Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10.600/05.7TBMTS.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
RESERVA AGRÍCOLA NACIONAL
Apenso:
Data do Acordão: 05/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO ADMINISTRATIVO - EXPROPRIAÇÕES
DIREITO DO URBANISMO, ORDENAMENTO E TERRITÓRIO - RAN
Doutrina: – Alves Correia, RLJ 133º, nº 3910, 53, 54.
Legislação Nacional: CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES (CE): - ARTIGOS 26.º, N.º12
DL N.º 73/2009, DE 31-03: - ARTIGO 6.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-AUJ Nº 6/2011, DR I Nº 95, DE 17-05.

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 196/2011.
Sumário :


Não é possível aplicar analogicamente o disposto no artº 26º, nº12º do Código das Expropriações, aos casos de expropriação de terrenos integrados na RAN (Reserva Agrícola Nacional).
Decisão Texto Integral:




Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I
Na expropriação por utilidade pública, em que é expropriante Estradas de Portugal EPE e expropriados AA, casado com BB, CC, casada com DDe EE, casado com FF, vieram este impugnar a decisão arbitral.
Foi proferida sentença, que, julgando parcialmente procedente o recurso, alterou os valores arbitrados.
Nesta sentença foi entendido que a parcela em causa não integrava a qualificação de solo apto para construção, mas sim a de solo apto para outros fins.
Desta decisão apelaram os expropriados e a expropriante.
O Tribunal da Relação, negando ambas as apelações, confirmou a sentença recorrida.
Recorrem novamente os expropriados, os quais, nas suas alegações de recurso, apresentam, em síntese, as seguintes conclusões:

1 O prédio em causa integra um aglomerado de moradias, sendo que estava previsto no PDM a construção duma via que melhorava o acesso à parcela – expectativa que o prédio tinha.
2 A inserção na RAN não é imutável, nem se justifica nos aglomerados urbanos.
3 Havendo expectativas de alteração da RAN e havendo integração urbana da parcela, deve ser avaliado o solo expropriado inserido em RAN e expropriado para a implantação de comunicação nos termos do nº 12 do art.º 26º da C. das Expropriações.
4 E na dúvida deve prevalecer a interpretação que for mais favorável ao expropriado.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.



II
Vêm dados por provados os seguintes factos:

1 Por despacho do S.E. da Obras Públicas nº 18.352-C/2004 – DR II nº 205 de 31.08.04 - , foi declarada a utilidade pública com carácter de urgência das parcelas de terreno necessárias à execução da obra de concessão da SCUT do Grande porto VRI – Nó do Aeroporto/P4 (KM 1 + 600 a km 3 + 264,98), entre elas se incluindo a parcela de terreno designada por parcela 37, com a área de 3.802 m2, que corresponde ao prédio situado no lugar de Bouçós, da freguesia de Custóias, concelho de Matosinhos, inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob o artigo 187 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº 0056/090388 (Custóias).
2 À data da declaração de utilidade pública, a aquisição deste imóvel encontrava-se registada a favor dos expropriados CC e AA e o respectivo usufruto a favor de AA.
3 O prédio encontrava-se arrendado a GG, mediante a renda anual de cerca de € 100,00.
4 A entidade expropriante tomou posse administrativa das parcelas em causa, em 27.10.04.
5 O prédio objecto da expropriação tem uma área global de 3.802 m2 e trata-se de um terreno plano, com uma configuração aproximadamente trapezoidal.
6 Situa-se em zona com ligeira pendente para poente vencida por taludes existentes nas divisórias dos campos.
7 O terreno é de cultivo fundo e fértil, com água de rega proveniente de presa próxima.
8 O terreno é aproveitado, em quase toda a sua área, para a plantação de batatas e horta; na extremidade poente do mesmo a arrendatária cultiva flores para venda.
9 O prédio expropriado é interior, sendo que o acesso ao mesmo é realizado por um caminho de servidão de terra batida, sem infraestruturas urbanísticas, que entronca com a Travessa de Pias.
10 Esta é uma via pavimentada a cubos de granito e com rede de energia eléctrica, abastecimento de água e telefones.
11 De acordo com o PDM vigente, a parcela expropriada encontra-se totalmente inserida na Reserva Agrícola Nacional.
12 Os solos a nascente do prédio expropriado estão classificados como “Área Predominantemente Residencial”, sendo que a Travessa de Pias é suporte de um grupo de moradias, que se desenvolvem para poente, localizando-se o lote a 20 metros do prédio expropriado.
13 No prédio expropriado existe um barraco de madeira em mau estado de conservação, com cerca de 12m x 4m, coberto por chapa de fibrocimento e ainda estufas rudimentares com estrutura de madeira, cobertas a plástico, com, respectivamente, 14mx 4m e 8mx 2m.


III
Apreciando


1 A primeira questão suscitada pelo recorrente é a de que a parcela expropriada tem aptidão construtiva, pelo que deve ser considerada como terreno apto para construção, para efeitos do cálculo da indemnização a arbitrar por via da expropriação. E isto porque o facto da mesma parcela integrar a Reserva Agrícola Nacional tem natureza meramente transitória, não afectando, pois, a intrínseca valoração do terreno em apreço e que é a de um terreno apto para construção.
A integração de um terreno na RAN não é um facto meramente passageiro, ou de administração conjuntural dos solos. Constitui sim uma realidade estruturante da política de solos, dentro daquela triologia do seu destino sócio-económico, ou seja, a Ecologia, a Agricultura e a Construção (habitacional ou de equipamentos). Não se trata, portanto, de uma realidade precária.
A dita integração na RAN é aprovada por despacho do Director-Geral e feita com base na metodologia de classificação da aptidão da terra recomendada pela ONU – art.º 6º nº 3 do DL 73/2009 de 31:03.
É, por assim dizer, uma qualidade intrínseca de determinado solo, sob a qual não pode subsistir uma eventual aptidão para construção desse solo. Note-se até que, enquanto tal qualidade é uma característica interna daquele solo, já aptidão para a construção é, sobretudo, externa, dependendo do seu enquadramento urbano (construção ou equipamentos).
O que tudo veio a ser reconhecido no AUJ nº 6/2011 – DR I nº 95 de 17.05.11 -, que fixou a jurisprudência de que os terrenos integrados na Reserva Agrícola Nacional não podem ser classificados como “aptos para construção”, ainda que preencham os restantes requisitos deste último tipo de terrenos.


2 A segunda questão levantada pelos recorrentes é a de que o cálculo da indemnização deveria ser feito com base no disposto no nº 12 do art.º 26º do C. das Expropriações, que seria aplicável por via analógica.
Refere esta norma que no caso de terreno que deva ser expropriado e esteja classificado, por plano municipal de ordenamento do território, como zona verde, de lazer, ou para a instalação de equipamentos públicos, no caso da aquisição ser anterior a esse plano, o seu valor será calculado em função do valor médio das construções existentes, ou seja possível edificar, nas parcelas situadas na área envolvente, cujo perímetro exterior se situe a 300 metros do limite da parcela expropriada.
Este preceito é, por vezes referido como constituindo um tertium genus entre o caso da expropriação de terreno apto para construção e o da expropriação de terreno para outros fins.
Com efeito, trata-se de terreno sem aptidão construtiva, mas a lei manda indemnizar o expropriado com base em valores de construção.
É uma especialidade, mas não é, em bom rigor, um terceiro género de indemnização. O fim constitucional e legal é o da justa indemnização, sendo que esta obtém-se através do pagamento do valor real do bem expropriado e que este valor é o valor normal de mercado e este objectivo mantém-se.
No caso das ditas zonas verdes e de lazer ou de instalação de equipamentos públicos, se não fosse a previsão do referido nº 12 do art.º 26º, poder-se-ia estar face a uma ilegítima manipulação do valor de mercado. É que é a mesma entidade autárquica que vai qualificar os terrenos e posteriormente os irá expropriar. Precisamente para os fins que foram a causa dessa qualificação. Fácil é, pois de ver, que o expropriante teria na sua mão os meios de embaratecer os custos da eventual e futura expropriação. O preço de mercado seria mais baixo, mas isto seria devido à sua própria e prévia manipulação desse mercado, ao retirar a aptidão para construção do terreno expropriado. Não seria, assim, um verdadeiro valor de mercado, pelo que seria injusto. O que o citado nº 12 veio evitar. Cf. – Alves Correia RLJ 133º nº 3910 53 54 -. No fundo, trata-se ainda de reconduzir o valor da indemnização ao efectivo valor de mercado.
É como se a expropriação, em termos económicos, se desse em dois momentos, aquando da qualificação do terreno e depois no momento da decisão de expropriar. E é o lapso de tempo entre eles que o nº 12 do art.º 26º do CE pretende preencher, compensando a desvalorização entretanto ocorrida. A média do valor das construções à volta é a valorização que poderia ter acontecido ao item em apreço se não fosse a ocorrência do plano municipal. Tudo para determinar o preço justo, aquele que seria o de mercado, não fora a intervenção urbanística da entidade expropriante.
Outro não foi o entendimento do Ac. do Tribunal Constitucional – 196-2011 – ao referir-se a actos equivalentes a uma verdadeira expropriação, aludindo ao plano municipal e ao referir-se à posterior expropriação efectiva.


3 A questão em apreço é a de saber se este regime é susceptível de aplicação analógica aos casos de terrenos integrados na Reserva Agrícola Nacional.
A analogia pressupõe que existe a mesma razão de decidir e que existe lacuna na regulamentação de uma determinada realidade.
Como vimos em 2, a aplicação directa do nº 12 do art.º 26º visa prevenir uma manipulação de mercado, possível através do sistema da “dupla expropriação”. No caso da RAN não existe esse problema. Trata-se de um ordenamento substancial do território que nada tem a ver com as futuras expropriações, que possam ocorrer nos terrenos integrados nessa Reserva. Nesta última hipótese, o valor da indemnização é calculado sobre um valor de mercado, com o qual nada tem a entidade expropriante.
Por outro lado, o regime do nº 12 pressupõe que, não fora o plano municipal, ou seja o início da “realidade expropriativa” em termos económicos, o terreno em questão seria apto para construção – cf. Alves Correia id. -. Não se compadece com a sua aplicação a um terreno onde já anteriormente, independentemente da expropriação, não se podia construir, ou seja, que já não era apto para construção, por virtude da integração na RAN.
Por outro lado ainda, não se pode comparar o carácter de mera ordenação administrativa de um plano municipal, que justifica a especial protecção do expropriado, com uma intervenção substancial no ordenamento do território como a integração na Reserva Agrícola Nacional.
Violaria, aliás, o princípio constitucional da igualdade, indemnizar o expropriado de um terreno integrado na RAN, que, em virtude de um superior interesse público, é proprietário de um terreno sem aptidão construtiva, com base em critérios de construção previstos apenas para o terreno que possuía essa aptidão, aquando do início do processo que levaria à expropriação, como na hipótese do nº 12 do art.º 26º.
A este respeito referiu o Acórdão do TC citado, ao entender que os regimes em apreço não podiam ser equiparados:

…as limitações inerentes ao estatuto dessa reserva não têm a severidade dos casos anteriormente referidos e têm em atenção a especial localização factual desse terreno e as suas características intrínsecas, não gerando, por isso, qualquer direito de indemnização autónomo(sublinhado nosso).”



Donde se conclui que não ocorre a mesma razão de decidir, não podendo ser aplicado por analogia o disposto no nº12 do art.º 26º do C. das Expropriações à hipóteses de expropriação de terrenos integrados na RAN.
As indemnizações respeitantes às parcelas expropriadas que integram a RAN deverão assim calculadas com base nos critérios que levam à sua fixação nas hipóteses de solos para outros fins, que não a construção. De acordo, aliás, com a letra e o espírito do citado AUJ 6/2011.
Nem a lei da expropriações consigna qualquer princípio de, na dúvida, dever ser beneficiado o expropriado, como pretendem os recorrentes. O que consagra é o direito ao preço justo. Determinado este, como no caso, nada mais deve ser arbitrado.

Termos em que improcede o recurso.


Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 10 de Maio de 2012

Bettencourt de Faria (Relator)
Pereira da Silva
João Bernardo