Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
30657/23.8T8LSB-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO (RELATORA DE TURNO)
Descritores: HABEAS CORPUS
PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
ACOLHIMENTO RESIDENCIAL
REVISÃO
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
TERMO
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DESCRETAMENTO
Sumário :

I. A medida de acolhimento residencial não tem uma finalidade punitiva, não é uma medida de detenção, é sim uma medida de promoção de direitos e de protecção de perigo. Mas logrando repercutir-se numa limitação da liberdade de movimentos, pode considerar-se ainda abrangida pela providência de habeas corpus.

II. É de indeferir a providência quando se constata que a medida de acolhimento residencial se encontra legalmente prevista, foi aplicada por decisão judicial, e não se mostram excedidos os prazos legais (arts. 37.º, n.º 3, e 62.º, n.º 1, da LPCJP).

III. O habeas corpus distancia-se da figura dos recursos, modo de reacção processual que se encontra aliás previsto no art. 123.º da LPCJP.

Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 30657/23.8T8LSB-A.S1

1. Relatório

1.1. No processo n.º 30657/23.8T8LSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores - ..., AA e BB, progenitores da menor CC, vieram apresentar pedido de habeas corpus, subscrito por mandatária, ao abrigo do disposto no art. 222.º, n.ºs 1 e 2, al. c), n.º 2, do CPP, com os fundamentos seguintes:

“Dos fundamentos da admissibilidade

I) - Por decisão do Tribunal a quo, procedeu-se em ........2023 à aplicação de medida provisória de medida de Acolhimento residencial da menor CC pelo período de 3 meses.

II) Volvidos 3 meses, que findaram em ........2024, a menor mantém-se em acolhimento residencial ao abrigo da medida provisória, contudo sem despacho de prorrogação para o efeito.

Ou seja, pese embora a medida tenha sido aplicada em ........2023, por 3 meses, o certo é que volvido tal lapso temporal inexiste qualquer despacho de prorrogação da mesma, conforme se impõe legalmente, persistindo o acolhimento residencial da menor para além do prazo estipulado por decisão judicial aplicada em ........2023.

IV) Sendo certo que não obstante os vários requerimentos apresentados, até ao presente os progenitores sequer foram ouvidos nos autos!

V) Mantendo-se a menor com aplicação de medida cautelar mais gravosa, para além do judicialmente determinado e sem que tal se justifique, em franco prejuízo da menor e dos progenitores!

Mostrando-se assim violados os princípios da proporcionalidade e da prevalência da família, que pressupõem, o segundo, a existência duma família capacitada para assegurar o bem-estar dos menores e mantê-los afastados dos perigos que os possam afectar e, o primeiro, uma intervenção adequada à situação real verificada.

VI) Pelo que se entende, sendo jurisprudência maioritário do STJ que se aplica ao presente caso o instituto jurídico de Habeas Corpus visando a imediata restituição da menor à liberdade (artigos 4.º. alínea h), 34.º, alíneas a) e b), 35.º, n.º1, alínea f), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) e 13.º e 31.º da Constituição da República Portuguesa).

VII) Em consonância com o disposto art. 31.º da Constituição da República Portuguesa, e bem assim o disposto no art.222.º, n. º 2, do Código de Processo Penal, estabelece como pressupostos de habeas corpus, em virtude de prisão ilegal:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.».

Com o acórdão do S.T.J. de 18-01-2017 (proc. n.º 3/17.6YFLSB, in www.dgsi.pt), passou a admitir-se, também, a aplicação do regime penal de habeas corpus à medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, podendo ler-se, nos primeiros pontos do sumário desta decisão:

“I - Não obstante a medida de promoção e proteção prevista no art.35.º, n.º 1, al. f), da LPCJP, ter por finalidade o afastamento do perigo em que a criança se encontra e proporcionar-lhe as condições favoráveis ao seu bem-estar e desenvolvimento integral, ela não deixa de traduzir uma restrição de liberdade e, nessa medida, mesmo que não caiba nos conceitos de “detenção” e de “prisão” a que aludem os arts. 220.º e 222.º do CPP, configura uma privação da liberdade merecedora da proteção legal concedida pela providência extraordinária de “habeas corpus”, sob pena das ilegais situações de excesso da sua duração, por decurso do seu prazo máximo de duração (6 meses) ou por omissão de revisão (findos os 3 meses), ficarem desigualmente protegidas em relação aos casos de detenção ou prisão ilegais.

II - Daí que, embora o CPP, nos seus arts. 220.º e 222.º, n.º 1, preveja apenas a medida de habeas corpus para a detenção e prisão ilegais, atenta a filosofia subjacente a estas normas, tem-se por adequado aplicar, ao abrigo do disposto no art.4.º do CPP e por analogia, o regime do “habeas corpus” previsto no citado art.222.º ao caso dos autos, ou seja, à medida de provisória de acolhimento residencial do menor, sob pena de situações análogas gozarem de tratamento injustificadamente dissemelhante, com a consequente violação do princípio da igualdade consagrado no art.13.º da CRP.”.

IX) assim , não obstante a finalidade da medida de acolhimento residencial constituir uma realidade distinta das situações específicas a que se reporta o instituto do habeas corpus, considerou o STJ que a medida é aplicável num caso de limitação ou restrição da garantia de liberdade, socorrendo-se de entre outros textos legais do citados artigos 27.º, n.º3 da C.R.P., que admite a privação da liberdade através da “sujeição do menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente”, do art.5.°, n.º1 da CEDH , que dispõe que “ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal», incluindo o caso de «Se se tratar da detenção legal de um menor, feita com o propósito de o educar sob vigilância, ou da sua detenção legal com o fim de o fazer comparecer perante a autoridade competente” (alínea d)).

X) No mesmo sentido, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09-06-2021 (proc. n.º 6/21.6T1PTG.S1) e de 23-07-2021 (proc. n.º2943/20.6T8CBR-A.S1), acrescentando como argumentos, designadamente, a definição ampla de privação da liberdade que resulta do ponto 11 do Anexo, relativo às Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 45/113, de 14.12.1990 - «privação de liberdade significa qualquer forma de detenção, de prisão ou a colocação de uma pessoa, por decisão de qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra autoridade pública, num estabelecimento público ou privado do qual essa pessoa não pode sair pela sua própria vontade» - e o art.37.º, alínea d) da Convenção Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21.9.1990, enquanto dispõe que «A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre a matéria.».

XI) Falando-se mesmo numa intolerável violação do princípio da igualdade, consagrado no art.13.º da Constituição da República Portuguesa, não admitir o regime de habeas corpus em situações de sujeição do menor a medidas de proteção, como a de acolhimento residencial.

XII) Pese embora a natureza e finalidades da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, entendemos, como cremos ser o entendimento da maioria da jurisprudência do STJ que originando esta medida uma compressão do direito da criança à unidade familiar, é equiparável, de algum modo à prisão e detenção ilegal para efeitos de aplicação do regime do “habeas corpus”.

XIII) O art. 36.º da Constituição da República Portuguesa, ao tutelar a família, o casamento e a filiação, no capítulo dos «Direitos, liberdades e garantias», impõe ao legislador um específico dever de proteger a família e as crianças, garantindo a estas o direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao desenvolvimento da sua personalidade integral.

XIV) A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, que tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, estabelece sobre a legitimidade daquela intervenção, no seu art.3.º, com interesse para a decisão:

«1 - A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.

2 - Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações: (…);

c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequada à sua idade e situação pessoal;».

XV) Os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo são, nos termos do seu art.4.º: o interesse superior da criança; o da intervenção mínima; o das responsabilidades parentais; do primado da continuidade das relações psicológicas profundas; e da prevalência da família. De acordo com o disposto no art.34.º, da LPCJP, «As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo visam:

a) Afastar o perigo em que estes se encontram;

b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;

c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.».

XVII) Estas medidas de promoção e proteção encontram-se elencadas nas alíneas a) a g) do n.º 1 do art.35.º da LPCJP, constando a medida de «acolhimento residencial» da alínea f).

XVIII) A medida de «acolhimento residencial» consiste, nos termos do art.49.º da LPCJP, «..na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados (n.º1), e tem como finalidade «…contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral» (n.º2).

XIX) O «acolhimento residencial» tem lugar em casa de acolhimento e obedece a modelos de intervenção socioeducativos adequados às crianças e jovens nela acolhidos (art.50.º, n.º1), ou seja, esta medida retira o exercício das responsabilidades (e guarda da criança) a quem não se encontra em condições de as exercer, entregando-as a uma instituição terceira.

XX) À exceção da medida de «confiança a pessoa selecionada para a adoção a família de acolhimento ou a instituição com vista a adoção», a que alude a g) do n.º 1 do art.35.º da LPCJP, todas as medidas de promoção e proteção podem ser decididas a título cautelar. É o que resulta do art.35.º, n.º 2 da LPCJP, ao dispor que «As medidas de promoção e de proteção são executadas no meio natural de vida ou em regime de colocação, consoante a sua natureza, e podem ser decididas a título cautelar, com exceção da medida prevista na alínea g) do número anterior.».

XXII) Sobre as circunstâncias em que podem ser aplicadas medidas cautelares estabelece o art.37.º, n.º1 da LPCJP: «A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.».

XXIII) O art.92.º, n.º1 da LPCJP, a que alude o art.37.º, n.º1 da mesma Lei, dispõe, designadamente, que o tribunal, a requerimento do Ministério Público, quando lhe sejam comunicadas situações de existência de perigo atual ou iminente para a vida, ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem e na falta de consentimento, designadamente dos detentores das responsabilidades parentais, profere decisão provisória, no prazo de quarenta e oito horas, confirmando as providências tomadas para a imediata proteção da criança ou do jovem, aplicando qualquer uma das medidas previstas no artigo 35.º ou determinando o que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem.

XXIV) Por fim, quanto à duração das medidas cautelares, dispõe o art.37.º, n.º3 da LPCJP, que «As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.».

XXV) Ora, se atentarmos no supra exposto constatamos que à menor foi aplicada medida provisória de acolhimento em residência, pelo prazo de 3 meses, em 18.12.2023, sendo que decorrido tal prazo nada mais foi dito pelo tribunal, o que configura uma situação de privação ilegal da liberdade da menor sua filha, ao abrigo do art.222.º, n.º2, al. c), do C.P.P., ) Porquanto, se encontram ultrapassados os prazos legais, impostos por decisão judicial da medida cautelar aplicada, ( 3 meses), cfr. despacho proferido nos autos em 18.12.2023, sem que tal prazo tenha sido revisto ou prorrogado!

XXVII) Em face do regime legal exposto, conclui-se que a menor se encontra sujeita à medida provisória de acolhimento em residência se encontram numa situação análoga à de quem se encontra ilegalmente preso, fundada no facto de se manter a medida aplicada para além do prazo fixado na decisão judicial., art. 222º nºs 1 e 2 al. c) do CPP. (…)

Termos em que, deve o presente procedimento de Habeas Corpus ser julgado procedente por provado e, em consequência ser determinada a ilegalidade da medida de acolhimento residencial aplicada à menor desde 18.03.2024.”

1.2. A informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP é a seguinte:

“Os progenitores da jovem CC, nascida a ........2007 (16 anos de idade), fundamentam a presente providência de habeas corpus no disposto no artigo 222º, ns.º 1 e 2, alínea c), do código de processo penal, invocando que a medida cautelar de acolhimento residencial aplicada em benefício da jovem não foi revista decorridos três meses sobre a sua aplicação.

Porém, tal fundamento não se verifica.

Conforme resulta dos autos:

a) a presente ação de promoção e proteção foi instaurada no dia ........2023, por, segundo se alega, a jovem vivenciar situação de perigo decorrente de ação dos progenitores, porquanto, sendo de etnia cigana, pretendem casá-la com um noivo “destinado”, não a deixando fazer essa escolha nem prosseguir os estudos, o que lhe terá gerado tristeza e levado a ingerir quantidade não apurada de comprimidos paracetamol, seguindo-se uma “queda” no domicílio, de 10 degraus, donde terá resultado um traumatismo parieto occipital e outro na região lombo sagrada, obrigando-a a internamento hospitalar – cfr. fls. 2-4 e expediente vindo da CPCJ, junto à plataforma eletrónica citius;

b) por decisão datada de ........2023, foi aplicada, em benefício da jovem, a medida de acolhimento residencial a título cautelar e pelo período de três meses, por se indiciarem os factos que fundamentaram a situação de perigo alegada - cfr. fls. 5-6 dos autos;

c) a jovem manteve-se internada no serviço de Pediatria do Hospital...até ao dia ........2024, data em que foi acolhida na ..., onde se adaptou, retomou a escola e recebe visitas dos progenitores, dos avós e dos irmãos - cfr. fls. 55, 57-58 e 60V dos autos;

d) a medida de acolhimento residencial foi revista por despacho datado de ........2024 e prorrogada a sua execução pelo período de 3 (três) meses, com fundamento na manutenção dos pressupostos, de facto e direito, que determinaram a sua aplicação- cfr. fls. 71 dos autos;

e) o despacho datado de ........2024 ainda não foi notificado aos progenitores.

Nesta conformidade, sopesada a factualidade indiciada, afigura-se-nos que a medida de acolhimento residencial aplicada em benefício da jovem se mostra devidamente fundamentada, ancorando na proteção da jovem, e que, ao ter sido revista por despacho datado de ........2024, enquanto se procede a melhor diagnóstico da sua situação vivencial e define o seu encaminhamento, foi, ainda assim, revista antes do termo do triénio porquanto a jovem está em efetivo acolhimento residencial desde ........2024, ou seja, há menos que três meses.

Pelo exposto, e em cumprimento do disposto 223º, n.º 1, do código de processo penal, conclui-se, salvo melhor entendimento, que soçobra fundamento que legitime a providência de que os progenitores lançaram mão.”

1.3. Notificados o Ministério Público e a mandatária dos requerentes, realizou-se a audiência na forma legal, tendo-se reunido para deliberação.

2. Fundamentação

O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal, podendo ser requerida pelo próprio detido ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente (art. 31º da CRP).

A petição de habeas corpus tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 222.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (Cláudia Cruz Santos, “Prisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, in RPCC, ano 10, n.º 2, 2000, pp. 303-312, p. 310).

Os autores convergem no sentido de que “a ilegalidade que estará na base da prevaricação legitimante de habeas corpus tem de ser manifesta, ou seja, textual, decorrente da decisão proferida. Pela própria natureza da providência, que não é nem pode ser confundida com o recurso, tem de estar em causa, por assim dizer, uma ilegalidade evidente e actual. (…) O habeas corpus nunca foi nem é um recurso; não actua sobre qualquer decisão; actua para fazer cessar «estados de ilegalidade»” (José Damião da Cunha, “Habeas corpus (e direito de petição «judicial»): uma «burla legal» ou uma «invenção Jurídica»?”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord. José lobo Moutinho et al.), vol. 2, lisboa: uce, 2020, pp. 1361-1378, pp 1369 e 1370).

Constitui também jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a excepcionalidade da providência e a sua distanciação da figura dos recursos. O habeas corpus não é um recurso e não se destina a decidir questões que encontram no recurso o seu modo normal de suscitação e de decisão.

Como exemplo da jurisprudência (constante) do Supremo, pode ver-se o acórdão de 16-03-2015 (Rel. Santos Cabral) – “II - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis. III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP. IV - Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.” (itálico nosso)

Com a presente providência, os requerentes pretendem reagir contra medida de acolhimento residencial (medida cautelar de promoção e protecção), aplicada à sua filha menor, nos termos dos artigos 35.º n.º 1 al. f), 37.º, 49.º, 50.º, n.º 1 e 2, todos da LPCJP.

A medida de acolhimento residencial não tem uma finalidade punitiva, não é uma medida de detenção, é sim uma medida de promoção de direitos e de proteção de perigo. Mas podendo repercutir-se numa limitação da liberdade de movimentos, pode considerar-se ainda abrangida pela providência de habeas corpus.

Assim foi considerado, por exemplo no acórdão do STJ de 02-06-2021 (Rel. Helena Moniz), em cujo sumário pode ler-se: “III - Alguma jurisprudência do STJ tem alargado a providência de habeas corpus a situações que aparentemente parecem idênticas, como as relativas à aplicação de medidas de proteção, assistência ou educação de menor em estabelecimento, ou as de internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento - o que pode ser visto como entendendo a providência de habeas corpus como um meio expedito para reagir a um abuso de poder numa decisão limitativa de direitos fundamentais.”

E assim foi considerado também no acórdão do STJ de 08.09.2021, que teve a mesma relatora do presente.

De todo o modo, a concreta situação de restrição de direitos tem sempre de configurar uma das hipóteses taxativamente previstas no art. 222.º do CPP, sob pena de inêxito da providência.

Preceitua a norma, sob a epígrafe “Habbeas corpus em virtude de prisão ilegal”, que o Supremo tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1). E por força do n.º 2, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Dos elementos que instruem a presente providência, em total correspondência com a informação prestada pela Senhora Juíza do processo nos termos o art. 223.º, n.º 1, do CPP, resulta claro que nenhuma das três circunstâncias ocorre aqui.

Com efeito, a menor encontra-se sujeita a medida de acolhimento residencial prevista no art. 35.º, n.º 1, al. f), da LPCJP, determinada por uma decisão judicial, cuja fundamentação não se mostra questionada na petição, não cumprindo dela conhecer.

O único fundamento apresentado na presente providência consistiria numa alegada ultrapassagem do prazo de três meses sem prolação de decisão judicial de reapreciação da medida. Mas esta alegação não encontra correspondência com a realidade do processo.

A acção de promoção e proteção foi instaurada no dia ........2023; por decisão judicial de ........2023, foi aplicada a medida de acolhimento residencial a título cautelar e pelo período de três meses; a jovem manteve-se internada no serviço de ... Francisco Xavier até ao dia ........2024, data em que foi acolhida na ..., onde se adaptou, retomou a escola e recebe visitas dos progenitores, dos avós e dos irmãos; a medida de acolhimento residencial foi revista por despacho datado de ........2024 e prorrogada a sua execução pelo período de 3 (três) meses, com fundamento na manutenção dos pressupostos, de facto e direito, que determinaram a sua aplicação.

É certo que se refere na informação judicial que “o despacho datado de ........2024 ainda não foi notificado aos progenitores”. Mas esta situação não se confunde com uma ausência de decisão, não se repercute em qualquer falta de controle da medida, nada relevando no âmbito da presente providência.

Do exposto resulta que, contrariamente ao alegado, não se mostram ultrapassados os prazos previstos no art. 37.º, n.º 3 (“As medidas aplicadas têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses”) e no art. 62.º (n.º 1 - “Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 37.º, as medidas são obrigatoriamente revistas findo o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial e, em qualquer caso, decorridos períodos nunca superiores a seis meses, inclusive as medidas de acolhimento residencial e enquanto a criança aí permaneça. (…)”)

Constata-se, assim, que a medida de acolhimento residencial se encontra legalmente prevista, que foi aplicada por decisão judicial, e que não se mostra excedido qualquer prazo legal, não deixando de se reiterar que o habeas corpus se distancia da figura dos recursos, modo de reacção processual que se encontra aliás previsto no art. 123.º da LPCJP.

3. Decisão

Pelo exposto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, do CPP).

Custas pelos requerentes, com 4 UC de taxa de justiça.

Lisboa, 26.03.2024

Ana Barata Brito (Relatora)

Leonor Furtado

João Rato

Moura Magalhães