Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5045/20.1T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESSUPOSTOS
CAUSA DE PEDIR
DANO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
PRESCRIÇÃO
RENDA
EFICÁCIA
CONHECIMENTO OFICIOSO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
FACTO EXTINTIVO
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Inserindo-se o direito de indemnização peticionado pelo autor no âmbito de uma ação por responsabilidade civil extracontratual e assentando este direito numa causa de pedir complexa, que abarca toda a factualidade preenchedora dos pressupostos a que se reporta o art. 483º, do Código Civil, ou seja, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, a prescrição do direito de indemnização a que alude o artigo 498º, do Código Civil, não pode ser aferida apenas em função dos danos nem da sua natureza, pois os mesmos são incindíveis dos demais elementos constitutivos da causa de pedir na medida em que todos eles concorrem para a constituição da obrigação de indemnizar.

II. Tendo a ré invocado, na contestação, a exceção de prescrição das rendas, nos termos  do artigo 310º, alínea b) do Código Civil, que nenhuma correspondência tem com os factos que integram a causa de pedir do direito à indemnização, vedada fica ao tribunal a possibilidade de, por via da alegada prescrição de rendas, considerar oficiosamente, colmatada a falta de invocação da prescrição relativamente ao direito de indemnização peticionado pelo autor, nos termos do estabelecido no artigo 498º, nº 1, do Código Civil, pois a isso se opõe o disposto no artigo 303º, do mesmo código.   

III. Não estamos, neste caso, perante uma questão de adequação da qualificação da qualificação jurídica, consentida pelo n.º 3 do artigo  5.º , do Código de Processo Civil, estando, antes, em causa a eficácia da invocação da prescrição que, enquanto facto extintivo autónomo do direito do credor,  não escapa à regra contida no artigo 303º do Código Civil, segundo a qual a mesma  tem de ser invocada pelo devedor interessado, não podendo ser suprida, ex officio, pelo tribunal.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


***




I. Relatório


1. AA instaurou ação declarativa contra BB, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 77.200,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais.

Alegou, para tanto e em síntese, que, subtraindo dois imóveis aos bens comuns do casal, a cuja meação teria o autor direito por partilha do seu divórcio, a ré deliberada e conscientemente protelou no tempo a partilha dos bens comuns, impedindo o autor de  usufruir livremente dos imóveis, que, por isso, se viu obrigado a tomar de arrendamento uma outra habitação e a suportar uma renda mensal no montante de € 400,00, desde janeiro de 2008 a abril de 2020 e de  € 500,00, desde maio de 2020 até à presente data, tudo num total de € 62.200,00.

Mais alegou que mercê da descrita conduta da ré, viveu momentos de extremo stress e ansiedade, que lhe perturbaram não só o dia-a-dia como o fizeram sentir estagnado na vida e viu-se impossibilitado de dormir, pelo que deve ser ressarcido, por danos não patrimoniais, no valor de € 15.000,00.


2. A ré contestou, sustentando, para além do mais, que mesmo que tais “rendas” fossem devidas, já há muito que prescreveram, pois segundo o disposto no art. 310.º al. b) do Código Civil, as rendas prescrevem no prazo de 5 anos.

Daí que, tendo decorrido o prazo prescricional de 5 anos para o autor exigir o pagamento das rendas, não pode agora o mesmo vir aos autos reclamar qualquer valor a esse título, uma vez que há muito que o seu direito se extinguiu.


3. Foi proferido despacho saneador que decidiu julgar procedente a exceção de prescrição invocada pela  ré, absolvendo-a  do pedido.


4. Inconformado, com esta decisão, o autor dela apelou para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão proferido em 14 de setembro de 2021, declarou a nulidade da decisão recorrida na parte em que conheceu da prescrição do alegado direito do autor ao ressarcimento pelos dos danos não patrimoniais e revogou o segmento decisório que absolveu a ré deste pedido, mantendo, no mais, a decisão recorrida.


5. Inconformado com esta decisão, o autor dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« I. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação é merecedor de reparo ou censura, por erro na aplicação do direito.

II. Com o devido respeito, entende o Recorrente, que o douto acórdão recorrido viola lei substantiva, concretamente faz uma errada interpretação do artigo 498º nº 1 do Código Civil.

III. O Tribunal da Relação efetuou aqui uma divisão entre o conhecimento da prescrição do direito de indemnização quanto aos danos patrimoniais e o conhecimento da prescrição desse direito quanto aos danos não patrimoniais.

IV. Concordando com a posição adotada pela Exma. Juíza Relatora Luísa Duarte Ramos, com voto vencido, a prescrição do direito de indemnização, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 498º do Código Civil, diz respeito ao próprio exercício do direito de peticionar e não às suas parcelas e valores.

V. A referida disposição legal não faz distinção entre a prescrição de danos patrimoniais e a prescrição de danos não patrimoniais.

VI. O nº 1 do artigo 498º do Código Civil refere-se ao “direito de indemnização” na sua globalidade e não às suas parcelas ou valores.

VII. Portanto, com o devido respeito, entendemos que o Tribunal da Relação efetuou uma errónea aplicação do direito ao dividir a prescrição do “direito de indemnização” a que se refere o nº 1 do artigo 498º do CC, entre prescrição de danos patrimoniais e a prescrição de danos não patrimoniais.

VIII. O Tribunal da Relação deveria ter entendido que o Tribunal da 1ª instância não poderia ter conhecido da questão da prescrição do direito de indemnização, como um todo, ao invés de parcelar a possibilidade de conhecimento dessa questão.

Acresce que,

IX. No que diz respeito à causa de pedir (direito de indemnização no âmbito da responsabilidade civil extracontratual), a Ré não invocou, na contestação, a exceção de prescrição.

X. O que a Ré invocou, na contestação, foi a “prescrição do direito ao pagamento das rendas com fundamento na alínea b) do art.º 310º do Código Civil”, sendo que tal invocação não tem qualquer correspondência com os factos que integram a causa de pedir.

XI. Tal alegação não tem qualquer relação com os factos que integram a causa de pedir, nem como direito peticionado.

XII. A Recorrida não invocou, em momento algum, a prescrição do direito à indemnização (art.º. 303º do Código Civil), razão pela qual, o tribunal de 1ª instância estava, efetiva e inegavelmente, vedado o conhecimento oficioso da prescrição do direito à indemnização.

XIII. O tribunal da Relação deveria assim ter entendido que a decisão da 1ª instância é nula por excesso de pronúncia, nos termos e para efeitos do art.º 615º do Código de Processo Civil, na medida em que conheceu oficiosamente de matéria que não é de conhecimento oficioso».

Termos em que requer seja revogado parcialmente o acórdão recorrido no que respeita à procedência da exceção de prescrição por danos não patrimoniais.


6. A ré respondeu, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.


7. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se:

1ª- ao considerar prescrito o direito do autor relativamente à peticionada indemnização por danos patrimoniais,  o acórdão recorrido fez errada interpretação do art. 498, nº 1, do C. Civil;

2ª- o acórdão recorrido enferma de nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, por excesso de pronúncia.


***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


Factos provados


Os factos a considerar para efeito de resolução do presente litígio são os supra descritos nos ponto 1 a 4 do relatório.


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3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, o objeto do recurso interposto pela autora prende-se, essencialmente, com a questão de saber se ao considerar prescrito o direito do autor relativamente à peticionada indemnização por danos patrimoniais, o acórdão recorrido fez errada interpretação do art. 498, n º1, do C. Civil.


No sentido afirmativo pronunciou-se o acórdão recorrido, com base na seguinte fundamentação:

« A excepção peremptória de prescrição não é de conhecimento oficioso, pelo que o tribunal só a pode conhecer se e na medida em que ela for invocada.

Regista-se que na petição inicial o autor imputa à ré a violação "do seu do autor direito de propriedade" sobre dois imóveis, o que lhe causou dois danos:

- Um dano patrimonial de 62.200,00 €;

- Um dano não patrimonial de 15.000,00 €.

O dano patrimonial decorre de, em face da conduta da ré, se ter visto obrigado ao "arrendamento uma outra habitação", tendo com isso pago rendas num valor total de € 62.200,00. E considera ter direito a essa "indemnização por parte da Ré, precisamente por se encontrarem, aqui, verificados cumulativamente os pressupostos (…) do nº 1 do art.º 483º do Código Civil"[2].

Por sua vez, a ré alegou na contestação que «mesmo que tais "rendas" fossem devidas (…) já há muito que prescreveram», acrescentando que, como "dispõe o art. 310º al. b) do Código Civil, as rendas prescrevem no prazo de 5 anos"[3].

Neste cenário, a ré, ao afirmar que o direito invocado pelo autor ao ressarcimento do valor das rendas que pagou prescreveu, está, sem dúvida alguma, a excepcionar a prescrição do alegado direito de ser indemnizado por um dano patrimonial de 62.200,00 €.

A circunstância de a ré considerar que esta prescrição se rege pelo disposto no artigo 310.º b) do Código Civil é de todo irrelevante, pois, como bem salienta a Meritíssima Juiz a quo, "a R. invocou a prescrição na contestação, embora apresentando um enquadramento jurídico diverso, mas que não vincula o Tribunal." Estando suscitada a prescrição o juiz tem de conhecer dessa questão, podendo, para o efeito, ao abrigo do princípio “iura novit curia”, considerar que a norma aplicável aos factos não é aquela em que a ré se funda, mas, sim, uma outra[4].

Consequentemente, no que se refere ao direito do autor a ser indemnizado pelo alegado dano patrimonial de € 62.200,00, a decisão recorrida não padece de qualquer nulidade; inexiste, nesta parte, "excesso de pronúncia". O tribunal a quo tinha que se pronunciar quanto à prescrição deste direito, e nessa tarefa, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, "o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito". Neste contexto, "incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada (…) nos limites do efeito prático-jurídico pretendido"[5].


*


Porém, na parte em que o tribunal a quo julga procedente a prescrição quanto ao pedido que se funda nos danos não patrimoniais, a decisão recorrida padece da apontada nulidade, na medida em que conheceu uma questão de que não podia conhecer. Na verdade, em relação a este pedido (€15.000,00) a ré não invocou a prescrição. Nos artigos 3.º a 6.º da contestação a ré circunscreveu, claramente, a questão da prescrição ao dano patrimonial (€62.200,00); não a estendeu ao direito invocado pelo autor de ser indemnizado por danos não patrimoniais.

Em face do exposto, nos termos do artigo 615.º n.º 1 d) do Código de Processo Civil, a decisão recorrida padece de nulidade na parte em que declarou a prescrição do alegado direito do autor de ser indemnizado em €15.000,00 por danos não patrimoniais ».


Contra este entendimento insurge-se o autor que, acolhendo os argumentos expendidos no voto de vencimento constante do acórdão recorrido, sustenta que este acórdão fez errada interpretação do art. 498º, nº 1, do C. Civil, ao efetuar uma divisão entre o conhecimento da prescrição  do direito de indemnização quanto aos danos patrimoniais e quanto aos danos não patrimoniais, quando é certo que aquele artigo refere-se “ao direito de indemnização” na sua globalidade e não às suas parcelas e valores.

Mais sustenta que, tendo a ré invocado, na contestação, apenas a prescrição do direito ao pagamento das rendas com fundamento na alínea b) do art. 310º do C. Civil, tal invocação não tem qualquer correspondência com os factos que integram a causa de pedir na presente ação.

Assim, porque no caso dos autos estamos no âmbito de uma ação de indemnização por responsabilidade civil extracontratual e porque a ré não invocou, na contestação, a exceção de prescrição do direito à indemnização, estava vedado ao tribunal de 1ª instância o conhecimento oficioso da prescrição, pelo que o acórdão recorrido devia ter entendido que a decisão da 1ª instância  era nula por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), do CPC.  


Vejamos.


Como é sabido, a prescrição, regulada nos arts. 300º a 327º, do C. Civil, consiste numa causa de extinção das obrigações civis e reveste a natureza de exceção em sentido próprio uma vez que a respetiva relevância depende da vontade do demandado, distinguindo-se, por isso, das exceções em sentido improprio, que são factos cuja eficácia opera ipso iure, que o juiz pode e deve conhecer ex officio, sem dependência de alegação pela parte a quem aproveita, tal como resulta do disposto no art. 579º, do CPC.

Assim, enquanto facto extintivo autónomo de um direito, a prescrição, para ser eficaz, não escapa à regra contida no art. 303º do C. Civil, segundo a qual a mesma tem de ser invocada «por aquele a quem aproveita», não podendo ser suprida, ex officio, pelo tribunal.

Como  evidenciam os factos alegados na petição inicial, estamos no âmbito de uma ação destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual, em que o pedido de indemnização formulado pelo autor, que constitui o objeto da ação, assenta numa causa de pedir complexa, que abarca toda a factualidade que preenche os pressupostos cumulativos a que se reporta o art. 483º, do C. Civil, ou seja, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade  entre o facto e o dano.

Na presente ação pede o autor a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 77.200,00, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por ele sofridos em consequência da conduta da ré.

Como fundamento deste pedido de indemnização, alega o autor a conduta ilícita e culposa da ré que, após o divórcio deles e com vista a prejudicar o autor, subtraiu à partilha dois dos imóveis que constituem bens comuns do, então, casal por eles formado, e, desse modo, impossibilitou o autor de dispor livremente dos referidos imóveis na medida da meação que lhe cabia, que, por isso, viu-se obrigado a tomar de arrendamento uma outra habitação e a ter que suportar  uma renda mensal  no montante de : « € 400,00, desde janeiro de 2008 a abril de 2020, num total de € 59.200,00 e € 500,00 desde maio de 2020 até à presente data, num total de € 3.000,00, o que perfaz um total de € 62.200,00».

Mais alega que a descrita conduta da ré, atrasou a conclusão de todo o processo de divórcio, o que causou ao autor momentos de extremo stress e ansiedade, impossibilitando-o de dormir, pelo que deve ser ressarcido, por danos morais  no valor de € 15.000,00  ( cfr. artigos 29º a 48º da petição inicial ).     

Ora, sendo o objeto da presente ação constituído pelo direito de indemnização que o autor pretende exercer contra a ré, evidente se torna, contrariamente ao entendimento seguido no  acórdão recorrido, que a invocação pela ré,  nos artigos 2º a 6º da sua contestação, da prescrição do direito ao pagamento das rendas com fundamento na alínea b) do art. 310º do C. Civil, jamais pode ser entendida como reportando-se aos danos patrimoniais  sofridos pelo autor em consequência da alegada conduta ilícita da ré, ou seja, quanto aos danos patrimoniais que alega ter sofrido por, em virtude da conduta da ré, se ter visto obrigado a tomar de arrendamento uma outra habitação e a ter que suportar  uma renda mensal no montante de € 400,00, desde janeiro de 2008 a abril de 2020, e de € 500,00 desde maio de 2020 até data da propositura da presente ação.

 Desde logo, porque a norma constante da alínea b) do citado art. 310º respeita a dívida referente ao não pagamento de rendas devidas pelo locatário, não tendo, por isso, qualquer correspondência com os factos que integram a causa de pedir.

Daí que, não tendo qualquer eficácia, no caso dos auto, a  invocação  da prescrição de rendas, nos termos do citado art. 310º, al. b) e carecendo a prescrição do direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, para ser eficaz, de ser invocada, vedada fica ao tribunal a possibilidade de, por via da alegada prescrição de rendas, considerar oficiosamente, colmatada a falta de invocação da prescrição relativamente ao direito de indemnização peticionado pelo autor, nos termos do estabelecido no art. 498º, nº 1, do C. Civil, pois a isso se opõe o art. 303º, do C. Civil.      

Do mesmo modo, não se descortina que seja possível considerar suprida esta falta de invocação apenas e tão só quanto aos danos de natureza patrimonial, na medida em que, tal como já se deixou dito, o dano mais não é do que um dos elementos constitutivos do direito de indemnização por responsabilidade civil extracontratual.

E nem se diga, como o faz o acórdão recorrido, incumbir ao tribunal, no contexto dos autos e conforme o disposto o n.º 3 do art. 5.º , do CPC, « proceder à qualificação jurídica que julgue adequada (…) nos limites do efeito prático-jurídico pretendido », pois, o caso dos autos não se reconduz a uma questão de qualificação jurídica, tratando-se, antes, da eficácia da invocação da prescrição que, enquanto facto extintivo autónomo do direito do credor, não escapa à regra contida no art. 303º do C. Civil, segundo a qual a mesma tem de ser invocada pelo devedor interessado não podendo ser suprida, ex officio, pelo tribunal.

Termos em que, não tendo a ré invocado a prescrição do direito de indemnização peticionado pelo autor, nos termos do art. 498º, nº 1, do C. Civil, seja de concluir pela inexistência de fundamento legal para o acórdão recorrido julgar procedente a exceção de prescrição relativamente ao pedido de indemnização por danos patrimoniais formulado pelo autor.

Procede, pois, neste segmento, o recurso interposto pelo autor ficando prejudicado o conhecimento da invocada  nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia.



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IV – Decisão


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar procedente o recurso de revista interposto pela autor e, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que manteve a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, determina-se a remessa dos autos a este tribunal a fim de aí prosseguirem os seus termos.

Custas da revista ficam a cargo da recorrida.

Notifique.



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Supremo Tribunal de Justiça, 10 de fevereiro de 2022

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra


Paulo Rijo Ferreira (vencido conforme declaração que junto)



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DECLARAÇÃO DE VOTO

Processo 5045/20.1T8GMR.G1.S1

Vencido.

Entendo que para cumprir a exigência de invocação da prescrição exigida pelo art.º 303º do CCiv basta que se exprima a vontade dessa invocação (a simples afirmação de que o peticionado é inexigível em função do tempo já decorrido), sem qualquer necessidade de enquadramento jurídico específico dessa invocação. Esse enquadramento (qual o tipo, o prazo e respectiva contagem, bem como as concretas disposições legais regulatórias são já matéria de direito, onde vigora o princípio do’ jura novit curia’.

Por outro lado, na minha perspectiva, se o regime da prescrição e a sua renúncia antecipada são indisponíveis (artigos 300º e 302º do CCiv) já o mesmo não ocorre com o direito de invocar a prescrição; este está na total disponibilidade da parte na medida em que pode optar entre invocar a prescrição ou prescindir dessa invocação. E entre um extremo e o outro fica todo um território em que não encontro razões que imponham um regime de ‘ou tudo ou nada’, rejeitando a possibilidade de uma invocação parcial da prescrição, salvo nas situações de indivisibilidade da pretensão a que é oposta a prescrição. De acordo com o brocardo ‘quem pode o mais pode o menos’, se se pode invocar a prescrição relativamente a todo o pedido também se poderá limitar essa invocação a apenas parte.

Creio que é isso que ocorre na prescrição aquisitiva (usucapião), sujeita ao mesmo regime do art.º 303º do CCiv (art.º 1292º), onde o facto de o possuidor na integralidade de um bem invocar a usucapião somente sobre uma parte autonomizável desse bem não levantará objecção de que só podia invocar a prescrição aquisitiva relativamente à totalidade do bem.

Dessa forma tenho que a Ré invocou a prescrição, embora limitada à parte do direito (indemnização) correspondente à quantia peticionada a título de dano patrimonial pelo que confirmaria o acórdão recorrido.

(Rijo Ferreira)

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Cfr. artigos 33.º, 40.º, 48.º e 53.º da petição inicial.
[3] Cfr.  artigos 3.º e 4.º da contestação.
[4] No caso o artigo 498º nº1 do Código Civil
[5] Ac. STJ de 19-1-2017 no Proc. 873/10.9T2AVR.P1.S1, www.gde.mj.pt.