Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A2507
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
SERVIDÃO DE AQUEDUTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ20071213025076
Data do Acordão: 12/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1) Só há omissão de pronúncia, geradora da nulidade da alínea d) do n.º 1 do artigo 668º, se a decisão não aborda todas as questões que as partes submeteram à apreciação do tribunal, salvo as prejudicadas por solução dada a outras.
2) Só excepcionalmente o STJ, e nos termos do nº 3 do artigo 729º do CPC, pode exercer censura sobre o não uso pela Relação de poderes quanto à matéria de facto.
3) O exercício, ou não, pela Relação dos poderes das alíneas a), b) e c) do nº1 do artigo 712º do CPC é incensurável pelo STJ sendo a respectiva decisão irrecorrível.
4) O STJ é essencialmente um Tribunal de revista, vocacionado para a uniformização de jurisprudência.
5) A servidão por destinação do pai de família não é uma servidão legal e constitui-se no momento em que os prédios ou fracções de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes, tendo na origem um acto voluntário consistente na colocação de sinal ou de sinais permanentes.
6) O acto constitutivo é o da separação jurídica de dois prédios do mesmo proprietário (destinação do anterior proprietário) ou da separação jurídica de duas fracções do mesmo prédio (destinação do pai de família propriamente dita), sendo que o “sinal ou sinais visíveis e permanentes” do artigo 1549º do Código Civil têm que preexistir a tal separação, colocados pelo anterior proprietário ou por algum dos seus antecessores.
7) Sempre que se verifiquem os pressupostos do artigo 1549º do Código Civil, a servidão por destinação do pai de família (por destinação do anterior proprietário) constitui-se por força da lei (“ope legis”), independentemente de se saber se o alienante e o adquirente quiseram que tal acontecesse.
8) Na servidão de aqueduto, quer o proprietário do prédio dominante, quer o dono do prédio serviente podem proceder a obras de reparação e conservação, que podem até incluir a adopção de mais modernos meios tecnológicos desde que tal não implique qualquer alteração “in pejus” que diminua ou torne mais incómodo o exercício da servidão ou até – em caso de obras inovatórias – modifique o seu conteúdo.
9) A verificação desses limites é apreciada casuisticamente, em sede de matéria de facto tendo sempre, como referência, a situação existente aquando da separação dos domínios.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


AA e mulher BB intentaram acção, com processo ordinário, contra CC e mulher DD pedindo o reconhecimento do direito de servidão de duas nascentes e aqueduto existentes no prédio dos Réus e a condenação destes a pagarem-lhes, a titulo de indemnização, 16.268,95 euros e, a expensas dos demandados substituírem a canalização danificada, a manutenção e limpeza das nascentes e, finalmente, a condenação destes a não perturbarem o exercício da servidão.

Na Comarca de Braga a acção foi julgada parcialmente procedente e declarado reconhecido o direito de servidão de aqueduto, em cano de plástico de uma polegada, constituída por destinação de pai de família a onerar o prédio dos Réus, para conduzir a água da nascente neste prédio, a favor do prédio dos Autores.

Apelaram os Autores mas a Relação de Guimarães confirmou o julgado.

Pedem, agora, revista assim concluindo a sua alegação:

1ª A canalização de polegada e meia em tubo de plástico (por 2 vezes colocada na Bouca dos RR), inferior a primitiva em cano de gres de cerca de 2 polegadas que conduzia ambas as nascentes para os prédios dos AA, até e depois das partilhas nos autos – que originaram a servidão de aqueduto por destinação do pai de família – deve manter-se – artigos 1.549 e 1565 do CC – Ac. do STJ de 21/02/2006, Col.Jur. 1-73; Ac. da Relação de Lisboa de 5-07-2000, Col. de Jur., 2000, IV, 87, apud Legix 7
2ª O facto de, entretanto, se ter usado cano de polegada, em nada alterou a primitiva servidão do remoto pai de família de cerca de 2 polegadas — artigo 1.572 do CC
3ª A Relação, não reapreciando a matéria de facto, negou aos apelantes o jus a essa segunda jurisdição de recurso, constitucionalmente garantida, violando assim os artigos 712 e 722-2 do CPC, e 20 da CRP com a consequente nulidade
4ª A Relação não procedeu a audição dos depoimentos indicados nem se referiu sequer aos documentos carreados aos autos, ao invés do artigo 690-A-5, 712-1 — a) -2 do CPC — Ac. do STJ de 19/10/2004, Col Jur., 111-73
5ª Não tendo a Relação considerado todas as conclusões de recurso, furtou-se ao dever de julgar, incorrendo na nulidade prevista no artigo668-1-d, ex-vi do artigo 716 ambos do CPC
6ª Os RR ao recorrerem a acção directa, cortando a canalização de polegada e meia – decorrido meio ano da sua colocação – incorreram em ilícito, tornando-se responsáveis pelas consequências — artigos 336 do C. C. e 21 da CRP
7ª Agiram por motivo fútil — em retaliação de lhes ser instaurada outra acção referida em 6 e 27 – com frieza de ânimo e insensibilidade – cf. ac da Relação de Coimbra de 17-01-1980, Col. de Jur., 1984, 1, 71, apud Legix 1 incorrendo assim os RR em abuso do Direito – 334 do CC
8ª Devem, pois, os RR ser condenados nos danos causados, conforme o peticionado nos autos ou a liquidar em execução de sentença, com custas e procuradoria.

O recurso não foi contra alegado.

A matéria de facto fixada pela Relação é a seguinte:

- Os AA. são proprietários dos prédios, sitos no lugar de Cisão, freguesia de Barros, desta comarca, a saber:
- misto casa de 2 pavimentos e rodo ou eido junto com as áreas: coberta de 195 m2 e este rocio ou eido com 550 m2, a confrontar: norte, sul e poente – caminho público; nascente carreiro, inscrito na matriz urbana sob o artigo 79 e na rústica sob o artigo 357, descrito na conservatória do registo predial a favor dos mesmos AA sob o Nº 0055 1/060504 B
-Leira do Eido, de cultivo, com a área de 750 m2, a confrontar: Norte – Quelha da Fonte da Poça. nascente e sul, proprietários, poente – caminho de Cisão, inscrito na matriz rústica sob o artigo 356, descrito na conservatória do registo predial a favor dos mesmos AA sob o Nº 00552/060504.
- O A. acedeu à titularidade desses prédios:
- por sucessão em inventário Nº 2.444/57, desta comarca, arquivado sob o Nº 447 do Maço 80 de seu Pai — EE, casado que fora com FF; a qual por sua vez o herdara por sucessão de seus Pais – JC e RP por partilha no notário ....desta comarca de 29105/1957B;
-por compra a sucessores de co-herdeiros na mesma herança de seus avós matemos JC e RP por escrituras do notário deste concelho de 28/11/1988 quanto a metade indivisa do urbano 79; e de 6/0211989 quanto ao rústico;
- Os RR são proprietárias do seguinte prédio acedido por herança dos Pais da R. DD (avós maternos do A marido) na escritura de partilhas referida no final de b) 1, a saber: Bouça da Poça do Campo, a mato e pinheiros, com a área de 9.930 m2, sito no lugar de Cisão, freguesia de Barros, a confrontar: Norte -..., Nascente – caminho da Lage do Grilo, Sul – ..., Poente – proprietário e ... e outro, inscrita na matriz rústica sob o artigo 378.
- Desde 1938 que aqueles prédios dos AA beneficiavam de água canalizada proveniente de 2 nascentes existentes no prédio dos RR.
- Sendo anteriormente, quer o prédio das nascentes (ora dos RR) quer os prédios ora dos AA, todos eles do mesmo casal proprietário: ditos Pais da Ré DD e avós matemos do A. marido – JC e RP.
- O R marido escreveu, dirigida ao A marido, expedindo-a sob registo em 20 de Abril de 2004 – datada de 08-04-2004 – uma carta do seguinte teor: «Pediu-me Vxa para o deixar abrir uma vala na minha propriedade, bouça fechada e arborizada, afim de ali substituir o tubo de polegada que diz estar velho por outro de polegada novo. Marquei-lhe por onde devia passar. Na mesma hora entrou na propriedade o empreiteiro Sr. ... e seu filho residentes no lugar de Penediscos, Atães e outro cavalheiro de Penascais com (sic) o tractor e arado e logo começaram a abrir a referida vala numa extensão de 100 metros cortando raízes de pinheiros, castanheiros e eucaliptos, dando um certo dano no crescimento das árvores atingidas.
Isto feito em Fevereiro último “2004”. Em 8 de Abril fui com muito custo à mesma propriedade e fiquei espantado com o que, de fora, levou em tractor, pilares laterais e viga superior tudo em pedra granítica e o respectivo cimento, construindo uma portada em pedra e cimento, pondo-lhe uma porta em ferro com fechadura e chave e na mesma porta cravou o nº 2 em latão amarelo.
Nas suas propriedades o Sr. pode fazer o que entender, mas nas propriedades dos outros, aconselho-o a respeitar, mesmo que lhe custe o facto de terem sido de seu avô materno, ok? Assim, dou-lhe 30 dias a contar da data do recebimento deste aviso para esborralhar a portada em questão e meter a água no tubo de polegada que em tempos lhe autorizei a meter. Ponha todo o material que para ali trouxe fora da minha propriedade. Ponha tudo como estava antes de Fevereiro para manter o ambiente fresco e o eco-sistema que o meu amigo quer destruir.
Sou CC»
- Há mais de 30 anos a água das duas nascentes era conduzida através de um tubo de grés, o qual foi substituído, há mais de 30 anos, por dois tubos de plástico, de uma polegada cada, dirigindo-se, um deles, da nascente n°2, para os prédios dos AA e outro, da outra nascente, para o prédio dos RR, conduzidos através deste ultimo prédio.
- A água assim conduzida abastecia os prédios (hoje de AA e RR) e os respectivos moradores.
Os AA fizeram obras no óculo de acesso à nascente donde era conduzida a água para os seus prédios, onde colocaram uma porta.
- Por vezes, os AA procediam à desobstrução do cano que conduzia a água para o seu prédio.
- Em Dezembro de 2003 os AA colocaram um cano de plástico de uma polegada e meia para conduzir a água da 2ª nascente para o seu prédio.
- Caiu uma pedra de cobertura da mina que abastece os AA.
- Os AA procederam à vedação da mina.
- Há cerca de 15 anos ocorreu uma enxurrada.
- Em Junho de 2004 os RR cortaram o cano de polegada e meia colocado pelos AA, permanecendo, para abastecimento do prédio destes, o anterior cano de uma polegada.
Na substituição do cano de polegada e meia toda a na extensão de cerca de 150 metros os AA despenderam, 16.000$00 e em transportes, deslocação de terra e outros materiais despenderam quantia não apurada.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo:

1- Omissão de pronuncia.
2- Matéria de facto.
3- Servidão de aqueduto.
4- Conclusões.

1- Omissão de pronúncia.

Na óptica dos recorrentes a Relação não considerou todas as conclusões do recurso, assim cometendo a nulidade da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
Este vício de limite conecta-se com os poderes-deveres de cognição do julgador constantes do n.º2 do artigo 660º do mesmo diploma.
Está, todavia, assente que o elenco a decidir deve atentar no “distinguo” entre as que se conectam directamente com o pedido e a causa de pedir e o que mais não é do que o acervo de considerações, motivos, juízos de valor ou argumentos aduzidos pelos partes.
Já o Prof. Alberto dos Reis mandava desconsiderar como questão a resolver as meras linhas de fundamentação jurídica.
Como vem julgando este Supremo Tribunal “ a omissão de pronúncia supõe a omissão de conhecimento de questão que o Tribunal deva conhecer por força do n°2 do artigo 660º (que não o, de forma detalhada, abordar todos os argumentos, considerações, ou até juízos de valor, produzidos pelas partes) silenciando-as em absoluto”.– Acórdão de 20 de Junho de 2006 – 06 A1443. (cf. ainda, o Acórdão de 6 de Julho de 2006 — 06 A1838: “A omissão de conhecimento, como causa de nulidade da decisão, implica o silenciar de qualquer das questões a que se refere o n°2 do artigo 660° do Código de Processo Civil. Se a questão é abordada mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, que não errore in procedendo”, entre muitos outros).
Ora, não resulta dos autos que a Relação tivesse deixado de conhecer qualquer questão que as partes tivessem submetido à sua apreciação pelo que “prima facie”, não se vê que tivesse omitido conhecimento.

2- Matéria de facto

Certo que os recorrentes imputam o incumprimento do n°3 do artigo 659° do diploma adjectivo por, na sua óptica, o Acórdão não ter procedido ao “exame critico das provas”, e. reapreciado a matéria de facto.
Vejamos,
A censura sobre a forma como a Relação exerceu os seus poderes quanto ao julgamento da matéria de facto pela 1ª instância, está fora do âmbito de cognição deste Supremo Tribunal.
Excepcionalmente, e como ensina o Cons. Amâncio Ferreira, “o Supremo pode ex officio exercer tacitamente censura sobre o não uso por parte da Relação dos poderes de alteração ou anulação da decisão de facto, sempre que entenda dever esta decisão ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, ante o estatuído no n°3 do artigo 729° (apud, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 6ª ed, 226).
Trata-se de, e no essencial, consagrar o principio (do artigo 26° da LOFTJ) que limita à matéria de direito a competência jurisdicional do Supremo Tribunal.
Na sua alegação os recorrentes insurgem-se ainda contra o Acórdão por não ter usado a faculdade do artigo 712º do Código de Processo Civil.
Recorde-se que a garantia daquele “duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca pode envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a
prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais, erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto.” (in preâmbulo do Decreto Lei n° 39/95, de 15 de Fevereiro).
A decisão da 1ª instância pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos dá matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido a gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada nos termos do artigo 690º A do CPC, a decisão proferida com base neles.
A acção foi intentada em 2004.
É lhe aplicável a redacção do artigo 690° A do Código de Processo Civil, introduzido pelo Decreto-lei n° 183/2000, de 18 de Agosto (artigo 8°).
Na redacção anterior (Decreto-Lei n° 329-A/95 de 12 de Dezembro) o n° 2 exigia ao recorrente, “sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda”.
Actualmente, cumpre, apenas, ao recorrente “indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no n°2 do artigo 522° C”.
E o n°5 do mesmo preceito impõe à Relação a audição ou visualização dos depoimentos indicados, “excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas, para tanto contratadas pelo tribunal.
Escreveu-se no Acórdão do STJ de 6 de Julho de 2006 – 06 A1838 – desta mesma conferência:
“Mas também incumbe ao impugnante da matéria de facto indicar os “concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”.
O n°1 do artigo 712° do diploma adjectivo dispõe a possibilidade de alteração, pela Relação, da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto, se do processo constarem todos os elementos que serviram de base à decisão ou se, tendo ocorrido a gravação, tiver havido impugnação de acordo com o citado artigo 690° A.
Como refere o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Novembro de 2005 (P° 3153/05 – lª) “foi intenção do legislador, aliás expressamente confessada no relatório do Decreto-Lei n° 39/95, criar um duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, embora temperada pelo ónus imposto ao recorrente de delimitação concreta do objecto do recurso e da respectiva fundamentação, a fim de evitar a impugnação genérica da decisão de facto no seu todo.”
E assim é porque – embora a Relação forme a sua própria convicção dentro do princípio da livre apreciação das provas nos mesmos termos do Tribunal “a quo” – a ausência da imediação do contacto directo com a prova, a não suficiência, para percepção de detalhes e características idiossincráticas das testemunhas (o que releva para estribar convicções), de sistemas de gravação, não permitem uma perfeita documentação do ocorrido na 1ª instância.
Será uma actividade difícil e penosa, passar várias horas a ouvir gravações, tentando identificar e reconhecer vozes dos depoentes e de outros intervenientes, relacioná-las com o que consta da acta e cotejá-las com as motivações, tantas vezes sem o necessário apuro técnico.
Por isso é que o 2° grau de jurisdição em matéria de facto deve ser visto com cautela buscando interpretações rigorosas – embora não necessariamente restritivas – dos preceitos que o regulamentam.
A exigência da alínea a) do n° 1 do artigo 690º A do Código de Processo Civil – e deixemos a da alínea b), por já acima abordada – destina-se precisamente a balizar, com rigor, a área de reapreciação, evitando uma reprodução integral de toda a prova, com as escolhas atrás acenadas. A importância dessa especificação é tal que o legislador fulmina a sua ausência com a rejeição do recurso.”
Ora os recorrentes não cumpriram esse ónus não indicando, com precisão pontos de facto que pretendia ver reapreciados pela Relação.
Nem se diga que pode reportar-se, genericamente, a “todos os factos”.
Esse entendimento esvaziaria de sentido o n° 1 do citado artigo 690° A que impõe não só a referência (“obrigatoriamente”) aos “concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” (a) como aos “concretos meios probatórios” (...) “sobre os pontos da matéria de facto impugnada” (b).
- Finalmente, não tem este Tribunal razões para, oficiosamente, lançar mão do n° 3 do artigo 729° da lei processual.
Trata-se de medida de excepção só utilizável quando ao conhecer do mérito – a questão de direito – concluir que existem contradições essenciais em pontos de facto que vão comprometer a decisão final, ou quando não foram considerados factos alegados pelas partes, ou, finalmente, quando foi desconsiderada matéria de conhecimento oficioso.

Improcede, em consequência, mais este segmento recursório.

3- Servidão de Aqueduto

3.1- Assente ficou, e não é objecto de controvérsia neste recurso – estar constituída uma servidão de aqueduto a favor do prédio dos recorrentes.
“Pulcra quaestio” é saber se a substituição do cano anteriormente utilizado para conduzir a água por outro de menor calibre integra uma alteração, não licita da servidão.
Recordemos, entretanto, e para um melhor balizar de conceitos ser servidão predial de águas o encargo imposto ao prédio serviente, em proveito exclusivo do prédio dominante (pertencente a dono diferente de suportar a passagem de água no seu prédio para beneficio do segundo).
Estamos, “in casu”, perante uma servidão não legal, por voluntária (cf. Profs. Pires de Lima e A. Varela in “Código Civil Anotado”, III, 2ª ed, 635), pois foi constituída por destinação de pai de família, no momento em que os prédios se separaram quanto ao domínio.
Essa separação (jurídica) dos prédios, antes pertença do mesmo dono, implica a pré existência de “sinal ou sinais visíveis e permanentes” (artigo 1549º do Código Civil) colocados por qualquer dos anteriores proprietários.
Então, a constituição da servidão não é negocial já que surge “ope legis” independente de averiguar se o adquirente e o alienante assim o quiseram, quer expressa, quer tacitamente.
Antes da separação dos prédios não inexiste qualquer encargo, atento o princípio “nemini res sua servit”, limitando-se o único proprietário a provocar a situação de facto traduzida pela durabilidade e indelebilidade dos sinais reveladores de uma situação de dependência.
Na situação em apreço mostram-se presentes todos os requisitos: identidade originária do proprietário de ambos os prédios; separação ulterior; existência de sinais visíveis e indeléveis de serventia; ausência de declaração em contrário emitida pelo primeiro dono. (cf. neste ponto, v.g, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/96 – 96B011).

3.2- Aqui chegados, vejamos se ocorreu qualquer alteração ilícita da servidão.
Sabido é que o exercício do direito de servidão compreende obras para o seu uso e conservação, sendo, até, licito ao proprietário do prédio dominante operar no prédio serviente – sempre respeitando as circunstâncias de tempo e modo para este mais favoráveis – sem que nunca agrave a servidão – artigos 1565º e 1566º do Código Civil.
Também o proprietário do prédio serviente pode proceder às obras de conservação e reparação da parte existente no prédio, o que pode até implicar recolocação diferente, desde que não prejudique o uso da servidão na regulamentação do artigo 1568º da lei substantiva.
Os Profs. Pires de Lima e A. Varela in “Código Civil Anotado”, III – comentando o artigo 1566º referem que se o titular de uma servidão de aqueduto em que a condução da água se faz por um rego coberto de pedra quiser substitui-lo por um tubo de ferro, que melhor o proteja contra perdas e infiltrações de água, estará sem dúvida dentro dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 1565º independentemente de saber se há ou não alteração da servidão.
Tratando-se de servidão constituída “ope legis” (por destinação de pai de família) o seu exercício e conteúdo é o resultante da situação factica no momento do seu nascimento, ou seja aquando da separação do domínio.
E a não alteração terá como limites as obras de conservação ou a adopção de mais moderna tecnologia, mas esta desde que não agrave o encargo no prédio serviente ou, se introduzida pelo dono deste, não implique qualquer alteração “in pejus” para o prédio dominante. (cf. no área dos direitos do proprietário do prédio serviente, o Dr. Mário Tavarela Lobo, in “Manual do Direito das Águas”, II, 2ª ed, 408).

Mau grado, nem o Código Civil de 1867 nem a Lei das Águas de 1919 (Decreto 5787-1111) não conterem regras sobre a alteração da servidão de aqueduto, e a lei vigente apenas estabelecer regras gerais para todas as servidões (artigo 1568), parece claro que a licitude da alteração pressupõe a imutabilidade do encargo, em termos de não só não agravar a situação serviente como não retirar o beneficio antes adquirido para o dominante, devendo sempre ser considerados obras de conservação (que podem ter quer um âmbito de mera desobstrução ou reparação quer de adopção de medidas tecnológico-logisticas que confiram maior eficiência) – cf. o Prof. Guilherme Moreira – “As Águas no Direito Civil Português”, II, 2ª ed, 130 ss.
A regra primeira é não diminuir ou tornar mais incómodo o exercício da servidão sendo, outrossim, qualquer inovação, feita de molde a não modificar o conteúdo da servidão.
As modificações – agravamento quer para o prédio dominante quer para o prédio serviente - devem ser analisadas casuisticamente numa ponderação de efectividade (não “eventual ou receado” – Acórdão do STJ de 17 de Novembro de 1972 – BMJ 221-225) ou seja, e como diz o Dr. M. Tavarela Lobo (ob.cit. II, 2ª ed, 271) o agravamento “é uma questão de facto que deve apreciar-se face às circunstâncias peculiares de cada uma, embora com observância de certas normas de orientação preconizadas pela doutrina e pela jurisprudência.”
“In casu”, a canalização de uma polegada em dois tubos de plástico substituiu há mais de 30 anos, o cano de grés de cerca de duas polegadas.
Em Dezembro de 2003, os Autores colocaram um cano de plástico de polegada e meia, que, em Junho de 2004, os Réus cortaram permanecendo o anterior cano de uma polegada para abastecimento do prédio daqueles.
Ora, não resultou provado – em sede de matéria de facto fixada pela Relação – que a alteração feita para o cano de polegada e meia fosse coincidente com situação existente aquando da separação dos prédios já que então existiam os tubos de uma polegada.
De qualquer modo, não se provou que a reposição feita pelos Réus tivesse, de algum modo diminuído ou tornado mais incómodo o exercício da servidão.
Improcede, assim, a argumentação dos recorrentes.

4- Conclusões

Pode concluir-se que:

a) Só há omissão de pronúncia, geradora da nulidade da alínea d) do n.º 1 do artigo 668º, se a decisão não aborda todas as questões que as partes submeteram à apreciação do tribunal, salvo as prejudicadas por solução dada a outras.
b) Só excepcionalmente o STJ, e nos termos do nº 3 do artigo 729º do CPC, pode exercer censura sobre o não uso pela Relação de poderes quanto à matéria de facto.
c) O exercício, ou não, pela Relação dos poderes das alíneas a), b) e c) do nº1 do artigo 712º do CPC é incensurável pelo STJ sendo a respectiva decisão irrecorrível.
d) O STJ é essencialmente um Tribunal de revista, vocacionado para a uniformização de jurisprudência.
e) A servidão por destinação do pai de família não é uma servidão legal e constitui-se no momento em que os prédios ou fracções de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes, tendo na origem um acto voluntário consistente na colocação de sinal ou de sinais permanentes.
f) O acto constitutivo é o da separação jurídica de dois prédios do mesmo proprietário (destinação do anterior proprietário) ou da separação jurídica de duas fracções do mesmo prédio (destinação do pai de família propriamente dita), sendo que o “sinal ou sinais visíveis e permanentes” do artigo 1549º do Código Civil têm que preexistir a tal separação, colocados pelo anterior proprietário ou por algum dos seus antecessores.
g) Sempre que se verifiquem os pressupostos do artigo 1549º do Código Civil, a servidão por destinação do pai de família (por destinação do anterior proprietário) constitui-se por força da lei (“ope legis”), independentemente de se saber se o alienante e o adquirente quiseram que tal acontecesse.
h) Na servidão de aqueduto, quer o proprietário do prédio dominante, quer o dono do prédio serviente podem proceder a obras de reparação e conservação, que podem até incluir a adopção de mais modernos meios tecnológicos desde que tal não implique qualquer alteração “in pejus” que diminua ou fosse mais incómodo o exercício da servidão ou até – em caso de obras inovatórias – modifique o seu conteúdo.
i) A verificação desses limites é apreciada casuisticamente, em sede de matéria de facto tendo sempre, como referência, a situação existente aquando da separação dos domínios.


Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 13 de Dezembro de 2007


Sebastião Póvoas (relator)
Moreira Alves
Alves Velho