Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A4160
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AFONSO CORREIA
Nº do Documento: SJ200212170041606
Data do Acordão: 12/17/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 12525/01
Data: 06/06/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O Ex.mo Magistrado do Mº Pº propôs, no Tribunal da Relação de Lisboa, acção com processo especial de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa contra a nacional guineense A, menor, representada por seu pai B, natural da Guiné - Bissau, onde reside com sua mãe.
Alegou - em síntese - que a requerente declarou, por intermédio dos seus representantes, em 30/11/00, na 9ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, pretender adquirir a nacionalidade portuguesa ao abrigo do disposto no art. 2º da Lei n.º 37/81, com base no facto de o pai, também natural da Guiné - Bissau, ter adquirido a nacionalidade portuguesa por naturalização, em 13/1/97.
Porém - continua o Ex.mo Magistrado - a Requerente não fez prova da sua efectiva ligação à comunidade nacional portuguesa, pelo que, na procedência da oposição, devia ordenar-se o arquivamento do respectivo processo pendente na Conservatória dos Registo Centrais.

Regularmente citada na pessoa do seu legal representante, a requerida deduziu oposição em que invocou encontrarem-se provados todos os requisitos da concessão da nacionalidade portuguesa, nomeadamente a sua ligação efectiva à comunidade nacional, pois é filha de nacional português, natural de país que ainda mantém fortes ligações culturais com Portugal e encontra-se bem inserida na comunidade portuguesa local, possuindo um bom domínio da língua portuguesa.
A oposição deduzida violaria o disposto nos art. 26º e 67º da Constituição, além de que a Administração teria agido contra o disposto no art. 268º, n.º 3, da mesma Lei Fundamental e nos art. 124º e 125º do Código de Procedimento Administrativo.
O Ex.mo Magistrado do Mº Pº, em resposta, manteve a posição que manifestara na petição inicial.

A Relação julgou procedente a oposição por se não ter apurado qualquer ligação da menor Requerente a Portugal.
Inconformada com o assim decidido, apelou a Requerente, insistindo no antes dito, como se vê da alegação que coroou com as seguintes
Conclusões

1. Face aos factos constantes dos autos, não se pode deixar de concluir que a ora apelante preenche o inserto na al. a) do artigo 9º da Lei n.º 37/81, de 3/10, na sua actual redacção;
2. Provou de forma suficiente a sua efectiva ligação à comunidade portuguesa;
3. A recorrente considera que a Administração não seguiu um critério objectivo, mas sim subjectivo, para assentar a sua decisão de participação apresentada ao Ex.mo Sr. Procurador da República, subjectividade essa assimilada pelo acórdão em recurso;
4. Tal decisão não se coaduna com o preceituado no art. 268º, n.º 3, da C.R.P., e nos artigos 124º e 125º do C.P.A., onde se impõe a objectividade no comportamento da Administração;
5. A eventual recusa à concessão de cidadania portuguesa põe ainda em causa o preceituado no art. 26º da C.R.P., onde se salvaguarda o direito fundamental à nacionalidade portuguesa;
6. Para além do direito acima mencionado, é ainda violado o direito à unidade familiar, previsto no art. 67º da C.R.P., na sua vertente da unidade da nacionalidade familiar;
7. A jurisprudência vem fixando que a prova de ligação à comunidade nacional se faz em função de factos relacionados com diversos factores: a língua, a família, a cultura, as relações de amizade, a integração sócio-económica, entre outros, de modo a convencer da existência de um sentimento de pertença à comunidade portuguesa;
8. A recorrente apresentou provas de ligação a Portugal em todos estes domínios.

Termina pedindo lhe seja concedida a nacionalidade portuguesa.
Em contra alegações, o Ex.mo Magistrado do MºPº pugnou pela confirmação do decidido que não violou qualquer preceito legal.

Colhidos os vistos legais e nada obstando, cumpre decidir a questão submetida à nossa apreciação, a de saber se a Recorrente demonstrou efectiva ligação à comunidade portuguesa.
Para tanto é mister ver que a Relação teve por assentes os seguintes
Factos

1. A requerente nasceu em 6 de Abril de 1989, em Bissau, na Guiné-Bissau, e tem nacionalidade guineense.
2. É filha de B, solteiro, e de C, também solteira.
3. O pai da menor é natural da Guiné-Bissau e adquiriu a nacionalidade portuguesa por naturalização, nos termos do art. 7º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, por Decreto de 13 de Janeiro de 1997.
4. No dia 30 de Novembro de 2000, na 9ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, o mandatário dos pais da Requerente, Dr. D, em representação destes, declarou que A (assim como mais 11 filhos de B e de seis diferentes mulheres) pretendia adquirir a nacionalidade portuguesa.
5. A Requerente vive na Guiné-Bissau, com sua mãe.
6 - A mãe da menor nunca requereu no Ministério da Administração Interna a conservação ou concessão da nacionalidade portuguesa.
Aplicando a estes factos o Direito
Nos termos do art. 2º da Lei n.º 37/81, de 3/10, na redacção dada pela Lei n.º 25/94, de 19 de Agosto (Lei da Nacionalidade), os filhos menores ou incapazes de pai ou mãe que adquira a nacionalidade portuguesa podem também adquiri-la, mediante declaração.
Mas o exercício deste direito protestativo não conduz necessariamente à aquisição da nacionalidade portuguesa.
Com efeito, a mesma Lei, no seu art. 9º, al. a), consagra como fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa a não comprovação, pelo interessado, de ligação efectiva à comunidade nacional.
Do assim disposto, conjugado com a norma do 22º, n. 1, al. a), do Dec-Lei n.º 322/82, de 12/8 (Regulamento da Nacionalidade Portuguesa) - todo aquele que requeira registo de aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou de adopção, deve comprovar por meio documental, testemunhal ou qualquer outro legalmente admissível a ligação efectiva à comunidade nacional - resulta com toda a clareza que não basta o facto de ser filho menor de alguém que adquiriu a nacionalidade portuguesa, da mesma forma que não basta o facto de um estrangeiro casar com cidadã portuguesa: o candidato à aquisição da nacionalidade portuguesa tem o ónus de provar aquela ligação efectiva, de forma que, não a conseguindo demonstrar, não poderá obter a concessão da nacionalidade portuguesa.
O legislador nada nos diz sobre o que deve entender-se por ligação efectiva à comunidade portuguesa, mas é entendimento praticamente unânime da jurisprudência o de que não são suficientes quaisquer vínculos de ordem sentimental ou outra, manifestados de forma mais ou menos casuística, que façam crer e pressupor que o interessado pretende adquirir a nacionalidade portuguesa. Nem o facto de ser natural de um país que mantém relações culturais fortes com Portugal é insuficiente para, só por si, revelar aquela ligação efectiva.
Para além da demonstração de interesse na aprendizagem e prática da língua portuguesa, impõe-se que o Requerente tenha, em Portugal ou pelo menos no seio de comunidade portuguesa digna de realce instalada nalgum país estrangeiro, relações sociais, humanas, de integração cultural, de participação na vida comunitária portuguesa, designadamente em associações culturais, recreativas, desportivas, ou humanitárias e de apoio, manifestando o seu interesse mediante prática frequente de actos que levem a concluir que se justifica a concessão do estatuto de cidadão português.
A prova da ligação à comunidade nacional há-de ser feita em função de factos relacionados com diversos factores: o domicílio, a língua, a família, a cultura, as relações de amizade, a integração sócio-económica-profissional, etc., de sorte a convencer da existência de um sentimento de pertença à comunidade portuguesa (1).
Na hipótese dos autos não vem invocada nem provada a prática, pela ora Recorrente, de factos concretos daquele género bastantes para se poder considerar revelada e demonstrada a sua ligação efectiva à comunidade nacional, pelo que, à face da legislação ordinária acima referida, a nacionalidade portuguesa não lhe pode ser atribuída.

Como disse a Relação, ... «no caso concreto, a situação de facto apurada de modo algum conduz ao efeito jurídico pretendido.

Pode asseverar-se que, para além do facto, documentalmente comprovado, de o pai da requerente ter adquirido a nacionalidade portuguesa, nada mais se apurou que permita sustentar o referido pressuposto de ordem substancial. E afirmar-se mesmo que nenhum vínculo relevante liga a requerente a esta comunidade. Para concluir pela inequívoca procedência da oposição.

Com efeito, quanto à menor em causa, não se apurou qualquer ligação a Portugal, reflectida, por exemplo, através da permanência mais ou menos duradoura em território nacional susceptível de permitir uma determinada assimilação dos usos ou da cultura, susceptíveis de levar a concluir pela existência de uma identificação razoável com a comunidade na qual os seus pais pretendem que fique integrada juridicamente.

Para além de se ter provado que a menor vive com sua mãe, desconhece-se por completo qual o local e circunstâncias dessa vivência, e nem sequer é possível concluir que a assimilação dos valores ou da cultura nacionais possam ter advindo por via diversa da permanência em território nacional.

Sendo certo que o seu pai reside em Portugal e que entretanto se naturalizou, não foi sequer alegada a existência de ligação efectiva, traduzida na convivência com a sua filha.

Por fim, nem sequer está provado que a menor se expresse na língua portuguesa. Com efeito, apesar de esta ser a língua oficial da Guiné-Bissau, não deixam de coexistir outros idiomas ou dialectos que com a nossa língua se não confundem.

Em suma, tendo a menor nascido na Guiné, onde sempre viveu, será com essa comunidade que sentirá afinidades, não se compreendendo de que modo é possível estabelecer uma ligação à comunidade nacional».

Também não ocorre qualquer violação de dispositivos do Código de Procedimento Administrativo, nem sequer aplicável à hipótese dos autos. É o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa que expressamente regula os termos da presente espécie processual, nos seus artigos 22º a 28º e 38º, remetendo estes, em tudo o que aí não se encontre regulado, para o Cód. Proc. Civil e Código do Registo Civil, sem intermediação do C.P.A.

Por outro lado, também não se descortina qualquer violação, pela legislação ordinária aplicada pelo acórdão recorrido (indicada Lei da Nacionalidade e seu Regulamento), de princípios constitucionalmente consagrados, nomeadamente os invocados pela recorrente.

Com efeito, o art. 268º, n.º 3, da C.R.P., exige que os actos administrativos tenham fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos; mas a legislação ordinária aplicada pelo acórdão recorrido também não dispensa tal fundamentação, que aliás consta do mesmo acórdão.

O art. 26º da mesma Constituição enumera diversos direitos pessoais, entre eles o direito à cidadania, mas não a uma determinada nacionalidade a conceder incondicionalmente.

O que nesse preceito estabelece é o respeito pelos direitos da pessoa enquanto cidadã, nacional de certo país ou mesmo apátrida, aliás em harmonia com o disposto no seu art. 15º em relação a estrangeiros ou a apátridas residentes em Portugal que gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.

Mas em nada as disposições legais ordinárias invocadas no acórdão recorrido violam aquele art. 26º, assim como o decidido não nega à recorrente os direitos de cidadania que lhe assistem. Limita-se o acórdão recorrido a negar à recorrente o direito à aquisição da nacionalidade portuguesa, essencialmente perante a escassez de elementos objectivos que possam comprovar a existência da indicada ligação efectiva; e tal não é proibido pela Constituição que, ela própria, no seu art. 4º (2), atribui à lei ordinária capacidade para reconhecer ou atribuir a nacionalidade portuguesa.

Assim, aplicando a legislação ordinária que estabelece as condições dessa atribuição e fazendo-o, como nitidamente fez, mediante uma análise objectiva dos fundamentos invocados para a aquisição da nacionalidade portuguesa e para a oposição a essa aquisição e sem qualquer tipo de arbitrariedade, não podia senão o acórdão recorrido negá-la à recorrente por falta de prova da verificação de tais condições.

Finalmente, o art. 67º da Constituição da República apenas indica os encargos do Estado Português no sentido da protecção da família; não lhe impõe a concessão da nacionalidade portuguesa a todos os membros de uma família só pelo facto de algum ou alguns dos seus membros já dela beneficiarem. Antes e como se viu, é sempre necessária a verificação das condições fixadas pela lei ordinária.

Assim, também este artigo não se mostra violado pela legislação ordinária aplicada pelo acórdão recorrido, nem, consequentemente, por este.

Pelo que improcedem todas as conclusões das alegações da Recorrente.

Decisão

Termos em que se decide

a) - negar provimento ao recurso,
b) - confirmar o acórdão recorrido e
c) - condenar nas custas a recorrente que está isenta quanto a procuradoria - art. 2º, n.º 1, al. j), do Código das Custas Judiciais.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2002

Afonso Correia

Afonso de Melo

Fernandes Magalhães

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(1) - Ac. do STJ, de 22 de Janeiro e de 3 de Março 98, na Col. Jur. (STJ) 1998, tomo I, pág. 25/26 e 121 a 124, respectivamente.

(2) - São cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional.