Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
139/10.4YFLSB.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 09/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDA A PROVIDÊNCIA
Sumário : I - A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no art. 31.º da CRP, tem tratamento processual nos arts. 220 e 222.º do CPP, que estabelecem os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.
II - Nos termos do art. 222.º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de a prisão ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou quando se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial – als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 222.º do CPP.
III - A providência de habeas corpus consiste, contudo, num meio excepcional, como remédio contra situações de imediata, patente e auto-referencial ilegitimidade (ilegalidade) da privação de liberdade, não podendo ser considerado nem utilizado como recurso sobre os recursos ou recurso acrescido aos recursos.
IV - Os requerentes consideram que o prazo máximo de duração da prisão preventiva é de 1 ano e 6 meses, previsto na al. c) do n.º 1 e n.º 2 do art. 215.º do CPP, por a decisão de 1.ª instância ter sido anulada por acórdão da Relação. No entanto, esse entendimento não pode proceder.
V - A existência de condenação em 1.ª instância, ainda que posteriormente anulada pelo Tribunal da Relação, tem reflexos no prazo máximo de duração da prisão preventiva.
VI - O acto nulo, com efeito, não se confunde com o acto inexistente, pois apesar da nulidade o acto foi praticado e existe, e apesar de não produzir ou poder produzir os efeitos que constituem a sua finalidade última, pode ter e tem outros efeitos processuais que decorrem da mera circunstância de ter sido produzido e que ocorrem no momento e em consequência directa da mera produção.
VII - A decisão de 1.ª instância produziu efeitos processuais pelo simples facto de ter sido proferida, nomeadamente, como resulta directamente da lei, o fazer passar o prazo de prisão preventiva do campo de aplicação da al. c) para o âmbito da al. d) do n.º 1 do art. 215.º do CPP.
VIII - E este efeito produziu-se e esgotou-se pelo simples facto de ter sido proferida uma decisão condenatória em 1.ª instância (haver «condenação em primeira instância»), valendo, consequentemente, no processo a partir desse momento, com todas as consequências em tal âmbito de regulação. Tal efeito constituiu-se e fixou-se no processo a partir desse momento, reordenando os prazos máximos da prisão preventiva fixados no art. 215.º do CPP. A produção de efeitos para o futuro – a mudança de fase e de regra processual sobre a duração da prisão preventiva – não é, por isso, retroactivamente afectada pela anulação da decisão da 1.ª instância e a consequente reformulação.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA e BB, arguidos no proc. 1093/08.8 que corre na 5ª Vara Criminal de Lisboa, vêm requerer a providência de habeas corpus, nos termos c com os fundamentos seguintes:
O requerente BB foi detido a 9.02.2009, por indícios da prática dos crimes de violação, rapto e roubo.
O requerente AA foi detido a 12.02.2009, por indícios da prática dos crimes de violação, rapto e roubo.
Por decisão de 12.03,2010, os arguidos foram condenados pela prática de crimes de violação e rapto p. e p. pelos artºs 164° n° l alínea a) e n° l, alínea b), ambos do Código Penal, em penas de prisão de 7 anos e 6 meses e 10 anos.
Desta decisão os arguidos e o Ministério Público interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Por acórdão de 13.07.2010, o Tribunal da Relação julgou parcialmente procedente o recurso, decidindo considerar nulo o acórdão recorrido.
Nestes termos, a decisão proferida pela 5ª Vara Criminal não produz quaisquer efeitos.
Dispõe o art. 215º, n° l, alínea d), do C.P.P. que “A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado”.
É o que sucede no caso.
Ambos os Requerentes se encontram detidos em prisão preventiva desde o mês de Fevereiro do ano de 2009, isto é, ultrapassando o prazo previsto no artigo supra citado e legalmente admissível.
Nestes termos, no deferimento da petição de habeas corpus, pedem a libertação imediata, aos termos do artº 222°, nº l, e nº 2, alínea c), e 223º, nºs. 1, 2, 3° e 4°, alínea d) do CPP.

2. Foi prestada a Informação a que se refere o artigo 223º do CPP.
Pelos elementos transmitidos, verifica-se que o arguido BB foi detido em 9/02/2009, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, iniciado em 10/02/2009.
O arguido AA foi detido cm l1/02/2009, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva em 12/02/2009, na sequência do primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
Por acórdão de 12/3/2010, os arguidos foram condenados, em co-autoria material, pela prática de um crime de rapto p. e p. pelo artº 160°, nº, l, alínea b) do Código Penal e dois crimes de violação p. e p. pelo art º 164º , nº 1, alínea a) do mesmo diploma legal, nas penas únicas de 7 anos e 6 meses de prisão (arguido BB) e de 10 anos de prisão (arguido AA).
Os arguidos interpuseram recurso do referido acórdão condenatório para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 13/07/2010, declarou nulo o acórdão recorrido e ordenou que o mesmo fosse substituído por outro no qual não fosse ponderada na fundamentação da convicção do Tribunal os segmentos das declarações prestadas perante a Mª. JIC nos termos nele tendo em 24 de Setembro ocorrido a leitura do novo acórdão proferido pela 5ª Vara Criminal, em obediência ao acórdão do tribunal superior.
A medida de coacção de prisão preventiva aplicada aos arguidos BB e AA, foi objecto de sucessivos reexames nos termos do disposto no art° 213° do CPP, nos quais foi sempre determinada a sua manutenção, por não se terem alterado os pressupostos de facto e de direito que determinaram a sua aplicação, tendo o último desses reexames ocorrido em 23/08/2010.
A questão suscitada pelos arguidos na petição de habeas corpus havia já sido referida em requerimento apresentado no processo, em relação ao qual foi proferido despacho de que manteve a medida de prisão preventiva aplicada aos arguidos, por considerar que se mantêm os pressupostos de facto e de direito que determinaram a sua aplicação e que não se mostra excedido o prazo máximo de 2 anos estabelecido legalmente para aquela medida, por ter já havido uma condenação em 1ª instância, embora ainda não transitada em julgado.

3. Teve lugar a audiência, com a produção de alegações, cumprindo decidir.
Os elementos do processo relevantes para a decisão estão descritos, de modo desenvolvido, na Informação prestada.

4. A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31º da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220º e 222º do CPP, que estabelecem os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.
Nos termos ao artigo 222º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de a prisão ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou quando se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial – alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222º do CPP.
A providência de habeas corpus consiste, contudo, num meio excepcional, como remédio contra situações de imediata, patente e auto-referencial ilegitimidade (ilegalidade) da privação de liberdade, não podendo ser considerado nem utilizado como recurso sobre os recursos ou recurso acrescida aos recursos.
Os prazos de prisão preventiva constam do artigo 215º do Código de Processo Penal.
Nos termos dos nºs 1, alínea d), 2 e 3 do artigo 215º, quando se proceder por crime punível com pena de prisão superior a oito anos, o prazo máximo de prisão preventiva é de dois anos «sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado».
Os requerentes consideram que o prazo máximo de duração da prisão preventiva é de um ano e seis meses, previsto na alínea c) do nº 1 e nº 2 do artigo 215º do CPP, por a decisão de 1ª instância ter sido anulada por acórdão da Relação.
No entanto, este entendimento não pode proceder. A existência de condenação em 1ª instância, ainda que posteriormente anulada pelo Tribunal da Relação, tem reflexos no prazo máximo de duração da prisão preventiva.
O acto nulo, com efeito, não se confunde com o acto inexistente, pois apesar da nulidade o acto foi praticado e existe, e apesar de não produzir ou poder produzir os efeitos que constituem a sua finalidade última, pode ter e tem outros efeitos processuais que decorrem da mera circunstância de ter sido produzido e que ocorrem no momento e em consequência directa da mera produção.
A decisão de 1ª instância produziu efeitos processuais pelo simples facto de ter sido proferida, nomeadamente, como resulta directamente da lei, o de fazer passar o prazo de prisão preventiva do campo de aplicação da alínea c) para o âmbito da alínea d) do nº 1 do artigo 215º do CPP.
E este efeito produziu-se e esgotou-se pelo simples factos de ter sido proferida uma decisão condenatória em primeira instância (haver «condenação em primeira instância»), valendo, consequentemente, no processo a partir desses momento, com todas as consequências em tal âmbito de regulação.
Tal efeito constitui-se e fixou-se no processo a partir desse momento, reordenando os prazos máximos de prisão preventiva fixados no artigo 215º do CPP. A produção de efeitos para o futuro – a mudança de fase e de regra processual sobre a duração da prisão preventiva – não é, por isso, retroactivamente afectada pela anulação da decisão da primeira instância e a consequente reformulação.
A lei fala, com efeito em «condenação em primeira instância», e este acto existiu no processo em determinado momento, e produziu efeitos, que decorriam da lei, logo que a decisão foi proferida, remetendo, em consequência, o processo para outra fase e para outro limite no que respeita aos prazos de prisão preventiva.
A anulação não faz com que o prazo máximo de prisão preventiva seja retrospectivamente reordenado em consequência de acto posterior, por regressão à fase anterior à condenação em 1ª instância, como se não tivesse havido tal condenação. A sentença condenatória proferida em primeira instância, mesmo que em fase de recurso venha a ser anulada pelo Tribunal da Relação, é, pois, relevante para efeitos do estabelecimento do prazo máximo de duração da prisão preventiva e, portanto, tem a consequência da aplicação do prazo previsto nos termos do art°, 215°, n°. l, alínea d) e nº 2 do CPP (cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 2/1/2008, proc. nº 4857/07; de 14/5/2008, proc. nº 1672/2008; de 19/3/2009, proc. nº 46/09.3YFLSB e de 13/4/2009, proc. nº 92/09.7YFLSB) .
Deste modo, tendo os arguidos BB e AA sido condenados em primeira instância nas penas de prisão referidas e embora tal acórdão condenatório não tivesse sido ainda objecto de trânsito em julgado, o prazo máximo de duração da prisão preventiva, nos termos do art°. 215°, n°. l, alínea d) e n°. 2 do CPP, é de para dois anos – o que quer dizer que o prazo máximo da medida de coacção terminará em 9/02/2011 (em relação ao requerente BB) e 11/02/2011 (em relação ao requerente AA).
Não se mostrando excedido o prazo máximo da medida de coacção de prisão preventiva aplicada aos arguidos BB e AA, não se verifica o requisito previsto no art°. 222°, n°. 2, alínea c) do CPP.
A providência de habeas corpus tem de ser indeferida.

5. Nestes termos, indefere-se a providência.

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Setembro de 2010

Henriques Gaspar (Relator)
Armindo Monteiro
Pereira Madeira