC qualifica de confissão.

6.ª- Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autentico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse ato, os vendedores declararam já ter recebido o preço) - cf. artigos 355.º/1 e 4 e 358.º/2 do CC.

7.ª- Se os vendedores alegaram que não receberam o preço, impõe-se, ainda, alegarem a falsidade do aludido documento (artigo 372.º/1 do CC) para, desse modo, afastarem a força probatória plena que advém da confissão nele exarada.

8.ª- Também o artigo 359.º do CC prescreve outra via de impugnação da confissão extrajudicial pela prova da falta ou vícios da vontade que inquinam a declaração constante de documento autêntico.

9.ª- E não basta para infirmar a confissão que o confitente alegue não ser verdadeiro o facto confessado. Para que a confissão seja impugnada há de alegar-se e provar-se que, além de o facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou ou foi vítima da falta ou vício de vontade.

10.ª- No caso dos autos, os AA, ora apelados, na sua petição inicial, limitaram-se a alegar que declararam na escritura terem recebido o respetivo preço, mas que tal declaração não corresponde à verdade, pois nada receberam.

11.ª- Mas, para além disso, os apelados nenhum outro facto aduziram, nem nessa peça, nem posteriormente, de cuja demonstração resultasse a prova de que na formação da vontade conducente à emissão de tal declaração de quitação estivesse qualquer erro ou vício de vontade.

12.ª Demonstrado fica, assim, que o Tribunal a quo ao confirmar a condenação dos ora apelantes no pagamento aos apelados da quantia de 37.409,84€, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde 4 de outubro de 2007 até integral pagamento, fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 352.º, 355.º/1, 358.º/2, 359.º e 372.º/1 do Código Civil.

13.ª- Da correta interpretação, conjugação e aplicação dos normativos atrás referidos resultaria que, para efeitos de condenação dos apelantes, necessário seria que os apelados, para além de alegaram que não receberam o preço de venda do imóvel em causa nos presentes autos, teriam também de alegar, e provar, que na declaração feita em contrário, erraram, ou foram vítimas de vício da vontade - o que não fizeram.

21. Factos provados

A) No dia 15 de julho de 1997, no Cartório Notarial de Ponte da Barca, foi celebrada uma escritura pública de compra e venda e transmissão singular de dívida, lavrada de fls. 36 a fls. 38 verso do Livro de Notas n.° 11 - E.

i. Declararam os autores e GG e HH estar obrigados perante a Caixa Agrícola ao pagamento de todas as importâncias decorrentes de um contrato de empréstimo constituído por escritura lavrada em Cartório Notarial em 18.06.1996;

ii. declararam os ora autores transmitir aos réus a dívida especificada na parte que lhes respeita, no montante de 4.300.000$00;

iii. os AA. declararam vender aos réus o seguinte imóvel: metade indivisa do prédio urbano composto por casa de rés do chão, destinada a atividades económicas, com terreno anexo, sito em Torgueiras, no lugar de ... da referida freguesia de Entre Ambos-os-Rios, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 625, com o valor patrimonial, correspondente à fração de 879.750$00 (4.388,17 €), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número 00049/060490.

- Declararam as partes, no contrato referido em A) iii), que o preço da venda do imóvel seria de 7.500.000$00 / 37.409,84 €.

- Os autores declararam na escritura terem recebido o respetivo preço referido em B).

- As rés CC e EE são sobrinhas dos autores e filhas dos quartos outorgantes da referida escritura, GG e mulher, HH.

B) - Declararam as partes, no contrato referido em A) iii), que o preço da venda do imóvel seria de 7.500.000$00 / 37.409,84 €.

C) - Os autores declararam na escritura terem recebido o respetivo preço referido em B).

D) - As rés CC e EE são sobrinhas dos autores e filhas dos quartos outorgantes da referida escritura, GG e mulher, HH.

E) - Pais e filhas pretendiam adquirir a totalidade do prédio urbano identificado na escritura para poderem, em conjunto explorar um estabelecimento nele instalado denominado Restaurante Snack-Bar KK.

F)- Em virtude das relações familiares entre réus e autores e porque estes queriam desvincular-se quer do prédio urbano quer do estabelecimento comercial nele existente acordaram em celebrar o negócio.

G)- Por escritura pública celebrada em 15 de julho de 1993 no Cartório Notarial de Ponte da Barca, II e JJ declararam vender ao ora autor AA e GG o prédio urbano composto por casa de rés do chão destinado a atividades económicas, com terreno anexo, sito no Lugar da ..., Entre Ambos-os-Rios, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte da Barca sob o número 000.../...90 e inscrito na matriz sob o art. 625 pelo preço de quinze milhões de escudos.

H) - Na escritura referida em G), o BNU declarou conceder aos segundos outorgantes um empréstimo no montante de quinze milhões de escudos, tendo sido constituída hipoteca sobre o imóvel referido em G) a favor do BNU.

1 - Os Réus não procederam à entrega aos Autores do valor referido em B).

Factos não provados

2 - que os Réus se tenham comprometido perante os autores a proceder ao pagamento da quantia referida em B) em julho de 1998;

3 - que os réus se tenham comprometido, posteriormente, a pagar aquela quantia no verão do ano seguinte, prometendo pagar juros aos autores;

4 - que o preço real acordado entre as partes no negócio referido em G) tenha sido de 25.000.000$00;

5 - que o autor e GG tenham entregue às vendedoras referidas em G) 1.000.000$00 a título de sinal, bem como a quantia de 15.000.00$00;

6 - que, à data referida em A), os autores ainda fossem devedores, às primitivas proprietárias do imóvel, de 4.500.000$00;

7 - que, à data referida em A), os autores fossem devedores de 7 500 000$00 à Caixa Agrícola para aquisição do prédio;

8 - que a transmissão para as 2.a e 3.a rés da dívida dos autores para com as primitivas proprietárias do imóvel tenha sido ratificada por estas;

9 - que, desde a outorga da escritura referida em A) até hoje, as 2.a e 3.a rés, bem como os pais das mesmas, tenham pago a II e JJ os juros devidos pela mora, vencidos sobre a quantia de 9.000.000$00;

10 - que autores e réus tenham acordado que o preço real do negócio de compra e venda referido em A) iii) corresponderia à soma de ambas as dívidas transmitidas pelos autores às 2.a e 3.a Rés, ou seja, a 8.800.000$00, fazendo constar da escritura o preço referido em B) por corresponder ao declarado na compra às anteriores proprietárias do prédio.

Apreciando

22. Na ação 2916 a autora reivindicou imóvel que adquiriu à ré; considerou-se, face à declaração constante da escritura de que a ré recebera o preço de 80 mil euros, que cumpria à ré provar, o que não fez, que tal declaração não era verdadeira; não se discutia se a prova testemunhal era ou não admissível tendo em vista provar que o facto declarado não correspondia à realidade por erro, falta ou vício de vontade em que incorrera o comprador.

23. Na ação 28247, face à decisão do Tribunal de que não era admissível prova testemunhal e consequentemente a audição de testemunha por carta rogatória sobre matéria de facto que visava a prova de que, previamente à escritura, fora acordado entre A. e réu que o pagamento seria efetuado posteriormente à outorga da escritura, pagamento que nunca chegou a ser feito porque o comprador faleceu entretanto, não sendo, assim, verdadeira a declaração exarada na escritura pelo vendedor de que já recebera o preço do comprador, a questão que se punha era a de saber se a prova testemunhal, neste contexto de facto em que a declaração fora proferida na base da confiança ditada pelo mencionado acordo, era admissível. Entendeu o acórdão que sim.

24. No entanto, admitida a revista excecional, cumpre agora decidir, vinculados que estamos à decisão, tendo em conta a situação concreta do presente litígio em que nem as partes nem o Tribunal puseram em causa a admissibilidade de prova testemunhal incidente sobre os factos referenciados que se desenrolou na audiência de julgamento.

25. A questão que agora se suscita é a de saber se a prova testemunhal devia ser ou não admitida; tal questão não está precludida e está no âmbito dos poderes de cognição do STJ que deve analisar "se houve ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto […]" (artigo 674.º/3 do CPC).

26. Está em causa o artigo 393.º/2 do Código Civil segundo o qual "não é admitida a prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena".

27. Tem-se entendido que a força probatória plena pode ser afastada por via de prova testemunhal quando se vise demonstrar "a falta ou vícios de vontade com base nos quais se impugna a declaração documentada" (Código Civil Anotado, Antunes Varela e Pires de Lima, Vol I, 4ª edição, pág. 342).

28. Ora sobre este ponto não se vislumbra nenhuma divergência entre os mencionados acórdãos. E, como veremos, a situação em causa nos autos também se reconduz a uma divergência entre o que se declarou  e aquilo que se queria declarar.

29. Os AA alegaram que emitiram na escritura de 15-7-1997 uma declaração contrária à verdade - a declaração de "que pela presente escritura vendem pelo preço de sete milhões e quinhentos mil escudos, já recebido, aos segundos outorgantes […]"; os AA alegaram que acordaram vender a sua parte num imóvel considerando as relações familiares entre todos os intervenientes e a vontade de suas sobrinhas e dos pais destas em adquirir a totalidade do imóvel onde exploravam estabelecimento comercial; mais alegaram que, não dispondo as rés (sobrinhas dos AA) de fundos suficientes, elas garantiram que no ano seguinte, em 1998, pagariam o acordado e os juros respetivos, o que não fizeram, nem tão pouco nos anos subsequentes, não pagando juros, protelando-se tal situação durante vários anos.

30. Sucede, produzida a prova, que não se provou que os réus afinal se tinham comprometido a pagar aos AA o preço acordado de venda do imóvel nem tão pouco se provou que o pagamento dessa quantia foi remitida por terem as rés assumido a dívida dos AA perante o credor hipotecário (dívida de 4.300.000$00) que consta da escritura assim como a dívida dos mesmos AA perante os vendedores do imóvel no alegado montante de 4.500.000$00.

31. Sublinhe-se que o facto de as rés assumirem o pagamento das dívidas dos AA só as eximiria do pagamento do preço estipulado se tivesse sido acordado que o preço da venda seria objeto de remissão face ao montante das dívidas assumidas pelas rés por transmissão singular da dívida. Tal remissão não foi alegada.

32. E, para além de não ter sido alegada, a escritura revela exatamente o contrário porque nela se menciona o preço de venda (7.500.000$00) simultaneamente assumindo as rés o pagamento da dívida dos AA para com a instituição de crédito mutuante, ou seja, de acordo com a escritura de 15-7-1997, titulada "compra e venda e transmissão singular de dívida", os AA ficaram credores do preço e as rés assumiram o pagamento da dívida de 4.300.000$00, portanto, um encargo total de 11.800.000$00. Isto aponta-nos imediatamente para a inexatidão (ver artigo 360.º do Código Civil) da declaração confessória das rés na parte em que sustentam que a eventual assunção de dívida por elas próprias correspondia ao preço de venda que seria de 8.800.000$00, somatório dos 4.300.000$00 com os 4.500.000$00 que os AA teriam em dívida para com as vendedora do imóvel.

33. Ou seja, o Tribunal pode, assim sendo, considerar admitido por acordo o facto de o preço de 7.500.000$00 não ter sido pago pelas rés. 

34. Não ficou provado que os AA, quando proferiram a aludida declaração, incorreram em erro induzidos pela confiança criada pelos RR de que depois da escritura pagariam o preço de venda do imóvel.

35. Não se provou também que os AA emitiram essa declaração porque consideravam que nada tinham a receber dos RR por terem estes assumido o pagamento de dívida dos AA no montante de 4.500.000$00, para além da declarada de 4.300.000$00 que ficou mencionada na escritura, num total de 8.800.000$00, sendo esse afinal o preço verdadeiro da compra e venda.

36. Ficou apenas provado que a declaração constante da escritura não era verdadeira uma vez provado que o preço não foi pago no ato da escritura ponto este de facto sobre o qual não há divergência entre as partes visto que os próprios réus aceitaram que nenhuma quantia foi paga porque o preço da venda correspondia ao somatório das dívidas contraídas pelos AA com a aquisição do imóvel, entendimento que, como vimos, pressupunha a menção correta do preço estipulado para venda - que não podia ser o de 7.500.000$00 - e a alegação, não efetuada, de que a obrigação de pagamento do preço foi remitida pelos AA (artigo 863.º do Código Civil) considerada a assunção de dívida pelas sobrinhas.

37. Tudo isto significa que o Tribunal, a partir dos elementos documentais contantes dos autos e à luz daquilo que foi alegado pelas partes, não pode deixar de concluir que a ulterior confissão judicial dos RR de que o preço não foi pago anula a anterior confissão que consta da escritura - a aceitar-se que estamos face a uma declaração confessória quando, perante o notário e a parte vendedora outorgante, o outorgante comprador declara que recebeu o respetivo preço - podendo, por tal motivo, relevar a prova produzida de que o preço não foi pago: ver facto provado 1 (ver parte final da matéria de facto).

38. Perde, assim sendo, interesse a questão de saber se este facto - o não pagamento do preço -, a admitir-se, por comodidade de raciocínio que ele não se deve considerar adquirido por acordo nos termos expostos, pode relevar, só por si, enquanto facto adquirido por prova testemunhal.

39. Não se duvida de que, face aos termos alegados pelas partes, a prova testemunhal era admissível e ela foi admitida sem qualquer objeção.

40. A questão que se suscita é a de saber se, após produção de prova testemunhal, o facto em causa - que não houve pagamento de preço - provado por testemunhas pode subsistir quando não subsistiu a prova que explicava a razão de ser da emissão dessa declaração de quitação.

41. A resposta é positiva se considerarmos que, alegando os AA que não é verdadeira a declaração constante da escritura de compra e venda de que receberam o preço de venda, viabilizada lhes fica a prova testemunhal tendo em vista a prova do incumprimento do pagamento por se entender, primeiro, que essa declaração não é unívoca (artigo 357.º do Código Civil), impondo-se determinar o seu sentido e, segundo, que ela, tal como foi emitida, não se assume como confissão porque não se deve considerar dirigida à parte contrária, o que sucederia se o declarante mencionasse que dela havia recebido o preço constante da escritura respeitante ao imóvel vendido.

42. No caso vertente exarado na escritura ficou apenas isto: que os AA declararam que " pela presente escritura vendem pelo preço de sete milhões e quinhentos mil escudos, já recebidos, aos segundos outorgantes, o seguinte[…). Já recebidos, mas como? Por cheque? Em dinheiro? Por encontro de contas? Por via de mera declaração a valer como declaração antecipada de quitação?

43. Veja-se, no entanto, no que respeita à assunção da dívida de 4.300.000$00, os termos claros e inequívocos assumidos na escritura na cláusula primeira: "Pelo presente contrato os primeiros outorgantes transmitem aos segundos outorgantes a dívida especificada na parte que lhes respeita, no montante de quatro milhões e trezentos mil escudos, declarando os primeiros outorgantes que conhecem precisamente todos os termos e valores de tal dívida e os segundos que a mesma não lhes suscita qualquer dúvida, reconhecendo todos a regularidade do empréstimo em causa".

44. Em breve síntese dir-se-á que a prova testemunhal é admitida tratando-se de provar que não é verdadeira a declaração exarada em escritura pública de que o preço não foi pago por não estar coberta pela força probatória plena visto que não estamos perante facto praticado pela autoridade ou atestado com base nas perceções da entidade documentadora (artigo 371.º do Código Civil).

45. No entanto, tratando-se de declaração prestada em escritura perante e na presença do outorgante comprador, tem-se considerado que esta declaração assume a natureza de confissão e, assim sendo, não é admissível prova testemunhal porque o facto - a declaração de que o preço foi recebido - está plenamente provada por meio com força probatória plena (artigos 358.º/1 e 393.º/2 do Código Civil).

46. A prova testemunhal, em qualquer destes casos, tem sido admitida, como se disse anteriormente, quando se vise demonstrar " a falta ou vícios de vontade com base nos quais se impugna a declaração documentada".

47. Por isso - e daí bem se evidenciar que não existe in casu a apontada contradição jurisprudencial - o facto de se admitir a prova testemunhal tendo em vista provar que a declaração constante da escritura estava afetada pela falta ou vício de vontade, como sucedeu nestes autos considerando o que foi alegado pelas partes, isso não significa que, produzida a prova e falhando ela na demonstração de que ocorreu o alegado vício de vontade, possa agora, com base exclusivamente na prova testemunhal, considerar-se provado que o preço não foi pago. Foi esta a posição dos recorrentes que vieram sustentar não ser admissível a prova do aludido quesito porque, assim sendo, estava a desrespeitar-se o artigo 393.º/2 do Código Civil.

48. Salienta-se, no entanto, uma vez mais que, no caso vertente, a prova de que não houve pagamento resulta da própria confissão dos réus que é inexata na parte que lhes seria favorável face à sua falta de veracidade comprovada pelos próprios termos que resultam da escritura.

49. Na verdade, nunca os AA nem os RR lavrariam uma escritura nos termos em que o fizeram se o propósito dos AA fosse o de remitirem a dívida. O preço a figurar na escritura nunca poderia ser diverso do montante de 8.800.000$00.

50. Se o preço de venda indicado na escritura fosse de 8.800.000$00, podia considerar-se que a declaração de recebimento desse preço resultara de um acordo de remissão em que se tinha considerado o somatório da assunção de dívida de 4.300.000$00 constante da escritura com a assunção de dívida de 4.500.000$00 não constante da escritura. Mas, no caso, a conclusão contrária é evidente face ao próprio teor da escritura conjugada com a declaração dos RR autodestrutiva nos seus precisos termos, pois da escritura, repete-se, resulta um inequívoco encargo de 11.800.000$00.

51. Daí que, no contexto em causa no presente litígio, com a prova da falta de veracidade da declaração confessória dos réus compradores na parte em que lhes foi desfavorável, situamo-nos na demonstração de que o vendedor, quando declarou recebido o preço, expressou uma vontade de quitação que correspondia, o que era do conhecimento dos outorgantes compradores, a uma declaração de quitação antecipada.

Concluindo:

I - A indivisibilidade da confissão (artigo 360.º do Código Civil) é afastada quando se prova a inexatidão dos factos confessados desfavoráveis ao depoente; ora isso sucede quando essa inexatidão resulta evidenciada pela análise do próprio contexto da escritura em conjugação com a alegação dos compradores (artigo 393.º/3 do Código Civil), relevando a não impugnação dos compradores de que o preço de venda pelos AA da metade do imóvel não foi no caso vertente pago, não se alegando nem evidenciando a escritura que o preço acordado foi objeto de remissão.

II - Assim sendo, pode considerar-se provado por confissão judicial que o preço estipulado na escritura de compra e venda não foi pago, considerando-se, por tal motivo, anulada a declaração confessória anterior contrária que consta da escritura.

III - Nestas circunstâncias, está prejudicada a discussão em torno da questão de saber se o facto, provado apenas com base na prova testemunhal de que o preço do imóvel não foi pago pelos compradores, deve ser dado como não provado caso se aceite que a declaração constante da escritura de que o preço já foi recebido assume natureza confessória; é que, assim sendo, não é admissível prova testemunhal em contrário por força do disposto nos artigos 358.º/1 e 2 e 393.º/2 do Código Civil.

IV - No caso de se considerar que a declaração constante da escritura de que o preço já foi recebido constitui uma declaração confessória, mesmo nesse caso nada obsta à produção de prova testemunhal tendo em vista provar que a vontade dos vendedores, quando declararam, na escritura, já recebido o preço, resultou de erro induzido pelos compradores de que iriam pagar ulteriormente a dívida, confiando os vendedores que assim sucederia.

V - A considerar-se que essa declaração constitui declaração confessória, o que já não é aceitável é dar-se como provado com base apenas em prova testemunhal que o preço não foi recebido a partir do momento em que claudicou a prova dos demais factos alegados tendentes a provar o erro em que incorreu o declarante vendedor visto que a prova testemunhal apenas é admissível para a prova do erro ou de outro invocado vício de vontade ou da sua falta que haja sido alegado.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 17 de março de 2016

Salazar Casanova (Relator)

Lopes do Rego

Orlando Afonso