Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
117/18.5TNLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: EMBARCAÇÃO
ACIDENTE MARÍTIMO
LEI ESPECIAL
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
CULPA EXCLUSIVA
CULPA DO LESADO
SEGURO MARÍTIMO
CONTRATO DE SEGURO
DUPLA CONFORME
OBJETO DO RECURSO
DECISÃO MAIS FAVORÁVEL
Data do Acordão: 11/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (MARITIMO)
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I. A dupla conforme afere-se em função da decisão final proferida pela 1.ª instância e pela Relação, e não em função da apreciação de questões recursórias.

II. Contudo, no caso dos autos, constatando-se que a apelação da ré seguradora foi julgada parcialmente procedente, com a consequente condenação da mesma ré a pagar aos autores indemnização de valor mais baixo do que a condenação da 1.ª instância, há que ter em conta que – de acordo com a orientação actualmente dominante da jurisprudência do STJ – tal situação é de equiparar à situação de conformidade decisória absoluta.

III. O art. 41.º do RNR, na versão aprovada pelo DL n.º 124/2004, de 25.05, vigente à data do sinistro dos autos, integra dois comandos normativos: o primeiro, no qual se estabelece um regime especial de responsabilidade objectiva dos proprietários e comandantes de embarcações de recreio por danos causados a terceiros; o segundo, no qual se prescreve que a responsabilidade objectiva, declarada na primeira parte do preceito, não subsiste naquelas situações em que o acidente tiver sido causado por culpa exclusiva do lesado.

IV. Ao estabelecer um regime especial de responsabilidade objectiva, fundada no risco das embarcações em causa, responsabilidade que se mantém ainda que ocorra culpa do lesado (salvo se o acidente for exclusivamente causado por tal conduta culposa do lesado), tanto o elemento teleológico da interpretação como o elemento da unidade do sistema jurídico (cfr. n.º 1 do art. 9.º do CC) implicam que – por identidade ou mesmo por maioria de razão – sendo o comandante da embarcação responsável por facto ilícito e culposo, a sua responsabilidade se mantenha quando a culpa do lesado não tiver sido a causa exclusiva do evento danoso, afastando-se assim o regime geral do n.º 1 do art. 570.º do CC.

V. No caso dos autos, resultando da factualidade provada que tanto a culpa do proprietário/comandante da ER, como a culpa da vítima mortal, contribuíram causalmente para a ocorrência do sinistro dos autos, em virtude do regime especial (art. 41.º do RNR) de irrelevância da culpa do lesado que não seja exclusiva, fica prejudicada a apreciação da questão da repartição da culpa entre ambos os intervenientes, uma vez que – seja qual for essa repartição – a responsabilidade do proprietário/comandante da ER sempre se manteria, e mantém, por inteiro.

VI. Não merece censura a decisão do acórdão recorrido de condenar o 1.º réu, enquanto proprietário e comandante da ER, a pagar aos autores o valor indemnizatório arbitrado, na parte que excede o capital seguro.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA, por si e em representação dos seus filhos menores, BB e CC, veio, em 4 de Outubro de 2018, propor contra DD e Liberty Seguros, S.A. (actualmente, Liberty Seguros, Compañia de Seguros e Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal), acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo a condenação dos RR. a pagar-lhes a quantia de € 368.381,91, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros desde a citação.

Invoca, para tanto e em síntese, que EE, com quem a A. vivia em união de facto, sendo os menores que representa filhos de ambos, faleceu na sequência de sinistro ocorrido no dia … de Agosto de 2012, no ..., provocado por culpa exclusiva do 1.º R., condutor e proprietário da embarcação de recreio ..., cuja responsabilidade civil por danos causados a terceiros se encontrava transferida para a R. Seguradora.

Contestou a R. Liberty Seguros, invocando a prescrição do direito indemnizatório e impugnando a factualidade alegada. Mais defendeu a exclusão do sinistro da cobertura do contrato de seguro celebrado e invocou ser excessivo o valor indemnizatório peticionado.

Contestou ainda o R. DD invocando igualmente a prescrição do direito de indemnização e impugnando a factualidade alegada, sustentando que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da vítima.

Os AA. responderam, pugnando pela improcedência das excepções invocadas pelos RR..

Já no decurso da audiência de julgamento, veio a R. seguradora requerer que, na sentença a proferir, e tendo em conta a prova produzida, seja decretada a nulidade do contrato de seguro celebrado entre os RR., dado o mesmo não poder garantir o pagamento de danos decorrentes do risco de uma actividade ilícita como a que estava a ser praticada aquando do sinistro.

Os AA. e o 1.º R. pronunciaram-se no sentido da improcedência daquela pretensão.

Concluída a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença, em 23 de Março de 2020, que considerou improcedente a arguida excepção de prescrição, e decidiu da seguinte forma:

«Julga-se a presente acção parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:

a) Absolver o Réu DD dos pedidos contra si formulados pelos Autores AA, BB e CC;

b) Condenar a Ré Liberty Seguros, S.A. a pagar aos Autores AA, BB e CC, em conjunto, a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), acrescida de juros de mora (à taxa legal), contados desde a data da presente sentença até integral pagamento;

c) Condenar a Ré Liberty Seguros, S.A. a pagar à Autora AA a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), acrescida de juros de mora (à taxa legal), contados desde a data da presente sentença até integral pagamento;

d) Condenar a Ré Liberty Seguros, S.A. a pagar a cada um dos Autores BB e CC a quantia de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora (à taxa legal), contados desde a data da presente sentença até integral pagamento; e

e) Absolver a Ré Liberty Seguros, S.A. do demais contra si peticionado pelos Autores.

Custas a cargo dos Autores e da Ré Liberty Seguros, S.A., na proporção dos respectivos decaimentos (arts. 527.°, n.°s 1 e 2, do CPC).»

Inconformados, quer os AA. quer a R. Liberty Seguros apresentaram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de ....

Os AA. apenas impugnaram de direito, invocando a responsabilidade solidária dos RR. DD e Liberty Seguros e a condenação do primeiro para além do valor do capital seguro; e, bem assim, questionando o valor da indemnização devida aos AA. por danos patrimoniais futuros pela perda de rendimentos/alimentos decorrentes do óbito de EE, que pretendem seja em quantia não inferior a € 150 000,00.

A R. Liberty Seguros, por seu lado, invocou a nulidade da sentença, impugnou a matéria de facto (em concreto o ponto 11. assente) e questionou a decisão de direito na parte relativa à alegada exclusão da cobertura e à alegada nulidade do seguro; questionou também o juízo sobre a culpa do segurado na produção do sinistro e a responsabilidade da R..

Em 15 de Dezembro de 2020 foi proferido acórdão no qual se decidiu:

«- julgando parcialmente procedente a apelação dos AA., revogar a al. a) do segmento decisório e condenar o 1º R., DD, a pagar aos AA. o valor indemnizatório arbitrado que venha a exceder o capital seguro;

- julgando parcialmente procedente a apelação da Ré Liberty, alterar a sentença recorrida e fixar os valores referidos nas als. b), c) e d) do segmento decisório, em € 37.500,00 (al. b)), € 37.500,00 (al. c)), e € 28.125,00 (al. d)), respetivamente».


2. Inconformados com a decisão do Tribunal da Relação, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça quer os AA., quer a R. Liberty Seguros e o R. DD.

Os AA. apresentaram revista em cujas conclusões invocam que o acórdão recorrido:

- Violou os arts. 483.º, n.os 1 e 2, 487.º, n.º 2, 563.º, 570.º, n.º 1, todos do Código Civil, e os arts. 39.º e 41.º do Regulamento da Náutica de Recreio (RNR), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 124/2004, de 25 de Maio, ao decidir alterar a repartição de culpas em 50% para a vítima e 50% para o 1.º R. ao contrário do que fez a 1.ª instância, que fixou essa responsabilidade em 1/5 e 4/5 respectivamente. Alega que deve ser mantida esta repartição de culpas, conforme fundamentado em 1.ª instância, pois o R. DD era o proprietário e timoneiro da embarcação e estava contratualmente obrigado a zelar pela segurança dos mergulhadores a seu cuidado, pelo que deveria ter aguardado pela emersão da vítima, tarefa esta dificultada pelas condições climatéricas, profundidade do local e pela falta de sinais luminosos na embarcação;

- Mais alegou que o art. 41.º do Regulamento da Náutica de Recreio (RNR) estabelece que os proprietários e os comandantes de embarcações de recreio estão obrigados a ressarcir todos os danos causados a terceiros pela embarcação de recreio (ER), podendo a sua obrigação de indemnização ser excluída apenas se o acidente se tiver ficado a dever a culpa exclusiva do lesado, o que manifestamente não sucedeu nos presentes autos, pelo que, independentemente do grau de culpa atribuído ao R. DD, o mesmo está sempre obrigado a ressarcir a totalidade dos danos causados e, por força da cobertura de responsabilidade efectivada pelo contrato de seguro válido e eficaz celebrado com a R. Liberty Seguros, deverá esta pagar a indemnização devida até ao montante do capital seguro de € 250.000,00. E, mesmo que assim não se entenda, sempre se deverá atender ao especial perigo causado pela utilização de embarcação de recreio a motor.

A R. Liberty Seguros deduziu recurso de revista no qual, de acordo com as suas conclusões, invocou o seguinte:

- O acórdão recorrido é nulo, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alíneas c) e d) do Código de Processo Civil, porque presume o que não era lícito presumir, pois que não existe qualquer facto provado que demonstre que o 1.º R. alguma vez tivesse dado (ou também tivesse dado) à ... o uso de actividade de recreio;

- Uma vez que, no momento do sinistro, a embarcação estava a ser utilizada no exercício de uma actividade profissional, que é até ilegal, a exclusão da cobertura é válida e oponível pela R. seguradora, ora Recorrente, ao 1.º R., por se tratar de um seguro de embarcação de recreio;

- O contrato de seguro é nulo por manifesta falta de interesse legítimo do 1.º R. em contratá-lo, atenta a ilicitude do fim a que destinava a embarcação segura, sendo esta nulidade oponível aos terceiros lesados, pelo que, ao assim não ter decidido, o acórdão recorrido violou o disposto no art. 43.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de Abril, e nos arts. 286.º e 291.º, este a contrario, do Código Civil;

- O acórdão recorrido interpretou mal a cláusula contratual que exclui/limita a cobertura de seguro e, nessa medida, violou o disposto no art. 236.º, n.º 1, do CC, ao não ter condenando o 1.º R. também e solidariamente com a ora Recorrente, na totalidade do montante arbitrado, e não somente na parte que venha a exceder o capital seguro.

Por sua vez, também o R. DD apresentou recurso de revista, no qual, de acordo com as respectivas conclusões, invocou que:

- O acórdão recorrido errou ao aplicar o art. 570.º, n.º 1, do Código Civil, uma vez que a indemnização deveria ter sido excluída ou reduzida, por se tratar de um caso de culpa exclusiva do lesado ou, pelo menos, de maior contribuição deste, o que é demonstrado através dos factos provados 15, 17, 18, 47, 49, 52, 56, 94, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103 e 104, devendo a culpa ser repartida em 1/5 para o 1.º R. e 4/5 para o lesado;

- A morte do lesado ocorreu porque este não usou o balão de reflutuação para, antes de emergir, sinalizar a sua presença e não pelo facto do R. DD não ter aguardado que todos os mergulhadores viessem à superfície;

- O acórdão recorrido é um acórdão condicional, proibido e rejeitado pelo ordenamento jurídico, ao fixar a condenação do R. DD de modo dependente de decisões judiciais futuras, pelo que deve o mesmo R. ser absolvido do pedido porquanto a indemnização fixada no acórdão recorrido não supera o valor máximo coberto pelo seguro;

- A absolvição do pedido em 1.ª instância não foi motivada por uma qualquer ilegitimidade do 1.º R., antes porque a indemnização atribuída aos AA. não ultrapassava o tecto máximo do valor segurado, o que, em consequência, afastava, por imposição legal, a responsabilidade do R. DD, uma vez que aquela se encontrava, por lei, transferida para a R. Liberty Seguros; e, ao condenar o R. DD, quando, em função do valor indemnizatório fixado pela decisão recorrida, a sua responsabilidade está transferida para a R. Liberty Seguros, o tribunal a quo violou os arts. 1.º, 6.º, 7.º e 18.º da Portaria n.º 689/2001, de 10 de Julho.


3. Em resposta às alegações da R. Liberty Seguros, os AA. vieram invocar:

- A inadmissibilidade do recurso por verificação de dupla conforme, uma vez que as duas questões que a R. invoca (cobertura do sinistro pela apólice e nulidade do contrato de seguro) foram decididas em sentido idêntico pelas instâncias;

- As passagens do acórdão que a Recorrente invoca não dizem respeito ao acórdão recorrido, mas sim ao acórdão proferido no apenso A, pelo que não existe uma verdadeira impugnação do acórdão recorrido;

- A manutenção do acórdão nos termos da fundamentação aí expendida.

Em resposta às alegações do R. DD, os AA. vieram invocar o seguinte:

- Na definição e proporção de responsabilidade do R. DD (mínimo de 50%) verifica-se dupla conforme decisória quanto à R. Liberty Seguros, a qual, pelo menos até ao limite fixado para o seguro obrigatório, deverá ser estendida ao R. DD;

- Relativamente à contribuição de cada um dos intervenientes para o acidente, os AA. dão por reproduzidas as suas alegações, devendo prevalecer o entendimento da 1.ª instância;

- O R. DD deve ser condenado a pagar o valor que venha a exceder o capital seguro suportado pela R. Liberty Seguros, pois acima desse valor a sua responsabilidade não se encontra garantida, devendo o mesmo responder pessoalmente, tudo em conformidade com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 6.º, 7.º, 12.º e 18.º da Portaria n.º 689/2001, de 10 de Julho, o que não constitui uma condenação condicional proibida.

O R. DD também apresentou contra-alegações ao recurso dos AA., invocando o seguinte:

- A culpa é exclusiva do lesado ou, pelo menos, a sua contribuição é muito superior à do 1.º R., pois a morte ocorreu porque o lesado não usou o balão de reflutuação antes de emergir, para sinalizar a sua presença (cfr. facto provado 102.);

- A interpretação que os AA. fazem do art. 41.º do Regulamento da Náutica de Recreio (RNR) é desprovida de sentido.

O R. DD mais respondeu ao recurso da R. Liberty Seguros, nos seguintes termos:

- O recurso da R. é legalmente inadmissível, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, pois as duas questões que suscita foram objecto de pronúncia pelas instâncias, tendo sido julgadas improcedentes com a mesma fundamentação;

- Relativamente ao mérito do recurso, caso seja admitido, deverá o mesmo ser julgado improcedente, mantendo-se o já decidido.


4. O Tribunal da Relação, por acórdão da conferência de 13 de Abril de 2021, pronunciou-se no sentido da não verificação da nulidade do acórdão recorrido invocada pela R. Liberty Seguros.


5. Suscitando-se dúvidas acerca da admissibilidade do recurso da R. Liberty Seguros, nos termos do art. 655.º do Código de Processo Civil, foi proferido o seguinte despacho da relatora:

«Em sede de contra-alegações ao recurso da R. Liberty Seguros, S.A., suscitam os recorridos, tanto os AA. como o R. DD, a inadmissibilidade de tal recurso por alegada verificação de dupla conforme entre as decisões das instâncias a respeito da decisão das duas questões suscitadas pela recorrente.

Na medida em que a dupla conforme se afere em função da decisão final proferida pela 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação, e não em função da apreciação de questões recursórias, a posição assumida pelos recorridos carece de fundamento.

Contudo, constatando-se que, tendo a apelação da R. Liberty Seguros sido julgada parcialmente procedente, com a consequente condenação da mesma R. a pagar aos AA. indemnização de valor mais baixo do que a condenação da 1.ª instância, há que ter em conta que – de acordo com a orientação actualmente dominante da jurisprudência deste Supremo Tribunal – é de equiparar à situação de conformidade decisória absoluta a situação em que, nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa («Dupla conforme: critério e âmbito da conformidade», in Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Janeiro/Março de 2008, pág. 26), a decisão da Relação “seja mais favorável ao apelante do que a decisão de 1.ª instância – isto é, qualquer decisão da Relação que lhe “dê mais” ou que lhe “tire menos” do que a decisão de 1.ª instância”, a qual, portanto, e segundo o mesmo autor, será “uma decisão “conforme” a esta última decisão”.  

Ao abrigo do art. 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, notifique as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso da R. Liberty Seguros, S.A. com este fundamento.» [negritos nossos]

Nem a Recorrente nem os Recorridos se vieram pronunciar sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso da R. Liberty Seguros pelo fundamento exposto. Assim sendo, na linha da orientação jurisprudencial consolidada neste Supremo Tribunal, considera-se que, quanto àquele recurso, se verifica o obstáculo da dupla conformidade.

Esclareça-se ainda ser inteiramente destituída de sentido a alegação dos AA. segundo a qual a dupla conforme decisória quanto à R. Liberty Seguros seria, total ou parcialmente, extensível ao R. DD. Com efeito, aferindo-se a dupla conforme em função da decisão final, e tendo o 1.º R. sido absolvido pela sentença da 1.ª instância e condenado pelo acórdão da Relação, dúvidas não subsistem que não se verifica, quanto ao recurso de revista por ele interposto, o impedimento da dupla conforme.

Em conclusão, não se admite o recurso da R. Liberty Seguros.

Não existindo impedimento à admissibilidade do recurso dos AA. e do recurso do R. DD, admitem-se estes recursos.


6. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):

1) Em … de Agosto de 2012, AA vivia em união de facto com EE há 12 anos, ambos com residência na Praceta ..., ... ..., ....

2) BB e CC são filhos do falecido EE e de AA.

3) BB e CC tinham, em … de Agosto de 2012, respectivamente, 4 e 2 anos de idade.

4) DD é o condutor e proprietário da embarcação de recreio "...", conjunto de identificação nº D1233TR.

5) Liberty Seguros, Compañia de Seguros Y Reaseguros, SA (sucursal em Portugal) e o Réu celebraram o acordo escrito cuja cópia foi junta a fls. 67v/68v e aqui se dá por reproduzida, titulado ainda pela denominada apólice de seguro cuja cópia foi junta a fls. 69/70v que igualmente aqui se dá por reproduzida.

6) No dia … de Agosto de 2012, cerca das 16h.00m, no ..., aproximadamente na posição geográfica (...) ... e ..., entre a bóia verde Nº... e a bóia vermelha Nº..., EE e FF iniciaram mergulho, com recurso a sistema de respiração autónomo (botijas de ar), que se destinava à apanha de moluscos bivalves (ameijôa).

7) Os referidos mergulhadores haviam sido transportados para esse local pela embarcação "...", conduzida pelo R. DD.

8) Em resultado de um acordo verbal celebrado entre os três, o R. DD comprometeu-se a agir como timoneiro, deslocando a sua embarcação para o local combinado.

9) E a prestar o apoio e assistência necessários aos mergulhadores EE e FF, bem como proceder à sua recolha no final do mergulho e aos bivalves que estes iriam apanhar.

10) O R. DD, no dia … .08.2012, prestou depoimento à Polícia Marítima nos termos que constam do documento junto a fls. 22v/23 que aqui se dá por reproduzido.

11) O R. DD, à semelhança do que havia sucedido em situações anteriores, era remunerado pelo serviço de apoio prestado.

12) O R. DD, após ter deixado os mergulhadores, afastou-se do local, para não denunciar a presença destes às autoridades, uma vez que a actividade que praticavam não era autorizada.

13) A determinada altura, pelas 19h.45m, passadas que estavam cerca de 3h.45m de mergulho, o R. DD realizou o sinal combinado e usual para que os mergulhadores que se encontravam na água regressarem à superfície.

14) O qual consistia em duas fortes acelerações do motor da referida embarcação.

15) De seguida, os mergulhadores efectuariam a subida mediante o lançamento de um balão de reflutuação e sinalização que os ajuda a submergir e serve igualmente para sinalizar a sua presença na água.

16) De seguida, os mergulhadores aguardariam que a embarcação de apoio procedesse à sua recolha.

17) É habitual, nesta actividade, que os mergulhadores apenas insuflem o balão/bóia no final do mergulho, o qual para além dos ajudar a trazer os sacos carregados de ameijôa para a superfície, permite que os mergulhadores fiquem em flutuação, devidamente sinalizados, até serem retirados da água.

18) Ao ver que um dos mergulhadores já se encontrava à superfície, a embarcação conduzida pelo R. DD deslocou-se, imediatamente, ao encontro do mesmo, sem aguardar pela emersão do segundo mergulhador (e respectiva sinalização que se faria através do lançamento do balão/bóia),

19) E, de igual modo, sem que se tivesse assegurado da localização concreta do segundo mergulhador.

20) Nas referidas condições de tempo e lugar, a embarcação de recreio "...", comandada pelo R. DD, veio a embater no mergulhador EE, causando-lhe a morte.

21) Na altura do acidente existia ondulação acentuada devido ao vento que se fazia sentir (vento moderado a forte) e chovia.

22) A maré cheia (preia-mar) tinha ocorrido por volta das 14h.03m e a maré baixa (baixa-mar) estava prevista para as 20h.08m, nos termos que constam do documento junto a fls. 23v que aqui se dá por reproduzido.

23) O referido estado do tempo e mar reduzia a visibilidade do comandante da embarcação "...".

24) O local do ... onde se dava a actividade de apanha de ameijôa por parte dos mergulhadores tem profundidades na ordem de um metro a cinco metros, nos termos que constam do documento junto a fls. 24 e que se dá por reproduzido.

25) Após comunicação da ocorrência às Autoridades, os agentes da Polícia Marítima, deslocaram-se, a bordo da semi-rígida "...", para o local reportado como tendo sido o do acidente.

26) Chegados ao local os referidos agentes abordaram a embarcação de recreio "...", conduzida pelo R. DD, o qual disse aos agentes o que se relata no documento junto a fls. 24v/25, que se dá por reproduzido.

27) Na altura, os agentes da Polícia Marítima puderam também verificar que se encontravam a bordo da embarcação "..." para além do R. DD duas outras pessoas (GG e HH), as quais terão embarcado, em circunstâncias desconhecidas, depois de os mergulhadores terem sido deixados na apanha da ameijoa.

28) Após o desaparecimento do mergulhador, durante cerca de três dias, tiveram lugar operações de busca no ... e em toda a área envolvente destinadas a encontrar o referido mergulhador EE, efectuadas pela Polícia Marítima, ..., Bombeiros Voluntários de ... e Força Aérea Portuguesa.

29) No dia … de Agosto de 2012, cerca das 9:00 horas, o corpo do mergulhador EE foi encontrado a boiar na margem sul do ..., junto à ..., tendo sido recolhido e transportado para a referida ..., nos termos que constam do documento junto a fls. 25v/26 que se dá por reproduzido.

30) Na altura da recolha, foi constatado que o corpo de EE envergava o facto de mergulho completo, apresentando ferimentos (golpes) na face e crânio e no enfiamento dos referidos golpes existiam danos no capacete de plástico de cor amarela e na lanterna que trazia acoplada ao capacete.

31) Após a recolha do corpo foi verificado o óbito de EE, pela competente a ..., nos termos que constam do documento junto a fls. 29v que se dá por reproduzido.

32) E, de seguida foi transportado o cadáver para o Hospital do ... a fim de ser realizada a autópsia médico-legal, nos termos que constam do documento junto a fls. 25v/26 que se dá por reproduzido.

33) Do relatório de autópsia feita ao cadáver do EE consta: na parte relativa ao hábito externo, que a "protecção da cabeça em plástico apresentava corte linear posterior com cerca de 20 cms de extensão" e o "couro cabeludo com ferida parieto-occipital esquerdo até região parieto-occipital direito com fractura completa da calote craneana com extravasão de sangue"; quanto ao hábito interno "verifica-se extensão da ferida para os planos intracraneanos com secção meningea e esfacelo cerebral com hematoma intracraneano"; tendo sido considerada como causa da morte "Esfacelo cerebral por ferida transfixiva da calote craneana"; nos termos que constam do documento junto a fls. 31 que se dá por reproduzido.

34) E, mediante esclarecimento complementar do perito médico que efectuou a autópsia, este concluiu que a lesão que vitimou EE foi provocada por um embate violento, que originou a sua morte imediata, nos termos que constam dos documentos juntos a fls. 31v/32 que se dão por reproduzidos.

35) Como consequência do embate com a embarcação "...", conduzida pelo R., o mergulhador EE sofreu esfacelo cerebral por ferida transfixiva da calote craniana, o que causou a sua morte imediata.

36) Após a ocorrência em causa nos presentes autos foram desenvolvidas várias diligências por parte da Polícia Marítima para averiguação do sucedido.

37) A embarcação de recreio "..." foi submetida a inspecção às condições de segurança, por parte da Capitania do Porto de ..., tendo sido verificado que a embarcação não apresentava, entre outros meios obrigatórios, as devidas luzes de navegação, conforme termo de vistoria que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, nos termos que constam do documento junto a fls. 32v/34 que se dá por reproduzido.

38) Tendo o perito que realizou a vistoria concluído que a "embarcação não reúne as condições para poder navegar na actividade que está registada", nos termos que constam do documento junto a fls. 32v/34 que se dá por reproduzido.

39) No dia … de Agosto de 2012, o R. DD procedeu à entrega à Polícia Marítima de ... de um saco seco, tipo estanque, de cor preta, de marca "...", conforme auto de apreensão que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, nos termos que constam do documento junto a fls. 34v que se dá por reproduzido.

40) Este saco, segundo o relato do R. prestado junto da Polícia Marítima, terá sido utilizado como balão de sinalização pelo mergulhador EE na operação de emersão (subida à superfície).

41) Após estudo apurou-se que se trata "de um saco de 40 litros, constituído em tela com PVC, de cor preta, de marca "..." (dry bag 40 L.), onde é possível visualizar junto ao topo da sua abertura - um rasgão ou corte na vertical com forma curvilínea de cerca de 20 mm; outro corte na horizontal no sentido da abertura com cerca de 5,5 mm; outro corte menor no mesmo sentido de cerca de 3,5 mm; a fita do tecido que reforça a abertura encontra-se cortada na zona do corte vertical; apresentando toda aquela zona indícios de que esteve em contacto com objecto cortante (hélice) (...)", nos termos que constam do documento junto a fls. 35 que se dá por reproduzido.

42) O aludido balão foi utilizado por EE.

43) Foi efectuada perícia ao equipamento de mergulho da vítima pelo Grupo de Mergulho Forense da Polícia Marítima ..., cujo relatório foi junto a fls. 36/38 e aqui se dá por reproduzido, tendo sido identificado um profundímetro, que registava o tempo de duração dos últimos oito mergulhos.

44) No relatório concluiu-se que a hora do início do último mergulho foi às 16h.00m do dia … de Agosto de 2012.

45) À hora do acidente (19h.45m), o mergulho apresentava uma duração de 3h.45m.

46) Este mergulho ultrapassava o tempo médio e normal para esta prática e para o local em questão, sendo previsível a emersão do mergulhador EE a qualquer altura.

47) O R. DD, na qualidade de condutor da embarcação "...", não aguardou que ambos os mergulhadores estivessem à superfície, devidamente visíveis, antes de iniciar a navegação e as operações de recolha dos mesmos.

48) Tinha um aparelho GPS a bordo da embarcação que lhe permitia saber, pelo menos de forma aproximada, o local onde se havia deixado os mergulhadores.

49) Logo que o primeiro mergulhador apareceu à superfície, a embarcação conduzida pelo R. DD deslocou-se para junto do mesmo, sem apurar onde se encontrava o segundo mergulhador.

50) O acidente em causa nos presentes autos deu lugar à abertura de um processo crime, que correu termos no … Juízo do Tribunal Judicial de ..., sob o n° 218/12......., o qual terminou com decisão instrutória de não pronúncia do arguido, aqui R. DD, proferida em 14 de Outubro de 2013, cuja cópia foi junta a fls. 39/51 e aqui se dá por reproduzida.

51) O R. DD sabia onde tinha deixado os mergulhadores e, pelo menos, o local aproximado em que estes se encontravam.

52) Do mesmo modo, o R. sabia que tinha dado o sinal para os mergulhadores submergirem, pelo que estes podiam subir a qualquer instante.

53) Sabia, também, que as condições de tempo e mar dificultavam a visibilidade dos mergulhadores à superfície e, em particular, no que respeita ao seu aparecimento à tona de água.

54) O R. DD conhecia a duração do mergulho (cerca de 3h.45m) e a profundidade do local.

55) O R. é praticante habitual do mesmo tipo de mergulho que estava a ser efectuado, pelo que conhece as especificidades do local e da actividade realizada.

56) O mergulhador EE não se encontrava visível antes de ter sido embatido pela embarcação comandada pelo R. DD.

57) O R. DD não sabia o local concreto em que EE se encontrava.

58) EE nasceu em … de … de 1969 e tinha, na data do seu falecimento, 43 anos de idade.

59) Era uma pessoa saudável, alegre e bem-disposta, amante da vida, sendo considerado e estimado pelos amigos, família e vizinhos.

60) Constituía com os AA., a sua companheira e filhos, que o amavam, uma família harmoniosa e feliz.

61) O falecido EE tinha ainda uma outra filha (II), fruto de um anterior casamento.

62) O falecido EE vivia em função dos seus filhos e companheira.

63) Era um companheiro meigo e exemplar e um pai extremoso.

64) Tinha a expectativa de ver crescer e educar os seus filhos.

65) Era licenciado em … .

66) Era titular de uma pós-graduação em Direito …. .

67) E exercia a actividade profissional de …., estando na fase final do estágio, pretendendo tornar-se … .

68) Para além disso era pescador e tinha um gosto apaixonado pelas coisas do mar.

69) A companheira e os filhos do falecido, ora AA. na presente acção, eram extremamente amigos do falecido, estando ligados a ele por fortes laços de afeição, amor e carinho.

70) Na data do acidente, ficaram em estado de choque e pânico e sofreram um enorme desgosto e abalo psicológico com a perda do companheiro e pai.

71) Padeceram de desgosto que ainda hoje permanece.

72) A A. AA tinha a expectativa de uma vida de união e de felicidade com o seu companheiro e filhos por muitos anos.

73) Ficou muito perturbada e sofreu um grande desgosto em ter perdido o seu companheiro de forma tão trágica, recordando-o todos os dias até hoje.

74) A A. AA ficou traumatizada a ponto de ter recebido, por esse motivo, tratamento e apoio psicológico.

75) Ficou com os dois filhos menores de 4 e 2 anos a seu cargo exclusivo, a quem teve, desde logo, que procurar explicar o que havia sucedido com o pai.

76) O A. BB tinha uma forte ligação ao pai, por quem nutria um grande apego e carinho.

77) A A. CC, atenta a sua idade, mal chegou a conhecer o pai.

78) Os AA. BB e CC perderam o pai num período da vida em que é maior a dependência de carinho e cuidados.

79) E irão padecer ao longo da sua vida da ausência da figura paterna, não podendo beneficiar do seu acompanhamento, amparo, assistência, carinho e afecto.

80) O falecido EE e os AA. viviam em comunhão de mesa e habitação.

81) A vítima auferia do exercício da sua actividade de Advogado-estagiário o montante mensal médio de € 1.000,00.

82) O que importava o rendimento anual de cerca de € 12.000,00.

83) E auferia da prática da pesca um rendimento mensal não inferior a € 500,00.

84) EE gastava consigo um valor não superior a um terço daquilo que auferia, destinando todos os restantes proventos às necessidades do seu agregado familiar.

85) EE suportava parte substancial das despesas e encargos do agregado familiar, incluindo as despesas inerentes à amortização do empréstimo para a aquisição de casa própria.

86) Situação esta que, não fora a ocorrência do acidente em causa nos autos, se iria manter.

87) A A. AA beneficiaria, se não tivesse ocorrido a morte, dos rendimentos da actividade de EE, bem como da subsequente pensão.

88) Também os AA. BB e CC poderiam receber auxílio económico do seu pai até completarem a formação académica até aos 23 anos.

89) A A. AA recebeu a quantia de € 9.507,30 a título de pensão de sobrevivência, que lhe foi paga pela Segurança Social nos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016.

90) Os AA. BB e CC receberam a quantia de € 2.110,79, a título de pensão de sobrevivência, que lhes foi paga pela Segurança Social nos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016.

91) O R. DD apresentou à R. Liberty, a 10 de Maio de 2011, a proposta de seguro, que subscreveu e assinou, cuja cópia foi junta a fls. 67v/68v e que aqui se dá por reproduzida.

92) Por via de tal proposta pretendeu segurar os riscos nela discriminados, nomeadamente os de responsabilidade civil por danos eventualmente causados a terceiros, em consequência da utilização da embarcação "...", afeta à atividade de lazer ou recreio do proponente.

93) Nos termos contratados entre os RR, o capital seguro para a cobertura de responsabilidade civil, única ao caso dos autos aplicável, tinha por limite o montante de €250.000.

94) EE procedia à actividade de mergulho sem a utilização, à superfície, de uma bóia de segurança e sinalização da sua localização, de modo a poder ser conhecida pelos pilotos de embarcações que navegassem nas imediações.

95) A A. AA constituiu-se como assistente e interveio no processo de inquérito n.° 218/12...  que correu os seus termos no Tribunal ....

96) Nos referidos autos, não foi proferido despacho de acusação.

97) O GPS disponível ao R. DD na data do acidente apenas permitia verificar coordenadas e profundidade e não qualquer objeto, vida humana ou marinha no fundo do rio.

98) O R., cerca das 19:45, do dia … .08.2012, e perto da localização onde inicialmente largou os mergulhadores, deu conhecimento àqueles que poderiam começar a emergir, acelerando o motor e aguardou.

99) Instantes depois, avistou o balão que sinalizava a presença do mergulhador FF e iniciou a navegação na sua direção para o recolher.

100) Subitamente, e instantes depois de ter iniciado a navegação, sentiu um embate na sua hélice e, de imediato, olhou para a ré da embarcação e avistou, por breves instantes, o mergulhador EE, à superfície, e aparentemente, inconsciente.

101) Ato contínuo, o R. lançou-se ao mar na tentativa de o socorrer, mas o corpo submergiu e o R. não mais o avistou.

102) EE emergiu sem utilizar o balão para sinalizar a sua posição, emergindo juntamente com ele.

103) Todos os intervenientes eram mergulhadores experientes, conheciam a ilegalidade da atividade que iam desenvolver, bem com os riscos inerentes a um mergulho sem sinalização, como coimas, danos físicos, ou mesmo a morte.

104) O R. não contava que o mergulhador EE subisse no momento em que subiu.


De acordo com a sentença de 1.ª instância, não se provou qualquer outro facto pertinente para a apreciação da causa e, designadamente, que:

- O sinal combinado e usual para que os mergulhadores que se encontravam na água regressarem à superfície consistia numa forte aceleração do motor da referida embarcação.

- Na altura do acidente chovia intensamente.

- O referido estado do tempo e mar reduzia significativamente o tempo de reacção do comandante da embarcação “...” perante a existência ou aparecimento dos mergulhadores à superfície.

- Logo que o primeiro mergulhador apareceu à superfície, a embarcação conduzida pelo R. DD deslocou-se em grande velocidade para junto do mesmo.

- No dia … .08.2012, cerca das 16:00 horas, no ..., local onde EE e FF, procediam ao mergulho, com recurso a sistema de respiração autónomo, para apanha de bivalves, o R., e os mergulhadores referidos, acordaram, por questões de segurança, e atenta a actividade que desenvolviam, a forma de actuação de cada um durante e após o mergulho.

- Acordaram, e era prática comum nesta actividade, que a utilização de um balão só seria efetivada, no fim do mergulho – e não durante -, por forma a evitar denunciar a sua atividade junto das autoridades marítimas e permitir que o timoneiro avistasse e recolhesse os mergulhadores em segurança no fim do mergulho.

- Mais acordaram que, no início do mergulho, o R., marcaria no GPS as coordenadas da posição em que largou os mergulhadores e se afastaria do local para não levantar suspeitas junto da autoridade marítima.

- E ainda acordaram que, no término do mergulho, o R. avisaria os mergulhadores que poderiam começar a emergir, acelerando com o motor da embarcação – cerca de 3 a 4 vezes.

- EE e FF acordaram com o R. que a emersão daqueles, no término do mergulho, far-se-ia da seguinte forma: em primeiro lugar, e após sinalizar a sua posição com o balão, emergiria FF; enquanto isso, o segundo mergulhador, EE, deveria permanecer debaixo de água, em profundidade de segurança, enquanto o R. se deslocava na direção do mergulhador, FF, e o recolhia; posteriormente, após a recolha do primeiro mergulhador – que demoraria cerca de 4 a 5 minutos – deveria emergir a vítima, EE, e só após sinalizar, também previamente, a sua posição com o balão.

- EE, emergiu antes do tempo acordado para o efeito.

- A recolha dos mergulhadores, com o conhecimento e concordância dos mesmos, seria feita à vez e pela ordem supra referida.

- O R. DD não podia contar que o mergulhador EE subisse no momento em que subiu.

- O Réu deslocou-se a uma velocidade lenta e não podia prever que o mergulhador EE emergia, com o auxílio do balão de reflutuação.

- O mergulhador EE emergiu em desrespeito pelas regras de segurança acordadas e comummente praticadas nesta atividade.

- O mergulhador FF respeitou as regras de conduta e segurança aprovadas previamente.

- EE e FF aceitaram expressamente os riscos e consequências que da actividade que iriam desenvolver podiam decorrer, como coimas, danos físicos, ou mesmo a morte, e com todas aquelas hipóteses se conformaram.

- EE mergulhou com mais litros de oxigénio do que FF e este consumiu mais ar.

- O Réu era o melhor amigo de EE.


8. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Assim, os recursos admitidos têm por objecto as seguintes questões:

Recurso dos AA.:

- Saber se a repartição da culpa pelo acidente entre a vítima mortal, EE, e o R. DD deve ser feita nos termos decididos pela 1.ª instância, i.e., respectivamente em 1/5 e 4/5;

- Saber se, de qualquer forma, sendo aplicável o regime do art. 41.º do RNR, independentemente do grau de culpa atribuído a cada um dos intervenientes, o R. DD, enquanto proprietário e comandante da embarcação, deve ser considerado o único responsável pelos danos causados, responsabilidade esta que se encontra coberta pelo seguro celebrado com a R. Liberty Seguros.


Recurso do R. DD:

- Saber se se deve considerar que o lesado EE teve culpa exclusiva no acidente que o vitimou, ou, se assim não se entender, se a repartição da culpa deve ser feita em 4/5 para o lesado e 1/5 para o 1.º R.;

- Em todo o caso, saber se o 1.º R. deve ser absolvido do pagamento de qualquer indemnização aos AA., tanto por a condenação do acórdão recorrido ser condicional, o que não é legalmente inadmissível, como por, estando a sua responsabilidade transmitida para a R. Liberty Seguros, o montante da indemnização não ultrapassar o limite máximo do valor do seguro.

Existe uma sobreposição, total ou parcial, das questões recursórias, as quais podem ser assim agrupadas:

- Culpa dos intervenientes no sinistro que vitimou EE e, existindo culpa de ambos, respectiva repartição;

- Regime de responsabilidade civil aplicável ao sinistro;

- Responsabilidade do R. DD e da R. Liberty Seguros pelo pagamento da indemnização em função do regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil.


9. Comecemos por apreciar a questão da ocorrência de culpa dos intervenientes no sinistro que vitimou EE e, existindo culpa de ambos, da respectiva repartição.

Releva a seguinte factualidade, dada como provada pela 1.ª instância, e mantida pela Relação:

4) DD é o condutor e proprietário da embarcação de recreio "...", conjunto de identificação nº D1233TR.

6) No dia … de Agosto de 2012, cerca das 16h.00m, no ..., aproximadamente na posição geográfica (...) ... e ..., entre a bóia verde Nº... e a bóia vermelha Nº..., EE e FF iniciaram mergulho, com recurso a sistema de respiração autónomo (botijas de ar), que se destinava à apanha de moluscos bivalves (ameijôa).

7) Os referidos mergulhadores haviam sido transportados para esse local pela embarcação "...", conduzida pelo R. DD.

8) Em resultado de um acordo verbal celebrado entre os três, o R. DD comprometeu-se a agir como timoneiro, deslocando a sua embarcação para o local combinado.

9) E a prestar o apoio e assistência necessários aos mergulhadores EE e FF, bem como proceder à sua recolha no final do mergulho e aos bivalves que estes iriam apanhar.

11) O R. DD, à semelhança do que havia sucedido em situações anteriores, era remunerado pelo serviço de apoio prestado.

12) O R. DD, após ter deixado os mergulhadores, afastou-se do local, para não denunciar a presença destes às autoridades, uma vez que a actividade que praticavam não era autorizada.

13) A determinada altura, pelas 19h.45m, passadas que estavam cerca de 3h.45m de mergulho, o R. DD realizou o sinal combinado e usual para que os mergulhadores que se encontravam na água regressarem à superfície.

14) O qual consistia em duas fortes acelerações do motor da referida embarcação.

15) De seguida, os mergulhadores efectuariam a subida mediante o lançamento de um balão de reflutuação e sinalização que os ajuda a submergir e serve igualmente para sinalizar a sua presença na água.

16) De seguida, os mergulhadores aguardariam que a embarcação de apoio procedesse à sua recolha.

17) É habitual, nesta actividade, que os mergulhadores apenas insuflem o balão/bóia no final do mergulho, o qual para além dos ajudar a trazer os sacos carregados de ameijôa para a superfície, permite que os mergulhadores fiquem em flutuação, devidamente sinalizados, até serem retirados da água.

18) Ao ver que um dos mergulhadores já se encontrava à superfície, a embarcação conduzida pelo R. DD deslocou-se, imediatamente, ao encontro do mesmo, sem aguardar pela emersão do segundo mergulhador (e respectiva sinalização que se faria através do lançamento do balão/bóia),

19) E, de igual modo, sem que se tivesse assegurado da localização concreta do segundo mergulhador.

20) Nas referidas condições de tempo e lugar, a embarcação de recreio "...", comandada pelo R. DD, veio a embater no mergulhador EE, causando-lhe a morte.

21) Na altura do acidente existia ondulação acentuada devido ao vento que se fazia sentir (vento moderado a forte) e chovia.

23) O referido estado do tempo e mar reduzia a visibilidade do comandante da embarcação "...".

24) O local do ... onde se dava a actividade de apanha de ameijôa por parte dos mergulhadores tem profundidades na ordem de um metro a cinco metros, nos termos que constam do documento junto a fls. 24 e que se dá por reproduzido.

35) Como consequência do embate com a embarcação "...", conduzida pelo R., o mergulhador EE sofreu esfacelo cerebral por ferida transfixiva da calote craniana, o que causou a sua morte imediata.

36) Após a ocorrência em causa nos presentes autos foram desenvolvidas várias diligências por parte da Polícia Marítima para averiguação do sucedido.

37) A embarcação de recreio "..." foi submetida a inspecção às condições de segurança, por parte da Capitania do Porto de ..., tendo sido verificado que a embarcação não apresentava, entre outros meios obrigatórios, as devidas luzes de navegação, conforme termo de vistoria que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, nos termos que constam do documento junto a fls. 32v/34 que se dá por reproduzido.

38) Tendo o perito que realizou a vistoria concluído que a "embarcação não reúne as condições para poder navegar na actividade que está registada", nos termos que constam do documento junto a fls. 32v/34 que se dá por reproduzido.

39) No dia 17 de Agosto de 2012, o R. DD procedeu à entrega à Polícia Marítima de ... de um saco seco, tipo estanque, de cor preta, de marca "...", conforme auto de apreensão que se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, nos termos que constam do documento junto a fls. 34v que se dá por reproduzido.

40) Este saco, segundo o relato do R. prestado junto da Polícia Marítima, terá sido utilizado como balão de sinalização pelo mergulhador EE na operação de emersão (subida à superfície).

41) Após estudo apurou-se que se trata "de um saco de 40 litros, constituído em tela com PVC, de cor preta, de marca "..." (dry bag 40 L.), onde é possível visualizar junto ao topo da sua abertura - um rasgão ou corte na vertical com forma curvilínea de cerca de 20 mm; outro corte na horizontal no sentido da abertura com cerca de 5,5 mm; outro corte menor no mesmo sentido de cerca de 3,5 mm; a fita do tecido que reforça a abertura encontra-se cortada na zona do corte vertical; apresentando toda aquela zona indícios de que esteve em contacto com objecto cortante (hélice) (...)", nos termos que constam do documento junto a fls. 35 que se dá por reproduzido.

42) O aludido balão foi utilizado por EE.

43) Foi efectuada perícia ao equipamento de mergulho da vítima pelo Grupo de Mergulho Forense da Polícia Marítima ..., cujo relatório foi junto a fls. 36/38 e aqui se dá por reproduzido, tendo sido identificado um profundímetro, que registava o tempo de duração dos últimos oito mergulhos.

44) No relatório concluiu-se que a hora do início do último mergulho foi às 16h.00m do dia … de Agosto de 2012.

45) À hora do acidente (19h.45m), o mergulho apresentava uma duração de 3h.45m.

46) Este mergulho ultrapassava o tempo médio e normal para esta prática e para o local em questão, sendo previsível a emersão do mergulhador EE a qualquer altura.

47) O R. DD, na qualidade de condutor da embarcação "...", não aguardou que ambos os mergulhadores estivessem à superfície, devidamente visíveis, antes de iniciar a navegação e as operações de recolha dos mesmos.

48) Tinha um aparelho GPS a bordo da embarcação que lhe permitia saber, pelo menos de forma aproximada, o local onde se havia deixado os mergulhadores.

49) Logo que o primeiro mergulhador apareceu à superfície, a embarcação conduzida pelo R. DD deslocou-se para junto do mesmo, sem apurar onde se encontrava o segundo mergulhador.

51) O R. DD sabia onde tinha deixado os mergulhadores e, pelo menos, o local aproximado em que estes se encontravam.

52) Do mesmo modo, o R. sabia que tinha dado o sinal para os mergulhadores submergirem, pelo que estes podiam subir a qualquer instante.

53) Sabia, também, que as condições de tempo e mar dificultavam a visibilidade dos mergulhadores à superfície e, em particular, no que respeita ao seu aparecimento à tona de água.

54) O R. DD conhecia a duração do mergulho (cerca de 3h.45m) e a profundidade do local.

55) O R. é praticante habitual do mesmo tipo de mergulho que estava a ser efectuado, pelo que conhece as especificidades do local e da actividade realizada.

56) O mergulhador EE não se encontrava visível antes de ter sido embatido pela embarcação comandada pelo R. DD.

57) O R. DD não sabia o local concreto em que EE se encontrava.

97) O GPS disponível ao R. DD na data do acidente apenas permitia verificar coordenadas e profundidade e não qualquer objeto, vida humana ou marinha no fundo do rio.

98) O R., cerca das 19:45, do dia … .08.2012, e perto da localização onde inicialmente largou os mergulhadores, deu conhecimento àqueles que poderiam começar a emergir, acelerando o motor e aguardou.

99) Instantes depois, avistou o balão que sinalizava a presença do mergulhador FF e iniciou a navegação na sua direção para o recolher.

100) Subitamente, e instantes depois de ter iniciado a navegação, sentiu um embate na sua hélice e, de imediato, olhou para a ré da embarcação e avistou, por breves instantes, o mergulhador EE, à superfície, e aparentemente, inconsciente.

101) Ato contínuo, o R. lançou-se ao mar na tentativa de o socorrer, mas o corpo submergiu e o R. não mais o avistou.

102) EE emergiu sem utilizar o balão para sinalizar a sua posição, emergindo juntamente com ele.

103) Todos os intervenientes eram mergulhadores experientes, conheciam a ilegalidade da atividade que iam desenvolver, bem com os riscos inerentes a um mergulho sem sinalização, como coimas, danos físicos, ou mesmo a morte.

104) O R. não contava que o mergulhador EE subisse no momento em que subiu.

A 1.ª instância entendeu que o acidente ocorreu devido à conduta negligente do R. DD, ao não ter aguardado que ambos os mergulhadores viessem à superfície antes de colocar a embarcação em andamento, omitindo o dever de cuidado na sua condução; entendeu ainda que a vítima também contribuiu para a produção do acidente, ao não sinalizar previamente a sua emersão, fixando em 1/5 a culpa da vítima e em 4/5 a culpa do R. DD, com a seguinte fundamentação:

«(…) na situação em análise, estabelecida que foi, em face da factualidade provada, a conduta negligente do Réu DD, não há que apelar a normas que consagram simples presunções de culpa, encontrando-se esta suficientemente comprovada. Cumprirá aqui, de igual forma, não esquecer a concorrência do comportamento negligente da vítima para a produção do embate do qual resultou a sua morte. Entendemos, pelas razões já expostas, que o grau de comparticipação do Réu para o facto é muito superior ao da vítima, considerando que se o Réu tivesse aguardado uns escassos segundos para localizar mergulhador em que viria a embater, como lhe era exigido (para mais, depois de dar sinal de emersão aos mergulhadores, conhecendo a escassa profundidade do local em que se encontravam e sendo um timoneiro e mergulhador experimentado), esse embate não teria ocorrido, apesar da vítima não ter sinalizado previamente o local em que iria emergir. Assim, para efeitos do artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil entendemos que o grau de comparticipação do Réu se deve estimar em 4/5 (quatro quintos) e o da vítima em 1/5 (um quinto). (…).» [negrito nosso]

Por seu lado, o acórdão da Relação considerou que a repartição de culpas entre a vítima e o R. DD deve ser feita em 50% para cada um, pois a gravidade da conduta de cada um foi igualmente proporcional para o evento lesivo. Fundamentou assim a decisão:

«Dos factos acima descritos resulta que o 1º R., DD, agiu ilicitamente e com culpa, não só por participar em atividade não autorizada – prestando apoio, no ..., à realização de mergulho com recurso a sistema de respiração autónomo (botijas de ar), destinado à apanha de moluscos bivalves (ameijoa) – em que eram, por esse mesmo motivo, postergadas as necessárias condições de segurança, como por ter deslocado a embarcação que governava para recolher um dos dois mergulhadores já avistado antes de se assegurar da localização do outro e sabendo que este podia emergir a qualquer momento. Tanto mais que fora o próprio R. DD quem fizera o sinal combinado e usual para que ambos os mergulhadores regressassem à superfície – duas fortes acelerações do motor da embarcação – perto da localização onde inicialmente os largara.

Deve, por isso, o 1º R. responder pelos danos causados (cfr. arts. 483, 487 e 493 do C.C.), sem prejuízo da responsabilidade transferida para a Ré seguradora, como adiante melhor veremos.

Porém, o mergulhador EE agiu também ilicitamente e com culpa. Não só porque participou, do mesmo modo, em atividade não autorizada – procedendo ele próprio à realização de mergulho com recurso a sistema de respiração autónomo (botijas de ar), destinado à apanha de moluscos bivalves (ameijoa) no ... – em que eram, por esse mesmo motivo, incumpridas as necessárias condições de segurança, como por não ter sinalizado devidamente a sua presença e, depois, a respetiva emersão à tona de água. Tanto mais que sendo licenciado em Direito e titular de uma pós-graduação em Direito Marítimo, exercendo, por outro lado, a atividade profissional de advogado estagiário (pontos 65 a 67supra), tinha a especial obrigação de saber que a atividade que na ocasião prosseguia era proibida por lei e ainda quais as condições de segurança adequadas à atividade de mergulho com botijas de ar.

No entanto, o referido EE realizava a mencionada atividade de mergulho sem a utilização, à superfície, de uma boia de segurança e sinalização da sua localização, de modo a poder ser conhecida pelos pilotos de embarcações que navegassem nas imediações e, para além disso, emergiu sem utilizar o balão para assinalar a sua posição, subindo à superfície, ao invés, juntamente com ele (ponto 102).

Conforme se apurou, nestas circunstâncias os mergulhadores efetuariam a subida mediante o lançamento de um balão de reflutuação e sinalização, que os ajuda a emergir e serve igualmente para sinalizar a sua presença na água, aguardando depois que a embarcação de apoio procedesse à sua recolha, sendo habitual, nesta atividade, que os mergulhadores apenas insuflem o balão/boia no final do mergulho, o qual para além de os ajudar a trazer os sacos de ameijoa, permite que os mergulhadores fiquem em flutuação, devidamente sinalizados, até serem retirados da água.

Ora, se o mergulhador EE tivesse assinalado antecipadamente a sua emersão, pelo menos através do lançamento do balão de reflutuação e sinalização, e não subido à superfície juntamente com ele como fez, provavelmente não teria sofrido o embate fatal. Tanto mais que não podia ignorar que a embarcação do 1º R. se encontrava nas imediações, atento o aviso que fora dado, e que o referido R. não podia saber o local exato em que cada um dos mergulhadores se encontrava e iria surgir à superfície da água.

O que vale por dizer que não foi seguramente irrelevante para a produção do sinistro e para o desenlace verificado a conduta da vítima.

Por sua vez, e como já referimos, apurou-se que todos os intervenientes eram mergulhadores experientes, conheciam a ilegalidade da atividade que iam desenvolver, bem com os riscos inerentes a um mergulho sem sinalização, como coimas, danos físicos, ou mesmo a morte.

Deste modo, temos de concluir que, com a sua conduta, o lesado contribuiu também para o resultado ocorrido, como, de resto, se entendeu em 1ª instância.

Divergimos, todavia, na proporção encontrada na sentença.

Com efeito, em face das circunstâncias descritas, cremos que a gravidade das condutas se revela equivalente, pelo que deve repartir-se a responsabilidade na ocorrência do sinistro na proporção de 50% para o 1º R. e de 50% para o lesado, de acordo com o previsto no art. 570, nº 1, do C.C..». [negrito nosso]

Tanto os AA. como o R. DD se insurgem contra esta decisão; este último pretendendo que a culpa pelo acidente seja atribuída exclusivamente ou, pelo menos, em maior grau, à vítima mortal; aqueles outros alegando que, tal como entendeu a 1.ª instância, a culpa da vítima deve ser tida como significativamente inferior à culpa do R. DD.

Quid iuris?


10. Da ponderação da matéria de facto dada como provada, resulta que a contribuição da conduta culposa do lesado EE para o sinistro foi, no máximo, equivalente à contribuição culposa da conduta do condutor da embarcação, o R. DD. Contudo, para saber se se deve confirmar o juízo da Relação ou, porventura, formular um juízo mais próximo daquele que foi feito pela 1.ª instância, importa apurar previamente qual é o regime de responsabilidade civil aplicável ao acidente dos autos, o que corresponde, afinal, a apreciar a segunda questão recursória supra enunciada (cfr. ponto 8. do presente acórdão).

Com efeito, as instâncias ponderaram a questão da repartição da culpa entre um e outro interveniente no sinistro dando como assente que o regime normativo aplicável seria a regra geral relativa à concorrência de culpas entre o agente o lesado, prevista no art. 570.º do Código Civil.

Alegam, porém, os AA. que o evento lesivo dos autos se encontra abrangido pelo regime especial previsto no art. 41.º do Regulamento da Náutica de Recreio (RNR), o qual, na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 124/2004, de 25 de Maio, vigente à data dos factos (ocorridos em 14.08.2012), sob a epígrafe Responsabilidade por danos a terceiros, prescrevia o seguinte:

«Os proprietários e os comandantes de ER são solidariamente responsáveis, independentemente da culpa, pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros pelas ER, salvo se o acidente se tiver ficado a dever a culpa exclusiva do lesado».

Invocam os AA. que, desta norma, se extrai que os proprietários e os comandantes de embarcações de recreio (ER) estão obrigados a ressarcir os danos causados a terceiros pelas ditas embarcações, apenas podendo esta obrigação de indemnização ser afastada se o acidente se tiver ficado a dever a culpa exclusiva do lesado, o que, alegam, manifestamente não sucedeu no acidente dos presentes autos.

Em sede de contra-alegações, o R. DD põe em causa a interpretação do art. 41.º do RNR apresentada pelos AA. Recorrentes, alegando que o mesmo deve ser interpretado em sentido essencialmente correspondente ao adoptado pela Relação.

Esquematicamente, foram estes os termos em que o tribunal a quo se pronunciou:

- O que a norma do art. 41.º do RNR «estipula é que os proprietários e os comandantes daquelas embarcações respondem por danos causados a terceiros ainda que tenham agido sem culpa, o que não significa que devam responder pelo valor total dos danos ficando provada a concorrência de culpas, numa determinada proporção, entre o agente e o lesado» [sublinhado nosso];

- Tendo assim concluído, ponderou, em função do regime geral do n.º 1 do art. 570.º do CC, a culpa do agente e a culpa do lesado, fixando a indemnização devida na respectiva proporção.

Com o devido respeito, afigura-se que o acórdão recorrido não alcançou plenamente o sentido do regime do art. 41.º do RNR (que, aliás, se manteve, no que ora importa, no art. 32.º do Regulamento, após as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 93/2018, de 13 de Novembro). Na verdade, constata-se que a norma em causa é composta por duas partes:

(i) A primeira parte, na qual se determina que «Os proprietários e os comandantes de ER são solidariamente responsáveis, independentemente da culpa, pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros pelas ER», disposição que, como a Relação reconheceu, estabelece um regime especial de responsabilidade objectiva dos proprietários e comandantes de embarcações de recreio;

(ii) A segunda parte («salvo se o acidente se tiver ficado a dever a culpa exclusiva do lesado»), na qual se prescreve que a responsabilidade objectiva por danos causados a terceiros, declarada na primeira parte do preceito, só não subsistirá naquelas situações em que o acidente tiver sido causado por culpa exclusiva do lesado.

Ora, se a responsabilidade objectiva do proprietário e/ou comandante da ER não é afastada por uma qualquer contribuição culposa do lesado para o evento danoso, mas, apenas e tão só, se o mesmo evento se ficou a dever à culpa exclusiva do lesado, assim será também se a responsabilidade do proprietário e/ou comandante da ER se fundar em culpa própria, como sucede no caso dos autos. Seria paradoxal, e até absurdo, que, numa situação de concorrência entre risco do proprietário/comandante da ER e contribuição culposa do lesado, a responsabilidade daquele se mantivesse por inteiro e, numa situação de concorrência entre culpa do proprietário/comandante da ER e contribuição culposa do lesado, a indemnização pudesse ser reduzida.

Por outras palavras, ao estabelecer um regime especial de responsabilidade objectiva, fundada no risco das embarcações em causa, responsabilidade que se mantém ainda que ocorra culpa do lesado (salvo se o acidente for exclusivamente devido, i.e., causado, por tal conduta culposa do lesado), tanto o elemento teleológico da interpretação como o elemento da unidade do sistema jurídico (cfr. n.º 1 do art. 9.º do Código Civil) implicam que – por identidade ou mesmo por maioria de razão – sendo o comandante da embarcação responsável por facto ilícito e culposo, a sua responsabilidade se mantenha quando a culpa do lesado não tiver sido a causa exclusiva do evento danoso, afastando-se assim o regime geral do n.º 1 do art. 570.º do CC.

Na verdade, as regras contidas no art. 41.º do RNR – que, efectivamente, ainda que inseridas num único preceito, funcionam como um sistema especial de responsabilidade extracontratual – encontram paralelo no regime da responsabilidade extracontratual do operador de aeronaves, previsto no art. 13.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 321/89, de 25 de Setembro (alterado pelo Decreto-Lei n.º 279/95, de 26 de Outubro), no qual se dispõe que «Não há lugar a responsabilidade do proprietário ou explorador da aeronave pelo ressarcimento dos danos  se o acidente se tiver ficado a dever a culpa exclusiva do lesado». Assim como no regime de responsabilidade extracontratual por acidentes com ultraleves e aeronaves de voo livre, inserido no art. 40.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 283/2007, de 13 de Agosto, no qual se prescreve que «Os proprietários dos ultraleves e os pilotos das aeronaves de voo livre abrangidos pelo presente diploma são responsáveis, independentemente de culpa, pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros pela aeronave, salvo se o acidente se tiver ficado a dever a culpa exclusiva do lesado». Cfr., a este respeito, da autoria da relatora do presente acórdão, a referência às diversas soluções legais de atribuição de relevância à culpa do lesado, «Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação», in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 490-491.

Nos diferentes preceitos referidos – e para em domínios nos quais, perante a elevada perigosidade para terceiros dos meios de transporte utilizados (embarcações, aeronaves, ultraleves), o legislador entendeu ser necessária uma protecção acrescida das vítimas – foi adoptada o mesmo tipo de solução normativa de acordo com a qual a responsabilidade do titular do meio de transporte só cede se o evento danoso for devido (i.e., causado) exclusivamente pela conduta culposa do lesado.

Em sentido convergente se pronunciou já este Supremo Tribunal no acórdão de 29.01.2015 (proc. n.º 228/07.2TNLSB.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt[1], a respeito de um acidente envolvendo uma embarcação de recreio, em cuja fundamentação se pode ler o seguinte:

«O acidente nas circunstâncias que foram provadas ficou a dever-se em exclusivo à conduta negligente como abordou o salto da embarcação.

E sendo a culpa exclusiva da autora à luz do citado art. 41 do DL 41/2004 de 25/5 o proprietário da embarcação não tem que responder pelos danos sofridos pela autora».

No caso dos autos, sendo certo que, da factualidade provada, resulta que tanto a culpa do R. DD como a culpa do lesado EE contribuíram causalmente para a ocorrência do sinistro dos autos, em virtude do regime especial de irrelevância da culpa do lesado que não seja causa exclusiva do evento danos (art. 41.º do RNR), fica prejudicada a apreciação da questão da repartição da culpa entre ambos os intervenientes, uma vez que – seja qual a repartição – a responsabilidade do R. DD sempre se manteria (e mantém) por inteiro.

11. Em consequência, têm os AA. direito a ser indemnizados em montantes correspondentes ao dobro das quantias fixadas pelo acórdão recorrido, restando apenas apreciar a questão de saber a quem cabe pagar a indemnização em razão da existência de seguro obrigatório de responsabilidade civil.

O acórdão recorrido apreciou esta questão em termos circunstanciados e desenvolvidos, que aqui se reproduzem:

«Defendem os AA. no seu recurso que não devia o 1º R. DD ter sido absolvido do pedido, visto que existe uma solidariedade imprópria entre este e a Ré seguradora, não podendo o art. 18 da Portaria 689/2001, de 10.7, justificar a absolvição daquele 1º R. como se entendeu na sentença. Mais defendem que a interpretação do referido art. 18 no sentido de que o mesmo estabelece uma limitação à legitimidade processual e/ou substantiva do 1º R. seria inconstitucional, porque restritiva do acesso aos tribunais, padecendo ainda tal preceito de inconstitucionalidade orgânica, por constar de Portaria sendo matéria reservada da Assembleia da República, e formal, por extravasar a competência objetiva para a sua emissão. Donde, concluem, ambos os RR. deveriam ser condenados solidariamente, e, em qualquer caso, o 1º R. condenado a pagar o valor que exceder o capital seguro. Pronunciando-se sobre esta concreta questão, sustentou o 1º R., em contra-alegações, o acerto do decidido e que a Ré seguradora é a única responsável pelo pagamento da indemnização.

Apreciando.

Prevê o art. 18 da Portaria nº 689/2001, de 10.7, (que estabelece as regras a observar na celebração dos contratos de seguro de responsabilidade civil por danos causados a terceiros, em virtude da utilização de embarcações de recreio): “As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidentes provocados pelas ER, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas, obrigatoriamente:

a) Contra a seguradora, se o pedido formulado se contiver nos limites fixados para o seguro obrigatório;

b) Contra a seguradora e as pessoas civilmente responsáveis, quando o pedido formulado ultrapassar os limites referidos na alínea anterior.”

Dispõe, por sua vez, o art. 19 da mesma Portaria que: “Nas acções referidas na alínea a) do número anterior, a seguradora pode, se assim o entender, fazer intervir o tomador do seguro.”

Os dispositivos citados correspondem, no essencial, ao estabelecido quanto ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, hoje no art. 64, nºs 1 e 2, do DL nº 291/2007, de 21.8, e antes no art. 29, nºs 1 e 2, do DL nº 522/85, de 31.12, pelo que se mostra útil convocar aqui esse regime jurídico.

Tal como previsto no nº 2 do art. 64 do DL nº 291/2007, o responsável direto por acidentes provocados pelas ER, quando o pedido se compreenda nos limites do seguro obrigatório, carece de legitimidade para ser demandado, conforme decorre da indicada al. a) do art. 18 da Portaria 689/2001. Mas a seguradora poderá, ainda assim, nesse caso, fazer intervir o tomador do seguro.

Como refere Lopes do Rego (7: “Regime das Acções de Responsabilidade Civil Por Acidentes de Viação Abrangidos Pelo Seguro Obrigatório”, Revista do Ministério Público, Ano 8º, nº 29, pág. 65.), a propósito da al. a) do nº 1 do art. 29 do DL nº 522/85, de 31.12(8: Nos termos desta norma: “As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente, de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente: a) Só contra a seguradora, quando o pedido formulado se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório; (…).”), “a ilegitimidade passiva do responsável directo, aí consagrada só tem razão de ser quando a seguradora garanta integralmente e com fundamento no seguro obrigatório a totalidade da indemnização pretendida na ação.(…).”

Mas, em determinadas situações, continua o mesmo autor, ainda que o valor do pedido se contenha formalmente dentro dos limites do seguro obrigatório, pode a seguradora não garantir integralmente a satisfação da indemnização pedida; assim sucede quando, por exemplo, o lesado intenta a ação com base em factos supervenientes e a indemnização pedida, acrescida ao valor já pago pela seguradora, excede o capital seguro, ou quando o lesado, tendo sido preterido no rateio que a seguradora já realizou no confronto dos demais lesados, intenta ação cujo valor se contém no capital seguro mas que, somado às indemnizações já pagas, o excede. Nesses casos, qualquer que seja o valor do pedido formulado pelo autor, ele poderá demandar cumulativamente a seguradora e o responsável direto, pois só a demanda de ambos permitirá obter a total procedência da ação (9: Ob. cit., loc. cit..).

Um outro exemplo avançado por Lopes do Rego é precisamente a hipótese da pluralidade de lesados em consequência do mesmo acidente de viação, afigurando-se provável, aquando da propositura da ação, que o montante global das indemnizações possa ultrapassar os limites do seguro obrigatório. Também aqui, refere, seria possível demandar a seguradora e o responsável direto, justificando: “(…) De outro modo, estaria a coarctar-se ao lesado a possibilidade de vir a receber dos responsáveis a totalidade da indemnização a que tem direito; na verdade, se o autor demandasse apenas a seguradora, esta não deixaria de provocar a intervenção principal dos restantes lesados para, no confronto de todos, ser operado o rateiro a que alude o art. 16º, o que levaria à improcedência parcial do pedido indemnizatório deduzido pelo autor.(…).”(10: Ob. cit., págs. 66 e 67.) Na linha do referido no Ac. da RG de 23.9.2010(11: Proc. nº. 1776/08.2TBFLG.G1, disponível em www.dgsi.pt.) da mesma relatora – que se reportava à condenação do segurado que interviera, a pedido da Ré seguradora ao abrigo do nº 2 do art. 29 do DL nº 522/85, de 31.12, em ação por acidente de viação – e que foi mencionado pelos apelantes, o art. 18 da Portaria nº 689/2001 não impede, de igual modo, a demanda da seguradora e do civilmente responsável ainda que o pedido formulado se contenha dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório, tendo desde logo em vista o disposto no art. 19 da Portaria bem como as demais razões acima indicadas.

Como no referido acórdão se menciona, citando o mesmo texto de Lopes do Rego, existe um potencial interesse litisconsorcial entre a seguradora e o beneficiário do seguro resultante da circunstância de, perante o direito aplicável, serem ambos responsáveis pela indemnização devida ao lesado (o responsável direto com fundamento na responsabilidade civil extracontratual, e a seguradora por força do contrato de seguro de responsabilidade civil), havendo uma solidariedade imprópria ou imperfeita entre o beneficiário do seguro e a seguradora visto o escalonamento sucessivo entre os devedores, já que é a seguradora a última e principal obrigada ao pagamento da indemnização devida pelo segurado (12: Ainda Lopes do Rego, ob. cit., págs. 78/79).

No caso em análise, os AA. instauraram a ação contra a seguradora e o civilmente responsável deduzindo pedido indemnizatório de € 368.381,91 (acrescido de juros) superior ao do limite do seguro obrigatório de € 249.398,94 (ver art. 7 da Portaria nº 689/2001) e estabelecido em de € 250.000,00 (ponto 93 supra).

Por sua vez, no Proc. nº 6418/17.2T8ALM.L1, entretanto apensado a estes autos, um outro lesado no âmbito do mesmo sinistro – uma outra filha da vítima, II – reclama pedido indemnizatório no valor de € 75.000,00.

É, pois, admissível, pelo menos em tese, que o valor global das indemnizações arbitradas, considerados ainda os juros devidos, venha a exceder o montante do capital seguro.

Porém, mesmo ocorrendo o rateio previsto no art. 12 da Portaria nº 689/2001, não podem os lesados ficar impossibilitados de receber a totalidade da indemnização a que têm direito, nesse caso no confronto com o responsável civil.

Deste modo, e contra o entendimento seguido na sentença, não se justifica a absolvição do 1º R. do pedido.

Conforme referido no citado Ac. da RG de 23.9.2010, tal não significa que caiba ao 1º R., enquanto responsável civil, assegurar uma quota-parte de um débito comum com a referida seguradora, pois a esta sempre cumprirá satisfazer integralmente a indemnização devida pelo segurado dentro dos limites do capital seguro por força do contrato respetivo e cujo valor só poderá deste reclamar numa das situações previstas no art. 15 da Portaria nº 689/2001.

Por conseguinte, deverá ser o 1º R. ser condenado a pagar aos AA. o valor indemnizatório arbitrado que venha a exceder o capital seguro [negritos nossos]

Insurge-se o R. DD contra esta decisão, invocando, designadamente, que a absolvição do pedido em 1.ª instância não foi motivada por uma qualquer ilegitimidade, mas por a indemnização atribuída aos AA. não ultrapassar o tecto máximo do valor segurado, o que, em consequência, afastava a responsabilidade do R. DD, uma vez que aquela se encontrava, por lei, transferida para a R. Liberty Seguros. Pelo que, ao condenar o R. DD, estando a responsabilidade deste transferida para a R. Liberty Seguros, o acórdão recorrido violou os arts. 1.º, 6.º, 7.º e 18.º da Portaria n.º 689/2001, de 10 de Julho.

Vejamos.

Antes de mais, esclareça-se que, limitando-se os arts. 1.º, 6.º e 7.º da Portaria n.º 689/2001 a fixar as regras gerais quanto à obrigatoriedade do seguro de responsabilidade civil das embarcações de recreio e ao respectivo capital mínimo segurado, o único preceito deste diploma que importa ponderar é o art. 18.º, cuja interpretação e aplicação ao caso dos autos foi feita pelo tribunal a quo em termos que se subscrevem por inteiro.

Com efeito, ao dispor que «As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidentes provocados pelas ER, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas, obrigatoriamente: (...) b) Contra a seguradora e as pessoas civilmente responsáveis, quando o pedido formulado ultrapassar os limites referidos na alínea anterior», a regra do art. 18.º. alínea b) da Portaria n.º 689/2001 disciplina, efectivamente, a legitimidade processual da seguradora e do proprietário/comandante da embarcação de recreio, este último enquanto responsável civil. Contudo, a fonte dessa responsabilidade não é o próprio art. 18.º, alínea b), mas sim, conforme se explicou no ponto anterior do presente acórdão, o regime do art. 41.º do RNR, na versão em vigor à data do acidente dos autos.

Quanto à alegação do R. DD segundo a qual o acórdão recorrido é um acórdão condicional, e, por isso, proibido pelo ordenamento jurídico, ao fixar a sua condenação de modo dependente de decisões judiciais futuras, independentemente de tudo o mais que se possa afirmar, verifica-se que tal objecção fica prejudicada pelo facto de - com a procedência do recurso dos AA. - a indemnização a estes devida ser elevada para montantes que, globalmente, excedem o limite do seguro obrigatório.

Deste modo, conclui-se pela não verificação do invocado erro de julgamento.


12. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso do R. DD e procedente o recurso dos AA., revogando-se a decisão do acórdão recorrido e:

1. Condenando-se a R. Liberty Seguros:

- A pagar aos AA. AA, BB e CC, em conjunto, a quantia de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da sentença até integral pagamento;

- A pagar à A. AA a quantia de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da sentença até integral pagamento;

- A pagar a cada um dos AA. BB e CC a quantia de € 56.250,00 (cinquenta e seis mil duzentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da sentença até integral pagamento; e

2. Condenando-se o R. DD a pagar aos AA. o valor indemnizatório arbitrado na parte que excede o capital seguro.


Custas dos recursos e da acção na proporção do respectivo decaimento.


Lisboa, 30 de Novembro de 2021


Maria da Graça Trigo (relatora)

Maria Rosa Tching

Catarina Serra

________

[1] Assinale-se que o sumário do referido acórdão, ao referir-se apenas ao regime do art. 570.º do CC, não corresponde fielmente ao conteúdo da fundamentação do acórdão, na qual, como resulta da passagem transcrita, se considerou que era aplicável o regime especial do RNR e não o regime geral do Código Civil.