Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1561/07. 9TBLRA.C.1.S.1.
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: CONTA SOLIDÁRIA
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
DEPÓSITO BANCÁRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO CÔNJUGE ADMINISTRADOR
Data do Acordão: 02/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMILIA
Doutrina: - Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., 409, 418, nota 1.
- Ângela Cerdeira, in “Da Responsabilidade Civil dos Cônjuges Entre Si”, 2000, p. 122 e nota 285, a citar o Prof. Braga da Cruz, apud “Capacidade patrimonial dos cônjuges” – BMJ, 69-367.
- Antunes Varela, in “Direito da Família”, 435.
- Antunes Varela – RLJ, 115.º-126 e “Direito Matrimonial” I, 1993, 382.
- A. Varela, apud “Das Obrigações em Geral”, 1, 10.ª ed., 470.
- Calvão da Silva in “Direito Bancário”, 348.
- Carlos Lacerda Barata e Fernando Conceição Nunes, in “Direito Bancário”, apud “Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II, 22.
- Galvão Telles “Direito das Obrigações”, 5.ª ed., 161.
- José Ibraimo Abudo, “Do Contrato de Depósito Bancário”, Instituto de Cooperação Jurídica/FDUL, 2004, p. 157 e José Maria Pires, “Direito Bancário”, II, 1995, ali citado.
- Paula Ponces de Carvalho, “Do Contrato de Depósito Bancário”, 139
- Pereira Coelho, in “Curso de Direito da Família”, 1987, p. 478.
- Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família”, I, 4.ª ed., 377.
- Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 322)
- Pinto Coelho, in BMJ 304-449.
– Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., 350.
- Pires de Lima e Antunes Varela ,“Código Civil Anotado”, IV, 3.ª ed., 296.
- Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil”, VI, 1998, p. 122.
- Vaz Serra, “Enriquecimento sem causa B.M.J 81-5 e 82-5.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342º, 473.º, N.º1, 474.º, 487.º, N.º1, 512.º, 516.º 1205.º, 1403.º, N.º2, 1404.º, 1678.º, N.º2, ALÍNEA A), 1680.º, 1681.º, 1682.º-A, 1722.º, 1723.º, 1724.º, 1728.º, N.º 1, 1733.º, 1789.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10 DE JULHO DE 1990 – 077916;
-DE 5 DE NOVEMBRO DE 1998, CJ/STJ 1998 – 3.º - 102;
-DE 22 DE ABRIL DE 1999 – P.º 251/99 – 2.ª;
-DE 12 DE MARÇO DE 2002 – P.º 3484/01 – 6.ª;
-DE 3 DE JULHO DE 2003 – 03 A615;
-DE 14 DE OUTUBRO DE 2003 – P.º 2193/03 – 1.ª;
-DE 16 DE NOVEMBRO DE 2004 – P. 3291 – 1.º;
-DE 11 DE OUTUBRO DE 2005 – 04B1464.
Sumário :
1. O princípio base do regime de comunhão de adquiridos é só fazerem parte do acervo comum os bens adquiridos, a título oneroso, depois do casamento.
2. Residualmente é também comum o produto do trabalho dos cônjuges, os frutos e o valor das benfeitorias úteis dos bens próprios elencados no n.º 1 do artigo 1733.º do Código Civil e o direito de compensação a que se refere o n.º 1 do artigo 1728.º.
3. Os bens comuns – participados por metade pelos cônjuges – constituem uma massa patrimonial, que não uma compropriedade, embora, em certos casos, se lhe apliquem as regras deste instituto.
4. As coloquialmente chamadas “sobras” do casal, mais não são do que as “poupanças”, que tanto podem resultar do produto do trabalho como de frutos ou do valor de benfeitorias úteis de bens próprios.
5. O depósito bancário tem a natureza de depósito irregular, podendo integrar uma relação plural do lado do depositante.
6. Nas contas plurais solidárias qualquer dos depositantes (ou titulares) tem a faculdade de exigir do banco depositário a prestação integral, de tudo o que lhe foi entregue (assim este se liberando para com todos os depositantes).
7. Qualquer depositante pode mobilizar, total ou parcialmente, os fundos que depositou.
8. Tratando-se de depósito colectivo conjunto só pode ser movimentado a débito por todos (ou com autorização) de todos os depositantes.
9. Há que distinguir entre titularidade da conta e propriedade das quantias depositadas mas pela presunção “tantum iuris”, aplicável às contas solidárias do artigo 516.º do Código Civil, na relação interna, os depositantes participam no crédito em partes iguais.
10. O regime da compropriedade é aplicável à comunhão de outros direitos, “ex vi” do artigo 1404.º do Código Civil (sem prejuízo do especialmente disposto para cada tipo de comunhão) sendo de o considerar para todas as situações de contitularidade de contas bancárias, razão porque também lhes é extensível a presunção de participação quantitativa igual ao que se refere o n.º 2 do artigo 1403.º
11. Se o levantamento de uma conta solidária do casal foi efectuado por um dos cônjuges na constância do casamento, e não existindo prova de mandato para administração da metade pertencente ao outro cônjuge, haverá responsabilidade civil do cônjuge administrador.
12. Porém, nestes casos, e por força do n.º 1 do artigo 1681.º do Código Civil, o elemento subjectivo da responsabilidade aquiliana é o dolo (directo, necessário ou mesmo eventual) cuja alegação e prova incumbe ao cônjuge lesado, nos termos do n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil.
13. A responsabilidade civil do cônjuge administrador perante o outro cônjuge é excepcional (afastando-se a mera culpa e as simples omissões) já que, fora das situações do artigo 1681.º, e em nome da estabilidade, harmonia e paz conjugais, não há obrigação de prestação de contas na constância do casamento.
14. Cumpre ao Autor que pede a restituição por enriquecimento sem causa, alegar e provar a deslocação patrimonial em seu desfavor e em benefício do enriquecido sem qualquer suporte legal ou negocial.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA intentou acção, com processo ordinário, contra BB, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 26.406,17 euros, acrescido de juros contados da data em que se apropriou do dinheiro do casal (Março de 2002).

Fundou o seu pedido em acto ilícito ou, subsidiariamente, em enriquecimento sem causa.

Alegou, nuclearmente, que foi casada com o Réu sob o regime de comunhão de adquiridos; que o casamento foi dissolvido por divórcio em 10 de Janeiro de 2003; que, durante o casamento, Autora e Réu eram titulares de contas bancárias sendo que, em Outubro de 2001, ambos tinham aforrado 52.812,33 euros em contas poupança e em títulos; que o Réu, prevendo a ruptura do casal, fez uso daquelas poupanças sabendo que metade era pertença da Autora.

O Réu contestou excepcionando a prescrição e, em impugnação, alegou que a administração era de ambos os cônjuges; que ambos podiam fazer levantamentos e depósitos sem prestarem contas; que parte do depositado nem sequer lhe pertencia pois destinava-se a acertar contas com seu patrão de quem era vendedor e cujo produto das vendas ali depositava; que utilizou parte do depósito para concluir e mobilar a casa do casal; que, quando confrontado com o pedido de separação da mulher, perdeu a cabeça e gastou milhares de euros em casinos.

Na 1ª Instância (Tribunal Judicial de Leiria) a acção foi julgada improcedente e o Réu absolvido do pedido.

A Autora apelou para a Relação de Coimbra mas sem sucesso, já que, e para alem da alteração à matéria de facto, manteve o julgado.

Vem, agora, pedir revista.

E assim conclui a sua alegação:
- Os factos provados resultam numa conclusão de direito que existia uma situação de conflito entre recorrente e recorrido e que os levantamentos da conta comum do casal foram realizadas de forma voluntária pelo recorrido sem o consentimento da recorrente;
- Pelo que violou o seu direito patrimonial e familiar que decorre do artigo 1724.º do Código Civil.
- Quem tem a gestão de uma conta bancária, existindo uma situação de confronto com a parte contrária e procedendo-se ao levantamento de dinheiro de uma conta comum, sem dar explicações ou justificações credíveis para o efeito à contraparte,
- Permite-nos concluir, em termos concretos, como comportamento doloso.
- O dano, para a Recorrente é evidente ficou sem parte do seu património.
- Verificando-se todos os requisitos, impostos pela lei e previstos no art.º483 do Código Civil, deve o Recorrido ser condenado a indemnizar a Recorrente do valor peticionado.
- Da violação do disposto no artº 473 do Código Civil e da existência de enriquecimento sem causa.
- Ainda que se não verificassem os pressupostos da indemnização por actuação ilícita do Recorrido, sempre teria a Recorrente direito a ser ressarcida por efeito do enriquecimento sem causa.
- Estando provado que o Recorrido procedeu ao levantamento dos valores depositados na conta do casal, existe um enriquecimento do Recorrido; que resultou no empobrecimento da Recorrente, ou seja, existe um nexo de causa e efeito entre o enriquecimento de um e o empobrecimento de outro; não havendo causas justificativas para a deslocação patrimonial que se verificou, conforme ficou provado.
- Por aplicação dos princípios do enriquecimento sem causa, sempre a Recorrente deve ser compensada pelo Recorrido no valor peticionado.

Não foram oferecidas contra-alegações.

A Relação deu por assente a seguinte matéria de facto:
A) Autora e Réu casaram a 19 de Setembro de 1992, sob o regime de comunhão de adquiridos.
B) A acção de divórcio deu entrada em 5 de Julho de 2002.
C) O casamento entre autora e réu foi dissolvido por sentença judicial, transitada em julgado no dia 10 de Janeiro de 2003.
D) Durante a constância do casamento, autora e réu eram titulares da conta nº ... do Banco Nacional de Crédito
E) No processo de inventário que correu seus termos por apenso ao processo de divórcio com o nº 610-A/2002, no 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Leiria, réu, na qualidade de cabeça de casal, não relacionou os bens e valores depositados na conta referida em c), facto que foi objecto de reclamação por parte da autora.
F) A reclamação da autora não teve provimento por se ter entendido que o valor reclamado não podia ser relacionado por já não existir aquando da instauração do processo de divórcio.
G) Na conta referida em D) encontravam-se depositadas as poupanças do casal, correspondendo:
a) conta poupança habitação ..., no valor de € 2.538,54;
b) Imoprazo P..., no valor de € 12.682,25;
c) Imoprazo P..., no valor de €20.121,04;
d) Acções, no valor de € 5.905,00;
e) BNC euro taxa fixa, no valor de €7.773,95;
f) BNC valor, no montante de € 3.791,55;
Tudo no total de € 52.812,33. (1º)
H) Os valores referidos na alínea anterior, até Outubro de 2001, foram angariados durante o tempo de casamento por ambas as partes, como resultado do trabalho dos elementos do casal. (2º)
I) Já há alguns meses antes da instauração do inventário, o casal tinha problemas de relacionamento. (3º)
I-1) O réu procedeu ao levantamento de todos os valores referidos em G). (5º)
J) Em Março de 2002, o saldo da conta era de € 3,01. (6º)

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo.
1. Regime de comunhão de adquiridos.
2. Contas colectivas.
3. Responsabilidade civil do cônjuge.
4. Enriquecimento sem causa.
5. Conclusões.

1.Regime de comunhão de adquiridos.

Do acervo factual acima transcrito resulta, apenas – e na parte que, ora, aqui releva – que o casal da Autora e Réu era titular de uma conta bancária, onde estavam depositadas “as poupanças do casal”, que tinham sido angariadas “durante o tempo de casamento por ambas as partes, como resultado do trabalho” dos cônjuges e que o Réu procedeu ao seu total levantamento.

Está também assente que a Autora e o Réu foram casados sob o regime de comunhão de adquiridos.

Numa primeira abordagem, teremos de afirmar que, face ao disposto no artigo 1724.º do Código Civil, quer o produto do trabalho dos cônjuges, quer os bens adquiridos na constância do casamento (para além do estatuído nos artigos 1733.º, n.º 2 e 1728.º, n.º 1 (desde que não excepcionados, v.g., pelos artigos 1722.º, 1723.º e 1728.º do Código Civil) se integram na comunhão, considerando o princípio de que, ao invés da comunhão geral, a ideia base é que, depois do casamento, só se comunicam os bens adquiridos a titulo oneroso.

Nas palavras do Prof. Pereira Coelho (in “Curso de Direito da Família”, 1987, p. 478) “os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela.”

É o que apoda de propriedade colectiva mas que, como veremos adiante, entendemos , poderá reconduzir-se, em termos de regulamentação jurídica, a uma situação de compropriedade.

No entanto, e em sentido mais estrito,dizia o Prof. Antunes Varela ( in “Direito da Família”, 435): “Não há, de facto, identidade nem analogia entre o regime de bens comuns, em matéria de casamento, e o regime dos bens comuns em regime normal de compropriedade.”

Porém, os argumentos utilizados (“interesse individual”; limitação temporal da “cláusula de indivisão”; ausência de livre disponibilidade da quota) podem não relevar quando nos confrontamos com depósitos bancários, e regime legal aplicável, como abaixo iremos explanar.

Indubitavelmente comum é, tal como se disse, o elencado no artigo 1724.º com a tónica no produto do trabalho dos cônjuges, pois que, e como já notava o Prof. Pires de Lima, tal é “destinado, em princípio, à satisfação das necessidades económicas dos cônjuges – e não podia o legislador partir de outro pressuposto, porque legislou para os casos normais e não para as excepções – são razoavelmente de considerar as sobras, se as houver, como comuns, dado que provém da economia de ambos os cônjuges.”

Ora, “sobras” são precisamente o que, hoje, se chama “poupanças” (as “poupanças do casal” – alínea g) dos factos provados) também podendo resultar de frutos, ou do valor de benfeitorias úteis de bens próprios, também bens comuns de acordo com os já citados artigos 1728.º, n.º 1, in fine e 1733.º, n.º 2 da lei substantiva.

Tanto bastaria para concluir que a conta bancária foi provisionada com quantias que integram a comunhão.

Mas a questão não se fica por aqui uma vez que se discute o respectivo levantamento, na constância do casamento ora dissolvido, e em data não abrangida pela retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio, nos termos do n.º 1 do artigo 1789.º do Código Civil.

2- Contas colectivas

2.1 Cumpre, então, abordar o regime dos depósitos bancários.

Trata-se de instituto que tem a natureza jurídica de depósito irregular, por ter por objecto coisas fungíveis, já que em regra é constituído por depósito em dinheiro (artigo 1205.º do Código Civil) – cfr. o Prof. Calvão da Silva in “Direito Bancário”, 348, a insinuar tratar-se de depósito misto mas concedendo poder ser considerado irregular.

Pode, a semelhança de outros contratos nominados (v.g. doação, comodato, arrendamento, mandato) ser uma relação plural ou singular sendo, mais frequentemente plurais, ou colectivas, os depósitos dos cônjuges. (Note-se, aliás, que o artigo 1680.º do Código Civil – na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro) permite a qualquer dos cônjuges, e independentemente do regime de bens, fazer depósitos bancários em seu nome exclusivo e movimentá-los livremente, quando, na primitiva redacção, o cônjuge mulher só podia movimentar livremente tais depósitos “no exercício do governo doméstico, ou como administradora de parte ou da totalidade dos bens do casal).

Em regra, são duas as modalidades das contas colectivas: conjuntas e solidárias.

Neste último tipo de depósito, qualquer dos depositantes – ou titulares da conta – tem a faculdade de exigir a prestação integral, ou seja, o reembolso pelo banco depositário de toda a quantia que lhe foi entregue, ficando este liberado para com todos os depositantes (artigo 512.º do Código Civil).

Tratando-se de depósito colectivo conjunto só pode ser movimentado a débito por todos os depositantes.

Assim, enquanto no depósito solidário um qualquer depositante pode mobilizar, total ou parcialmente, os fundos que depositou, no depósito conjunto, a conta só pode ser movimentada por todos (cfr., com maior desenvolvimento, a Dr.ª Paula Ponces de Carvalho, “Do Contrato de Depósito Bancário”, 139 e Drs. Carlos Lacerda Barata e Fernando Conceição Nunes, in “Direito Bancário”, apud “Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II, 22 e, v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 2005 – 04B1464).

2.2 “In casu”, a conta em apreço é solidária pois, tal como alegou a Autora e o Réu não impugnou, apenas este mobilizou os respectivos fundos depositados sem necessidade de intervenção da recorrente, quer para subscrever cheques, acordos de pagamento, ou, ainda, autorizar e ratificar tais operações.

E assim é (repete-se) nas contas plurais solidárias independentemente de quem seja, de facto ou de direito, dono dos valores depositados (vejam-se os Drs. José Ibraimo Abudo, “Do Contrato de Depósito Bancário”, Instituto de Cooperação Jurídica/FDUL, 2004, p. 157 e José Maria Pires, “Direito Bancário”, II, 1995, ali citado).

É este, aliás, o entendimento “sine discrepante”, do Supremo Tribunal de Justiça. (cfr., “inter alia”, os Acórdãos de 22 de Abril de 1999 – P.º 251/99 – 2.ª; de 12 de Março de 2002 – P.º 3484/01 – 6.ª; de 14 de Outubro de 2003 – P.º 2193/03 – 1.ª; de 16 de Novembro de 2004 – P. 3291 – 1.º) por considerar que a solidariedade releva tão-somente nas relações externas entre os titulares da conta e o banco, não tendo a faculdade de movimentação a ver com a propriedade das quantias depositadas (cfr., ainda, o Prof. Pinto Coelho – BMJ 304-449).

Porém, na relação interna, o artigo 516.º do Código Civil faz presumir que os credores solidários participam no crédito em partes iguais, presunção legal “tantum iuris”, aplicável nas contas solidárias, que não nas conjuntas pois aí não pode qualquer delas exigir o crédito já que, como se disse, o tipo de depósito exige a intervenção de ambos, o que só não acontece havendo solidariedade activa.

Não sendo ilidida essa presunção legal –“tantum juris”- (e embora qualquer dos titulares possa movimentar sozinho a conta) o co-titular que retire quantias é responsável perante os outros pelos direitos que estes têm.

Há, assim, o “distinguo” entre titularidade da conta e propriedade das quantias.

“In casu”, o Réu não só não ilidiu a presunção de compropriedade dos bens (como lhe impunha o n.º 1 do artigo 350.º, n.º 2 do Código Civil) depositados, como a Autora – que a tal não estava obrigada “ex vi” do n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil – logrou provar que a conta fora integrada por bens comuns do casal (“poupanças” angariadas por ambos os cônjuges).

2.3 Aqui chegados, e retomando a conceptualização acima acenada, teremos de aceitar que, mau grado a doutrina citada recusar a nominação de compropriedade aos bens matrimoniais, o certo é que o artigo 1404.º do Código Civil manda aplicar esse regime “à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles.”

A expressão “quaisquer outros direitos” leva a admitir a regra para todas as situações de contitularidade, como é o caso de contas bancárias comuns. (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Julho de 2003 – 03 A615 – e Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., 350).

E um desses princípios é o do n.º 2 do artigo 1403.º a dispor que “os direitos dos consortes ou comproprietários sobre coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se todavia, quantitativamente iguais, na falta de indicação em contrário do título constitutivo.”

Daí que ainda que não se acolhesse a citada presunção do artigo 516.º por se entender que os depositantes não podiam ser credores solidários do banco depositário, teria de atender-se à do n.º 2 do artigo 1403.º, com iguais consequências.

Resulta assim que a Autora e o Réu eram proprietários, cada um, de 50% das quantias depositadas.

3-Responsabilidade civil do cônjuge.

3.1 Feito este percurso, há que reafirmar os factos adquiridos para, de seguida, proceder à exegese imposta: o levantamento do depósito aconteceu na constância do casamento e antes de intentada a acção de divórcio; tratando-se de conta solidária, a recorrente insinua na petição que era apenas o recorrido quem administrava a conta bancária, tudo apontando para uma administração sem que tenha alegado a existência de mandato.

Haverá, então, que apelar para o disposto no artigo 1681.º, n.º 1 do Código Civil.

Dispõe este preceito que o cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto (aqui, da alínea a)) do n.º 2 do artigo 1678.º, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.”

A regra da irresponsabilidade do cônjuge administrador é excepcionada com a actuação culposa, na modalidade de dolo.

Mas, e como acentuam os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (“Código Civil Anotado”, IV, 3.ª ed., 296) “só nos casos mais nítidos e descabelados de actuação prejudicial do cônjuge administrador, se deve conceder ao lesado o direito a indemnização (…) que não quanto às puras abstenções ou omissões.”

Trata-se, pois, e na lição destes Autores de uma limitação “às regras gerais da responsabilidade civil em nome do interesse superior da paz conjugal e da harmonia familiar (…).” (cfr., neste sentido, os Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família”, I, 4.ª ed., 377, acrescentando que “não podem fundamentar pedidos de indemnização os actos meramente culposos; cfr. ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Julho de 1990 – 077916 – a acentuar a responsabilidade “pelos danos intencionalmente causados no património do outro cônjuge” não lhe pode ser pedido por omissões mas só por actos positivos.”).

E fora destas situações, o cônjuge administrador de bens comuns ou próprios do outro cônjuge, não está obrigado a prestar contas na vigência do casamento sendo que já se defendeu (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 1998, CJ/STJ 1998 – 3.º - 102) que tais contas, a abranger toda a administração, podem ser pedidas após a dissolução do casamento.

Daí que o princípio constante da primeira parte do n.º 1 do artigo 1681.º, ao excepcionar uma regra geral por razões que se prendem com a estabilidade e harmonia conjugais (“ (…) entendeu-se que exigir, neste caso, a prestação de contas de um dos cônjuges ao outro, estaria em desarmonia com o sentimento de recíproca confiança que entre eles deve existir, podendo ser, até, que tal exigência viesse a motivar dissensões entre os cônjuges, com grave reflexo no ambiente familiar.” – Cons. Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil”, VI, 1998, p. 122; e no mesmo sentido o Prof. Antunes Varela – RLJ, 115.º-126 e “Direito Matrimonial” I, 1993, 382) só seja excepcionado quanto aos actos de administração dolosos, afastando-se a mera culpa e, como acima se referiu, a responsabilidade por omissões. (veja-se a Dr.ª Ângela Cerdeira, in “Da Responsabilidade Civil dos Cônjuges Entre Si”, 2000, p. 122 e nota 285, a citar o Prof. Braga da Cruz, apud “Capacidade patrimonial dos cônjuges” – BMJ, 69-367).

É, então, restringir o pressuposto constante dos princípios gerais da responsabilidade aquiliana (mera culpa) exigindo o propósito de causar o dano (dolo) quiçá por o cônjuge lesado poder, em casos de culpa, lançar mão da separação judicial de bens da qual, e em casos de “periculum in mora”, daquela lide poder ser instrumental uma medida cautelar que “paralise” a admissão do cônjuge pródigo ou imprudente.

3.2 No caso de conta solidária, em que a lei não exige o consentimento de ambos os cônjuges titulares para a movimentar (ao contrário da alienação de imóveis, ainda que próprios, no regime de comunhão de adquiridos ou, mesmo de oneração, tratando-se da casa morada de família, independentemente do regime de bens – artigo 1682-A do Código Civil) não há invalidade (anulabilidade) por falta de autorização.

Mas o acto pode ser ilícito se o cônjuge administrador fez seu parte do património comum para além da sua quota, sem autorização do outro.

E, então, aplicam-se as regras da responsabilidade civil, sendo que, como se disse, o elemento subjectivo é o dolo (“intencionalmente praticados”).

O recorrido confessou na sua contestação que, por a recorrente lhe ter inesperadamente anunciado “que se queria separar”, “ficou de cabeça perdida” e “fruto também de algumas companhias menos próprias que na altura arranjou, tendo inclusivamente gasto alguns milhares de euros em casinos, em especial na Figueira da Foz” (artigos 28.º e 29.º - fls. 29 e 30).

Mas foram considerados não provados os seguintes artigos da base instrutória (cfr. fls. 88 e 235) que poderiam relevar:
“7) Levantamentos tais sem conhecimento da Autora e fazendo-os unicamente seus?
8) Ocultando o destino do dinheiro, nunca tendo entregue à Autora qualquer quantia?
13) O casal tinha um empréstimo pessoal que o Réu utilizou para finalizar a casa onde viviam e para comprar móveis?”

A Relação alterou a resposta negativa ao ponto 5 para a redacção ora I-1.

Os factos não provados nem sequerimplicam a prova do contrário.

Ora, a Autora não alegou que o Réu teve o propósito de a lesar, antes se limitando a dizer que “decidiu fazer desaparecer as poupanças do casal” ao prever “ a situação de ruptura” (artigo 10 da PI) que fez suas “de forma indevida e de má fé” (artigo 13 da PI) tendo actuado “de forma ilícita” (artigo 15 da PI) e ocultando-lhe o destino do dinheiro, nunca lhe tendo entregue qualquer quantia (artigo 16 da PI).

Não há, em consequência, alegação de factos que integrem o elemento subjectivo exigível e que seria o dolo directo, ou até mesmo o dolo necessário ou, no limite, o dolo eventual, traduzidos, respectivamente, na actuação para atingir um fim ilícito (ou para omitir um comportamento devido); ou quando “num acto de duplo efeito, o agente pretende atingir um fim lícito, mas sabe que a sua acção determinará, inevitavelmente, o resultado ilícito.” (cfr. Prof. Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 322); ou, finalmente, que o recorrido actuou numa perspectiva de um fim lícito, mas com a consciência de que do seu acto pudesse resultar um ilícito, querendo, não obstante, a sua produção.

Na falta desse requisito – e inexistindo factos alegados que permitam o uso da faculdade de reenvio do artigo 729.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, improcede o segmento recursório referente à indemnização por responsabilidade civil.

4-Enriquecimento sem causa.

Outrossim, não poderia proceder o pedido subsidiário de restituição por enriquecimento.

Seria necessária a demonstração de um locupletamento sem suporte legal ou negocial.

Trata-se de uma fonte autónoma de obrigações prevista no n.° 1 do citado artigo 473.° que pressupõe um enriquecimento obtido à custa de outrem sem que se perfile qualquer causa justificativa, sendo que, tratando-se de causa residual, só releva se a lei não “facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído” (artigo 474.° Código Civil) cf., por todos, os Profs. Vaz Serra “Enriquecimento sem causa B.M.J 81-5 e 82-5; Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., 409, A. Varela, apud “Das Obrigações em Geral”, 1, 10.ª ed., 470 e Galvão Telles “Direito das Obrigações”, 5.ª ed., 161.

A causa da deslocação patrimonial só releva para os efeitos do artigo 473.º, n.° 1 do Código Civil na ausência de relação obrigacional, negocial ou legal e, designadamente, tratando-se de prestação sem qualquer finalidade típica tutelada.

À vantagem patrimonial do enriquecido contrapõe-se o empobrecimento do que foi privado do bem ou do património.

Analisando o requisito da ausência de causa, o Prof. Almeida Costa (ob. cit., 418, nota 1) acentua: “Por causa de uma prestação pode entender-se: ou o fim subjectivo pela qual se efectua a prestação (o cumprimento de uma obrigação, a entrega de um empréstimo, uma atribuição gratuita — ‘causa solvendi, credendi, donandi’ na terminologia latina); ou a relação jurídica de que resulta caber a prestação a quem a recebe. Teremos numa hipótese ou na outra, respectivamente, causa de prestação em sentido subjectivo e em sentido objectivo. Esta segunda modalidade é a que interessa para 21 - efeito de enriquecimento sem causa.”

Deve, finalmente, referir-se que a alegação e prova dos requisitos do enriquecimento cumpre ao empobrecido (artigo 342.º do Código Civil).

Mas como si viu, a Autora não logrou provar que o Réu tivesse feito “unicamente seus” os levantamentos, que nunca lhe tivesse entregue qualquer quantia e que tivesse ocultado “o destino do dinheiro”.

Falta, pois, a demonstração do locupletamento pelo Réu e do consequente empobrecimento da Autora.

Tanto basta para que não se prove o enriquecimento sem causa, afigurando-se desnecessárias outras considerações.

5-Conclusões.

Pode concluir-se que:
a) O princípio base do regime de comunhão de adquiridos é só fazerem parte do acervo comum os bens adquiridos, a título oneroso, depois do casamento.
b) Residualmente, é também comum o produto do trabalho dos cônjuges, os frutos e o valor das benfeitorias úteis dos bens próprios elencados no n.º 1 do artigo 1733.º do Código Civil e o direito de compensação a que se refere o n.º 1 do artigo 1728.º.
c) Os bens comuns – participados por metade pelos cônjuges – constituem uma massa patrimonial, que não uma compropriedade, embora, em certos casos, se lhe apliquem as regras deste instituto.
d) As coloquialmente chamadas “sobras” do casal, mais não são do que as poupanças, que tanto podem resultar do produto do trabalho como de frutos ou do valor de benfeitorias úteis de bens próprios.
e) O depósito bancário tem a natureza de depósito irregular, podendo integrar uma relação plural do lado do depositante.
f) Nas contas plurais solidárias qualquer dos depositantes (ou titulares) tem a faculdade de exigir do banco depositário a prestação integral, de tudo o que lhe foi entregue (assim este se liberando para com todos os depositantes).
g) Qualquer depositante pode mobilizar, total ou parcialmente, os fundos que depositou.
h) Tratando-se de depósito colectivo conjunto só pode ser movimentado a débito por todos (ou com autorização) de todos os depositantes.
i) Há que distinguir entre titularidade da conta e propriedade das quantias depositadas mas pela presunção “tantum iuris”, do artigo 516.º do Código Civil,aplicável ás contas solidárias na relação interna, os depositantes participam no crédito em partes iguais.
j) O regime da compropriedade é aplicável à comunhão de outros direitos, “ex vi” do artigo 1404.º do Código Civil (sem prejuízo do especialmente disposto para cada tipo de comunhão) sendo de o considerar para todas as situações de contitularidade de contas bancárias, razão porque também lhes é extensível a presunção de participação quantitativa igual ao que se refere o n.º 2 do artigo 1403.º
k) Se o levantamento de uma conta solidária do casal foi efectuado por um dos cônjuges na constância do casamento, e não existindo prova de mandato para administração da metade, pertencente ao outro cônjuge, ali depositado, haverá responsabilidade civil do cônjuge administrador.
l) Porém, nestes casos, e por força do n.º 1 do artigo 1681.º do Código Civil, o elemento subjectivo da responsabilidade aquiliana é o dolo (directo, necessário ou mesmo eventual) cuja alegação e prova incumbe ao cônjuge lesado, nos termos do n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil.
m) A responsabilidade civil do cônjuge administrador perante o outro cônjuge é excepcional (afastando-se a mera culpa e as simples omissões) já que, fora das situações do artigo 1681.º, e em nome da estabilidade, harmonia e paz conjugais, não há obrigação de prestação de contas na constância do casamento.
n) Cumpre ao Autor que pede a restituição por enriquecimento sem causa, alegar e provar a deslocação patrimonial em seu desfavor e em benefício do enriquecido sem qualquer suporte legal ou negocial.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Fevereiro de 2011

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho