Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | EDUARDO BAPTISTA | ||
| Descritores: | FALÊNCIA GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS PRIVILÉGIO CREDITÓRIO HIPOTECA LEGAL CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL | ||
| Nº do Documento: | SJ200305270001982 | ||
| Data do Acordão: | 05/27/2003 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL GUIMARÃES | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 290/02 | ||
| Data: | 06/26/2002 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Sumário : | 1. O disposto na primeira parte do art. 152º do CPEREF , como norma excepcional, não comporta aplicação analógica e não há identidade ou maioria de razão, que justifique a sua interpretação extensiva de forma a fazê-la abranger também as hipotecas legais . 2. Assim, o disposto na primeira parte do referido art. 152º não compreende as hipotecas legais que garantam os créditos do Estado, autarquias locais e instituições de previdência social, que não passam a meros créditos comuns e continuam a beneficiar da correspondente garantia . 3. O regime de garantias aplicável aos privilégios imobiliários gerais é o dos privilégios mobiliários gerais, definido no art. 749º do Cód. Civil . 4. O privilégio imobiliário geral concedido aos créditos reconhecidos aos trabalhadores de sociedade falida , não goza de preferência relativamente às hipotecas legais, que garantem os créditos de instituições de previdência social. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1 - O "Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social", que veio reclamar créditos ao processo em que A foi declarada em estado de falência, o qual correu termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca da Barcelos, com o n. 127/2000, inconformado com o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 26 de Junho de 2002, que julgou improcedente o recurso de apelação que tinha interposto e confirmou a sentença de graduação de créditos proferida pelo Tribunal de 1ª instância, dele veio recorrer, de revista, para este Supremo Tribunal. O Recorrente apresentou alegações, onde concluiu da forma que segue: "A) Para garantia do seu crédito a título de contribuições e de juros de mora, o recorrente constituiu validamente hipotecas legais sobre os imóveis da credora, que veio a ser declarada falida; "B) A hipoteca legal, devidamente constituída e registada, é um direito real de garantia que concede ao credor hipotecário o direito a ser pago preferencialmente sobre os demais credores que não gozem de privilegio especial ou de prioridade de registo; "C) O douto Acórdão recorrido confirma a douta sentença de graduação e de verificação de créditos proferida pelo Tribunal de Primeira Instância que incluiu o crédito do recorrente na graduação geral dos créditos sobre a falida, desatendendo a preferência legal que as hipotecas legais conferem ao seu crédito, defendendo que: "Perfilhando-se como se perfilha que a expressão "privilégios creditórios" do art. 152° do CPEREF, abrange também as hipotecas legais afigura-se-nos não assistir razão ao recorrente. " "D) O artigo 152°, 1ª parte do C.P.E.R.E.F., assim como as disposições preambulares que a este artigo se referem, apenas se refere aos privilégios creditórios do Estado, das Autarquias Locais e Instituições de Segurança Social; "E) Hipotecas legais e privilégios creditórios são garantias conceptualmente distintas, com disciplina legal própria, não pode o intérprete estender de tal forma o conceito de privilégios creditórios, conceito que usa no seu sentido próprio: técnico-jurídico, de forma a abarcar outros direitos aos quais a lei reconhece preferência no concurso de credores, partindo-se de uma subespécie de preferências para se abarcar a totalidade das mesmas, quando o legislador expressamente só se referiu, e só se quis referir, às primeiras; "F) Tal raciocínio viola as regras de interpretação estabelecidas no art. 9°, n.° 2 e n.° 3 do Código Civil, exorbitando o sentido próprio da lei, caindo numa interpretação extensiva, senão mesmo ab-rogante ou revogatória, quando se trata de uma norma restritiva de natureza excepcional, e dessa feita violando, também, o Princípio In Dubio Pro Libertaté. "G) Pois que, "na fixação do sentido e do alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados", como preceitua o n.° 3 do art. 9° do Código Civil. "H) A letra da lei constitui o ponto de partida da sua interpretação e também o limite para o seu resultado, sendo certo que a letra da lei e o relatório preambular apenas se referem aos privilégios creditórios. "I) O intérprete não pode considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, "J) Assim sendo, é manifesto que no preceito legal em questão - art. 152°, 1ª parte, do C.P.E.R.E.F. - pretendeu-se apenas extinguir os privilégios creditórios enquanto direito conferido pela lei a certos credores de serem pagos preferencialmente sobre demais credores, garantias gerais não sujeitas a registo, os privilégios creditórios no seu sentido próprio, técnico - jurídico, e a que se referem os artigos 733° e seguintes do Cód. Civil. "K) Entendimento defendido também pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 3 de Março de 1998, in B.M.J., n.° 475, p. 548, que no que diz respeito ao alcance do artigo 152°, 1ª parte, sustenta que: "A hipoteca legal só abrange imóveis e tem que ser registada. São pois diferentes os universos das hipotecas legais e dos privilégios creditórios. A Lei é bem clara: escreveu-se "Privilégios creditórios". É inconcebível que o legislador não distinga privilégio creditório e hipoteca legal ", e também no Acórdão de 8 de Fevereiro de 2001, que de forma acordante e singularmente clara foi novamente reafirmado no louvável e Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Junho de 2002. "L) Quanto à questão da ressalva dos privilégios creditórios de que goza este Instituto em relação aos créditos que se constituíram no decurso da presente acção - art. 152° in fine do C.P.E.R.E.F. - , o Acórdão recorrido defende ainda que não há lugar à aplicação deste preceito uma vez que: "...a citada norma legal ressalva apenas os privilégios creditórios que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou de falência. O recorrente refere-se ao vencimento e não à constituição, pelo que também aqui não assiste razão ao apelante." "M) O vencimento da obrigação contributiva, é como todos sabemos, posterior à sua própria constituição: aquela obrigação legal nasce com o acto de pagamento de salários, do qual resulta um direito de crédito da Segurança Social, em que o presente Instituto tem competência para a sua arrecadação e cobrança - art. 23°, n.° 2, al. e) do Decreto-Lei n.° 115/98, de 4 de Maio, e art. 3°, n.° 2, al. b) e i) do Decreto-Lei n.° 260/99, de 7 de Julho e art. 17° do Decreto-Lei n.° 8-B/2002, de 15 de Janeiro. "N) Ora verificando-se que o crédito do recorrente por contribuições de Abril a Dezembro de 2000, inclusive, e respectivos juros de mora, se constituíram efectivamente no decurso do processo de recuperação de empresas e de falência, sempre haveria que ressalvar os privilégios creditórios em relação ao crédito deste Instituto referente a esse período. "O) Assim o Douto Acórdão recorrido viola os artigos 9°, n.° 2 e n.° 3, 11°, 604° e 686° todos do Código Civil, assim como os artigos 152° e 200° do C.P.E.R.E.F.". O Recorrente termina com o pedido de revogação do acórdão recorrido, "com todas as ínsitas consequências". A também Reclamante B veio contralegar. Na sua contralegação, que pediu o julgamento em revista ampliada - o que lhe foi indeferido -, sustenta que deverá negar-se provimento à pre-sente revista, por ser improcedente. Foram colhidos os vistos legais dos Ex.mos Conselheiros-Adjuntos. Mantendo-se a regularidade formal da lide, cumpre decidir. 2 - Do Tribunal da Relação vem dada como demonstrada a seguinte matéria de facto relevante: Aberto o concurso de credores, o Tribunal de 1ª instância procedeu à graduação de créditos da forma seguinte: I Relativamente aos bens móveis: 1º Os créditos dos trabalhadores por gozarem de privilégio mobiliário geral; 2º O crédito n. 19, reclamado pelo C, garantido por penhor mercantil sobre parte dos bens móveis da falida, até ao montante de 300.000.000$00; 3º Os demais créditos reclamados, rateadamente, por serem comuns. II Relativamente aos bens imóveis: a) Verbas 2 e 3 do auto de apreensão: 1º Os créditos dos trabalhadores por gozarem de privilégio imobiliário geral; 2º O crédito n. 19, reclamado pelo C, garantido por hipoteca até ao montante máximo de 350.000.000$00; 3º Os demais créditos reclamados, rateadamente, por serem comuns. b) Verbas 1 e 4 a 31 do auto de apreensão: 1º Os créditos dos trabalhadores, por gozarem de privilégio imobiliário geral; 2º O crédito n. 19, reclamado pelo C, garantido por hipoteca até 350.000.000$00; 3º Os demais créditos, rateadamente, por serem comuns. A data da falência, foi fixada no dia 30 de Março de 2001, data em que foi judicialmente declarada. Por decisão transitada em julgado, foi declarada em estado de falência, a sociedade "A-Fábrica de Malhas, L.da". Aberto o concurso de credores foram reclamados os créditos constantes da decisão de 1ª instância (fl.s 44 a 56), entre os quais o crédito do ora Recorrente (n. 8), no valor de 614.802.202$00, relativo a débito de contribuições no montante de 360.073.292$00, acrescido de juros de mora no montante de 254.728.910$00, contados até 31.03.01. Foram apreendidos bens móveis e imóveis para a massa falida. A Segurança Social, ora Recorrente, tinha constituído, a seu favor e para garantia dos seus créditos, hipotecas legais sobre 30 prédios, devidamente identificados, propriedade da devedora. Também o C reclamou um crédito (n. 19), garantido por hipoteca até ao montante de 350.000.000$00. Os créditos reclamados e reconhecidos aos ex-trabalhadores da falida (créditos n.s 20 a 83) provêm de salários e remunerações em atraso e de indemnizações por antiguidade, em consequência da cessação dos respectivos contratos de trabalho. 3 - Vistos os factos atrás apontados, há que apreciar as questões suscitadas pelo Recorrente e que, no essencial, são as seguintes: Saber se o crédito do Recorrente, garantido por hipotecas legais, deverá ser considerado como simples crédito comum, ao abrigo do art. 152º do Código dos Processos Especiais de Recuperação das Empresas e Falências; Saber se, em caso negativo, as garantias hipotecárias têm prioridade sobre os créditos dos trabalhadores; e Saber se deve distinguir-se entre os créditos do Recorrente, que se tenham vencido durante o processo de recuperação da empresa e falência, porque continuariam a gozar de privilégio creditório e os demais créditos comuns. 3.1 - Relativamente à primeira questão, entendeu-se de modo, aliás muito douto, que, por força da aplicação analógica do disposto no art. 152º do CPEREF, os créditos do ora Recorrente tinham passado a créditos comuns; O Recorrente, por seu turno, sustenta que os seus referidos créditos continuam da dever ser considerados como créditos hipotecários, pois aquela norma legal fala em privilégios creditórios e não podia o intérprete estender tal conceito a outras figuras de garantia das obrigações, até por se tratar de uma norma excepcional. O referido art. 152º do CPEREF, na formulação que lhe foi introduzida pelo Dec. Lei n. 315/98, tem a seguinte redacção: "Com a declaração de falência extinguem-se imediatamente, passando os respectivos créditos a ser exigidos como créditos comuns, os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, excepto os que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou de falência". Não contém o texto desta norma legal qualquer referência a outras garantias dos créditos, designadamente hipotecas legais, pertencentes aquelas entidades; Apenas contém a referência aos privilégios creditórios. A nosso ver, a referida norma do art. 152º do CPEREF, tem como alcance prático deixar intocadas a generalidade das garantias dos vários créditos reclamados naqueles processos e extingue os privilégios creditórios pertencentes a entidades públicas ou de utilidade pública (Estado, autarquias locais e instituição de segurança social); Ou seja, ela cria um regime legal de sentido oposto ao regime geral, que ficou intocado, tendo, por isso, a natureza de uma norma legal excepcional (1). Ora, nos termos do art. 11º do Cód. Civil, as normas excepcionais "não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva", pelo que, mesmo que se considerasse que havia identidade de razões entre a situação dos privilégios creditórios daquelas entidades e as hipotecas legais constituídas para garantias dos seus créditos, não seria lícito aplicar por analogia o regime legal criado por aquele art. 152º a estas últimas. Resta ver se, no caso sub judice, há motivos para fazer uma interpretação extensiva da 1ª parte daquele artigo, de forma a abranger também a extinção imediata das hipotecas legais das mesmas entidades. Para tanto há que interpretar o referido segmento daquele artigo, que já atrás se transcreveu, essencialmente para surpreender a precisa mens legis, que lhe subjaz e determinou a sua adopção. Assim, faremos algumas considerações sobre as regras da interpretação da lei, em geral, para, de seguida, se passar para a análise do caso concreto. As regras sobre a interpretação das leis, em geral, encontram-se contidas no art. 9º do Cód. Civil e nada justifica que, in casu, se não apliquem, já que nenhuma norma legal expressamente as afasta e nenhum interesse relevante justifica tal afastamento. De facto, segundo o n. 1 deste artigo, a "interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir partir dos textos o pensamento legislativo", o que logo mostra ter a nossa lei afastado a ideia de que em certos casos não haveria necessidade de proceder à interpretação e é tradu-zida pela máxima latina in claris non fit interpretatio (2). Esta norma determina que, para tal efeito, se devem ter em conta "a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada". Do exposto, resulta que, para proceder à interpretação de uma norma legal, deverá o intérprete recorrer a vários elementos. Desde logo, ao elemento literal, ou texto, da própria norma, que além do funcionar como meio de descoberta do sentido ainda funciona como limite das possibilidades interpretativas, por força do n.º 2 daquele art. 9º do Cód. Civil, que impõe que o sentido acolhido tenha "na letra da lei um mínimo de correspondência verbal", ainda que imperfeita (3). Deve recorrer também ao elemento sistemático, que compreende as restantes disposições do diploma legal em que está inserida e dos demais que regulam outros aspectos do instituto jurídico que ela regula - é o chamado contexto da lei - bem como a análise da regulamentação estabelecida para institutos paralelos ou problemas semelhantes - os chamados casos paralelos. Deve ainda, como elemento sistemático, ter-se em conta o lugar sistemático da norma interpretada no contexto do sistema jurídico, considerado na sua globalidade, no entendimento de que as normas jurídicas se interpretam umas às outras. Deve recorrer-se também, no âmbito da tarefa interpretativa, ao elemento histórico, ou seja, tudo o que estiver relacionado com as circunstâncias que levaram à criação da norma, os trabalhos preparatórios, as fontes da lei, etc.. Identicamente, se deverá lançar mão do elemento racional ou teleológico, a ratio legis (4), isto é a razão da criação da norma e finalidade visada com a sua criação. Há, finalmente, que lançar mão as certos elementos lógicos imanentes ao sistema jurídico, como sejam: "a lei que permite o mais, permite o menos; a que proíbe o menos, proíbe o mais; a que permite o fim, permite os meios necessários à sua consecução; a que proíbe os fins, proíbe os meios que necessariamente a ele conduzem; a que permite os meios per-mite os fins a que eles necessariamente conduzem; a que proíbe os meios, proíbe o fim a que eles necessariamente conduzem" (5). Quando lançando mão destes meios, o intérprete chegue a conclusão que o exacto sentido da lei é diferente daquele que a interpretação literal sugeria liminarmente, desde que ele tenha um mínimo de correspondência na letra da lei, será com esse sentido que a norma deve ser aplicada. Ou seja, o "intérprete deve desobedecer ao comando da lei" tal qual ele apresenta numa primeira visão, "se tanto se tornar necessário, para salvaguardar o seu objectivo essencial" (6), o que justifica a adopção de uma interpretação correctiva da lei, seja ela extensiva ou restritiva. Designadamente, se concluirmos que, ao redigir a norma interpretada, o legislador escreveu mais do que pretendeu (magis dixit quam voluit), há que proceder à sua interpretação correctiva, eliminando da aplicação da norma a parte da sua previsão em excesso (cessante ratione legis cessat eius dispositio) e, por outro lado, se concluirmos que o legislador escreveu menos do que pretendia (minus dixit quam voluit), há que proceder à interpretação correctiva da interpretação extensiva. Esta solução impõe-se, com especial nitidez, quando o texto legal, entendido nos termos amplos que a sua letra consente, estiver em contradição ou desarmonia com outro dos seus textos, isto é, quando a lei contenha uma contradição íntima. Postas estas considerações gerais, há que apreciar a questão em apreço, mormente qual a ratio legis que levou à adopção daquela norma legal; a contida no 1º segmento do mencionado art. 152º. Subjacente a esta norma legal, na parte que agora importa considerar, estão, entre outras finalidades, aliviar os processos de recuperação de empresas e falimentares da influência muito negativa da reclamação, por grande número de credores privilegiados (quase sempre entidade públicas ou de utilidade pública) a reclamar créditos de montantes muito elevados e, principalmente, de fazer participar no sacrifício comum as entidades com especiais deveres de solidariedade social e económica, que é exigido à generalidade dos credores que vão àqueles processos reclamar o que lhes é devido (7). Se pode dizer-se que esta última razão também existe no caso das hipotecas legais de que os créditos de tais entidades beneficiem, já o mesmo não se verifica relativamente à primeira razão, pois os casos em que se constituem hipotecas legais e se reclamam naqueles processos créditos com tal garantia são pouco numerosos. Parece ser também de chamar à colação a diferença que há entre as duas garantias: Uma é um direito real de garantia, dotado de direito de sequela e sujeito a registo (que, aliás, tem natureza constitutiva da hipoteca legal) e é, portanto, visível para qualquer interessado diligente; Os privilégios creditórios são meras garantias patrimoniais, destituídas de direito de sequela e não sujeitas a registo e formando uma parte substancial dos chamados ónus ocultos, que escapam normalmente aos olhos dos credores comuns. Parece-nos que se pode dizer que o legislador, que não ignorava a existência das hipotecas legais, nem no texto original, nem no que reformou a norma, consagrou a sua extinção imediata na declaração da falência, tê-lo-á feito propositadamente, por entender que ao transformar os numerosos créditos garantidos por privilégios creditórios de todos os tipos em meros créditos comuns, já punha as entidades que deles beneficiavam a participar, em medida suficiente, no esforço comum que se pede nos processos de recuperação de empresa e falimentar a todos os credores. Assim, não se vê que haja entre a situação prevista expressamente na primeira parte do mencionado art. 152º do CPEREF e as hipotecas legais de que sejam beneficiárias as mesmas entidades, uma identidade ou maioria de razão, que justifique a sua interpretação extensiva, de forma a fazê-la abranger também estas últimas (8). Parece-nos, por outro lado, que contra a sua eventual interpretação extensiva milita o facto de não haver um suporte mínimo, para tanto, na letra daquela norma legal. Por tudo quanto se disse, consideramos que o disposto na primeira parte do referido art. 152º não compreende as hipotecas legais que garantam os créditos daquelas entidades, não passando eles a créditos comuns e continuando a beneficiar da correspondente garantia. 3.2 - Dado que se respondeu negativamente à primeira questão enunciada, há que saber se os créditos hipotecários têm prioridade sobre os créditos dos trabalhadores, que, como se viu, estão garantidos por privilégio imobiliário geral, facto que não vem posto em causa pelo Recorrente. Para responder a esta questão, importa tomar posição sobre os seguintes dois aspectos: Qual o conteúdo garantístico do privilégio imobiliário geral; E, finalmente, se os créditos garantidos por hipoteca têm preferência sobre os créditos garantidos por privilégio imobiliário geral. 3.2.1 - O art. 733º do Cód. Civil define os privilégios creditórios como sendo "a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros". Os privilégios creditórios, segundo o disposto no art. 734º do mesmo Código, podem ser mobiliários e imobiliários; Os primeiros podem ser gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis do devedor e especiais, se abrangem somente o valor de determinados bens móveis; Por seu turno, nos termos do n. 2 do mesmo artigo, os "privilégios imobiliários são sempre especiais". Como se vê, o nosso Código Civil não admitiu os privilégios imobiliários gerais, mas leis avulsas posteriores criaram-nos em grande número. Entre os privilégios imobiliários gerais criados, contam-se precisamente os instituídos pela Lei n. 17/86, de 14 de Julho, cujo art. 12º tem a seguinte redacção: "1 - Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho, regulados na presente lei, gozam dos seguintes privilégios: "a) - " "b) - Privilégio imobiliário geral. "2 - " "3 - A graduação dos créditos far-se-á da forma seguinte: "a) - " "b) - Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748º do Código Civil e ainda antes dos créditos por contribuições devidas à segurança social." Os efeitos dos privilégios creditórios encontram-se estabelecidos nos art. 746 e seg.s do Cód. Civil e deles resulta que, genericamente, os privilégios mobiliários especiais têm preferência sobre os privilégios mobiliários gerais, os quais não valem contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre os bens abrangidos pelo privilégio geral, sejam oponíveis ao exequente (art. 749º daquele Código); Significa isto, que são oponíveis ao credor com privilégio mobiliário geral "não só os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, como os próprios direitos reais de garantia que o devedor haja constituído" (9). Verifica-se, portanto, que a existência do privilégio mobiliário geral não impede que o devedor aliene ou onere os bens do seu património, seja a título oneroso, seja a título gratuito, o que significa que este privilégio não está dotado de direito de sequela, não sendo um direito real de garantia, mas uma mera garantia de prioridade de pagamento relativamente aos credores comuns. Por seu turno, os privilégios mobiliários especiais cedem perante direitos de terceiro adquiridos anteriormente e preferem aos constituídos em data posterior (art. 750º do mesmo Código); Ou seja, valerá a prioridade da constituição dos direitos (10). No tocante aos privilégios imobiliários, que no Código Civil são sempre especiais, nos termos do seu art. 751º, eles "são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores". Significa isto, que os privilégios imobiliários especiais não afectam os direitos reais de gozo (v.g., usufruto) que tenham sido constituídos e registados anteriormente à sua constituição, mas preferem às garantias reais, ainda que estas tenham sido registadas anteriormente (11). Como se viu, a figura dos privilégios mobiliários gerais foi criada, posteriormente ao Código Civil, por leis avulsas (v.g., o Dec. Lei n. 512/76, de 16 de Junho, a favor das instituições de previdência, o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, a favor da Fazenda Nacional, a Lei n. 17/86 já citada e a Lei n. 96/01, de 20 de Agosto, a favor dos trabalhadores com salários e indemnizações em atraso), que não tiveram o cuidado de definir qual a preferência que tais privilégios conferem aos credores que garantem. Tanto a generalidade da doutrina (12) como a jurisprudência (13) vêm entendendo que o regime de garantias aplicável é o dos privilégios mobiliários gerais, definido no art. 749º do Cód. Civil. 3.2.2 - Do que atrás se deixou dito, resulta o entendimento de que o princípio constante do art. 751º, de que o privilégio imobiliário especial prefere à consignação de rendimento, à hipoteca e ao direito de retenção é insusceptível de aplicação aos privilégios imobiliários gerais. Este entendimento resulta, essencialmente, do seguinte: A figura do privilégio imobiliário geral era desconhecida no Cód. Civil, estando, portanto, fora das cogitações do legislador ao criar a norma daquele art. 751º que ela viesse a ter aplicação fora dos casos que expressamente refere; Além disso, a extensão daquele regime de preferência, a privilégios concedidos de forma geral, feitos incidir sobre imóveis que nada têm a ver com a génese do crédito garantido e não estando sujeitos a registo, criaria uma situação de grave insegurança, com fortes prejuízos no comércio jurídico. Finalmente, deverá entender-se que um privilégio imobiliário geral, sem qualquer limitação temporal e não sujeito a registo, que preferisse a uma hipoteca registada anteriormente, afectaria de forma inaceitável o princípio da segurança jurídica constitucionalmente relevante e subjacente a um Estado de Direito, consagrado no art. 2º da Constituição da República Portuguesa, designadamente por fazer tábua rasa do registo predial, que tem como uma "finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e a circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como as respectivas relações jurídicas", afectando a segurança do comércio jurídico imobiliário (14). Como se sabe, e resulta do disposto no art. 668º, n. 1 do Cód. Civil, a hipoteca confere ao credor, cujo crédito é garantido por ela, o direito de ser pago pelo valor dos imóveis ou equiparados, sobre que recai, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio imobiliário especial ou prioridade de registo. Por outro lado, não há que distinguir entre hipotecas legais e voluntárias. Desta forma, entendemos que o privilégio imobiliário geral concedido aos créditos aos trabalhadores da sociedade falida, reconhecidos nos autos, não gozam de preferência relativamente às hipotecas legais, que garantem os créditos do Recorrente. 3.3 - No respeitante à última das questões enunciadas - saber se havia lugar a fazer distinção entre os créditos do Recorrente que se tenham vencido durante o processo de recuperação da empresa e falência, porque continuariam a gozar de privilégio creditório e os demais créditos comuns - cabe agora tomar posição. Como resulta do disposto no art. 152º do CPEREF, na sua parte final (redacção introduzida pelo Dec. Lei n. 315/98, de 20 de Outubro), não se extinguem com a declaração da falência os privilégios creditórios das instituições de segurança social, "que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou da falência". Acontece que da matéria factual apurada nas instâncias nada consta sobre créditos do Reclamante, que se tenham constituído durante os referidos processos, pelo que nada é possível decidir acerca desta questão, já que este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de revista, tem que aceitar a matéria de facto fixada nas instâncias (15), não lhe cabendo a ele sindicar tais questões em relação ao decidido na Relação (art. 729º, n. 2 e art. 722º, n. 2, do Cód. Proc. Civil). É de salientar que não se invoca, sequer, que tenham sido reclamados créditos do Recorrente, garantidos por privilégio creditório, constituídos no decurso do processo. 3.4 - Em face da procedência da posição do Recorrente, em relação à não extinção das hipotecas legais de que beneficiam os seus créditos e à precedência desta sobre os créditos dos trabalhadores, impunha-se refazer a graduação dos créditos com direito a serem pagos pelos bens imóveis apreendidos para a massa falida. Como vimos, o C, cujos créditos garantidos por hipoteca foram graduados em seguida aos créditos dos trabalhadores da falida, não veio recorrer da decisão, que assim determinou, pelo que se constituiu caso julgado sobre este ponto, havendo que acatar a decisão sobre esta matéria. Assim, embora não se tenham apurado as datas em que o Recorrente fez registar e constituiu as suas hipotecas e quais os créditos que as mesmas garantem - matéria que, seguramente, consta dos autos principais - é possível determinar a forma de proceder à graduação dos créditos, relativamente aos bens imóveis apreendidos para a massa falida; Ou seja, há que graduar em primeiro e segundo lugar os créditos do Recorrente garantidos por aquelas hipotecas legais e conforme as datas dos respectivos registos, seguindo-se, depois, a graduação efectuada pelo Tribunal de 1ª instância, havendo que incluir quaisquer outros créditos do Recorrente na categoria de créditos comuns. De qualquer modo, nos termos do art. 729º, n. 3 do Cód. Proc. Civil, impõe-se a ampliação da matéria de facto sobre aqueles pontos, pelo que os autos terão de voltar ao Tribunal recorrido, onde, pelos mesmos Juízes, deverá ser julgado novamente o recurso, nos termos do art. 730º, n. 1 do mesmo diploma legal, para apuramento daqueles pontos de facto. 4 - Pelo exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista e, consequentemente, revoga-se parcialmente o douto acórdão recorrido, na parte que decidiu que as hipotecas legais, garantindo os créditos do Recorrente, se tinham extinguido imediatamente com a declaração da falência, perdendo a correspondente preferência no seu pagamento. Determina-se ainda que os autos voltem ao Tribunal da Relação de Guimarães, para aí, se possível pelos mesmos Juízes, se apurar a data do registo e constituição das hipotecas legais do Recorrente e o montante dos créditos que garantem, para, em face do que for apurado, se refazer, de harmonia com o que atrás ficou exposto, a graduação dos créditos com direito a serem pagos pelos bens imóveis apreendidos para a massa falida. Custas pela massa falida. Lisboa, 27 de Maio de 2003 Eduardo Baptista Moitinho de Almeida Lucas Coelho ____________ (1) - A norma excepcional é destinada a regular um sector restrito de relações com uma determinada configuração e que consagra uma disciplina oposta à consagrada na norma geral. Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, in "Noções Fundamentais de Direito Civil", vol. I, pág. 69 e Mário de Brito, in "Código Civil Anotado", vol. I, pág. 27. (2) - São de recordar as palavras de Ferrara (in "Interpretação e Aplicação das Leis", pág. 129) de que "não se deve confundir a interpretação com a dificuldade de interpretação". (3) - Cfr., Baptista Machado, in "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", pág. 182 a 185 e Oliveira Ascensão, in "O Direito - Introdução e Teoria Geral", pág. 342. (4) - Cfr., Baptista Machado, op. cit., pág. 185. (5) - Cfr., Abílio Neto, in "Código Civil Anotado", pág. 21. (6) - Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, in "Noções Fundamentais de Direito Civil", vol. 1º, pág. 157. (7) - Cfr., L. Carvalho Fernandes e João Labareda, in "Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência Anotado", pág.403. (8) - Neste sentido, relativamente à redacção inicial do preceito (que, na parte que agora interessa, não sofreu qualquer modificação substancial), cfr., Norberto Severino e Lima Guerreiro, in "Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência Anotado", "Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência Anotado", pág. 153. (9) - Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, pág.s 769/770. (10) - Cfr., Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", pág. 824. (11) - Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código "" cit., vol. I, pág.s 770/1. (12) - Cfr., Almeida Costa, op. cit., pág. 825, Menezes Cordeiro, in "Direito das Obrigações", 2º vol., pág. 500/1 e A. Luís Gonçalves, in "Privilégios Creditórios, Evolução Histórica, Regime e sua Inserção no Tráfico Creditício" (no "Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra", vol. LXVII), pág. 7. (13) - Entre outros, os Ac.s deste Supremo de 19.03.2002 (Revista n. 522/02 - 2ª Secção), in "Sumários de Acórdãos do STJ", Março de 2002, de 24.09.2002, in "Col. Jur. - STJ", ano X, tomo 3º, pág. 54 e de 6.03.2003, in "http//www.dgsi.pt/jstj.nsf/954" (14) - Cfr., o Ac. do T. Const. de 22.03.2000, in "DR", II Série, de 10.10.2000. No mesmo sentido, os Ac.s do mesmo Tribunal de 5.07.2000, in "DR", II Série, de 7.11.2000 e de 5.03.2002, in "DR", II Série, de 24.04.2002, que consideraram inconstitucionais, por violação do princípio da confiança, normas legais que instituíram privilégios imobiliários gerais quando interpretadas como dando preferência a estes sobre as hipotecas. (15) - Entre muitos, cfr. os recentes Ac.s do STJ de 05.07.2001 (Revista n.º 1751/01 - 7ª Secção), in "Sumários de Acórdãos do STJ", Julho de 2001, de 27.09.2001 (Revista n.º 2115/01 - 7ª Secção), in "Sumários " " cit., Setembro de 2001, de 10.01.2002 (Revista n.º 3642/00 - 2.ª Secção), in "Sumários "" cit., Janeiro de 2002 e de 19.02.2002 (Revista n.º 3379/01 - 1.ª Secção) in "Sumários "" cit., Fevereiro de 2002. |