Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | EDUARDA BRANQUINHO | ||
| Descritores: | NULIDADE DE ACÓRDÃO EXCESSO DE PRONÚNCIA MATÉRIA DE FACTO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO PROVA TESTEMUNHAL DECLARAÇÕES DE PARTE CONTRATO DE COMPRA E VENDA DOAÇÃO USUFRUTO IMOVEL SIMULAÇÃO USUCAPIÃO POSSE DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL | ||
| Data do Acordão: | 11/25/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | REVISTA IMPROCEDENTE | ||
| Sumário : | I. Não constitui excesso de pronúncia, a circunstância da Relação eliminar factos provados e impugnados, por inadmissibilidade da prova respectiva por testemunha e por declarações de parte inexistindo um principio de prova por escrito, face ao disposto nos arts 393 e 394º do C.C, ainda que tal não seja invocado pelas partes, já que a Relação ao conhecer da impugnação da matéria de facto, aprecia livremente e ex - officio todos os meios de prova constantes do processo, por tal actividade não se integrar no conceito jurídico-processual de questão. II. A Relação não viola nenhuma regra de direito probatório material quando aprecia a impugnação da decisão proferida sobre a matéria referente à alegada simulação do contrato de compra e venda, decidindo a sua eliminação, por não ter sido produzida prova que a lei considera válida e indispensável para o efeito, não tendo sobreposto indevidamente estas restrições probatórias aos factos impugnados, já que os mesmos reportam-se claramente ao acordo simulatório, não se referindo a qualquer acto material da recorrente sobre o imóvel como se fosse titular do direito que se arroga, sendo irrelevantes no que a tal se reporta. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça AA intentou a presente acção declarativa com processo comum contra BB e após apresentar, a convite do Tribunal, nova petição inicial aperfeiçoada, termina pedindo que seja: “a) declarada a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre CC e DD e esposa a 19.02.1991, em virtude do acordo simulatório celebrado entre a A. e o falecido marido EE (verdadeiros adquirentes do prédio) e o irmão DD e esposa; b) declarada a nulidade da doação efetuada a favor do R., aposto no mesmo ato de escritura notarial datado de 19.02.1991, em virtude do acordo simulatório celebrado entre a A. e o falecido marido EE e o irmão DD e esposa; c) reconhecida a titularidade do direito de propriedade plena da A. sobre o imóvel sub judice, d) o R. condenado a reconhecer à A. o direito de propriedade plena sobre o referido prédio. Subsidiariamente, e) Caso assim se não entenda, condenar-se o R. a reconhecer a A. como dona e legítima possuidora do prédio descrito, por o ter adquirido por acessão industrial imobiliária.”. (sublinhados nossos) Alega, em síntese, que casou com EE no dia 22.12.1999, mas a sua relação iniciou-se em 1989. Não podendo contrair matrimónio, por ambos se encontrarem em processo de divórcio, e por isso também não pretendendo adquirir quaisquer bens, já que consideravam que os seus ainda cônjuges, podiam alegar que os mesmos lhes pertenciam, querendo comprar o prédio urbano sito em Localização 1, ..., Horta, inscrito na matriz sob o nº .86, pediram ao irmão do então companheiro da autora, DD (falecido em 24-11-1996) e sua mulher FF, para intervirem, como compradores, no contrato de compra e venda celebrado em 19.2.1991, com o vendedor GG, que interveio na escritura através do seu procurador HH, tendo o seu companheiro pago o preço do prédio. No mesmo acto, para além do contrato de compra e venda foi ainda celebrada a doação da nua propriedade a BB, ora réu e neto de EE, e o usufruto à autora. Em representação da autora presente na escritura, esteve o seu então companheiro, EE. Tanto o contrato de compra e venda outorgado pelo irmão de EE, como a doação da nua propriedade ao neto de EE e o usufruto à Autora, tiveram, segundo alegam, como único objetivo evitar que o prédio, que iria servir de casa de morada de família de ambos, constasse da relação de bens apresentada aos seus ex-cônjuges. Todos os encargos e despesas relacionadas com a compra e venda do imóvel, foram suportados pela autora e pelo seu companheiro e, a partir dessa data, ambos passaram a coabitar no imóvel, como proprietários, passando o mesmo a ser a sua casa de morada de família. Na sequência de um sismo ocorrido em Julho de 1998, o imóvel sofreu destruições consideráveis, tendo a autora feito obras de reconstrução, no valor de €41.003.97, que em muito excedem o valor do prédio, que é de € 9.976.00. Por detrás do negócio simulado/aparente – a doação ao réu e o direito de usufruto concedido à autora - há um negócio dissimulado, real – a aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel em causa pela autora e pelo falecido marido, que sempre se comportaram em relação ao mesmo como seus proprietários. O réu contestou, por exceção, invocando falta de interesse em agir da autora, ineptidão da petição inicial, e por impugnação. Houve resposta. Proferido despacho saneador, o Tribunal julgou improcedentes as exceções invocadas, e procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, e consequentemente, absolveu “o R-BB, por falta de participação de todos os interessados na ação e do lado passivo (preterição de litisconsórcio necessário passivo), atendendo aos pedidos formulados pela A., tudo de acordo com o disposto nos artigos 278º/1-d), 578º, ambos do CPC”. Inconformada a autora interpôs recurso de apelação. O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 20-2-2024, considerando os pedidos da autora, decidiu “…julgar parcialmente procedente a apelação, alterando-se, em conformidade, a decisão recorrida, julgando-se o R. parte ilegítima, por preterição de litisconsórcio necessário natural, para a ação, relativamente ao pedido principal de declaração de nulidade do contrato de compra e venda e de doação a favor do R., celebrados por escritura de 19.2.1991, e parte legítima para conhecer dos restantes pedidos formulados, devendo prosseguir seus termos o processo.” Em cumprimento do Acórdão, prosseguiram os autos, e conforme do mesmo expressamente consta, para conhecimento da putativa aquisição do direito de propriedade da autora sobre o prédio em questão por (i) usucapião e, subsidiariamente, por (ii) acessão industrial imobiliária. Após audiência de julgamento, o Tribunal de 1ª Instância decidiu: “a) Declarar que a autora AA, é a única e plena proprietária e legítima possuidora do prédio urbano composto de casa de moradia de loja e primeiro andar, com a área coberta de setenta e dois metros quadrados, dependência de cinquenta e dois metros quadrados e quintal de novecentos e sessenta e oito metros quadrados, sita em Localização 1, ..., registada na caderneta predial urbana com o artigo matricial .86, tendo origem no artigo U-.72 ..., mais tarde reconstruída e passando a ter um único piso e quintal devido ao sismo que assolou a filha do Faial em 1998 e descrita na CRPredial da Horta sob a ficha nº ...........14, por o ter adquirido por usucapião. b) Condeno o réu BB, a reconhecer a autora como única e plena proprietária do imóvel acabado de citar; c) Ordeno também o imediato cancelamento de todos os actos de registo levados a efeito na ficha registral nº 1251 da Conservatória do Registo Predial de Horta, em contrário do acabado de decidir, averbando-se agora a plena propriedade da autora sobre este imóvel. d) Absolvo a A, do pedido de condenação como litigantes de má fé.” (sublinhados nossos) Inconformado o réu interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, proferido Acórdão datado de 15 de Maio de 2025 que “revogando a sentença recorrida no que toca às alíneas a), b) e c) da parte decisória; absolvendo o R. dos pedidos em relação aos quais foi ordenado o prosseguimento do processo por acórdão proferido a 20 de fevereiro de 2024; e mantendo a absolvição da A. do pedido de condenação por litigância de má fé.” (sublinhados nossos) Irresignada vem a autora interpor recurso de revista, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: “1. O acórdão recorrido eliminou da matéria de facto os pontos 6, 14, 15 e 19, por considerar que os mesmos visavam infirmar o teor do contrato celebrado, subsumindo-os à proibição constante do art.º 394.º do Código Civil. 2. Tal entendimento assenta num equívoco quanto ao objeto da prova produzida, confundindo a demonstração de factos materiais possessórios —que revelam o animus possidendi—com uma tentativa de impugnação do negócio jurídico escrito. 3. Os factos eliminados não visavam a anulação, modificação ou invalidação do contrato reduzido a escrito, mas antes a qualificação da relação material da Autora com o bem, enquanto expressão de uma posse pública, pacífica e duradoura, com aparência de exercício do direito de propriedade. 4. A proibição prevista no art.º 394.º do Código Civil não abrange situações em que se pretende apenas demonstrar a existência de uma posse com animus possidendi, autónoma relativamente ao título negocial, e não infirmar ou contrariar o teor desse título. 5. O ordenamento jurídico reconhece à posse, enquanto facto jurídico autónomo (art.º 1251.º e ss. do Código Civil), a virtualidade de conduzir à aquisição originária do direito de propriedade, independentemente da validade ou existência de um título translativo. 6. A exclusão dos referidos factos impede a valoração da posse exercida pela Autora — elemento central do pedido de reconhecimento do direito de propriedade por usucapião — e constitui, por isso, erro de direito na aplicação dos critérios legais de admissibilidade e relevância da prova. 7. Ao aplicar extensivamente uma proibição probatória cujo escopo visava proteger a segurança dos negócios jurídicos formais, o acórdão recorrido ignorou que o caso sub judice se situa fora do âmbito material de relevância da norma, numa situação não antecipada pela ratio do art.º 394.º, norma violada pelo Ac. do TRL. 8. O Tribunal da Relação eliminou os pontos 6, 14, 15 e 19 da matéria de facto com fundamento na inadmissibilidade de prova testemunhal e por declarações de parte, ao abrigo do art.º394.º do CC, sem que tal questão tenha sido suscitada pelo Recorrente nas conclusões do recurso, incorrendo, por isso, em excesso de pronúncia e violação dos limites objetivos do recurso, nos termos do art.º 635.º, n.º 4 e 5, do CPC, norma violada pelo Ac. do TRL. 9. Nestes termos, deve ser reconhecido que os factos eliminados são aptos a demonstrar a posse qualificada da Autora e, como tal, a sua reintegração na matéria de facto é essencial para a boa decisão da causa, devendo o acórdão recorrido ser revogado.” Houve contra-alegações. Cumpre apreciar e decidir. OBJECTO do RECURSO. Como é sabido, o objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, nºs 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, assim, as questões a decidir consistem em conhecer: 1. Da putativa nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia - art. 615º, nº 1, al. d) do CPC.; 2. Da indevida eliminação dos factos provados sob os nºs 6,14,15 e 19, por violação de lei reguladora de direito probatório material. MATÉRIA DE FACTO Após modificação pela Relação, resultaram provados os seguintes factos: 1 - A Autora contraiu matrimónio com EE no dia 22 de dezembro de 1999, segundo comprova o Assento n.º .20/1999; 2 - No entanto, a relação dos cônjuges já se havia iniciado há alguns anos, quando já se encontravam separados de facto dos seus respetivos ex-cônjuges; 3 - Em data não concretamente apurada, a relação da autora com EE, teve início por volta do ano de 1989; 4 - A Autora e o falecido esposo, encontravam-se ambos em processo de divórcio à data, ainda que já separados de facto; 5 - No entanto, desde cedo foi pretensão da Autora e do falecido EE, de coabitarem e constituírem morada de família; 7 - O contrato de compra e venda foi celebrado no dia 19 de Fevereiro de 1991, no Cartório Notarial da Horta, perante a Dra. II, notária em exercício de funções ao tempo da celebração do referido contrato; 8 - Tal contrato de compra e venda teve como objeto o prédio urbano constituído por uma casa de moradia de loja e primeiro andar, área coberta de setenta e dois metros quadrados, dependência de cinquenta e dois metros quadrados e quintal de novecentos e sessenta e oito metros quadrados, situado Localização 1, ..., registado na caderneta predial urbana com o artigo matricial .86, tendo origem no artigo U-.72 ...; 9 - O prédio foi vendido pelo valor de 2 000 contos na moeda antiga, atualmente convertido para 9.976,00€ (nove mil, novecentos e setenta e seis mil euros); 10 - O contrato de compra e venda foi celebrado entre GG, estando presente o seu procurador HH enquanto vendedor, e DD e a sua respetiva cônjuge FF enquanto compradores; 11 - O irmão do falecido esposo da Autora e a sua cunhada, DD e FF, apenas celebraram o respetivo contrato de compra e venda a pedido do mesmo tendo o próprio, para o devido efeito, facultado o valor do preço do prédio; 12 - Nunca despenderam DD e FF, qualquer quantia que fosse atinente, quer aos custos de aquisição do imóvel, quer no que concerne aos custos relativos às despesas domésticas e de fornecimento, como fossem a água, o gás e a luz; 13 - Bem como nunca liquidaram, a expensas suas, quaisquer montantes reportados aos impostos fiscais e camarários; 16 - Na mesma escritura supra referida, foi ainda celebrada uma doação que teve como objeto o prédio referido em 7 e 8, sendo que o mesmo foi doado a nua propriedade a BB, neto do EE, falecido esposo da Autora, e neto- -sobrinho dos compradores; 17 - Tal como também ali se celebrou, uma doação do usufruto deste mesmo prédio a favor da ora autora, AA; 18 - Em representação da Autora esteve presente o seu procurador bastante, EE, o seu falecido esposo; 20 - A partir dessa data, a Autora e o falecido esposo passaram a coabitar no referido imóvel passando o mesmo a ser considerado a morada de família; 21 - Findos os processos de divórcio da Autora e de EE, os mesmos acabaram por celebrar matrimónio civil para legitimar a sua relação em 1999, tal como já fora referido; 22 - Em julho de 1998, na sequência da crise sísmica que marca a época, o imóvel sofre destruições consideráveis; 23 - No dia 26 de outubro de 1998, EE, fez o pedido oficial para que fosse admitido como candidato ao apoio para construção ao abrigo do Decreto Legislativo n.º 15-A 98-A de 25-9, referindo, no espaço destinado ao título de ocupação da habitação sinistrada, que ele era o chefe de família e a proprietária era AA. 24 - As destruições foram significativas e visíveis, motivo pelo qual lhe foi dada prioridade na sua reconstrução, considerada como a quarta propriedade mais prioritária, dado os danos existentes, provados após fiscalização do Engenheiro JJ; 25 - No dia 9 de julho de 2001, foi emitida pelo Centro de Promoção de Reconstrução, a declaração em como "o agregado de AA" preenchia os requisitos para que lhe fosse concedido o apoio para a reabilitação da habitação própria. 26 – Foi concedido um apoio no valor de 7.963.750§00 (sete milhões, oitocentos e sessenta e três mil, setecentos e cinquenta escudos); 27 - Ora, o agregado familiar da Autora à data, era composto pela própria, por EE, o falecido esposo, e pelos filhos da Autora, KK e LL; 28 - No dia 13 de julho de 2001, foi concedida uma declaração, também por parte do Centro de Promoção de Reconstrução da Secretaria Regional da Habitação e Equipamentos, em que se declarou que, como se encontrava na classe II dos apoios previstos, a obra não poderia ser realizada por empreitada do C.P.R. pelo que se declarou que as mesmas fossem realizadas por administração direta; 29 - No dia 18 de dezembro de 2001 foi concedido, em nome da Autora, o alvará de licença de construção n.º .26/2001 para que se pudesse dar início às obras, pela Câmara Municipal da Horta; 30 - Ao longo dos meses, a Secretaria Regional da Habitação e equipamentos, através do seu departamento de centro de Promoção de Reconstrução, realizaram Autos de Vistoria a fim de determinar o ponto de situação da empreitada da moradia onde residia a Autora; 31 - No dia 4 de fevereiro de 2003, o fiscalizador de obra, Engenheiro MM, declarou que a obra da qual a Autora era titular do alvará de licença se encontrava concluída à data de 17 de dezembro de 2002; 32 - Para a realização da obra, beneficiou a autora e o seu falecido esposo, do pagamento no valor de 39 224,22€ (trinta e nove mil, duzentos e vinte e quatro euros e vinte e dois cêntimos), valor este já convertido à moeda atualizada, o qual foi feito de forma repartida, por três vezes, sendo investimento realizado pela C.R.P; 33 - O esposo falecido da autora, EE, sempre tratou da documentação e toda a burocracia que se sucedeu com a reconstrução da moradia, pelo que foi o próprio que fez um empréstimo bancário para proceder à alteração do projeto de arquitetura elaborado pelo Arq. NN, pagando os custos adicionais; 35 - BB, nasceu em ... de ... de 1986; 36 - O empréstimo referido em 33 supra, teve como fiadores os pais do réu BB. O DIREITO 1. Da putativa nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia. Sustenta a recorrente que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação “eliminou os pontos 6, 14, 15 e 19 da matéria de facto com fundamento na inadmissibilidade de prova testemunhal e por declarações de parte, ao abrigo do art.º394.º do CC, sem que tal questão tenha sido suscitada pelo Recorrente nas conclusões do recurso, incorrendo, por isso, em excesso de pronúncia e violação dos limites objetivos do recurso” (sublinhados nossos) Vejamos se lhe assiste razão. Face ao disposto na al. d) do art. 615º, do CPC aplicável aos acórdãos da Relação ex vi do n.º 1 do art.º 666.º do mesmo diploma, é nula a decisão quando «o juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». Este vício, traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever prescrito na parte final do n.º 2 do art. 608º do CPC, aplicável igualmente aos acórdãos da Relação por força do disposto no nº 2 do art. 663º do mesmo Código, ou seja, do dever do juiz conhecer tão somente das questões que diretamente contendam com a substanciação da causa de pedir, pedido e exceções que hajam sido deduzidas pelas partes ou que devam ser conhecidas oficiosamente, salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras. E como refere o Acórdão do STJ de 29.10.2015 (revista nº 886/06.5TBEPS.G2.S1)1“particularmente, na fase de recurso, constituem questões solvendas, as que delimitam o objeto daquele e que se traduzem: a) – por um lado, nos invocados erros de direito na determinação, interpretação e aplicação das normas convocáveis para o caso, à luz do disposto no art.º 639.º, n.º 2, do CPC, como parâmetros definidores dessas questões; b) – por outro lado, em sede de impugnação da decisão de facto, a especificação dos pontos de facto tidos por incorretamente julgados e que cumpre ao impugnante indicar nos termos do art.º 640.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código. Assim, para tais efeitos, não se integram no conceito jurídico-processual de “questão” os argumentos jurídicos ou probatórios discreteados no âmbito das questões a solucionar…”. Efectivamente no que respeita à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, há que salientar o ónus prescrito no artigo 640.º do CPC, segundo o qual, no que ora importa: “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.” Ora visando este meio impugnatório para um tribunal superior uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida, e não propriamente um novo julgamento global da causa, estes requisitos formais visam delimitar com precisão o objecto do recurso, ou seja, a apreciação do alegado erro de julgamento da decisão proferida sobre a matéria de facto circunscrita aos pontos impugnados, definindo assim as questões a reapreciar pelo tribunal ad quem, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC. Porém, a indicação dos concretos meios probatórios convocáveis pelo recorrente, nos termos da alínea b) do mesmo artigo, já não respeita propriamente à delimitação do objeto do recurso, uma vez que o Tribunal da Relação tem um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, já que não está adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido, como decorre do disposto no artigo 662.º, do CPC. Ora o Tribunal de 1ª instância considerou provados, no que ora importa, os seguintes factos: “6 - De forma a contornar a situação em que se encontravam, a Autora e o falecido esposo pediram ajuda ao irmão daquele, DD, entretanto falecido, para celebrarem um contrato de compra e venda de um imóvel onde pudessem viver conjugalmente; 14 - A Autora e o falecido esposo, tinham como principal objetivo com a celebração deste negócio, adquirir a morada de família, mas evitar que a mesma permanecesse já no seu nome como legítimos proprietários; 15 - Isto, por forma a que o prédio não entrasse na relação de bens dos respetivos ex-cônjuges, nos processos de divórcio que tinham ainda pendentes; 19 - Todos os encargos e despesas relacionadas com a compra e venda deste imóvel, foram suportados pela Autora e pelo falecido esposo, EE;” E fundamentou a sua convicção nas declarações de parte da autora, que transcreveu. O réu interpôs recurso de apelação, impugnando a supra referida factualidade provada, alegando, na parte ora relevante o seguinte: “3º Dos factos provados, foram incorrectamente julgados os factos sobre os números 1,6,14,15,19,23,25,26,30,32,33 e 34 e o facto não provado 3. Deverá ainda ser aditado aos factos provados outros dois factos concretos e ainda um facto não provado, que deverá passar a provado. 4º Referir que a maioria dos factos provados assentaram “tão só” nas alegações da Autora (declarações de parte), sem outra prova complementar, declarações essas, previstas no artigo 466º do CPC, que têm uma função iminentemente integrativa e subsidiária, não sendo suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final e total, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto, desde que, em conjugação com outros meios de prova. … 8º Facto 6 – Com base: A) Nas declarações de parte da Autora OO … B) No depoimento da testemunha FF … C) No conteúdo do próprio facto provado 11; D) Da inexistência de prova de que a compra e venda feita foi “de forma a contornar a situação em que se encontravam”, e porque é conclusivo e vago tal escrito, deverá o facto 6 passar a ter a seguinte redação: 6 - O falecido EE pediu ajuda ao seu irmão DD, entretanto falecido, para celebrarem um contrato de compra e venda de um imóvel onde pudesse viver conjugalmente. 9º Facto 14 e 15 e aditamento aos factos provados – Com base: A) No depoimento da testemunha PP … B) Nas declarações de parte do Réu BB … C) No depoimento da testemunha QQ … D) No depoimento da testemunha FF … Tudo devidamente conjugado, sendo que, quer as declarações de parte do Réu, quer a prova testemunhal, mostraram-se objetivas e conhecedoras do que estavam a falar e, como tal, merecedoras de toda a credibilidade, e, considerando também, o conteúdo da escritura que constitui o doc. 3 da Petição, as regras da experiência e mesmo fazendo uso de “presunções judiciais”, deverá o facto o facto 14 passar a ter a seguinte redação: 14 - A intervenção do falecido EE, teve como principal objetivo proceder ao pagamento da compra e venda e, em contrapartida, ser constituído usufruto do imóvel a favor de OO e nua propriedade a favor do neto BB, nos termos que constam dos factos 16 a 18. Quanto ao facto 15 (que traduz o conteúdo do artigo 22º da Petição), o mesmo é inconclusivo e sem qualquer base factual, ou seja, inexiste prova quanto ao seu conteúdo. Pelo que, e com base nos mesmos fundamentos (e provas) supra elencados relativamente à impugnação do facto 14, regras da experiência e “senso comum”, é elementar que seja eliminado o facto 15, E aditado aos factos provados, o seguinte facto: - A Autora sempre foi vista perante todos como usufrutuária do imóvel identificado no facto 8. 10º Facto 19 – Com base: A) No depoimento da testemunha RR, que representou o vendedor na escritura…, cujo depoimento foi muito objetivo e esclarecedor, com o conhecimento direto do que lhe foi perguntado e, assim, merecedor de toda a credibilidade, Deverá ser alterada a redação do facto 19, passando o mesmo a ter a seguinte redação: 19 - O pagamento do valor correspondente à compra e venda deste imóvel, foi suportado pelo falecido EE. … 14º Erra o Tribunal “a quo” ao declarar que a Autora é dona plena do imóvel identificado no facto provado 8, com base no instituto da usucapião. 15º O Tribunal Recorrido estava impedido de tomar conhecimento da nulidade daquela escritura, atento saneador sentença proferido (confirmado pela Relação de Lisboa) mas, na verdade, o Tribunal acabou por conhecer de tal pedido, ao integrar na decisão factos provados que constavam na causa de pedir. … 17º Não tendo sido declarada nula a escritura de compra e venda, que é documento autêntico – artigo 369º do CC, os efeitos que dela advém, terão de repercutir-se na esfera jurídica de cada um – artigos 370º e 371º do mesmo Código Civil: Usufruto a favor da Autora e nua propriedade a favor do Réu. 18º A escritura de compra e venda foi outorgada por todos os intervenientes livremente e de boa-fé e respeitando a vontade dos mandantes (de quem emitiu procuração) – artigos 217º e 227º do CC, não podendo a Autora, na qualidade de mandante desconhecer os poderes concedidos por meio de procuração ao falecido EE para aquele aceitar a doação do usufruto do imóvel, aceitando a Autora os seus efeitos na sua esfera jurídica – artº 258º do CC. …” E conhecendo da impugnação da decisão proferida sobre a factualidade provada sob os nºs 6, 14, 15 e 16, o acórdão recorrido, decidiu: “Lida a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, constata-se que o tribunal recorrido considerou as declarações de parte da A. credíveis e não credíveis, no todo ou em parte, os depoimentos das testemunhas FF, QQ e PP e as declarações de parte do R. Nos termos do art. 466º nº 3 do C.P.C., “o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”. “Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade” (Luís Filipe Pires de Sousa, As Malquistas Declarações de Parte, Revista Julgar/ julho 2015). “Considerar-se que as declarações de parte não são, e que não podem ser, suficientes significaria que não são um meio de prova como outro qualquer; que só podem funcionar antes ou depois dos demais meios de prova, com carácter supletivo; considerar-se que as declarações de parte são, ou que podem ser, só por si suficientes, significaria que são um meio de prova como outro qualquer - e que, «como outro qualquer, pode suportar só por si uma decisão sobre um facto». Significaria uma normalização do valor probatório das declarações de parte. Em todo o caso, ainda que se considere que, como regra, as declarações de parte não são, só por si, suficientes para suportar uma decisão sobre um facto, sempre se ressalvará uma excepção para os casos «em que a natureza dos factos a provar torne inviável outra prova»” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 19 de junho de 2019, processo 3577/17.8T8ALM.L1.S1). Nos termos do art. 394º nºs 1 e 2 do C.C., “é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”; e “a proibição… aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores”. Esta “norma deve ser interpretada restritivamente, no sentido de que, existindo um princípio de prova por escrito, é lícito aos simuladores recorrer à prova testemunhal para completar a prova documental existente, desde que esta constitua, por si só, um indício que torne verosímil a existência de simulação” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 9 de julho de 2014, processo 5944/07.6TBVNG.P1.S1). “A mesma solução deve valer para a prova por declarações de parte: o fundamento que justifica a proibição da prova testemunhal – os riscos inerentes a este meio de prova – vale, por maioria da razão, para a prova por declarações de parte, dado o perigo, ainda mais evidente, de parcialidade que, pela natureza das coisas, lhe é inerente. De resto, as declarações de parte não serão, em qualquer caso admissíveis se tiverem por objecto factos criminosos ou torpes de que o declarante seja arguido, o que sucederá com alguma probabilidade quando provenham do simulador e tenham por objecto os factos relativos ao artifício fraudulento característico da simulação que, mesmo que não sejam criminosos, são por regra, torpes (art.º 454.º, n.º 2, ex-vi, art.º 466.º, n.º 2 do CPC)” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 12 de novembro de 2024, no processo 589/17.5T8ESP.P1.S1). Por força do art. 394º nº 3 do C.C., o disposto nos nºs 1 e 2 “não é aplicável a terceiros”. “A restrição estabelecida no nº 3 do preceito significa que terceiros podem utilizar a prova testemunhal contra as partes, mesmo nos casos em que semelhante recurso está vedado a estas pelo disposto nos nºs 1 e 2; mas não quer dizer que as partes possam lançar dela contra terceiros. A lei estabelece um regime de excepção apenas para terceiros, em virtude de não lhes ser possível munirem-se de uma prova escrita das convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento, ou do acordo simulatório” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, anotação ao art. 394º). “E, por terceiro, deve entender-se, como a doutrina e a jurisprudência, assinalam, una voce, com exactidão, aquele que não interveio no acordo simulatório, nem representa quem nele participou, embora possa figurar como parte representada no negócio simulado. Ou noutra formulação: terceiro é aquele que é alheio ao acordo simulatório e não necessariamente, ao contrato simulado. O critério determinante é, assim, o da ignorância e da não participação no conluio simulatório e não tanto a ausência de intervenção no negócio concluído de modo simulado. Para que, para o efeito considerado, se seja considerado terceiro é suficiente que se não tenha tido intervenção no pacto simulatório, que se seja alheio ao conluio e não, necessariamente, ao negócio” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 12 de novembro de 2024, no processo 589/17.5T8ESP.P1.S1). Na versão da A., esta interveio no acordo simulatório, pelo que não podia recorrer às suas declarações de parte e ao depoimento de testemunhas para demonstrar a simulação. Assim, deverão ser eliminados da matéria de facto provada os pontos impugnados pelo recorrente relativos à simulação, ou seja, os pontos 6, 14, 15 e 19. Tal eliminação implica eliminar a palavra “referido” empregue na parte inicial do ponto 7 da matéria de facto provada.” (sublinhado nosso) Daqui decorre ter o Tribunal recorrido conhecido da factualidade impugnada - factos provados sob os nºs 6,14,15 e 19 - e decidiu pela sua eliminação, por considerar inadmissível a prova respectiva - por testemunhas e declarações de parte-, face ao disposto no artº 394º do C.C., O artº 662º do CPC dispõe: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” Com refere Abrantes Geraldes2, “Com a redação do art. 662º pretendeu-se que ficasse claro que, …, sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no artº 640,… a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos… Tal como no sistema anterior, mantém-se a possibilidade de impugnar e alterar a decisão da matéria de facto quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, como sucede sempre que para prova de determinados factos tenha sido apresentado documento autêntico (com força probatória plena) cuja falsidade não foi suscitada…”. De resto, como é hoje jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal, exemplificando com o Ac. de 26-11-2024 (revista nº 417/21.7T8AGH.L1.S1)3 “Através do disposto no art. 662º do CPC, foi concedida (pelo NCPC) ao Tribunal da Relação autonomia decisória em sede de reapreciação e modificabilidade da decisão da matéria de facto.”; “(…) no âmbito da apreciação da decisão de facto impugnada, incumbe ao Tribunal da Relação formar o seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos, e das que lhe for ainda lícito renovar ou produzir (nos termos do disposto no art. 662º, nº 2, als. a) e b), do CPC), à luz do critério da sua livre e prudente convicção (nos termos do art. 607º, nº 5, ex vi do disposto no art. 663º, nº 2, do CPC), tendo um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa (como decorre do nº 1 do art. 662º do CPC), sem estar adstrito aos meios de prova convocados pelas partes ou indicados pelo tribunal de 1ª instância, e sem se limitar à verificação da existência de erro manifesto na apreciação da prova.” Destarte, o Tribunal da Relação apreciou a matéria de facto impugnada, reapreciando os meios de prova disponíveis nos autos, e formou a sua própria convicção, que fundamentou com a completude exigível, procedendo dentro dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, que lhe permitem desconsiderar factos cuja prova tenha desrespeitado regras imperativas de direito probatório, não se mostrando por isso violado os limites objectivos do recurso. Ainda assim, apesar de irrelevante, como se concluiu, sempre se dirá que o recorrente nas conclusões do recurso (1º, 3ª e 4ª) expressamente refere “…a maioria dos factos provados assentaram “tão só” nas alegações da Autora (declarações de parte), sem outra prova complementar, declarações essas, previstas no artigo 466º do CPC, que têm uma função iminentemente integrativa e subsidiária, não sendo suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final e total, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto, desde que, em conjugação com outros meios de prova.”, não deixando assim de suscitar o valor probatório das declarações de parte, no que a tal factualidade se refere. Carece pois de fundamento a argumentação da recorrente, ao imputar ao acórdão a violação dos limites objectivos do recurso, improcedendo assim a apontada nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia. 2. Da indevida eliminação dos factos provados sob os nºs 6,14,15 e 19, por violação de lei reguladora de direito probatório material. O Acórdão recorrido considerou que inexistindo um princípio de prova por escrito, não podia recorrer às declarações de parte da recorrente, que interveio no acordo simulatório, e ao depoimento de testemunhas, para demonstrar a simulação do contrato de compra e venda, face ao disposto no artº 394º do C.C. e, consequentemente, eliminou os factos provados sob os ns 6,14,15 e 19, que à mesma se referem. Insurge-se a recorrente, sem contestar a interpretação e aplicação desta norma reguladora do direito probatório material em relação ao acordo simulatório, sustentando apenas que a proibição prevista no artº 394º do C.C., que consequenciou a eliminação os factos sob os nºs 6,14,15, e 19, foi indevidamente aplicada, porquanto tais factos, não visam demonstrar o acordo simulatório, mas, segundo sustenta, “demonstrar a existência de uma posse com animus possidendi”, que não está abrangida por tal proibição, ou seja, consente a prova por declarações de parte e por testemunhas, sem contudo impetrar que tais meios de prova, impõem a prova da factualidade eliminada, porventura ciente de que em princípio, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil) e, por isso, não cabe no âmbito do recurso de revista. Efectivamente está vedado ao STJ conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada, ou seja, quando está em causa um erro de direito – arts 674º, nº3 e 682º, nº2 -, pois nessa situação, não se trata de sindicar a alteração em si, mas a legalidade da mesma, em termos de apurar se a Relação podia modificar a matéria de facto sem subverter os princípios de direito probatório. Nesta situação o STJ está a sindicar a aplicação de normas jurídicas. Entre as permissões do art 674º, nº1 do C.P.C., está a de que o STJ pode e deve pronunciar-se sobre a interpretação e sobre a integração das disposições legais relevantes para determinar se é ou não admissível prova testemunhal, nomeadamente, nas situações previstas nos arts 393º e 394º do CC. Como se sumariou no Ac. do STJ de 3.2.20224, “I - O STJ conhece do direito, cabendo-lhe aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, estando-lhe vedado, por regra, apreciar a matéria de facto fixada pelas instâncias recorridas – art. 682.º, n.º 1, do CPC, sem embargo de em caso de insuficiência ou contradição da decisão de facto que inviabilize a decisão de direito poder devolver os autos ao tribunal recorrido. II - Nos casos taxativamente previstos no art. 674.º, n.º 3, do CPC, o STJ pode sindicar a ofensa de disposição legal expressa que exija determinada espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de lei de determinado meio de prova, bem como pode fiscalizar o cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto do art. 640.º do CPC, que se inscreve nos fundamentos da revista por violação ou errada aplicação das leis de processo e na previsão do art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC.” Vejamos então se a Relação, ao eliminar os factos provados sob os nºs 6, 14,15 e 19, com os fundamentos referidos, violou norma reguladora de direito probatório material. No processo comum a nossa lei consagra a teoria da substanciação, segundo a qual o objecto da acção é o pedido mas definido através de certa causa de pedir5. Da leitura da petição inicial claramente se conclui, como entendeu a Relação, que a referida factualidade se reporta ao alegado acordo simulatório, fundamento do pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda. Destarte, tendo em conta o acervo dos factos em causa, e a prova produzida, o Tribunal da Relação, não violou qualquer lei reguladora de direito probatório material, ao ter eliminado os factos provados sob os nºs nºs 6,14,15 e 19 que visam contrariar o que consta de documento autêntico, por inadmissibilidade da sua prova por testemunhas e declarações de parte, inexistindo um principio de prova por escrito, face ao disposto no artº 394º do C.C, já que tais factos reportam-se claramente, como se constata da leitura da petição inicial, à alegada simulação do contrato de compra e venda, invocada pelo simulador. Ademais, importa referir que o acervo factual em causa, sob os nºs 6,14,15 e 19, ao contrário do invocado, como se irá demonstrar numa breve síntese, não conforma nenhuma conjuntura passível de caracterizar uma situação de posse, que caracterizando, consentiria então a prova referida, considerada inadmissível. Vejamos. Em face da configuração da acção, estamos colocados perante questões respeitantes à posse e à usucapião. Daí recair sobre a autora recorrente a alegação e prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, ou seja, cabe-lhe demonstrar que exerceu sobre o imóvel uma posse relevante para efeitos aquisitivos (posse stricto sensu, ou seja, com “corpus” e “animus”, de forma pública e pacífica e pelo tempo indispensável à respectiva aquisição por usucapião, arts. 1251°, 1261°, 1262°, 1263°, ai. a), 1287°, 1296° e 1297°, todos do Código Civil. Como é sabido o direito de propriedade pode constituir-se por usucapião, uma vez que esta é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transição destes. Como decorre do art. 1287º do Cód. Civil, a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade ou de outro direito real pressupõe a posse do direito durante um determinado lapso de tempo, que varia em função das características da posse (relevando, para este efeito, o facto de a posse ser ou não titulada e registada e o facto de a posse ser de boa fé ou má fé). A posse que faculta ao possuidor a aquisição do direito por usucapião não tem que ser titulada, a ausência de título apenas importa o alargamento do prazo necessário para que aquela possa ser invocada - artºs 1294 e 1296 do Cód. Civil. A posse que é susceptível de conduzir à aquisição do direito por usucapião tem que ser uma posse pública e pacífica (já que, como decorre do disposto no art.º. 1297º do Cód. Civil, os prazos para a usucapião não correm enquanto a posse for violenta ou oculta) e tem que ser uma posse efectiva (que corresponde, segundo a noção de posse dada, no nosso sistema jurídico, pelo artº. 1251º,do C.C. “ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”) e não uma detenção ou posse precária. São conhecidas as concepções objectivista e subjectivista, em relação aos elementos integradores da posse. Para a primeira, a posse conforma-se com um elemento material “o corpus” que se identifica com os actos materiais praticados sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes sobre a coisa. Para a segunda, exige- se, além do “corpus”, um elemento psicológico – “animus” – que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados. A nossa lei acolheu a concepção subjectivista6, como claramente resulta dos artigos 1251º e 1253º. ambos do C.C. que integra dois elementos estruturais, ou seja, para haver posse, é necessário o elemento material - o corpus - que se identifica com os actos materiais praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes de facto sobre a coisa, e um elemento subjectivo - o animus – que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados. Para termos posse basta, quanto ao elemento corpus “que a coisa entre na nossa órbita de disponibilidade fáctica”7. O animus consiste na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente aos poderes empíricos que consubstanciam o corpus8. Assim, possuidor é apenas aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem (artigo 1252º, n.º 1 Cód. Civil), além do corpus possessório, tenha também o animus possidendi, ou seja, a intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio, estabelecendo a lei uma importante presunção destinada a facilitar a prova do animus (art. 1252.º, n.º 2, do CC)9. Assim, no que respeita ao corpus - domínio de facto material sobre a coisa traduzida no exercício de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício – podemos concluir desde logo que nenhum dos factos aludidos sob os ns 6,14,15 e 19. traduz qualquer realidade passível de enquadrar uma putativa situação de posse com os elementos necessários à aquisição do imóvel ajuizado por via da usucapião; ou seja, uma posse na acepção rigorosa do termo - em nome próprio, com corpus e com animus possidendi, tal como o artº 1251º do C.C. a define; uma posse, que, poderia conduzir à aquisição originária do direito de propriedade através da usucapião; originária, isto é, sem qualquer laço ou relação com posse ou posses anteriores e assente exclusivamente na natureza intrínseca dos poderes efectivamente exercidos. Destarte, e tendo em conta os elementos apontados, ainda que sucintamente, impõe-se concluir que não se detecta, como a factualidade sob os nºs 6,14,15 e 19 se pode reportar, a circunstâncias factuais concernentes à invocada posse, como a recorrente sustenta. Porém, importa ainda referir, que a Relação, ainda que na sua apreciação, tivesse violado alguma norma reguladora de direito probatório, e porque o Supremo Tribunal tem poderes para, nos termos do artº 682º, nº3 do CPC determinar que se amplie a matéria de facto, de modo a constituir base suficiente para a decisão da matéria de direito atinente às questões que lhe foram submetidas, o que implicaria a anulação do acórdão, na parte afectada, e o reenvio do processo ao Tribunal recorrido para novo julgamento, in casu, sempre tal seria um acto inútil, e como tal vedado por lei– artº 130º do CPC – já que os factos em análise, ainda que provados, são absolutamente neutros e até exógenos, em relação à alegada posse como se evidenciou e, consequentemente, irrelevantes para o conhecimento do mérito da causa – a aquisição do direito de propriedade por usucapião. Destarte, improcedem in totum as conclusões do recurso de revista. DECISÃO Acordam os Juízes da 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a revista e, consequentemente, confirmam o Acórdão recorrido. Custas pela recorrente. Lisboa, 25-11-2025 Eduarda Branquinho (Relatora) Anabela Luna de Carvalho Maria Olinda Garcia ______________________________________________
1. Publicado in www. dgsi.pt.↩︎ 2. Recursos em Processo Civil, 8ª ed. Atualizada, pgs. 379/380↩︎ 3. In www.dgsi.pt↩︎ 4. P. nº 428/19.2T8LSB.L1.S1 in www.dgsi.pt↩︎ 5. Ac. do STJ de 26.10.1975; Boletim do Ministério da Justiça; 250.º, pg. 150, anotado na RLJ n.º 109, pág. 311.↩︎ 6. HENRIQUE MESQUITA, Direitos Reais, sumários das lições ao curso de 1966-67, Coimbra, p.75. MOTA PINTO, Direitos Reais, lições coligidas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Coimbra, 1971, p. 191. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado com a colaboração de HENRIQUE MESQUITA, Vol. III, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, p.5 ORLANDO DE CARVALHO, “Introdução à Posse”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3780, ano 122, Coimbra, Coimbra Editora, 1990, p. 68 E na jurisprudência do STJ cfr., entre outros, acórdãos de 17-04-2007, Processo n.º 07A480, de 13-09-2011, Processo n.º 1027/06.4TBSTR.E1.S1, de 21-06-2016, Processo n.º 7487/11.4TBVNG.P2.S1, de 12-09-2019, Processo n.º 1333/15.7T8LMG.C1.S1, de 13-10-2020, Processo n.º 439/18.5T8FAF.G1.S1, de 16-11-2021, Processo n.º 2534/17.9T8STR.E2.S13.↩︎ 7. Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, RLJ, Ano 122º, nº 3780, pg. 66.↩︎ 8. Henrique Mesquita, Direitos Reais, pg. 67.↩︎ 9. No Assento (hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência) proferido em 14-05-1996, o STJ, estabeleceu a partir do artigo 1252.º, que a existência do “corpus” faz presumir o “animus”, instituindo que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”- Diário da República n.º 144/96, II Série, 24-6-1996. |