Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3060/08.2TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
TRADIÇÃO DA COISA
FOTOGRAFIA
DIREITOS DE AUTOR
TRANSMISSÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / COMPROPRIEDADE / DIREITOS E ENCARGOS DO COMPROPRIETÁRIO / ADMINISTRAÇÃO DA COISA.
Doutrina:
-Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, 2.ª Edição, 1958, Volume 4, Tomo I, p. 40 a 43, 170 e 171.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1407.º.
Sumário :
I - O acordo, estabelecido em 1916, entre o fotógrafo A e o Estado (Exército), por via do qual o primeiro executou vários trabalhos da sua arte até 1920, data em que os entregou, negativos e positivos, ao segundo, sem ressalva quanto à pertença, ao uso e à publicação, e o segundo o incorporou com a categoria de Alferes e lhe pagou os vencimentos correspondentes, a alimentação, o alojamento e o transporte, configura um contrato de prestação de serviços no exercício das artes (ao invés de, como pretendido, uma doação) – art. 1407.º do CC de 1867.

II - A entrega do material fotográfico pelo fotógrafo A ao Estado correspondeu à transferência de propriedade e dos direitos de autor referentes à utilização económica dessa obra, interpretação que não viola qualquer preceito constitucional.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 3060/08.2TVLSB.L1.S1

REL. N.º 29[1]

                                                                       *

                               ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

AA e BB intentaram acção declarativa de condenação contra “CC, Unipessoal, Lda.” e “DD, S.A.”, alegando o seguinte:

- A ré A CC editou e publicou, em 2007, na capa e no interior do livro «...», de ..., 12 fotografias, de cujos direitos de autor são titulares, sem a sua autorização e consentimento, colorindo e mutilando a fotografia utilizada na capa, e imputando indevidamente os direitos autorais à ré DD, que forneceu as ditas fotografias.

- Ambas as rés violaram os direitos de autor de natureza patrimonial e moral, causando prejuízos aos sucessores do falecido, ora autores, incorrendo em responsabilidade civil extracontratual, nos termos do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).

Pedem, por isso, a condenação das Rés nos seguintes termos:

a)  A CC no pagamento aos autores de 50% do lucro obtido na venda da obra até à data da propositura da presente acção;

b)  A CC no pagamento aos autores de 50% do lucro obtido na venda da obra a partir da data da propositura da presente ação até a obra se esgotar;

c)  A CC a prestar anualmente aos autores as contas relativamente à venda dos referidos livros;

d) A DD a pagar aos autores uma quantia idêntica à que cobrou da 1.ª ré pela cessão de direitos de reprodução;

e) A DD a pagar aos autores idênticos montantes pela cessão de fotos de BB a que já tenha procedido no passado;

f) Ambas as Rés, a pagarem solidariamente aos autores uma compensação que inclua os honorários dos seus mandatários, bem como o esforço na aquisição de provas, como os livros e assim como o tempo despendido na inventariação e busca das obras do fotógrafo BB num montante não inferior a 5.000,00 e a liquidar no final da presente acção;

g) A custearem solidariamente a publicidade desta decisão judicial, ao abrigo do artigo 211.º­A do CDADC que deve ser inserida num jornal diário de grande circulação nacional;

h) A DD a abster-se de utilizar e ceder, ou seja, de que forma for, as obras de que disponha do fotografo BB, devendo apagá-las da sua base de dados;

i) A CC a retirar do mercado os exemplares da obra “…" que lhe for possível, a não distribuir mais nenhum exemplar nessas condições e não reeditar a obra utilizando as obras de BB, a menos que autorizada, ao abrigo da lei, pelos titulares dos direitos sobre essas mesmas obras.

            A Ré CC contestou, alegando que adquiriu as fotografias à Ré DD, de boa-fé, por julgar ser esta a detentora dos direitos de utilização das imagens em causa, dizendo ainda desconhecer se as fotografias foram recolhidas por BB a título pessoal ou em cumprimento de algum contrato.

Referiu também que a coloração da fotografia da capa do livro não constituiu ataque à integridade da obra e muito menos mutilação e concluiu não se encontrarem preenchidos os pressupostos do alegado direito de indemnização.

A Ré DD também apresentou contestação, dizendo, no essencial, que é titular do direito de exploração económica das fotografias em causa, por as ter adquirido em 2005, mediante contrato de permuta celebrado com o Estado Português, legítimo titular desses direitos.

Foi admitida a intervenção principal dos demais herdeiros de BB e foi também admitida a intervenção acessória do Estado Português, o qual contestou alegando que as 12 fotografias foram realizadas por BB, ao serviço do Exército, no âmbito das funções de que foi incumbido, no período compreendido entre 1916 e 1918.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença na 1ª instância, na qual se julgaram improcedentes os pedidos deduzidos nas alíneas a) a h) do petitório e somente procedente, em parte, o pedido da alínea i), condenando-se a Ré CC a “retirar do mercado os exemplares da obra ‘...’ que lhe for possível, a não distribuir mais nenhum exemplar nessas condições e não reeditar a obra utilizando as fotografias de BB modificadas coloridas ou sem indicação da autoria de BB”.

Dessa decisão recorreram os Autores e a Ré CC.

A Relação de Lisboa julgou improcedentes ambas as apelações e confirmou a decisão da 1ª instância, ainda que com um voto de vencido de um dos Exºs Desembargadores.

Voltam a recorrer, agora, os Autores.

As alegações de revista são rematadas com as seguintes conclusões:

1.        Vem o presente recurso interposto do acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2017 (o ‘Acórdão Recorrido’), que julgou improcedente a apelação dos Recorrentes, confirmando a sentença do Tribunal da 1ª instância.

2.        A admissibilidade do presente recurso de revista resulta, desde logo, da circunstância de o acórdão recorrido ter sido lavrado com um voto de vencido, nos termos dos números 1 e 3 do artigo 671º do CPC.

3.        Em todo o caso, o presente recurso é ainda admissível porquanto o Tribunal a quo, confirmando embora a sentença do Tribunal da 1ª instância, utilizou para o efeito uma fundamentação essencialmente diferente, uma vez que, se o Tribunal da 1ª instância julgou – na sua quase totalidade – improcedente a pretensão dos recorrentes por considerar que o fotógrafo BB havia tirado as fotografias sub iudice no cumprimento da tarefa de que fora incumbido pelo Exército Português, e que por esse motivo os direitos de autor respeitantes às obras fotografias caberiam ao Estado, o tribunal a quo considerou, diferentemente, que o motivo pelo qual os direitos de autor relativos às fotografias caberiam ao Estado seria uma suposta transmissão levada a cabo pelo fotógrafo.

4.        O acórdão recorrido incorreu na nulidade prevista na primeira parte do artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC, por isso que se deixou de pronunciar sobre uma das questões suscitadas pelos recorrentes na sua apelação: a de saber se, tendo as recorridas violado o direito moral de autor relativo às fotografias de BB, não deveria ser arbitrada uma indemnização a favor dos recorrentes.

5.         Com efeito, os recorrentes sustentaram no seu recurso (i) que as recorridas violaram o direito à paternidade, porquanto não associaram o nome de BB às fotografias publicadas, e, bem assim, que a recorrida CC violou o direito à integridade da obra fotográfica colocada na capa da obra de ...; (ii) que as recorridas actuaram com culpa; (iii) que, em consequência, deveriam ser condenadas a pagar uma indemnização aos recorrentes.

6.         Não obstante, o acórdão recorrido – apesar de, em determinado momento, anunciar que o faria – não chegou a apreciar os dois últimos pontos, tendo-se quedado pela ponderação da questão de saber se a recorrida CC havia ou não violado o direito à integridade da obra fotográfica de BB, de resto não retirando qualquer consequência indemnizatória da resposta afirmativa a que acabou por chegar.

7.        O acórdão recorrido enferma também da nulidade prevista na segunda parte do artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC, uma vez que, tendo considerado que a circunstância de o fotógrafo BB ter entregado os negativos ao Exército significaria que teria existido um negócio de transmissão das obras fotográficas – rectius: dos direitos de autor a elas respeitantes – fê-lo porém sem base factual suficiente.

8.        Na sua contestação, o Estado Português invocou a entrega dos negativos como sendo consequência do facto de BB ter tirado as fotografias no âmbito das funções de que fora incumbido, dessa forma sustentando que o motivo pelo qual o direito de autor se teria transmitido para o Estado teria sido a relação decorrente da suposta relação funcional, e não qualquer negócio de transmissão.

9.         Isto é, ao dizer que o fotógrafo BB teria tirado as fotografias no cumprimento de um dever funcional, e que “precisamente por isso” teria entregado ao Exército uma colecção de fotografias, o Estado apenas quis significar que, quando (alegadamente) entregou as fotografias do Exército, o fotógrafo BB fê-lo por tal corresponder ao que é suposto na relação entre comissário e comitente.

10.      Não foi, por isso, alegado qualquer negócio de transmissão dos direitos de autor respeitantes às fotografias.

11.      Não existe, assim, nos autos, alegação de um negócio de alienação celebrado entre BB e o Estado, apenas se verificando a invocação de uma entrega enquanto consequência natural da conclusão de uma “incumbência”.

12.      Mesmo que se aceitasse que, apesar de inexistir qualquer alegação nesse sentido, deveria ser apreciada a questão de saber se existiu negócio de transmissão entre BB e o Estado, teria de se concluir que tal negócio, a ter tido lugar, teria sido gratuito, já que nenhuma contrapartida foi alegada ou provada.

13.      Nos termos e para os efeitos do artigo 1452º do Código de Seabra – norma aplicável à data dos factos – seria, por conseguinte, necessário demonstrar ter existido espírito de liberdade de BB a favor do Estado – facto que não só não foi provado, como não chegou a ser alegado, e que, em todo o caso, não o poderia ser, já que, como o próprio Estado referiu na sua contestação, a entrega dos negativos só ocorreu por a tal estar obrigado BB em virtude da missão de que fora incumbido.

14.      Tendo considerado, sem que a parte interessada tivesse feito a competente alegação e prova, que BB transmitiu os direitos de autor relativos às obras fotográficas por si produzidas, o acórdão recorrido violou os artigos 5º, número 1 e 608º, n.º 2, do CPC, dessa forma incorrendo na nulidade prevista na alínea d) do artigo 615º, n.º 1, do mesmo diploma.

15.       O acórdão recorrido errou também na aplicação do Direito, nos termos e para os efeitos do artigo 674º, n.º 1, alínea a), do CPC.

16.      Um dos princípios estruturantes do Direito de Autor é o da separação entre a obra do espírito (ou o direito de autor a ela respeitante) e o suporte corpóreo em que aquela se materializa (ou o direito real que sobre este incide).

17.      Este princípio encontrava-se já no Código Civil de 1867, uma vez que, por um lado, o artigo 610º determinava que era lícita a publicação de manuscrito sem a autorização do autor – desse modo revelando que, ainda quando se fosse proprietário e possuidor do manuscrito, não se poderia exercer uma das faculdades incluídas no direito de autor.

18.       Por outro lado, o artigo 592º do mesmo Código dispunha que a propriedade literária era imprescritível, com isso significando que não poderia ser objecto de usucapião, o que equivalia a clarificar que a obra do espírito era insusceptível de posse, dada a sua imaterialidade.

19.       Também a Convenção de Berna previa já, à data dos factos, o princípio da autonomia entre o corpus mysticum e o corpus mechanicum da obra do espírito, uma vez que, na versão que vigorava aquando da adesão de Portugal (1911), o artigo 4º determinava que a constituição e titularidade do direito de autor eram independentes de qualquer formalidade, o que significava que a obra do espírito existia desde o momento em que fosse criada, independentemente de qualquer fixação material e de qualquer registo.

20.       Norma da qual se retira que a única exigência constitutiva do direito de autor é a exteriorização da obra do espírito – isto é, a criação de uma forma pela qual se manifeste a ideia subjacente à obra; já a materialização deste num suporte corpóreo surge como mera formalidade, tal como a inscrição ou o depósito da obra num registo público.

21.       Assim, tal como a mera alteração do nome associado à obra no registo público não seria suficiente para que se desse a transmissão do direito de autor a ela respeitante – efeito que sempre exigiria a celebração de um negócio de alienação de tal direito –, também não basta a mera alienação do suporte material para que ocorra a transmissão do direito de autor.

22.       Esta regra viria a ser reforçada com a introdução do artigo 2º, n.º 2, do qual resulta que só quando tal decorrer expressamente da lei é que a protecção jusautoral dependerá da fixação da obra num suporte material.

23.       O princípio da autonomia da obra do espírito em relação ao suporte material significa, entre outros aspectos, que a titularidade do direito sobre a obra é independente da titularidade do direito sobre o suporte corpóreo, pelo que a mera aquisição deste não importa a aquisição do direito de autor respeitante àquela.

24.      Mesmo que se entendesse ter existido qualquer espécie de negócio translativo entre BB e o Estado – o que, recorde-se, não foi sequer alegado, muito menos tendo sido provado –, restaria concluir pela nulidade de tal negócio, por inobservância dos requisitos formais impostos pela lei vigente à data em que tal transmissão teria ocorrido.

25.       Os artigos 1458º e 1459º do Código de Seabra determinavam que a doação deveria ser feita por escritura pública, no caso de bens imóveis, por documento escrito, no caso de bens móveis doados sem tradição da coisa, ou de forma meramente verbal, no caso das doações manuais.

26.       Mesmo admitindo, neste particular, uma aproximação das obras do espírito às coisas móveis – uma vez que, não sendo as criações intelectuais susceptíveis de inclusão directa em qualquer das normas, dada a sua imaterialidade, sempre teriam maiores afinidades com os bens móveis do que com os imóveis –, seria inviável uma doação que não se consubstanciasse num contrato escrito, considerando a impossibilidade de tradição da obra de espírito.

27.       Sendo a tradição das fotografias enquanto criações intelectuais ontologicamente inviável, não ficou provada, não tendo sido sequer alegada, a celebração de qualquer acordo escrito entre o Estado e BB, pelo que qualquer negócio de transmissão, a ter ocorrido, sempre estaria ferido de nulidade.

28.      Por conseguinte, uma interpretação que considerasse que a entrega dos negativos das fotografias ao Estado por parte de BB teria operado a transmissão dos direitos de autor a elas respeitantes violaria não só a lei interna vigente na data dos factos – em particular, os artigos 574º, 592º, 610º e 1458º do Código de Seabra –, como também a Convenção de Berna, nomeadamente o artigo 4º da versão então em vigor.

29.       Por fim, é inconstitucional a interpretação subjacente ao acórdão recorrido – isto é, a interpretação conjugada do artigo 12º do Código Civil, do artigo 2º do Decreto de 18 de Março de 1911, dos artigos 579º, 590º, 602º e 1458º do CC de 1867, e dos artigos 3º, 4º e 7º, § 3º da Convenção de Berna, na versão da Revisão de Berlim de 1908, no sentido de considerar que, à data dos factos, a mera entrega dos negativos de fotografias consubstanciaria uma forma de transmissão dos direitos de autor a elas respeitantes, e de retirar das referidas normas para o caso sub iudice a conclusão de que os direitos de autor relativos às fotografias teriam sido transmitidos por BB para o Estado Português.

30.      Gozando o direito de autor de protecção constitucional no Direito português, por força do artigo 42º, n.º 2, da Constituição, e estando o Estado Português vinculado, nos termos do artigo 8º, n.º 2, da Constituição, a cumprir a Convenção de Berna, que, à data dos factos, como hoje, consagrava o princípio da independência entre o suporte corpóreo e a obra do espírito (rectius: entre o direito sobre o suporte e o direito respeitante à obra), é inconstitucional a interpretação que considere o contrário, e que entenda – como entendeu o acórdão recorrido – que a entrega do negativo de uma obra fotográfica importaria a alienação do direito de autor a ela respeitante.

            O Ministério Público respondeu, pronunciando-se no sentido da improcedência da revista.

            Foram no mesmo sentido as contra-alegações da Ré “A CC”.

                                                                       *

Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes, as questões submetidas a análise são:

a) O acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia?

b) O acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia?

c) A transmissão dos direitos autorais é nula, porque não reduzida a escrito?

d) Foi violado o disposto no artigo 42º da Constituição?

                                                                       *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Das instâncias vêm provados os seguintes factos:

1. BB faleceu em Lisboa aos … de Agosto de 19…, deixando três únicos herdeiros, seus filhos, a saber: EE, FF e GG. (Alinea A) dos Factos Assentes).

2. EE nasceu em 12.09.1911 e faleceu a 11 de Setembro de 1978, no estado de solteiro. (Alínea B) dos Factos Assentes).

3. Faleceu no dia … de Setembro de 19…, no estado de solteiro, sem filhos, tendo deixado testamento no qual institui seu único e universal herdeiro o seu irmão FF casado no regime da comunhão geral com HH, e, na falta deste deixa todos os seus bens, direitos e acções a sua sobrinha II, filha daquele seu irmão. (Alinea C) dos Factos Assentes)

4. À data do falecimento de EE, já o seu irmão e herdeiro FF havia falecido. (Alinea D) dos Factos Assentes).

5.  Consequentemente, sucedeu a EE a sua sobrinha II. (Alinea E) dos Factos Assentes)

6. Por seu lado, FF nasceu a …….19… e faleceu aos ….19…, no estado de casado sob o regime da comunhão geral. (Alínea F) dos Factos Assentes).

7. FF faleceu no estado de casado no regime da comunhão geral com HH, que lhe sobreveio, sem deixar testamento. (Alínea G) dos Factos Assentes).

8. A FF sucedeu-lhe a sua mulher HH, já identificada na alínea anterior e sua filha II. (Alínea H) dos Factos Assentes).

9. Por seu turno, a mulher de FF, que lhe sobreveio e sua herdeira, nascida aos ….19… faleceu ao … de … de 19…, no estado de viúva, não tendo deixado testamento. (Alínea I) dos Factos Assentes).

10. À falecida HH, viúva de FF sucedeu-lhe a única filha de ambos, a já referida II. (Alínea J) dos Factos Assentes).

11. A herdeira II nasceu a … de … de 19…. (Alinea L) dos Factos Assentes).

12. Os Autores são filhos de GG. (Alínea M) dos Factos Assentes).

13. A primeira Ré publicou, em Fevereiro de 2007, uma obra de ... denominada A ..., ilustrada com fotografias da …. (Alinea N) dos Factos Assentes).

14. Da obra referida na alínea anterior constam entre as páginas 640 e 641 da mesma, em folhas não numeradas, doze fotografias. (Alinea O) dos Factos Assentes).

15. A primeira fotografia do livro acima referido tem a legenda:

….. (DD)': (Alinea P) dos Factos Assentes).

16. A segunda fotografia do livro acima referido tem a legenda:

"…,. O . (DD)': (Alínea Q) dos Factos Assentes).

17. A terceira fotografia do livro acima referido tem a legenda:

"…. (DD)': (Alinea R) dos Factos Assentes).

18. A quarta fotografia do livro acima referido tem a legenda:

''O …. (DD)': (Alínea S) dos Factos Assentes).

19. A quinta fotografia do livro acima referido tem a legenda:

''O …. (DD) ': (Alinea T) dos Factos Assentes).

20. A sexta fotografia do livro acima referido tem a legenda: "…. (DD) ': (Alínea U) dos Factos Assentes).

21. A sétima fotografia do livro acima referido tem a legenda:

''…. (DD) ': (Alínea V) dos Factos Assentes).

22. A oitava fotografia do livro acima referido tem a legenda:

''…. (DD)': (Alínea X) dos Factos Assentes).

24.       A nona fotografia do livro acima referido tem a legenda:

"…. (DD)': (Alínea Z) dos Factos Assentes).

25.       A décima fotografia do livro acima referido tem a legenda:

"…. (DD)': (Alínea AA) dos Factos Assentes).

26.      A décima-primeira fotografia do livro acima referido tem a legenda:

"…. (DD) ': (Alínea AB) dos Factos Assentes).

27.      No livro referido encontra-se ainda uma fotografia com a legenda:

" … (DD)." (Alínea AC) dos Factos Assentes).

28.       A fotografia referida no ponto 24 foi colorida e colocada na capa da obra publicada pela primeira Ré, lendo-se na lombada de papel dessa capa o seguinte:

'foto da capa © DD': (Alínea AD) dos Factos Assentes).

29.       As fotografias referidas nos pontos 14 a 28 foram tiradas pelo falecido BB. (Artigo 1 ° da Base Instrutória)

30.      Em 2004, a edição bilingue, a cargo do Estado-Maior do Exército, de um livro intitulado "I…." da autoria do Coronel de Cavalaria JJ, foi ilustrada, desde a capa ao interior, por fotografias de BB. (Artigo 2° da Base Instrutória)

31.       A fotografia referida na alínea P)[2] consta da página 38 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 3° da Base Instrutória)

32.       A fotografia referida na alínea Q)[3] consta da página 40 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 4° da Base Instrutória)

33.       A fotografia referida na alínea R)[4] consta da página 226 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 5° da Base Instrutória)

34.       A fotografia referida na alínea S)[5] consta das páginas 90/91 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 6° da Base Instrutória)

35.       A fotografia referida na alínea T)[6] consta das páginas 158/159 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 7° da Base Instrutória)

36.       A fotografia referida na alínea U)[7] consta das páginas 236/237 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 8° da Base Instrutória)

37.       A fotografia referida na alínea V)[8] consta das páginas 122/123 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 9° da Base Instrutória)

38.       A fotografia referida na alínea X)[9] consta das páginas 20/21 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 10° da Base Instrutória)

39.       A fotografia referida na alínea Z)[10] consta da página 52 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 11° da Base Instrutória)

40.       A fotografia referida na alínea AA)[11] consta da página 106 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 12° da Base Instrutória)

41.       A fotografia referida na alínea AB)[12] consta da página 183 do livro a que alude o artigo 2° da Base Instrutória. (Artigo 13° da Base Instrutória)

42.       A Ré DD foi contactada pelo Capitão do Exército KK que solicitou fotografias sobre a presença das tropas portuguesas no estrangeiro em missões de manutenção da paz. (Artigo 14° da Base Instrutória).

43.       Tais fotografias destinaram-se a ilustrar a obra intitulada "...", editada em … de 2… pela Secção … , prefaciada pelo Presidente … e com o Código ISBN … (Artigo 15° da Base Instrutória).

44.      Foi proposto pelo capitão KK a entrega de fotografias fornecidas pela Ré DD em troca da entrega de fotografias existentes no arquivo do …. (Artigos 16° e 17° da Base Instrutória).

45.       O que foi aceite pela 2a R. (Artigo 18° da Base Instrutória).

46.       O capitão KK entregou à Ré DD um CD com cerca de 20 fotografias. (Artigo 19° da Base Instrutória),

47.       A Ré DD transpôs para o seu arquivo as fotografias constantes do referido CD (Artigo 24° da Base Instrutória),

48.       Posteriormente, no início do ano de 2007, foi a 2.a R. contactada pela 1ª Ré que pretendia consultar o arquivo de imagens no sentido de recolher algumas fotografias sobre a participação do Corpo … ..., com o objectivo de inclui-las na edição portuguesa de uma obra literária do historiador inglês ..., com o título português, "A ...". (Artigo 25° da Base Instrutória),

49.      Seleccionadas as imagens que interessavam à 1ª R. - correspondentes às imagens previamente fornecidas pelo E… - a 2.a R., entregou as fotografias digitalizadas à 1ª Ré. (Artigo 26° da Base Instrutória),

50.      As imagens em causa foram cedidas à 1ª R., nos termos praticados no ramo de actividade das RR., para uma única edição da obra literária em causa (Artigo 27° da Base Instrutória),

51.      A segunda Ré recebeu da primeira Ré pela cedência da fotografia referida no artigo 26° da Base Instrutória a quantia de € 665,50 (Artigo 28° da Base Instrutória),

52.      Em 1916, o Ministro da Guerra, General LL, incumbiu o fotógrafo BB de realizar a cobertura fotográfica dos trabalhos da Divisão de Instrução do Exército Português estacionada em ..., visando a preparação das tropas que interviriam na … sob a designação de .... (Artigos 29° e 30° da Base Instrutória)

53.       Essa incumbência foi formalizada pelo Ofício de 24-06-1916, dirigido ao Comandante da Divisão de Instrução de ..., com o seguinte teor:

"Incumbe-me S. Ex. a O Ministro da Guerra de comunicar a V. Exª para os devidos efeitos que encarregue o fotógrafo BB de tirar as fotografias de assuntos militares que lhe forem indicadas pelo Estado Maior do Campo, devendo ser-lhe fornecidos todos os transportes bem como alojamento e alimentação." (Artigo 31 ° da Base Instrutória),

54.       O fotógrafo BB foi depois incorporado no Exército, graduado no posto de «Alferes», também referido como «Alferes Equiparado», e integrado na Secção Fotográfica do ..., com o qual embarcou para França, em 17 de Fevereiro de 1917. (Artigo 32° da Base Instrutória)

55.       Nessa qualidade e posto militares foram-lhe atribuídas sucessivas missões para «desempenhar serviços da sua especialidade» ou para «ultimar serviços da sua especialidade», que é o mesmo que dizer «desempenhar funções como fotógrafo» (Artigo 33° da Base Instrutória)

56.      Em cumprimento das quais, em 1917 e 1918, o Alferes Graduado BB acompanhou e fotografou o CEP, desde o embarque das tropas em Lisboa, depois, em França, os batalhões a caminho da frente de combate, as visitas das entidades oficiais e as recepções aos Presidentes da República Francesa e Portuguesa, as revistas das brigadas, os encontros dos Estados Maiores (Português, Francês e Britânico), as cerimónias de condecoração dos militares, os exercícios e acampamentos das tropas, o seu quotidiano nas trincheiras da frente de combate na Flandres, a confraternização entre os soldados aliados e a desolação das ruínas e campos de combate. (Artigo 34° da Base Instrutória)

57.       Por incumbência e autorização de deslocação do Estado Maior do CEP, fotografou também o desfile do exército português nos Campos Elísios, em Paris, no dia 14 de Julho de 1918, assim como, depois de terminada a Guerra, fotografou as festas da vitória em Paris, Bruxelas e Londres. (Artigo 35° da Base Instrutória)

58.      Em 24-07-1919, o Alferes Graduado BB foi colocado na «Comissão Portuguesa …», como «fotógrafo», tendo então fotografado as cerimónias de trasladação dos corpos dos militares portugueses para os cemitérios edificados para o efeito. (Artigo 36° da Base Instrutória)

59.       Após o que, ainda ao serviço do Exército Português, realizou a cobertura fotográfica das cerimónias alusivas ao «…», decorridas em Paris, em Novembro de 1920. (Artigo 37° da Base Instrutória)

60.      Foram-lhe pagos pelo Exército todos os vencimentos correspondentes ao período indicado, que lhe eram devidos enquanto militar incorporado no CEF, com o posto de Alferes. (Artigo 38° da Base Instrutória)

61.      Foi-lhe igualmente dispensada alimentação, alojamento e transporte pelo Exército, que também providenciou pela colocação, transporte e evacuação do material fotográfico de que se fazia acompanhar. (Artigo 39° da Base Instrutória)

62.      Em 1921, BB regressou a Portugal acompanhando e fotografando as cerimónias solenes da trasladação do corpo de um soldado anónimo da Flandres para Lisboa, respectiva homenagem e final inumação (em conjunto com outro soldado anónimo proveniente da Guerra em África) na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha. (Artigo 40° da Base Instrutória)

63.       Em 1920, BB entregou ao Exército Português uma «colecção» de fotografias do CEP, por si realizadas naquele período. (Artigo 41 ° da Base Instrutória)

64.       Colecção essa que, incluindo negativos (originais) e positivos (cópias), se encontra sob custódia do Arquivo Histórico-Militar do Exército, órgão que assegura a selecção, estudo e organização da documentação histórica deste ramo das forças armadas, nos termos do art. 23.° n.º 2 do Decreto Regulamentar n." 75/2007, de 3 de Julho. (Artigo 42° da Base Instrutória)

65.       As fotografias dessa colecção entregue ao Exército não foram assinadas por BB, nem há registo de que tenha sido convencionada qualquer ressalva sobre a sua pertença ao Exército ou restrição sobre o seu uso e publicação. (Artigo 43° da Base Instrutória)

66.       Todas as fotografias incluídas no livro referido no artigo 2°[13], sob menção da sua autoria por BB, provieram da respectiva "colecção" do CEP pertencente ao Exército Português. (Artigo 44° da Base Instrutória)

67.      Já em período anterior a Fevereiro de 1917, BB prestava colaboração à imprensa portuguesa, que publicava as suas fotografias com reconhecimento expresso do seu crédito fotográfico, seja pela menção a «Cliché BB» impressa sob as imagens, seja pela inclusão da sua assinatura - «BB» - nas próprias fotografias. (Artigo 45° da Base Instrutória)

68.       A partir de Fevereiro de 1917 e, pelo menos, até finais de 1919, os créditos fotográficos de BB deixaram de ser referidos, ou foram atribuídos a outro fotógrafo, como sucedeu na Revista "Ilustração Portugueza”, ou passaram essas imagens a ser referidas como «documentos photographicos do Serviço Especial junto do Corpo Expedicionário Portuguez em França», como assinalava a Revista quinzenal "Portugal na Guerra", n." 3, de 1917, editada em Paris, cuja ficha técnica precisava: «SERVIÇO PHOTOGRAPHICO ESPECIAL JUNTO DAS TROPAS PORTUGUEZAS EM FRANÇA A CARGO DE BB» (Artigo 46° da Base Instrutória)

69.       Regista-se assim que a fotografia n.º 1 foi publicada na metade inferior da página 15 da Revista "Ilustração Portugueza", IIª Série, n.º 577, de 12 de Março de 1917 (correspondente à página n.º 0021 da respectiva digitalização na Hemeroteca Digital da Câmara Municipal de Lisboa), sob menção a «Clichés MM» (Artigo 47° da Base Instrutória)

70.       A fotografia n.º 2 é sequencialmente idêntica à publicada no topo da página 122 da Revista "Ilustração Portugueza”, IIª Série, n.º 573, de 12 de Fevereiro de 1917 (correspondente à página n." 0004 da respectiva digitalização na Hemeroteca Digital da Câmara Municipal de Lisboa), sem crédito fotográfico atribuído (Artigo 48° da Base Instrutória)

71.       Embora com diverso recorte, a fotografia n.º 5 foi publicada na página 12 da Revista "Portugal na Guerra", n.º 3, editada em Paris, em 15 de Setembro de 1917, retratando o Sr. Ministro da Guerra, General LL, a passar revista às tropas portuguesas em França (Artigo 49° da Base Instrutória)

72.       A fotografia n.º 6 foi publicada no terço inferior da pagina 1 da Revista "Ilustração Portugueza", IIª Série, n.º 620, de 7 de Janeiro de 1918 (correspondente à página n.º 0003 da respectiva digitalização na Hemeroteca Digital da Câmara Municipal de Lisboa), sem crédito fotográfico atribuído (Artigo 50° da Base Instrutória)

73.       O Exército Português a partir do conjunto de fotografias de BB entregues ao Exército Português prestou apoio material à realização das seguintes exposições:

a)         A exposição fotográfica de BB, intitulada "Imagens d...", inserida nas Comemorações do Dia da Unidade do Regimento de Infantaria n.º …, realizada entre … e … de … de 2009, no …, em …;

b)       A exposição "…", organizada pelo Museu da Presidência da República, aquando do Centenário da República, que integrando em cartaz uma fotografia de BB e apresentando, entre imagens doutros fotógrafos, parte das fotografias da sua colecção sobre o CEP existentes no Arquivo Histórico-Militar, esteve patente no Antigo Picadeiro dos Museus da Politécnica, em Lisboa, entre 23-02-2010 e 23-04-2010;

c)         A exposição fotográfica "…", apresentando fotografias de BB e de MM, organizada pela "…" e apresentada no Museu …, …, …, Lisboa, entre 13-11-2010 e 13-02-2011;

d)        A exposição do Centro de Audiovisuais do Exército, incluindo 85 fotografias de BB sobre o CEP, apresentada pela …, com o apoio do Instituto de Camões e do Consulado-Geral de Portugal em ..., entre os dias 6 e 12 de Novembro de 2011, em St. …, ..., França (Artigo 51 ° da Base Instrutória).

            O DIREITO


a) Nulidade da omissão de pronúncia

Nas conclusões 4ª a 6ª da revista, os recorrentes assacam ao acórdão recorrido a nulidade de omissão de pronúncia, consistente na circunstância de não lhes ter sido arbitrada uma indemnização, apesar de ter sido reconhecido que foi violado o direito moral de autor relativo às fotografias de BB.

           O único pedido formulado pelos Autores recorrentes quanto à alegada violação dos direitos morais de autor foi o formulado sob a alínea i) do petitório, ou seja, que a Ré CC fosse condenada a retirar do mercado os exemplares da obra “...” que lhe for possível, a não distribuir mais nenhum exemplar nessas condições e a não reeditar a obra.

           Na 1ª instância, o Mmº Juiz depois de julgar improcedentes os pedidos relacionados com a titularidade dos direitos de autor de carácter patrimonial, escreveu o seguinte:

           “No entanto, os Autores detêm o direito de reivindicar a paternidade das fotografias e a consequente aposição nestas do nome do fotógrafo, e de assegurar a genuinidade e integridade das mesmas, opondo-se a qualquer mutilação, deformação ou outra modificação das mesmas (artigos 9º, n.º 3, 56º, 57º e 167º do C.D.A.D.C.).

            Procede, por conseguinte, o pedido parcialmente formulado na alínea i), já que o corte e coloração da fotografia utilizada na capa e a não colocação da autoria das fotografias por BB infringem os direitos morais de autor de que os sucessores do mesmo são titulares, conferindo-lhes o direito à retirada dos exemplares do livro e à proibição de utilização das fotografias em novas edições para obviar a essa violação”.

            Sequentemente, o tribunal da 1ª instância condenou a Ré CC “a retirar do mercado os exemplares da obra ‘...’ que lhe for possível, a não distribuir mais nenhum exemplar nessas condições e não reeditar a obra utilizando as fotografias de BB modificadas, coloridas ou sem indicação da autoria de BB”.

           O acórdão recorrido confirmou essa parte da sentença quando se pronunciou sobre a apelação interposta pela Ré CC, mas, no final da apreciação da apelação dos Autores e antes de se debruçar sobre aquela, deixou consignado:

           “Em conclusão, a apelação dos autores apenas poderá proceder na parte referente aos direitos morais, demonstrada que esteja a violação da genuinidade e integralidade da foto da capa do livro, questão que se analisa infra, por se tratar de matéria inserida na apelação da ré A CC”.

           Existe na arguição dos recorrentes um equívoco originado pela forma como desenvolveram as alegações e conclusões do recurso de apelação. Na verdade, exorbitando daquilo que era o conjunto de pedidos deduzidos na petição inicial, os Autores/recorrentes avançaram, na conclusão 21ª da apelação, com outros pedidos, designadamente o de que lhes deveria ser paga uma indemnização (iv), a título de compensação, pela violação dos direitos à paternidade e integridade das obras, compensação essa que, pela sua gravidade – muito superior à da infracção de direitos patrimoniais – não devia ser inferior ao dobro do que se apurar, na totalidade, quanto aos pedidos das alíneas (i), (ii) e (iii) dessa mesma conclusão – cfr. fls. 1722.

           Terá sido isto, eventualmente, que projectou nos recorrentes a ideia de que se deveria ter aprofundado a análise dos danos decorrentes da violação dos direitos morais de autor. Todavia, tal análise teria sempre de confinar-se, a final, ao objecto do pedido inicial, como não podia deixar de ser.

           Daí que o acórdão recorrido se tenha limitado a confirmar a decisão da 1ª instância no tocante à única vertente do petitório onde se arrumava tal matéria – a alínea i).

            Improcede, pois, a arguição da nulidade baseada em omissão de pronúncia.


b) Nulidade de excesso de pronúncia

As conclusões 7ª a 14ª, tratam os recorrentes de fundamentar a arguição de uma outra nulidade: a de excesso de pronúncia, prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea d), 2ª parte.        

           Dizem que não existe nos autos a alegação de um negócio de alienação celebrado entre BB e o Estado, apenas se verificando a invocação de uma entrega enquanto consequência natural da conclusão de uma ‘incumbência’, pelo que o acórdão recorrido não poderia ter considerado a existência de um negócio de transmissão das obras fotográficas.

            Vejamos:

           Na sua contestação, o Estado Português referiu que as 12 fotografias foram realizadas por BB ao serviço do Exército (...) e no âmbito das funções de que foi por este incumbido, no período compreendido entre 1916 e 1918.

           O acórdão recorrido, na linha do que já vinha decidido pela 1ª instância, considerou que BB, finda aquela missão, transferiu para o Exército Português o direito de propriedade que tinha sobre as fotografias, que passaram a integrar o Arquivo Histórico-Militar do Exército, “não apenas enquanto suporte da obra fotográfica, mas igualmente em termos de transmissão de direitos (autorais) sobre os próprios negativos que entregou”.

           Não se antolha qualquer excesso de pronúncia por parte do acórdão recorrido, uma vez que a matéria em causa decorre da própria alegação de um dos Réus, sendo que, em relação à mesma, não está o tribunal vinculado à alegação das partes no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – artigo 5º, n.º 3, do CPC.

Improcede, assim, esta arguição.


c) A nulidade da transmissão decorrente da inobservância da forma escrita
            As conclusões 15ª a 28ª são dedicadas à suposta violação da lei substantiva.

            Afirmam os recorrentes que, mesmo a considerar-se a existência de negócio translativo entre o BB e o Estado, tal negócio estaria ferido de nulidade, uma vez que, segundo as disposições dos artigos 1458º e 1459º do Código de Seabra, a doação só podia ser feita por escritura pública, por documento escrito, no caso de bens móveis doados sem tradição da coisa, ou de forma meramente verbal, no caso das doações manuais. Admitindo, nesse particular, uma aproximação entre as obras do espírito e as coisas móveis, seria inviável uma doação que não se consubstanciasse num contrato escrito, considerando a impossibilidade de tradição de obra do espírito.

          Decidiu o acórdão recorrido, após uma interessante incursão sobre a evolução dos direitos de autor no nosso ordenamento jurídico, que, em relação à constituição e transmissão do direito de autor, em termos de aplicação da lei no tempo, e considerando o disposto no n.º 1 do artigo 12º do CC, se aplica, respectivamente, a legislação vigente à data em que as fotografias foram tiradas e à data da morte do autor, em 1978.

           Nada opomos a este entendimento, devendo, portanto, ser analisadas à luz do Código Civil de 1867 as condições em que ocorreu a constituição e transmissão dos direitos autorais.

           Convém, no entanto, não esquecer que o Código de Seabra tutelava os direitos autorais no seio das normas relativas à propriedade literária e artística (artigos 570º e seguintes). Tendo Portugal aderido à Convenção de Berna de 1886 (revista em Berlim em 1908), através do Decreto de 18.03.1911, o artigo 602º do CC de 1867 passou a incluir (por efeito do artigo 2º do referido Decreto[14]) no conceito da propriedade artística, a obra fotográfica, sendo que, de acordo com o artigo 5º, n.º 3, da Convenção a protecção das obras no país de origem é regulada pela legislação nacional. O artigo 6º-bis, n.º 3, confirma que é a lei do Estado de proteção que se aplica tanto aos direitos patrimoniais como aos direitos morais de autor. Em princípio, portanto, a constituição, transmissão, extinção, conteúdo e meios de tutela do direito de autor estão submetidos à legislação vigente no Estado de proteção. Por isso, a tutela jurídica dos direitos inerentes à obra artística obedece ao conjunto das regras do ordenamento jurídico de cada País da União.

            Voltando, então, ao CC de 1867:

           Cunha Gonçalves, no “Tratado de Direito Civil”[15], refutava energicamente a crescente tendência de autonomizar os ‘direitos de autor’, que já se vinha notando em algumas legislações. Dizia ele: “Contudo, força é reconhecer que, no primeiro quartel deste século, a expressão ‘propriedade literária ou intelectual’ passou a ser substituída, nas legislações e nos livros, pela de ‘direitos de autor’, porque nos Congressos e nos parlamentos entraram a preponderar, quer os doutrinários socialistas ou comunistas, aos quais irritava a palavra ‘propriedade’, quer os teóricos do direito da personalidade, que pareceu ser novidade e só com tal verdade axiomática.

(…)

O direito moral do autor não é um desmembramento da sua propriedade, porque o autor exerce-o conjuntamente com a exploração económica da sua obra. (…) O direito moral, ou melhor o direito de paternidade intelectual é a verdadeira propriedade da obra literária ou artística”.

            E concluía: “A solução mais exacta (…), até consagrada pela terminologia tradicional, é a de classificar o direito de autor como um direito de propriedade”.

           

Dito isto, importa reflectir sobre o modo como nasceu e se desenvolveu a criação artística em questão. E, para isso, ter-se-á de considerar o que consta dos pontos 52. a 65.

            Temos, então, que:

Em 1916, o Ministro da Guerra, General LL, incumbiu o fotógrafo BB de realizar a cobertura fotográfica dos trabalhos da Divisão de Instrução do Exército Português estacionada em ..., visando a preparação das tropas que interviriam na … sob a designação de .... Essa incumbência foi formalizada pelo Ofício de 24-06-1916, dirigido ao Comandante da Divisão de Instrução de ..., com o seguinte teor: "Incumbe-me S. Ex. a O Ministro da Guerra de comunicar a V. Exª para os devidos efeitos que encarregue o fotógrafo BB de tirar as fotografias de assuntos militares que lhe forem indicadas pelo Estado Maior do Campo, devendo ser-lhe fornecidos todos os transportes bem como alojamento e alimentação."

O fotógrafo BB foi depois incorporado no Exército, graduado no posto de «Alferes» e integrado na Secção Fotográfica do ..., com o qual embarcou para França, em … de … de 19…. Nessa qualidade e posto militares foram-lhe atribuídas sucessivas missões para «desempenhar serviços da sua especialidade» ou para «ultimar serviços da sua especialidade», que é o mesmo que dizer «desempenhar funções como fotógrafo».

Em cumprimento dessas funções, em 19… e 19.., o Alferes Graduado BB acompanhou e fotografou o CEP, desde o embarque das tropas em Lisboa, depois, em França, os batalhões a caminho da frente de combate, as visitas das entidades oficiais e as recepções aos Presidentes da República Francesa e Portuguesa, as revistas das brigadas, os encontros dos Estados Maiores (Português, Francês e Britânico), as cerimónias de condecoração dos militares, os exercícios e acampamentos das tropas, o seu quotidiano nas trincheiras da frente de combate na …, a confraternização entre os soldados aliados e a desolação das ruínas e campos de combate. Por incumbência e autorização de deslocação do Estado Maior do CEP, fotografou também o desfile do exército português nos …, em Paris, no dia … de ... de 19…, assim como, depois de terminada a Guerra, fotografou as festas da vitória em Paris, Bruxelas e Londres.

Em …19…, o Alferes Graduado BB foi colocado na «Comissão …», como «fotógrafo», tendo então fotografado as cerimónias de trasladação dos corpos dos militares portugueses para os cemitérios edificados para o efeito.  Após o que, ainda ao serviço do Exército Português, realizou a cobertura fotográfica das cerimónias alusivas ao «Soldado Desconhecido», decorridas em Paris, em Novembro de 19...

Foram-lhe pagos pelo Exército todos os vencimentos correspondentes ao período indicado, que lhe eram devidos enquanto militar incorporado no CEF, com o posto de Alferes.

Foi-lhe igualmente dispensada alimentação, alojamento e transporte pelo Exército, que também providenciou pela colocação, transporte e evacuação do material fotográfico de que se fazia acompanhar. 

Em 19…, BB regressou a Portugal acompanhando e fotografando as cerimónias solenes da trasladação do corpo de um soldado anónimo da Flandres para Lisboa, respectiva homenagem e final inumação (em conjunto com outro soldado anónimo proveniente da Guerra em África) na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha.

Em 19…, BB entregou ao Exército Português uma «colecção» de fotografias do CEP, por si realizadas naquele período.

Colecção essa que, incluindo negativos (originais) e positivos (cópias), se encontra sob custódia do Arquivo Histórico-Militar do Exército, órgão que assegura a selecção, estudo e organização da documentação histórica deste ramo das forças armadas, nos termos do art. 23.° n." 2 do Decreto Regulamentar n." 75/2007, de 3 de Julho.

As fotografias dessa colecção entregue ao Exército não foram assinadas por BB, nem há registo de que tenha sido convencionada qualquer ressalva sobre a sua pertença ao Exército ou restrição sobre o seu uso e publicação.

O que este quadro factual revela é que o fotógrafo BB foi incumbido pelo Ministro da Guerra de executar vários trabalhos da sua arte, tendo para esse efeito sido incorporado no Exército, graduado no posto de «Alferes» e integrado na Secção Fotográfica do .... O Exército pagou-lhe todos os vencimentos devidos pelas funções nesse posto, e suportou as despesas com alimentação, alojamento e transporte, providenciando ainda pela colocação, transporte e evacuação do material fotográfico.

Findas as funções, o fotógrafo BB, em 19…, entregou ao Exército a colecção de fotografias tiradas, incluindo negativos (originais) e positivos (cópias), que não foram por si assinadas, não havendo registo de que tenha sido convencionada qualquer ressalva sobre a sua pertença ao Exército ou restrição sobre o seu uso e publicação.

Daqui se retira que todo o trabalho fotográfico realizado por BB se inseriu no âmbito de um contrato de prestação de serviços no exercício das artes (artigo 1409º do CC de 1867) firmado com o Exército Português. Concluído o trabalho, pago através dos vencimentos auferidos como alferes e de todas as despesas com alojamento, transportes e refeições, o fotógrafo BB procedeu à entrega da colecção de fotografias à entidade que o havia contratado para esse fim. Ou seja, a entrega das fotografias representa o resultado do trabalho artístico (fotográfico) para que o BB havia sido contratado[16].

Perante o quadro factual descrito, não cremos que possa defender-se, salvo o devido respeito, que o fotógrafo BB fez doação da colecção de fotografias ao Exército, na medida em que tal pressupunha, obviamente, a transmissão gratuita dos bens, sem qualquer contrapartida do donatário (artigo 1452º do Código de Seabra).

Mesmo que se arrede a hipótese de se ter constituído um contrato de prestação de serviços (ou qualquer outro de igual jaez) entre o Estado Português (Exército) e o fotógrafo BB, e se considere ter-se tratado de mera ‘incumbência’, a simples entrega das fotografias (negativos e positivos) ao Exército não dependia de qualquer formalidade externa, atento o princípio geral estabelecido no artigo 686º do Código Civil de 1867.

Na verdade, a entrega das fotografias ao Exército ocorreu, como se viu mais acima, em 19…, num momento, portanto, em que ainda não vigorava o Decreto n.º 13725, de 13 de Março de 1927, diploma este que passou a regular com alguma minúcia as questões da transmissão e ónus da propriedade intelectual.

Até essa altura, o Código Civil “era assaz omisso” quanto a essa matéria[17], sendo certo que o artigo 590º equiparava a propriedade literária (e artística) a qualquer outra propriedade móvel, regendo-se pelas regras desta, salvo lei expressa em contrário.

O que significa que, como bem se ajuizou no acórdão recorrido, essa entrega correspondeu à efectiva transferência da propriedade para o Estado do material fotográfico recolhido pelo BB.

É isso que se diz, a determinado ponto, no acórdão recorrido:

“O que se afigura decisivo é que o autor das fotos as entregou a quem o incumbiu de as tirar e as mesmas foram incorporadas num arquivo militar, tendo sido posteriormente utilizadas pela instituição militar em diversas ocasiões, sem referência a créditos fotográficos atribuídos ao autor das mesmas (…) o que revela à saciedade que ocorreu transmissão dos direitos do autor referentes à utilização económica daquela obra fotográfica para o Exército Português” – cfr. fls. 1887 (página 37 do acórdão recorrido).

Improcede, pelo exposto, este outro segmento do recurso.

d) A violação do n.º 2 do artigo 42º da Constituição

Os recorrentes aduzem, por fim, nas conclusões 29ª e 30ª, que a decisão recorrida viola o artigo 42º, n.º 2, da Constituição da República.

Tal artigo estabelece:


Artigo 42.º
  Liberdade de criação cultural

1. É livre a criação intelectual, artística e científica.

2. Esta liberdade compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a proteção legal dos direitos de autor.

Ora, o que sempre os recorrentes defenderam, e a Relação de Lisboa acabou por reconhecer, é que se aplicava à situação dos autos o Código Civil de Seabra, considerando a data em que se deram os factos de constituição e transmissão dos direitos relacionados com a obra fotográfica realizada por BB.

Sendo esse o enquadramento legal, conforme acima exposto, a solução jurídica vertida no acórdão recorrido não viola o preceito constitucional indicado.

Com efeito, a protecção que a lei conferia na altura ao autor de obra artística reconduzia-se, como explanado supra, ao conceito de ‘propriedade’ de bem móvel transmissível sem necessidade de qualquer formalidade.

Quanto aos chamados direitos morais, escreveu-se no acórdão recorrido:

“A Constituição vigente à data, a de 1911, não consagrava de forma explícita a protecção dos direitos dos criadores intelectuais, tal como a de 1933; só a Constituição da República de 1976 consagrou essa tutela em termos de direitos, liberdades e garantias.

Atualmente, trata-se de direitos inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, até a obra cair no domínio público (…).

Em nosso entender, não se encontrando na altura de todo excluída a tutela de um conjunto de prerrogativas do autor em relação à sua obra, hoje tratadas como uma das componentes dos direitos de autor (direitos morais), não se pode ter como seguro que a transmissão do ‘direito de propriedade’ sobre as fotografias em causa nestes autos, tenha eliminado aqueles direitos e que os mesmos não tenham sido transmitidos aos sucessores do autor das fotografias aquando da sua morte”.

Nessa medida, o acórdão recorrido reconheceu que esses direitos morais  beneficiam da tutela concedida pela legislação posterior, designadamente a que deriva da norma constitucional do artigo 42º[18] e do artigo 56º, n.º 1, do CDADC, e consequentemente, em defesa da genuinidade, integridade e menção da autoria, confirmou a sentença recorrida quanto ao único efeito reclamado pelos Autores a esse título, expresso na alínea i) do petitório.

Conclui-se, pois, pela improcedência deste último argumento.

                                                           *

III. DECISÃO

Nestes termos, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.

                                                           *

Custas pelos recorrentes.

                                                           *

                                                          LISBOA, 12 de Julho de 2018

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Salreta Pereira

________________
[1] Relator:    Henrique Araújo
 Adjuntos:  Maria Olinda Garcia
                    Salreta Pereira
[2] Que é agora o ponto 15.
[3] Que é agora o ponto 16.
[4] Que é agora o ponto 17.
[5] Que é agora o ponto 18.
[6] Que é agora o ponto 19.
[7] Que é agora o ponto 20.
[8] Que é agora o ponto 21.
[9] Que é agora o ponto 22.
[10] Que é agora o ponto 24.
[11] Que é agora o ponto 25.
[12] Que é agora o ponto 26.
[13] Ver ponto 30.
[14] Dispunha esse artigo 2º: “São consideradas como incluídas no artigo 602º e seu parágrafo do Código Civil Português, as obras de novas denominações que nelle não estão descritas e a que se referem os artigos 2º e 3º da Convenção de Berlim”. Essas novas denominações constam do artigo 2º da Convenção, onde se pode ler: Os termos "obras literárias e artísticas" compreendem todas as produções do domínio  literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu modo ou forma de expressão, tais como: os livros, folhetos e outros escritos; as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; as obras dramáticas ou dramático-musicais; as obras coreográficas e as pantomimas; as composições musicais, com ou sem palavras; as obras cinematográficas, às quais são assimiladas as obras expressas por um processo análogo à cinematografia; as obras de desenho, pintura, arquitectura, escultura, gravura e litografia; as obras fotográficas, às quais são assimiladas as obras expressas por um processo análogo ao da fotografia; as obras das artes aplicadas; as ilustrações e as cartas geográficas; os planos, esboços e obras plásticas relativos à geografia, à topografia, à arquitectura ou às ciências.
[15] 2ª edição, 1958, Volume 4, Tomo I, páginas 40 a 43.
[16] Curiosamente, o artigo 165º, n.º 2, do actual Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) determina: “se a fotografia for efetuada em execução de um contrato de trabalho ou por encomenda, presume-se que o direito previsto neste artigo pertence à entidade patronal ou à pessoa que fez a encomenda”.
[17] Cunha Gonçalves, ob. cit., páginas 170/171.
[18] Cfr. página 42 do acórdão recorrido, in fine.