Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO (CÍVEL) | ||
Relator: | RIJO FERREIRA | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA INTERNACIONAL LEI APLICÁVEL DIVÓRCIO IMPOSSIBILIDADE DE VIDA EM COMUM ÓNUS DE ALEGAÇÃO ÓNUS DA PROVA | ||
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Data do Acordão: | 10/29/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I. A questão da ‘competência internacional’ (conflito entre tribunais de diversas jurisdições nacionais que em simultâneo reivindicam a competência para apreciar uma situação que apresenta elementos de conexão com diversos Estados) é diversa da questão da ‘lei aplicável’ (conflito entre as leis de cada um dos Estados envolvidos que reivindicam em simultâneo reger a situação); II. Ao divórcio de um casal em que ambos trabalham na suíça desde o casamento, aí tiveram os seus filhos e que em Portugal adquiriram uma casa, que utilizam em férias, e onde um dos cônjuges reside não habitualmente, sem que haja nacionalidade comum é aplicável a lei suíça (art.º 55º do CCiv). A al. d) do art.º 1781º do CCiv exige que o requerente alegue e prove factos objectivos que demonstrem uma imediata e total exaustão do vínculo conjugal | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DE DIVÓRCIO ENTRE AA (aqui patrocinado por …, adv.) Autor / Apelado / Recorrente CONTRA BB (aqui patrocinada por …, adv.) Ré / Apelante / Recorrida
I – Relatório O Autor intentou, em 02FEV2018, acção de divórcio contra Ré alegando que desde 2013 a convivência conjugal entre eles entrou em decadência, caracterizada por constantes discussões e desentendimentos, ausência de manifestações de carinho ou atenção por parte da Ré, indiferença por parte da Ré, agressões verbais por parte da Ré e relacionamento público da Ré com outro homem; situação que levou a que , desde DEZ2015, não fazem vida em comum, gerindo cada um o seu dia-a-dia de forma independente, sem qualquer partilha de mesa ou cama, sem que ocorra qualquer possibilidade de retomar a vida em comum. Termina pedindo se decrete o divórcio ao abrigo das als. a) e d) do art.º 1781º do CCiv, e se retroajam os efeitos do mesmo à data da separação. A Ré veio invocar a incompetência internacional do tribunal, excepção que foi indeferida (com fundamento em que o Réu tem residência, ainda que não habitual, em Portugal), e contestou por impugnação. A final foi proferida sentença que, considerando que «o simples facto de o Autor vir requerer o divórcio sem consentimento da Ré, já em 02de fevereiro de 2018 (…), nunca tendo vindo demonstrar dúvidas quanto ao seu pedido (…), é suficientemente demonstrativo da rutura da vida em comum», julgou a acção procedente. Inconformada, apelou a Ré tendo a Relação anulado o julgamento. Veio a ser proferida nova sentença em que, com o já invocado fundamento, decretou o peticionado divórcio. Ainda inconformada apelou a Ré. A Relação, considerando que a lei portuguesa não acolhe um sistema de ‘divórcio-pedido’ mas antes de ‘divórcio-ruptura’, pelo que o cônjuge que pretende o divórcio terá de alegar factos objectivos, passíveis de comprovação, e que demonstrem a ruptura do casamento, situação que não ocorre no caso, revogou a decisão recorrida, absolvendo a Ré do pedido. O Autor, agora irresignado, interpôs recurso de revista, ao abrigo do art.º 671º do CPC, concluindo, em síntese, que a al. d) do art.º 1781º do CCiv consagra, de acordo com o princípio de que ninguém deve permanecer casado contra a sua vontade, uma modalidade de divórcio unilateral e potestativo, sendo suficiente para o mesmo ser decretado a demonstração de uma reiterada afirmação de não querer manter o casamento, como nos autos ocorre. Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido. Convidadas as partes a pronunciar-se sobre o direito aplicável veio o Autor alegar que a questão já se encontrava resolvida com a apreciação da competência internacional do tribunal e, ainda assim, a identidade das leis suíça e portuguesa na matéria; por seu turno a Ré veio alegar ser aplicável a lei suíça, mais restritiva que a lei portuguesa.
II – Da admissibilidade e Objecto do Recurso A situação tributária mostra-se regularizada. O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se mostra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Tal requerimento mostra-se devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC). O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC). Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (suspensivo). Destarte, o recurso merece conhecimento. Vejamos se merece provimento. -*- Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio. De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo. Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece. Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras. Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este tribunal: - da lei aplicável; - se estão preenchidos os requisitos do divórcio segundo a lei aplicável.
III – Os Factos Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade: Factos Provados: I - Autor e Ré contraíram casamento católico em … de Maio de 1997, sem convenção antenupcial, na Igreja da freguesia de … . II - Do casamento nasceram dois filhos menores, de nome CC, nascido a … .12.2001 na Suíça; e DD, nascido a … .07.2005 na Suíça. III - O Autor passou procuração ao seu Ilustre mandatário, em 14.07.2017, com poderes especiais para instaurar processo de divórcio contra a Ré. IV - O presente processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge deu entrada neste tribunal no dia 2 de fevereiro de 2018 e, desde essa data, nunca o Autor veio declarar pretender continuar casado. Factos não provados: - Desde dezembro de 2015 o A. e a R. deixaram de fazer vida em comum, gerindo cada um o seu dia a dia de forma completamente independente. - Desde aquela data, apesar de habitarem o mesmo espaço físico, não mais partilharam a mesa, nem a cama. - A. e Ré partilham a mesma habitação na Suíça, fazendo-o em completa e plena comunhão, inexistindo qualquer separação de facto entre os cônjuges.
IV – O Direito A regulação de relações sociais que apresentem elementos de conexão com diversos Estados é susceptível de gerar uma dualidade de confrontos: por um lado entre os tribunais de cada um dos Estados envolvidos, reivindicando a competência para dirimir o litígio; por outro lado entre a lei de cada um dos Estados envolvidos, pretendendo ser a lei aplicável ao caso. Na primeira situação encontramo-nos no domínio da competência internacional dos tribunais (competência iudicis; na segunda situação encontramo-nos no domínio do conflito de leis (competência legis). No presente caso foi já resolvido, com trânsito em julgado, serem os tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer da questão. Está, ainda, em aberto determinar qual a lei aplicável à situação posta à apreciação do tribunal (questão que, aliás, foi expressamente levantada pela Ré na sua contestação). Na falta de instrumento supranacional regulador do conflito de leis em matéria de divórcio aplicável ao caso regem as normas de conflito de leis do direito interno expressas nos artigos 55º e 52º do CCiv que determinam que o divórcio é regulado pela lei nacional comum, não havendo nacionalidade comum, a lei da residência habitual comum, e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa. Não há evidência nos autos de nacionalidade comum. Vem assumido pelas partes que desde a celebração do casamento que trabalham na Suíça, onde têm vivido e onde nasceram os filhos comuns; isso sem embargo de terem adquirido residência em Portugal, aonde se deslocavam em férias e, eventualmente, de forma definitiva no futuro, e onde o Autor invoca ter agora residência (embora afirme que continua a ter residir temporariamente por motivos profissionais na Suíça). Tendo essas circunstâncias em conta, e em consonância com o facto de na fundamentação da decisão relativa à competência internacional não se ter qualificado a residência em Portugal como residência habitual, é de considerar terem as partes residência habitual comum na Suíça. Mas ainda que assim não se entendesse sempre se haveria de considerar ser a Suíça o país com o qual a vida familiar se acha mais estreitamente conexa. Com efeito foi nesse país que têm vindo a desenvolver a sua catividade profissional e, por via disso, é nessa comunidade nacional, onde passam a maior parte do tempo, que se inseriram socialmente, fixaram o seu casal, procriaram e vêm educando os seus filhos. Portugal, a fazer fé na sua alegação, surge como lugar de origem, de ancestralidade, de vilegiatura, de refúgio do Autor em tempo de crise conjugal. Por outro lado, a Suíça aceita a competência que lhe é deferida pela norma de conflitos portuguesa uma vez que o artº. 61º da sua lei de direito internacional privado (consultada em https://www.admin.ch/opc/fr/classified-compilation/19870312/index.html#a61) determina que « le divorce et la séparation de corps sont régis par le droit suisse». Conclui-se, assim, que a lei à luz da qual deve ser resolvida a causa é a lei Suíça. O Código Civil Suíço (consultado em https://www.admin.ch/opc/fr/classified-compilation/19070042/index.html#a2), depois de prever o divórcio « sur requête commune» (artigos 111º e 112º), prevê igualmente o divórcio «sur demande unilatérale», por duas vias: - «Après suspension de la vie commune», segundo a qual «Un époux peut demander le divorce lorsque, au début de la litispendance ou au jour du remplacement de la requête par une demande unilatérale, les conjoints ont vécu séparés pendant deux ans au moins» (art.º 114º); - Em caso de «Rupture du lien conjugal», segundo a qual «Un époux peut demander le divorce avant l’expiration du délai de deux ans, lorsque des motifs sérieux qui ne lui sont pas imputables rendent la continuation du mariage insupportable» (art.º 115º). Resulta claro dos apontados normativos que o pedido unilateral (sem consentimento do outro cônjuge) de divórcio tem como pressuposto necessário, mas suficiente, a separação de facto por, pelo menos, dois anos (art.º 114º). Basta, para o decretamento do divórcio, que o cônjuge requerente demonstre a separação durante esse lapso temporal. Para obter o divórcio antes do decurso de dois anos de separação («avant l’expiration du délai de deux ans») o cônjuge requerente tem de alegar e provar motivos sérios, que lhe não sejam imputáveis, que tornem insuportável a vigência do casamento. Solução que, em nosso modo de ver, é similar à que resulta do disposto no art.º 1781º, als. a) e d) do CCiv Português, com a diferença que neste o prazo de separação de facto é menor (um ano) e não há lugar a qualquer consideração de culpa, e de que naquele outro está melhor explicitado em que circunstância pode ser obtido o divórcio antes de decorrido o prazo mínimo de separação de facto. Com efeito não subscrevemos o entendimento, adoptado na 1ª instância e pelo Recorrente, de que a al. d) do art.º 1781º do CCiv consagra um divórcio unilateral e potestativo (‘divórcio-pedido’), sendo suficiente para o mesmo ser decretado a demonstração de uma reiterada afirmação de não querer manter o casamento, mas antes um ‘divórcio-ruptura’ em que o requerente tem de alegar e demonstrar factos objectivos que demonstrem uma imediata e total exaustão do vínculo conjugal. Entendimento que vem sendo sufragado por este Supremo Tribunal nos acórdãos de 27ABR2017 (proc. 273/14.1TBSCR.L1.S1), 09JAN2018 (proc. 8992/14.6T8LSB.L1.S1), e 18SET2018 (proc. 4247/16.08VCT.G1.S1). Ora da factualidade provada não resulta, como já evidenciado no acórdão recorrido, um quadro circunstancial objectivo minimamente demonstrativo de uma ruptura definitiva do casamento. Pelo contrário, é manifesta a penúria factual, que se limita à constatação de que o Autor tem uma vontade persistente de se divorciar, sem sequer conseguir demonstrar uma cessação da convivência.
V – Decisão Termos em que se nega a revista, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente. Rijo Ferreira (Relator) [Com voto de conformidade dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos, conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI] Abrantes Geraldes Tomé Gomes |