Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S2460
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ20090225024604
Data do Acordão: 02/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário : 1.Não constitui fundamento da caducidade do contrato de trabalho a simples referência genérica, constante da ficha de aptidão elaborada pelo serviço de medicina do trabalho, de que o trabalhador se encontra «incapacitado para a função de maquinista por alterações físicas e psíquicas com interferência com as suas capacidades operacionais», devendo «ser reconvertido».
2.E não tendo ficado provada a impossibilidade do autor prestar o seu trabalho à ré, não se configura a pretendida caducidade do contrato de trabalho, nos termos previstos na alínea b) do artigo 4.º da LCCT, pelo que a comunicação da cessação do contrato de trabalho efectivada pela ré consubstancia um despedimento, que é ilícito por não ter sido precedido de processo disciplinar.
3.Provando-se a existência de danos suficientemente graves para merecerem a tutela do direito, que a conduta da ré, para além de ilegal, é censurável em grau elevado e que é inquestionável a vinculação causal entre tais factos e os sobreditos danos, há lugar à condenação da ré empregadora em indemnização por danos não patrimoniais
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Em 5 de Agosto de 2003, no Tribunal do Trabalho de Almada, AA instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra BB, S. A., pedindo que, declarada a inexistência da causa de caducidade do contrato de trabalho alegada pela ré e considerada a cessação do contrato de trabalho com esse fundamento como despedimento ilícito, fosse a ré condenada a reintegrá-lo no seu posto de trabalho ou a pagar-lhe uma indemnização substitutiva, bem como a pagar-lhe as retribuições vencidas e vincendas e a quantia de € 5.000, a título de danos não patrimoniais.

A acção, contestada pela ré, foi julgada procedente, tendo a sentença do tribunal de primeira instância declarado a ilicitude do despedimento, por não subsistir motivo para a cessação da relação laboral por caducidade do contrato de trabalho, condenando a ré a reintegrar o autor no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria, antiguidade e retribuição, bem como a pagar-lhe «as retribuições vencidas e vincendas, desde 4 de Junho de 2003 e até efectiva reintegração, por referência ao vencimento base mensal de € 951,97, incluindo-se o subsídio de refeição (no valor diário de € 5,16) e o subsídio nocturno (valor a liquidar em execução de sentença)» e, ainda, a quantia de € 5.000, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

2. Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação, que a Relação de Lisboa julgou improcedente, confirmando a decisão recorrida, sendo contra esta decisão do Tribunal da Relação que a ré agora se insurge, mediante recurso de revista, ao abrigo das conclusões seguintes, explicitadas na sequência de convite dirigido à recorrente, com vista a «reduzir, muito significativamente, o número das conclusões produzidas na alegação do recurso, apresentando, de forma sintética, os fundamentos do recurso, e a completar as sobreditas conclusões com a especificação das normas jurídicas que considera violadas e do sentido com que, no seu entender, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido aplicadas»:

QUANTO À NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO:

«1. O Douto Acórdão em crise enferma de nulidade que inquina a sua regularidade e subsistência, por ser ostensiva e manifesta a contradição entre o seu sentido decisório e os seus fundamentos.
2. Com efeito, estribando-se nos juízos científicos constantes do Relatório do IML junto aos autos, conclui-se ser o Autor APTO para o exercício da profissão de maquinista.
3. Todavia, discute-se[,] de seguida, se a incapacidade anotada ao Autor teria natureza absoluta e definitiva.
4. Deixando-se por fim escapar, ter sido aconselhável repetir os testes cujos resultados foram médio-negativos.
5. Ora, a análise do carácter absoluto e ou definitivo da incapacidade pressupõe, intrínseca e axiologicamente, a sua existência, dado não fazer sentido que alguém verifique se a incapacidade de um trabalhador dado como APTO é absoluta e ou definitiva.
6. Por outro lado, é incongruente e contraditório propender-se para a repetição de testes, quando se consigna, expressa e insofismavelmente, que o trabalhador foi considerado APTO por uma “Junta médica realizada pelo IML, entidade independente e imparcial”.
7. Deste modo, enferma o Douto Acórdão em crise de insanável contradição, o que o torna nulo, por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do art. 668.º do Cód. Proc. Civil, uma vez que só pode estribar o seu sentido decisório numa, e numa única preposição, ou considera o trabalhador APTO, ou o considera INAPTO, mas não de forma absoluta e definitiva.
8. E desse sentido decisão dependerá a sorte da condenação por danos morais.»

QUANTO AO RESTANTE OBJECTO DO RECURSO:

«1. Está documentalmente provado com força de caso julgado formal (ponto 15) que o Autor, em 2003, foi considerado INAPTO para o exercício da profissão de maquinista.
2. Por ter resultado dos exames e testes efectuados ao Autor e melhor identificados nos autos, que o mesmo […] não conseguiu processar (pelos estímulos sensoriais e não da visão) correctamente a informação visual, nem possuía capacidade de atenção vigilante, factores objectivamente indispensáveis para quem conduz um comboio.
3. E não obstante se encontrar nos autos um Relatório do IML, certo é que o seu teor e as suas conclusões não foram levadas à matéria dada como assente, donde não deter qualquer valor probatório, nem dentro, nem fora do processo.
4. Uma vez que, como constitui Doutrina pacífica, a mera fundamentação da decisão (veja-se por todos Castro Mendes, Direito Processual Civil III, 1980, AAFDL, pág. 282 e segs) não faz caso julgado.
5. Acresce que sempre seria duvidoso que o Relatório do IML constituísse verdadeira e própria perícia, dado não terem sido efectuados quaisquer testes ou provas destinadas à aferição da específica aptidão funcional para o exercício da profissão de maquinista.
6. E nem mesmo o exame efectuado pelo Hospital Miguel Bombarda abala esta conclusão, dado que o mesmo se limitou a concluir, como é hábito em exames de patologia forense, que o Autor não padecia de enfermidade psíquica ou psicológica impossibilitante.
7. Não para aferir das valências específicas para o exercício da profissão de maquinista, decorrentes, que[r] da circunstância do trabalhador desempenhar sozinho essas funções, como por operar uma máquina, o que torna essa actividade perigosa, tudo isto aliado ao facto de, em certos períodos, se transportarem milhares de pessoas.
8. Em qualquer caso, afigura-se desconforme a condenação da Recorrente em indemnização por danos morais, a menos que se defenda, contra os mais sagrados cânones[,] tratar-se de responsabilidade objectiva[.]
9. Com efeito, a INAPTIDÃO procedeu de razões técnico-científicas, do resultado objectivado de exames e testes realizados por profissionais academicamente habilitados e de acordo com cânones dessa área de conhecimento.
10. Motivo pelo qual, o juízo de INAPTIDÃO do Autor não procede de um comportamento doloso e querido como tal da Recorrente, por lhe faltar a livre determinação de vontade, pressuposto imprescindível para qualquer juízo de imputação subjectiva, incluindo a mera negligência.
11. Aliás, está documentalmente provado (vide factos 14 e 92) que a Recorrente, não só não interveio em nenhuma fase da efectivação desses exames e testes, como aceitou incondicionalmente o seu resultado, mesmo que se traduzisse, como se traduziu, em julgar APTOS outros 16 maquinistas.
12. E mesmo que se entenda que a Recorrente deve indemnizar por não ter configurado a possibilidade de reconversão, ainda assim se afigura resultar dess[e] facto uma considerável diminuição da eventual reprovabilidade da sua conduta.
13. Resulta assim manifesto, quanto à primeira questão objecto do presente recurso, achar--se demonstrada a caducidade do contrato de trabalho do Autor, por ter ficado documentalmente provado que o mesmo é INAPTO para o exercício da profissão de maquinista, infringindo a decisão em crise o disposto no artigo 4.º, alínea b), do Dec. Lei 64-A/89 (actual artigo 387.º, alínea b), do Cód. do Trabalho) por preterição desse facto, com violação ostensiva do disposto no artigo 342.º do Cód. Civil e no artigo 672°, do Cód. Proc. Civil.
14. E quanto à segunda, não ter a Recorrente agido sem culpa [sic], requisito indispensável para gerar a obrigação de indemnizar, fazendo-se tábua rasa do disposto no artigo 483.º do Cód. Civil, devendo por essas razões e[,] em consequência, revogar-se o Douto Acórdão proferido e substituído por outro, que julgando procedente o presente recurso, decida pela total improcedência da acção e absolva a Recorrente dos pedidos, doutro modo será postergada a observância da lei e poderá afirmar-se, de forma indubitável, não ter sido feita JUSTIÇA!»

O autor contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, em sede de exame preliminar do relator, tendo-se considerado que não se podia conhecer do objecto do recurso de revista na parte em que se invocava a nulidade do acórdão recorrido, determinou-se a audição das partes para que se pronunciassem, querendo, sobre tal questão prévia (artigo 704.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), não tendo as partes respondido àquele convite.

Subsequentemente, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta pronunciou-se pela improcedência da revista, parecer que, notificado às partes, não suscitou resposta.

3. No caso vertente, as questões colocadas são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede:

Nulidade do acórdão recorrido, por oposição entre os seus fundamentos e a decisão [conclusões 1) a 8) da parte da alegação do recurso de revista atinente à invocada nulidade do acórdão recorrido];
– Se ocorreu erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto [conclusões 1) a 7) e 13), na parte atinente, da alegação do recurso de revista pertinente ao restante objecto do recurso];
Se se verifica a caducidade do contrato de trabalho por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva do autor para o exercício da profissão de maquinista [conclusões 13) e 14), ambas na parte atinente, da alegação do recurso de revista pertinente ao restante objecto do recurso];
Se há lugar à condenação em indemnização por danos não patrimoniais [conclusões 8) a 12) e 14), na parte atinente, da alegação do recurso de revista pertinente ao restante objecto do recurso].

No corpo da alegação do recurso, a ré aduz que «[p]rocedendo o juízo de inaptidão do Autor, improcederá, naturalmente a condenação no pagamento de indemnização a título de danos morais. Todavia, ainda assim se dirá que tal montante sempre seria desajustado e desproporcionado à culpa concreta da entidade patronal.»

E, no corpo da dita alegação, a ré admite que «poderá ser objecto de censura por não ter mandado repetir esse procedimento a uma outra Empresa, contudo, tal omissão não parece justificar, por si só, o exagerado e desproporcionado montante arbitrado a título de danos morais, muito superior [à]quele que é fixado quando está em causa o bem jurídico mais fundamental de todos, que é o direito à vida».

O certo é que, embora o relator tenha convidado a recorrente a completar as conclusões alinhadas na alegação do recurso de revista, nos termos do n.º 4 do artigo 690.º do Código de Processo Civil, nas novas conclusões apresentadas (tal como acontecia nas conclusões primitivas), a recorrente não põe em causa o montante fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, mas apenas a falta de um pressuposto típico da obrigação de indemnizar, como é o caso da culpa, «fazendo-se tábua rasa do disposto no artigo 483.º do Cód. Civil», não indicando como violada qualquer norma jurídica pertinente ao cálculo da indemnização por danos não patrimoniais, pelo que, na medida em que aquela questão se mostra objectivamente excluída das sobreditas conclusões, tem de se considerar definitivamente decidida, dela não se podendo conhecer no presente recurso, face ao disposto nos artigos 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II

1. Em primeira linha, a ré defende que o acórdão recorrido «enferma de nulidade que inquina a sua regularidade e subsistência, por ser ostensiva e manifesta a contradição entre o seu sentido decisório e os seus fundamentos».

O certo é, porém, que a ré, no requerimento de interposição do recurso de revista (fls. 727), não arguiu qualquer nulidade do acórdão recorrido.

Ora, a arguição de nulidade da sentença em contencioso laboral, face ao preceituado no artigo 77.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, deve ser feita expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso, com vista a habilitar o tribunal recorrido a pronunciar-se sobre as nulidades invocadas no requerimento que lhe é dirigido e proceder eventualmente ao seu suprimento, sendo entendimento jurisprudencial pacífico que essa norma é também aplicável à arguição de nulidade do acórdão da Relação, por força das disposições conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, alínea a), desse Código e 716.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, de onde resulta, conforme tem sido reiteradamente afirmado por este Supremo Tribunal, que essa arguição, no texto da alegação do recurso, é inatendível por intempestividade.

Não basta, pois, a arguição, no texto da alegação do recurso, da nulidade do acórdão recorrido, ainda que efectivada em separado e de modo distinto da restante matéria de alegação do recurso para permitir o conhecimento daquele vício, sendo indispensável que essa arguição seja levada a cabo, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, ónus que é incontornável.

Donde, a referida arguição, no texto da alegação do recurso, não respeita o regime previsto no n.º 1 do artigo 77.º citado, seja no que toca ao prazo (neste ponto, por remissão para as disposições que regem sobre o atinente prazo de interposição do recurso, que devem considerar-se parte integrante da normação que inclui a norma remissiva), seja quanto ao modo de arguição de nulidade do acórdão em contencioso laboral, regime que não se apresenta como anómalo, face ao sistema processual civil, que contempla, igualmente, casos em que o fundamento específico do recurso deve ser indicado no próprio requerimento de interposição (artigo 687.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), e que não é arbitrário, face à preocupação de maior celeridade e economia processual que domina o processo do trabalho, exigindo-se do recorrente, quando estiver em causa a nulidade da decisão recorrida, um cuidado acrescido na delimitação dos fundamentos do recurso, de modo a possibilitar ao tribunal recorrido a sua fácil detecção e o eventual suprimento.

Assim, este Supremo Tribunal não pode conhecer da nulidade invocada nas conclusões 1) a 8) da parte atinente da alegação do recurso de revista, porquanto a sua arguição, apenas realizada na alegação do recurso, se mostra extemporânea.

2. O tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:

1) O A. é maquinista da carreira de condução-ferrovia, achando-se ao serviço da R., nesta categoria profissional, desde 11 de Outubro de 1999, auferindo a remuneração base mensal de € 951,97, à qual acrescem subsídio de prestação de trabalho nocturno, subsídio de refeição, ajudas de custo e outros;
2) No dia 4 de Junho de 2003, o A. recebeu da R. a comunicação, acompanhada de um anexo, cujas cópias estão juntas a fls. 39 e 40, respectivamente, dando-se aqui por integralmente reproduzidos os respectivos conteúdos;
3) Nela, além do mais, é dito que o A. não desempenhou «a sua actividade profissional por um período consecutivo superior a 90 dias»;
4) A R., noutras ocasiões, prescindiu da realização de exames médicos e psicológicos a maquinistas que estiveram inactivos por períodos superiores a 90 dias, como aconteceu com os trabalhadores AR, IP e AV;
5) Em 25 de Agosto de 2002, o Sindicato Nacional dos Maquinistas dos Caminho de Ferro Portugueses – SMAQ, desencadeou uma greve de âmbito empresarial, no seio da R., pelos motivos que enunciou no pré-aviso de 14/08/2002, que está junto a fls. 41;
6) O conflito manteve-se até 22 de Abril de 2003;
7) A R. adoptou em resposta, e por todo aquele período de tempo, a interdição do acesso dos trabalhadores aos locais de trabalho e, ainda, da recusa em fornecer trabalho e remuneração;
8) O A. e mais 19 maquinistas intentaram contra a R. uma providência cautelar comum, cujos termos correram [pelo] 2.º Juízo [do Tribunal do Trabalho de Almada], sob o n.º 2/03.5TTALM-A, tendo em vista pôr fim à descrita situação de interdição;
9) Foi proferida decisão, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de recurso, que, revogando a decisão da primeira instância, indeferiu a providência cautelar;
10) Na acção principal respectiva, foi proferida sentença na primeira instância que julgou a acção parcialmente procedente;
11) Encontra-se pendente no Tribunal da Relação de Lisboa recurso da referida decisão;
12) Ainda da comunicação da R., de 08/07/2003 [será 4 de Junho de 2003 — facto provado 2)], adiante nela se refere que «resultou que V.ª Ex.ª fosse, neste momento, considerado inapto para o exercício das suas funções profissionais de maquinista, conforme se extrai da documentação clínica que se anexa»;
13) E mais se escreve que «tal circunstancialismo determina, de imediato, a caducidade do seu contrato de trabalho ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 4 do regime jurídico aprovado pelo DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro, por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de prestação da sua actividade profissional»;
14) Na mesma ocasião, foram os maquinistas RL e PG destinatários de uma comunicação em termos e consequências em tudo análogos à aqui referida;
15) Na «Ficha de Aptidão n.º 0000000», anexa à supra referida comunicação, existe um campo onde, em 2,5 linhas manuscritas se pode ler «incapacitado para a função de maquinista por alterações físicas e psíquicas com interferência com as suas capacidades operacionais. Deve ser reconvertido»;
16) Assina, sem data, esta declaração o Dr. JB, ali identificado como médico do trabalho;
17) O A. não conhece o subscritor desta declaração;
18) O A. foi submetido a exames médicos e complementares de diagnóstico, nos dias 13, 16 e 22 de Maio de 2003;
19) No dia 19 de Maio de 2003, o autor foi submetido a testes psicológicos;
20) Após a realização destes, o A. teve uma entrevista com duração não superior [a] 30 minutos, com uma senhora psicóloga, de nome DM;
21) Os exames médicos tiveram lugar na Unimed, sita no Campo Grande, em Lisboa;
22) O electroencefalograma decorreu no Núcleo de Radiodiagnóstico, sito na Av. Columbano Bordalo Pinheiro, em Lisboa;
23) Os testes psicológicos decorreram na Infoteste – Centro de Estudos e Diagnóstico Psicológico Computorizado, L.da, sito na Av. 5 de Outubro, em Lisboa;
24) Em nenhuma destas ocasiões, o A. contactou com o referido médico do trabalho, o Dr. João ...;
25) O qual nunca observou, directamente, o A.;
26) Este, face à comunicação acima referida, tentou obter toda a documentação respeitante à avaliação física e psicológica a que fora submetido;
27) Primeiro, solicitou à R. que lhe facultasse os resultados dos seus exames;
28) Não os obteve, sob pretexto de que os mesmos se achariam ainda na Unimed;
29) O A. dirigiu-se pessoalmente à Unimed, onde o gestor operacional dos exames dos trabalhadores da Fertagus lhe referiu que os seus exames já tinham sido entregues à R.;
30) Todavia, junto da administração da ré, os respectivos serviços de secretariado, quando pessoalmente interpelados pelo A., iam respondendo que não tinham ordens para proceder à entrega;
31) Por norma, todos os exames a que o A. e os seus colegas foram submetidos lhes eram entregues, em original, dentro de envelope fechado colocado no cacifo individual que cada um possui nas instalações da R.;
32) O A. pediu, por escrito, em 16 de Junho de 2003, que lhe fosse entregue a documentação referida;
33) O A., em data indeterminada, obteve a cópia do Relatório do Exame Psicológico a que foi submetido, que se mostra junto a fls. 46;
34) O A., como sucede com qualquer profissional da carreira de condução--ferrovia, foi seleccionado pela R. mediante avaliação psicológica de aptidão para a função de maquinista, a qual decorreu a partir de 1999 e esteve a cargo da Fernave, através do seu gabinete de Psicologia;
35) A Fernave é a herdeira do Gabinete de Psicologia da CP, onde, desde 1967, foi feita a selecção de todos os maquinistas em exercício na circulação ferroviária em Portugal;
36) A seu cargo e crédito [estiveram] a selecção de milhares de maquinistas portugueses;
37) Nomeadamente, foi a Fernave que seleccionou o A. como apto para a profissão de maquinista;
38) A entidade ora responsável pela realização dos testes sub judice, a Infoteste – Centro de Estudos e Diagnóstico Psicológico Computorizado, L.da, está vocacionada principalmente para a selecção de motoristas rodoviários;
39) Os exames psicológicos no domínio dos transportes ferroviários, exigem, especialmente para os maquinistas, uma muito cuidada e particular análise do potencial intelectual e comportamental de cada candidato, com vista a prognosticar o seu grau de adequação ao correcto desempenho da condução ferroviária, reconhecendo-se que o crivo é, deve ser, muito apertado, pelo que a ratio de seleccionados é de cerca de 10%;
40) As técnicas psicológicas de avaliação utilizadas, criadas por Lahy, em França, para o primeiro Laboratório de Psicotécnica Ferroviária, existente no seio da companhia francesa de caminhos-de-ferro, a SNCF, são complementadas pela medição, hoje informatizada;
41) A aplicação destas técnicas tem como suporte científico (i) o princípio da análise e do estudo do trabalho do condutor de comboios e (ii) o princípio da identificação das exigências psicológicas do trabalho e a respectiva cotação;
42) A selecção psicológica dos maquinistas deve ser feita numa lógica preditiva, i. e., de diagnóstico e de prognóstico;
43) É o desempenho profissional da pessoa seleccionada que valida o exame de selecção, não o contrário;
44) Só se justifica pôr em causa o prognóstico inicial da selecção, quando, subsequentemente, há indícios de «handicap», doenças prolongadas, acidentes ou outros incidentes relevantes;
45) O exame psicológico de selecção é, para os maquinistas, circunstancial, pois habitualmente não há elementos de comparação anteriores;
46) Diz-se circunstancial e não histórico, aquele exame, porquanto a selecção é feita naquela situação, naquela altura, apenas com os elementos que o candidato fornece pontualmente de si;
47) Posteriormente, o A., por ter sido irrestritamente considerado apto, passou a desempenhar a função de maquinista no troço explorado pela R.;
48) O processo formativo a que foi sujeito e a subsequente prática da profissão alargaram enormemente o quadro avaliável;
49) A R. não imputou ao A. défices, incidentes, doenças ou outros incidentes relevantes;
50) [facto tido por não escrito pelo Tribunal da Relação];
51) O A. sentiu-se intensamente desagradado com a situação da reavaliação a que foi sujeito;
52) O A. prestou as suas provas debaixo de um sentimento negativo, convencido de que a R. procurava, através da submissão [a] novos exames psicológicos, encontrar um pretexto para o afastar da empresa;
53) Não existe estudo de funções, nem por isso foi tal elemento de análise invocado no relatório do exame;
54) Igualmente não se mostram identificadas quais sejam, se algumas, as exigências psicológicas do trabalho a desempenhar pelo autor, do ponto de vista da R.;
55) Também se não conhecem as cotações que o autor teria obtido, se algumas foram registadas, a esse respeito, pela R.;
56) Não pode sindicar o exame de selecção anterior, porquanto metodologicamente é diferente daquele;
57) Existe grande diferença entre a aplicação dos testes a que o A. foi submetido na Fernave em 1999 e aquela que agora teve lugar em 2003, na Infoteste – Centro de Estudos e Diagnóstico Psicológico Computorizado, L.da;
58) Na Fernave, os testes psicológicos de selecção prestados pelo A. tiveram a duração de um dia e meio de aplicação;
59) Na Infoteste – Centro de Estudos e Diagnóstico Psicológico Computorizado, L.da, os testes duraram menos de duas horas;
60) Na Fernave, entre cada uma das provas de laboratório, os examinandos descansavam;
61) Na Infoteste – Centro de Estudos e Diagnóstico Psicológico Computorizado, L.da, os testes foram aplicados sem intervalo;
62) No caso do A., nenhum teste foi repetido;
63) Do relatório final dos testes, logo na folha 1 «Dados Biográficos», a psicóloga regista que o examinando «... se mostrou algo revoltado por ser submetido aos testes psicotécnicos, tendo adoptado uma postura defensiva e pouco cooperante durante a realização dos mesmos»;
64) Adiante, no mesmo Relatório, pode-se constatar que o A. denota possuir um perfil de aptidões operacionais equilibrado, visto que em 11 aptidões avaliadas, aufere 9 com valores médio/médio superior;
65) Quanto ao perfil personalístico, o Relatório começa por indicar os traços de personalidade positivos, assinalando «... adequados recursos adaptativos», «discurso ... bem estruturado», estabilidade emocional, auto-segurança e suficientes mecanismos de auto-controle;
66) Logo depois, ainda o mesmo Relatório aponta atitudes negativas que contrariam os aspectos positivos, nomeadamente ao registar «... algo impulsivo ... alguma dificuldade em controlar as suas emoções especialmente quando confrontado com situações que lhe desagradam»;
67) Na «Apreciação Global», no 2.º parágrafo, começa-se por considerar que os resultados no plano psicomotor se situam globalmente dentro dos parâmetros médios;
68) Mais adiante, lê-se «Assim sendo, estes factores [os 2 factores] poderão comprometer fortemente o seu desempenho como maquinista»;
69) No 3.º parágrafo da «Apreciação Global», escreve-se «... para a sua ampla integração na função a que se destina»;
70) Do ponto de vista científico, quer por se tratar de um profissional (maquinista) já com anos de experiência, quer atendendo ao estado de ânimo com que participou nos testes psicológicos, impunha-se a repetição destes nos factores com resultados negativos;
71) Mas a «Ficha de Aptidão n.º 371867», refere ainda «alterações físicas», para justificar a tal inaptidão;
72) Da série de exames hematológicos, audiométricos, de despiste do álcool e oftalmológicos, são estes últimos, aparentemente, aqueles em que é referenciada uma modificação, a «Alteração de acuidade visual no olho esquerdo longe e perto. Situação a justificar avaliação clínica»;
73) A «alteração de acuidade» poderá determinar o uso de óculos de correcção de visão;
74) Outros maquinistas da empresa há que usam óculos, ou lentes de contacto, de correcção;
75) O A. procedeu, alertado neste ponto pelo exame oftalmológico em apreço, à revisão;
76) Os resultados obtidos pelo seu médico oftalmologista, o Dr. Raúl ..., foram como segue:
(i) Olho direito, CIL. 0,25, eixo 180º;
(ii) Olho esquerdo, CIL. 0,50, eixo 0º.
77) A R. ignorou a sugestão do seu médico do trabalho, que consignou expressamente a reconversão do A. na «Ficha de Aptidão», manuscrevendo «Deve ser reconvertido»;
78) A R., no auge do processo grevista atrás referido, em Novembro de 2002, deu início a um curso de formação para novos maquinistas;
79) Este curso de formação teve a frequência de 9 elementos;
80) Em Março de 2003, a R. destinou 6 novos elementos à frequência de um outro curso para maquinistas;
81) O A. sofreu desgosto e sentiu-se acometido de profundo desânimo e frustração em consequência do despedimento;
82) O A. sentiu a actuação da R. como uma perseguição contra si por ter tomado parte da greve acima referida;
83) O A. é visto pelos seus colegas como um profissional capaz, diligente e cumpridor;
84) Nunca tendo sofrido qualquer censura disciplinarmente relevante;
85) Nem lhe tendo vez alguma sido apontada falha no estrito desempenho das suas funções;
86) É difícil conseguir no mercado português trabalho como maquinista ferroviário, visto o sector agrupar poucas empresas;
87) Profissão que o A. abraçou por ter vontade de nela se realizar;
88) Segundo o manual da empresa, a R. deve sujeitar a exames médicos os maquinistas com ausência superior a 3 meses para verificação da manutenção da aptidão funcional para o desempenho das funções de maquinista;
89) O processo de verificação da aptidão do A. para o exercício da profissão de maquinista foi efectuad[o] por entidade especializada em Medicina do Trabalho, a UNIMED, contratada pela R.;
90) A R. desconhece a que exames os trabalhadores são sujeitos naquela entidade e quais os meios de diagnóstico utilizados;
91) Não tem, nem teve no caso dos autos, qualquer interferência no processo de realização dos exames médicos;
92) Todos os outros 14 colegas maquinistas participantes na greve foram sujeitos aos mesmos tipos de exames médicos;
93) Os exames a que o A. foi sujeito e bem assim os demais maquinistas «grevistas» compreenderam os seguintes procedimentos: avaliação neuropsicológica para a função; exame médico; exames complementares; discussão; ficha de aptidão (decisão);
94) Em relação aos testes psicotécnicos, foi utilizada uma bateria de testes psicológicos para avaliar de forma quantitativa e qualitativa uma série de competências e performances individuais, ao nível cognitivo, psicomotor e comportamental;
95) A bateria de testes encontra-se aferida à população portuguesa, sendo os maquinistas comparados com todo o universo de trabalhadores que opera com transportes;
96) Os testes psicológicos realizados na Infoteste – Centro de Estudos e Diagnóstico Psicológico Computorizado, L.da, são totalmente informatizados;
97) Após a entrevista, e antes da tomada de decisão, a psicóloga DM reuniu com o Director e responsável clínico da Infoteste – Centro de Estudos e Diagnóstico Psicológico Computorizado, L.da, com quem discutiu o resultado dos testes, tendo ambos concordado com a decisão de inapto dada na ficha de aptidão do A.

Para melhor elucidação, refira-se que as instâncias julgaram «não provado» que «[o] A., aquando da realização dos testes psicológicos [que ocorreu em 19 de Maio de 2003 — facto provado 19)], estava incapacitado para o desempenho da sua profissão de maquinista ferroviário» (facto XI da decisão sobre a matéria de facto).

A recorrente sustenta, todavia, que «[e]stá documentalmente provado com força de caso julgado formal (ponto 15) que o Autor, em 2003, foi considerado INAPTO para o exercício da profissão de maquinista», «[p]or ter resultado dos exames e testes efectuados ao Autor e melhor identificados nos autos, que o mesmo não conseguiu processar (pelos estímulos sensoriais e não da visão) correctamente a informação visual, nem possuía capacidade de atenção vigilante, factores objectivamente indispensáveis para quem conduz um comboio», e, «não obstante se encontrar nos autos um Relatório do IML, certo é que o seu teor e as suas conclusões não foram levadas à matéria dada como assente, donde não deter qualquer valor probatório, nem dentro, nem fora do processo».

E propugna, também, «que sempre seria duvidoso que o Relatório do IML constituísse verdadeira e própria perícia, dado não terem sido efectuados quaisquer testes ou provas destinadas à aferição da específica aptidão funcional para o exercício da profissão de maquinista», e que «nem mesmo o exame efectuado pelo Hospital Miguel Bombarda abala esta conclusão, dado que o mesmo se limitou a concluir, como é hábito em exames de patologia forense, que o Autor não padecia de enfermidade psíquica ou psicológica impossibilitante».

Neste particular, o acórdão recorrido teceu as considerações seguintes:

«Finalmente, nas conclusões 5.ª a 20.ª, a Recorrente alega [que] terá de [se] considerar assente que “em 2003 o Autor era inapto para o desempenho da profissão de maquinista”.
Este, porém, foi o facto XI, expressamente dado como não provado, conforme conta da decisão da matéria de facto. E tal resposta foi fundamentada “pelas dúvidas suscitadas sobre o porquê dos resultados negativos obtidos pelo A. em dois dos testes psicológicos face à situação concreta daquele, sustentadas mesmo por testemunhas da Ré, conjugadas com o relatório pericial que dá hoje o A. como apto para o desempenho da profissão de maquinista ferroviário”.
Alega a Recorrente que o referido facto não pode deixar de ser considerado provado por essa ser uma questão de natureza técnica, em que o princípio da livre apreciação é praticamente inexistente, em que o juiz apenas pode socorrer-se da prova documental ou testemunhal produzida por técnicos da especialidade. E o relatório da psicóloga classifica o A. como inapto para a função de maquinista, facto provado por quem tem competência para tal, o qual só poderia ser infirmado por prova de idêntica dignidade formal, como por exemplo a que decorresse de peritagem efectuada pelo Instituto de Medicina Legal, mas, o julgador ignorou o relatório do IML, não lhe conferindo dignidade científica.
Ora, esta última asserção da recorrente está claramente infirmada pela fundamentação da resposta negativa dada ao facto em causa, conforme consta do trecho supra transcrita.
Com efeito, o único relatório pericial realizado nos autos foi o efectuado a fls. 331/333 por junta médica do INML (Instituto Nacional de Medicina Legal), que constatou a “necessidade de repetir algumas provas, ‘testes’, dos realizados pela Infoteste, nomeadamente os que se relacionam com a capacidade de concentração, por poderem estar enviesados pela predisposição do examinando no momento da sua realização”, e solicitou a sua realização ao Hospital Miguel Bombarda, que realizou um parecer de neuropsicologia, cujo relatório consta de fls. 314, onde se concluiu “não se identificarem factores que impossibilitem a sua prática profissional”. O referido relatório do INML concluiu, depois, que face a esta nova avaliação a que o A. foi sujeito no Hospital Miguel Bombarda, em que foram avaliados os mesmos domínios, que não foram encontrados “factores que impossibilitem a sua prática profissional”.
Pedidos esclarecimentos complementares pelo M.º Juiz, a junta do INML concluiu, por maioria (perito do Tribunal e do Autor), não ser necessário realizar novos testes, pois a capacidade de resistência à monotonia “já foi devidamente avaliada por provas neuropsicológicas específicas realizadas no Hospital Miguel Bombarda, posição aliás assumida aquando da elaboração do relatório de fls. 331 a 332. O perito da Ré disse que “salvaguardando a qualidade da avaliação neuropsicológica realizada no Hospital Miguel Bombarda, considera que seria conveniente realizar-se uma avaliação com teste específico e equiparável aos realizados pela Infoteste para análise de resistência à monotonia”.
A decisão de considerar não provado o referido facto foi, pois, fundamentada no parecer da Junta médica realizada pelo INML, entidade independente e imparcial, que concluiu, por unanimidade, que “não foram encontrados factores que impossibilitem a sua prática profissional”.
E para a tomada dessa decisão foi pedido e realizada pelo Hospital Miguel Bombarda uma bateria de testes que avaliaram os mesmos domínios que os testes realizados pela Infoteste, como é claramente referido no relatório do INML.
Resulta assim, à evidência, não se poder dar como provado o facto que a Recorrente pretende que se deveria ter sido dado como provado.»

A questão suscitada respeita à fixação dos factos materiais da causa.

Como é sabido, a Relação pode modificar a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto sempre que se verifique qualquer das situações previstas no n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, e poderá também anular a decisão sobre a matéria de facto, mesmo oficiosamente, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a sua ampliação (artigo 712.º, n.º 4, do Código de Processo Civil) ou ainda ordenar a fundamentação da decisão proferida pela primeira instância relativamente a algum ponto de facto que não estiver devidamente fundamentado (artigo 712.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).

Todavia, em sede de revista, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do apuramento da matéria de facto relevante é residual e destina-se exclusivamente a apreciar a observância das regras de direito material probatório, previstas nos conjugados artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do n.º 3 do artigo 729.º do mesmo diploma legal.
Especificamente, o n.º 2 do artigo 722.º citado estabelece que «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força de determinado meio de prova».

E o n.º 2 do artigo 729.º referido determina que «[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 2 do artigo 722.º».

Nesta conformidade, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto se o recorrente invocar como fundamento dessa impugnação a ofensa de disposição expressa de lei, quando esta exija certa espécie de prova para a existência do facto ou quando a mesma fixe a força de determinado meio de prova.

Tal como se pondera, a este propósito, no acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Novembro de 2006 (Processo n.º 2568/06 da 4.ª Secção):

«Na anterior redacção do artigo 712.º do Código de Processo Civil (resultante da reforma processual de 1995/1996), entendia-se que o Supremo não podia controlar o não uso pela Relação dos poderes conferidos por esse preceito, mas já poderia efectuar esse controlo quando a Relação tivesse feito uso desses poderes, caso em que se considerava que o que estava em causa não eram os estritos aspectos da apreciação das provas ou da fixação dos factos materiais da causa, mas a eventual ocorrência de um erro de direito quanto à existência da deficiência, obscuridade ou contradição da decisão de facto, ou a necessidade da sua ampliação, que justificasse a repetição do julgamento (cfr. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 447, e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Dezembro de 1984, Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 122, p. 233, e de 15 de Março de 1994, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 435, p. 750).
No entanto, qualquer destas possibilidades parece ter sido posta em causa, em via de recurso, por força do agora estatuído no n.º 6 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro, onde se prescreve: “Das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.
Não havendo lugar, nos sobreditos termos, a um recurso autónomo das decisões que a Relação adopte no âmbito dos seus poderes de modificabilidade da decisão de facto, a intervenção do Supremo reconduz-se à verificação da conformidade da decisão de facto com o direito probatório material, nos estritos termos dos artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 3, [citados], quando essa questão venha suscitada como fundamento do recurso de revista, e apenas nos casos em que este seja admissível por se considerar igualmente verificada uma violação da lei substantiva.»

No caso vertente, não vem alegado que o tribunal recorrido tenha ofendido qualquer disposição expressa de lei que exigisse certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixasse a força de determinado meio de prova.

A alegação da recorrente cinge-se a que «[e]stá documentalmente provado com força de caso julgado formal (ponto 15) que o Autor, em 2003, foi considerado INAPTO para o exercício da profissão de maquinista»; ora, naquele ponto da matéria de facto apenas consta que, na Ficha de Aptidão n.º 371867, existe um campo onde se pode ler «incapacitado para a função de maquinista por alterações físicas e psíquicas com interferência com as suas capacidades operacionais. Deve ser reconvertido». Doutro passo, as instâncias consideraram como não provado que «[o] A., aquando da realização dos testes psicológicos [que ocorreu em 19 de Maio de 2003 — facto provado 19)], estava incapacitado para o desempenho da sua profissão de maquinista ferroviário». Por conseguinte, não se configura o invocado caso julgado formal, nem a violação do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

Acresce que, embora a recorrente defenda que os resultados dos exames realizados por sua iniciativa devem prevalecer relativamente à perícia levada a cabo pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, o certo é que a força probatória da prova pericial é fixada livremente pelo julgador de facto (artigos 389.º do Código Civil e 591.º e 655.º do Código de Processo Civil), pelo que está vedado a este Supremo Tribunal, com base naqueles exames, alterar a matéria de facto assente nas instâncias (artigos 712.º, n.º 6, 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).

Nesta conformidade, improcedem as conclusões 1) a 7) e 13), na parte atinente, da alegação pertinente ao restante objecto do recurso.

Será, pois, com base no enunciado acervo factual que hão-de ser resolvidas as restantes questões suscitadas no presente recurso.

3. A recorrente defende que o contrato de trabalho celebrado entre as partes não cessou por despedimento, mas antes por caducidade, nos termos da alínea b) do artigo 4.º do regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato a termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, adiante designado por LCCT.

3.1. A Lei Fundamental garante, no artigo 53.º, o direito dos trabalhadores à segurança no emprego, proibindo «os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos e ideológicos», e proclama, no n.º 1 do seu artigo 58.º, o direito ao trabalho.

No plano infraconstitucional, estando em causa a cessação de um contrato de trabalho, ocorrida em data anterior à entrada em vigor do Código do Trabalho (dia 1 de Dezembro de 2003 — n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto), aplica-se o disposto na LCCT, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 99/2003.

O artigo 3.º da LCCT proíbe os despedimentos sem justa causa (n.º 1) e estabelece que o contrato de trabalho pode cessar por (a) caducidade, (b) revogação por acordo das partes, (c) despedimento promovido pela entidade empregadora, (d) rescisão com ou sem justa causa, por iniciativa do trabalhador, (e) rescisão por qualquer das partes durante o período experimental e (f) extinção de postos de trabalho por causas objectivas de ordem estrutural, tecnológica ou conjuntural relativas à empresa (n.º 2).

No respeitante à caducidade do contrato de trabalho, o artigo 4.º da LCCT dispõe que o contrato de trabalho caduca nos termos gerais de direito, nomeadamente verificando-se a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de a entidade empregadora o receber [alínea b)].

3.2. A impossibilidade a que alude a alínea b) do citado artigo 4.º deve ser entendida nos termos gerais de direito, isto é, em moldes similares ao regime comum da impossibilidade do cumprimento não imputável ao devedor constante nos artigos 790.º e seguintes do Código Civil, regime para que remete o dito artigo 4.º e à luz do qual essa impossibilidade é caracterizada como superveniente, absoluta e definitiva.

Conforme refere ROMANO MARTINEZ (Direito do Trabalho, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, p. 880), «para a impossibilidade ser superveniente pressupõe-se que o contrato de trabalho, aquando da sua celebração, podia ser cumprido, tendo surgido, posteriormente, um impedimento que obsta à realização da prestação laboral ou ao seu recebimento. A impossibilidade absoluta pressupõe que a prestação laboral não pode, de todo, ser efectuada ou recebida, não bastando uma difficultas praestandi

«Por último, exige-se que a impossibilidade seja definitiva, pois, sendo temporária, implica tão-só que a execução do contrato de trabalho se suspenda.»

Refira-se, doutro passo, que, em regra, a caducidade do contrato de trabalho opera automaticamente, não necessitando de ser invocada por qualquer das partes.

Porém, em determinados casos, pode ser exigida uma declaração «[…] que exterioriza o apuramento da situação conducente à caducidade (v.g., declaração de encerramento da empresa a título definitivo ou uma declaração de invalidez definitiva do trabalhador): tratar-se-á, contudo, de uma declaração que atesta ou comprova uma situação de facto e não uma declaração de vontade extintiva (B. LOBO XAVIER, “A extinção do contrato de trabalho”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXXI, 1989, n.os 3-4, p. 415).

Noutra perspectiva, MONTEIRO FERNANDES (Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 526) entende que o automatismo da caducidade é uma noção destituída de rigor, porque, para o contrato de trabalho caducar, é sempre necessária uma declaração ou manifestação de vontade.

3.3. No caso, a ré remeteu ao autor uma comunicação, datada de 4 de Junho de 2003, na qual declarava a caducidade do contrato de trabalho, por impossibilidade superveniente absoluta e definitiva da prestação da actividade profissional, por este ter sido considerado inapto para o exercício das funções de maquinista, conforme o documento clínico em anexo [factos provados 2), 12) e 13)]. Tal documento consiste numa ficha de aptidão, segundo o modelo aprovado pela Portaria n.º 1031/2002, de 10 de Agosto, que se destina a inscrever os resultados dos exames de saúde que, realizados nos termos do Decreto-Lei n.º 26/94, de 1 de Fevereiro, tenham em vista verificar a aptidão física e psíquica do trabalhador para o exercício da sua profissão, reportando-se, no caso, a um exame médico realizado em 13 de Maio de 2003.

O referido documento atesta que o trabalhador se encontra «incapacitado para a função de maquinista por alterações físicas e psíquicas com interferência com as suas capacidades operacionais. Deve ser reconvertido» [facto provado 15)].

Por outro lado, resulta da matéria de facto dada como provada que o autor nunca foi observado, directamente, pelo médico do trabalho que subscreveu a ficha de aptidão [factos provados 16), 17), 24) e 25)], sendo que o autor foi submetido a exames médicos e complementares de diagnóstico, nos dias 13, 16 e 22 de Maio de 2003, e, no dia 19 de Maio de 2003, a testes psicológicos, portanto, em momento posterior, ao do exame médico que ditou a incapacidade para o trabalho, pelo que não poderiam influenciar o resultado final que surge indicado naquela ficha quanto à incapacidade para o exercício da função [factos provados 18) e 19)].

Assim, a declaração de caducidade do contrato de trabalho teve por base um juízo médico meramente conclusivo, que não se encontra apoiado em qualquer observação ou exame clínico que explicite os motivos concretos que possam justificar a declarada inaptidão para o exercício da actividade profissional.

E, além disso, conforme salienta o acórdão recorrido, o Instituto Nacional de Medicina Legal, em perícia requisitada pelo tribunal, concluiu «que não foram encontrados factores que impossibilitem a sua prática profissional», sendo certo que «as alterações de ordem física só podia[m] estar relacionadas com a alteração da acuidade visual, situação que podia ser corrigida, como foi, com o uso de óculos, ou lentes de contacto, situação que não é impeditiva da actividade de maquinista, pois na empresa há maquinistas que usam óculos» [factos provados 72) a 76)].

Tendo em conta o acima explicitado, há que concluir, como concluíram as instâncias, que a ré não provou, como lhe competia (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), a existência de qualquer impossibilidade de o autor lhe prestar o seu trabalho.

E não tendo ficado provada a impossibilidade de o autor prestar o seu trabalho à ré, não se configura a pretendida caducidade do contrato de trabalho, nos termos previstos na alínea b) do artigo 4.º da LCCT, pelo que a comunicação da cessação do contrato de trabalho efectivada pela ré consubstancia um despedimento, que é ilícito por não ter sido precedido de processo disciplinar.

Improcedem, pois, as conclusões 13) e 14), ambas na parte atinente, da alegação do recurso de revista pertinente ao restante objecto do recurso.
4. Resta decidir a questão relativa aos danos não patrimoniais peticionados.

A recorrente alega que agiu sem culpa, «requisito indispensável para gerar a obrigação de indemnizar, fazendo-se tábua rasa do disposto no artigo 483.º do Cód. Civil», porquanto «a inaptidão procedeu de razões técnico-científicas, do resultado objectivado de exames e testes realizados por profissionais academicamente habilitados e de acordo com cânones dessa área de conhecimento», donde, «o juízo de inaptidão do Autor não procede de um comportamento doloso e querido como tal da Recorrente, por lhe faltar a livre determinação de vontade, pressuposto imprescindível para qualquer juízo de imputação subjectiva, incluindo a mera negligência», sendo que «está documentalmente provado (vide factos 14 e 92) que a Recorrente, não só não interveio em nenhuma fase da efectivação desses exames e testes, como aceitou incondicionalmente o seu resultado, mesmo que se traduzisse, como se traduziu, em julgar aptos outros 16 maquinistas», configurando-se, assim, «uma considerável diminuição da eventual reprovabilidade da sua conduta».

A obrigação de indemnização depende da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, em geral (artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil), bem como da existência de danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil).

Ora, perante o constante nos factos provados 81) a 87) verifica-se existirem danos suficientemente graves para merecerem a tutela do direito.

Por outro lado, como já acima se referiu, e não deixou de ser assinalado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a conduta da ré, para além de ilegal, é censurável em grau elevado, «não só porque não se verifica a caducidade do contrato de trabalho, mas também porque se desinteressou da possibilidade de colocação do trabalhador numa outra função, avançando logo para a aplicação da medida drástica da cessação do contrato de trabalho, sem levar em consideração a sugestão fornecida pelos serviços de medicina de trabalho de reconversão do trabalhador».

É, ainda, inquestionável a vinculação causal entre tais factos e esses danos.

A recorrente pretende fazer crer, no entanto, que nada tem a ver com a declaração de caducidade e que se limitou a cumprir a decisão técnico-científica da entidade competente para realizar os exames de saúde quanto à aptidão do trabalhador para o exercício profissional.

Mas não tem razão.

Tal como se afirma, a este propósito, no acórdão recorrido:

«[…] a Recorrente olvida que não está vinculada ao resultado do exame de medicina do trabalho, nem esse exame tinha como objectivo determinar ele próprio a caducidade do contrato, nem esse exame poderia justificar, sem mais, a declaração de caducidade do contrato de trabalho já que não propunha a inaptidão para todo e qualquer trabalho, e até chamava a atenção para a possibilidade de reconversão do trabalhador.
A circunstância de o exame médico em causa ter sido realizado por uma entidade externa, a quem a ré contratou os serviços de saúde no trabalho, não isenta o empregador das responsabilidades que lhe são atribuídas pela legislação geral do trabalho, mormente no tocante ao regime jurídico da cessação do contrato de trabalho.
A responsabilidade pela cessação do contrato é, pois, da própria Apelante que, através da comunicação de 8.06.2003, a levou ao conhecimento do Autor.»

Improcedem, portanto, as conclusões 8) a 12) e 14), na parte atinente, da alegação do recurso de revista pertinente ao restante objecto do recurso.

III

Pelo exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso no tocante à nulidade do acórdão recorrido invocada nas conclusões 1) a 8) da parte atinente da alegação do recurso de revista;
b) Negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 25 de Fevereiro de 2009

Pinto Hespanhol (relator)
Vasques Dinis
Bravo Serra