Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09P0236
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDO FRÓIS
Descritores: MAUS TRATOS
REITERAÇÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
DIREITOS DE DEFESA
CRIME PÚBLICO
CRIME SEMI-PÚBLICO
DOLO
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: SJ200903120002363
Data do Acordão: 03/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - Até à entrada em vigor da Lei 59/2007, de 04-09 (que manteve a incriminação e a moldura penal respectiva), o crime de maus tratos pressupunha, em regra, uma reiteração de condutas.
II - Face à nova redacção dada pela citada Lei o referido crime pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas («Quem, de modo reiterado ou não…» – art. 152.º, n.º 1, do CP), embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencha o tipo de ilícito (cf. Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Almedina, 2005, págs. 106-107; e Ac. do STJ de 24-04-2006, Proc. 06P975, in www.dgsi.pt).
III - O art. 152.º do CP responde à necessidade que se fazia sentir de punir penalmente os casos mais chocantes de maus tratos na violência doméstica. Neste crime protege-se a saúde física e mental do cônjuge, sendo que esse bem pode ser violado por todo o comportamento que afecte a dignidade pessoal daquele, designadamente por ofensas corporais simples. Protege-se a dignidade humana, em particular a saúde, aqui se compreendendo o bem-estar físico, psíquico e mental (cf. Acs. do STJ de 30-10-2003, CJSTJ, XI, tomo 3, pág. 208, e de 04-02-2004, Proc. n.º 2857/03 - 3.ª).
IV - Resultando da factualidade assente, para além do mais, que as agressões físicas e verbais do arguido para com a mulher (e os filhos) começaram praticamente desde o início do casamento e continuaram, quer quando, pelo menos por duas vezes, o arguido pôs a mulher fora de casa, à noite, só com a roupa interior, quer com novas agressões no Verão de 2002, quer ainda posteriormente – tendo a ofendida apresentado queixa em Abril de 2003 –, não há dúvida de que os factos provados se subsumem à previsão do art. 152.º, n.ºs 1 e 2, do CP, na redacção anterior à Lei 59/2007, de 04-09, não havendo que considerar as agressões praticadas pelo arguido no Verão de 2002 como os únicos factos criminosos, autonomizá-los de todo o comportamento anterior do arguido para com a mulher e considerar que apenas cometeu um crime de ofensa à integridade física, como pretende o recorrente.
V - O facto de se terem provado outras agressões físicas (socos, pontapés, bofetadas) e agressões verbais praticadas amiúde pelo arguido contra a mulher, sem se ter conseguido apurar a data exacta da respectiva prática, não obsta à prova dessas (outras) agressões, sendo certo que isso não impede o direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrado na medida em os factos essenciais – as agressões – já constavam da acusação e as datas exactas da prática das mesmas são factos que não são indispensáveis para a concretização do crime.
VI - O crime de maus tratos ao cônjuge passou a estar previsto no CP, no art. 153.º, n.º 3, na redacção dada pelo DL 400/82, de 23-09, e tal normativo não exigia a queixa do ofendido.
VII - Com a revisão operada pelo DL 48/95, de 15-03, o procedimento criminal passou a depender de queixa (art. 152.º, n.º 2, do CP), e com as alterações posteriormente introduzidas pela Lei 65/98, de 02-09, o procedimento criminal pelo referido crime continuou a depender de queixa, mas o MP podia dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse e não houvesse oposição do ofendido antes de ser deduzida acusação (cf. art. 152.º, n.º 2, in fine, do CP, na redacção indicada).
VIII - Com a Lei 7/2000, de 27-05, o crime passou a revestir novamente a natureza de público, sendo que a nova redacção veio responder à necessidade de punir penalmente os casos mais chocantes de maus tratos, designadamente em cônjuge e equiparado, deixando de ser exigido o dolo específico (na versão originária era necessário que o autor/agente agisse por malvadez ou egoísmo), bastando o dolo genérico.
IX - Dado que durante a maior parte do tempo que durou o casamento da ofendida o crime de maus tratos ao cônjuge tinha natureza pública, situação que se verificava à data da queixa apresentada pela assistente (26-04-2003), o facto de esta ter declarado desistir dessa queixa nas declarações que prestou em 06-06-2003 é juridicamente irrelevante e ineficaz.
X - Tratando-se de crime público, não há que atender ao estatuído no art. 115.º do CP quanto à extinção do direito de queixa, sendo aplicáveis os prazos de prescrição do procedimento criminal referidos no art. 118.º do CP, que ainda não tinham decorrido à data da apresentação da queixa pela assistente, posto que alguns dos factos integradores do crime ocorreram no Verão de 2002.
XI - Quanto aos danos não patrimoniais rege o art. 496.º do CC, de onde resulta que são indemnizáveis os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
XII - A gravidade do dano deve medir-se por um padrão objectivo (devendo, porém, considerar-se as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos. Assim, são geralmente considerados danos não patrimoniais relevantes a dor física ou psíquica, a ofensa à honra ou reputação do indivíduo, o desgosto pelo atraso na conclusão de um curso ou de uma carreira – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado (anotação ao art. 496.º).
XIII - Esta indemnização, além de sancionar o lesante pelos factos que praticou e que causaram danos a terceiro, visa permitir atenuar, minorar e de algum modo compensar o lesado pelos danos que sofreu, permitindo-lhe a satisfação de várias necessidades de teor monetário. Pretende compensar o lesado, na medida do possível, das dores e incómodos que suportou e se mantêm, assim como da situação de debilidade física resultante dos factos (cf., neste sentido, Ac. do STJ de 26-01-1994, CJSTJ, tomo II, pág. 67).
XIV - E, porque neste tipo de danos é evidente a impossibilidade de reparação natural dos mesmos, no cálculo da respectiva indemnização deve recorrer-se à equidade, tendo em conta os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as circunstâncias do caso (art. 496.º, n.º 3, do CC).
XV - Resultando da matéria de facto assente que a assistente MO, ex-mulher do arguido, foi vítima de agressões (físicas e psicológicas) e humilhações, pelo que sofreu dores e teve ansiedade, medo e intranquilidade em casa, com perda de auto-estima, o que só terminou com a separação conjugal, que ocorreu em 2003, estes danos – graves e relevantes – não podem deixar de ser considerados merecedores da tutela do direito, afigurando-se justa uma indemnização de € 5000.
XVI - Tendo em consideração que a ofendida menor, filha do arguido, VA, sofreu agressões físicas e psicológicas gravíssimas, com sequelas de enorme gravidade quer ao nível da saúde – física e psicológica – quer ao nível da sua auto-estima [ela foi vítima silenciosa, ao longo de vários anos, de abusos sexuais praticados pelo pai, que lhe provocaram pesadelos (acordando assustada durante a noite) e a tornaram numa pessoa triste, revoltada e desconfiada, tendo receio de sair de casa e vir a encontrar o pai], que se manterão seguramente durante muito tempo, não se vê motivo para alterar o montante da indemnização de € 20 000, a título de danos não patrimoniais, arbitrado pelas instâncias.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - No Círculo Judicial de Ponta Delgada, no processo comum colectivo nº 97/03.1 PEPDL, foi o arguido:

1º. AA, divorciado, tipógrafo, nascido a 01/01/1955, filho de BB e de CC, natural da freguesia dos Arrifes, concelho de Ponta Delgada, e residente na Rua da ............, Arrifes, Ponta Delgada, - - - - submetido a julgamento perante tribunal colectivo, acusado da prática, em concurso efectivo, dos seguintes crimes:
- um crime de maus tratos ao cônjuge, p. e p. pelo artigo 152º-2, do Código Penal; e- um crime continuado de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 30º-2, 172º - 2 e 177º-1-a), todos do Código Penal.

DD, ex-mulher do arguido, deduziu contra ele, pedido cível (enxertado), pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização de € 10 000,00, por danos não patrimoniais causados, advenientes dos maus tratos de que foi dele vítima enquanto durou a relação matrimonial.

Também EE, filha do arguido, deduziu pedido cível enxertado, pedindo a condenação daquele no pagamento de uma indemnização de € 20 000,00, a título de danos não patrimoniais causados, advenientes dos abusos sexuais de que dele foi vítima.

A final, foi proferido acórdão em 19 de Fevereiro de 2008, que decidiu:

Condenar o arguido AA, pela prática dos seguintes crimes, nas seguintes penas (além do mais):

- pela prática de um crime de maus tratos ao cônjuge, p. e p. pelo artigo 152º-1 e 2, do Código Penal (redacção vigente antes da entrada em vigor da Lei 59/2007, de 04/09), na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática de um crime continuado de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 30º-2, 79º, 172º e 177º-1-a), do Código Penal (redacção vigente antes da entrada em vigor da Lei 59/2007, de 04/09), na pena de 12 (doze) anos de prisão;

Em cúmulo jurídico destas penas, o mesmo arguido AA foi condenado na pena única de 14 (catorze) anos de prisão.

Mais foi o mesmo arguido/demandado, condenado:

- a pagar à demandante DD, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 10 000,00;

- a pagar à demandante EE, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 20 000,00.

Inconformado com tal condenação o arguido AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, pugnando pela revogação do acórdão condenatório e pela absolvição dos crimes que lhe são imputados e pela absolvição dos pedidos de indemnização civil contra ele formulados ou, caso assim se não entenda, pugna pela aplicação da pena mínima de 1 ano de prisão para o crime de maus tratos a cônjuge e da pena de 4 anos de prisão para o crime de abuso sexual de criança, agravado, devendo a sua execução ser suspensa nas condições que o Tribunal julgar adequadas.

Por acórdão de 28.10.2008, do Tribunal da Relação de Lisboa, foi provido o recurso quanto a uma das questões sobre a matéria de facto, que foi alterada, mas que não teve qualquer repercussão na decisão, pelo que foi mantido o acórdão recorrido quanto às penas parcelares e à pena única de 14 anos de prisão aplicada em cúmulo jurídico e também quanto aos montantes das indemnizações arbitradas.

Novamente inconformado com tal decisão, o mesmo arguido AA interpôs o presente recurso para este STJ, pugnando pela revogação do acórdão da Relação de Lisboa e pela sua substituição por outro que absolva o arguido dos crimes por que foi condenado assim como dos pedidos de indemnização civil formulados ou, caso assim se não entenda, deverá ser aplicada ao arguido a pena mínima de 1 ano de prisão para o crime de maus tratos a cônjuge e de 4 anos de prisão para o crime continuado de abuso sexual de criança, agravado, devendo a sua execução ser suspensa nas condições que este Tribunal julgar adequadas.

Na sua motivação, formula as seguintes e extensas - - - - - - - -

Conclusões:

1 - O Acórdão recorrido valorou factos quando não o podia fazer, designadamente os referidos nos parágrafos 3º, 4º, 5º e 9º, já que não são integradores do conceito de reiteração para preenchimento do tipo legal de crime de maus tratos a cônjuge.

2 – Não foram alegados factos materiais simples e concretos, devidamente enquadrados nas circunstâncias de tempo, modo e lugar, que uma vez provados, pudessem integrar o crime de maus tratos a cônjuge.

3 – Os factos dados como provados no douto acórdão e constantes da douta acusação pública, com excepção do parágrafo 6º, não podiam ser impugnados especificadamente pelo arguido e daí a sua irrelevância jurídica, sendo os mesmos meramente conclusivos e ou desenquadrados das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que terão ocorrido.

4 – Pelo que são insusceptíveis de serem submetidos ao crime de maus tratos a cônjuge.

5 – O único facto concreto provado foi a agressão verificada no Verão de 2002, sendo que esta não é objectivamente grave, nem foi praticada sem motivo ou pretexto, conforme se vê do parágrafo 6º do douto acórdão.

6 – De resto, só factos concretos e determinados e reiterados, seriam passíveis de qualificação, uma vez alegados e provados, de integrar o crime de maus tratos a cônjuge e nunca os verificados anteriormente, nem sequer concretamente alegados e provados, como in casu se pretende.

7 – Assim, e porque apenas se provou uma única agressão, o arguido só podia, em tese, ser condenado pela prática do crime de ofensas corporais simples, p. e p. pelo artigo 143º do C. Penal.

8 – No caso vertente, analisada a factualidade dada como provada, designadamente os factos vertidos nos parágrafos 3º, 4º, 5º e 9º dos factos dados como provados no douto acórdão, entendemos que estes não se encontram circunstanciados no tempo dos 26 anos de vida em comum dos cônjuges, de forma a considerar-se, sem margem para dúvida, que a agressão ocorrida no Verão de 2002, referida no parágrafo 6º dos factos provados, se enquadra numa reiteração de actos, num certo continuar de sucessivas acções, isto é, num determinado espaço de tempo que leve a qualificá-la de acto não isolado subsumível à previsão do artigo 152º-2 do C. Penal, nem que tal agressão tenha assumido gravidade intrínseca de molde a considerá-la, de per si, como susceptível de integrar a previsão penal específica pela qual o recorrente foi condenado.

9 – Decorre do exposto que a factualidade apurada, dada a sua imprecisão e incerteza, mormente quanto à sua localização temporal, não devia ter sido subsumida ao tipo incriminador do artigo 152º-2 do CP e deveria, quando muito, ser convolada para o tipo lega de crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º-1 do CP, cujos factos constitutivos se encontram, em tese, devidamente circunstanciados (cfr. Ac. RE de 23.11.99 in CJ Ano XXIV, Tomo 5, pág. 284 e 285; Ac. RP de 03.11.99 in CJ Ano XXIV, Tomo 5, pags. 223 a 226.

10 – Por outro lado, o artigo 152º-2 do CP na redacção anterior levada a efeito pelo DL 48/95, de 15 de Maio e pela Lei 65/98, de 02 de Setembro, dependia da apresentação de queixa crime e, como tal revestia a natureza de crime semi-público, o que apenas foi alterado pela Lei 7/2000, de 27 de Maio.

11 – No presente caso, tanto a acusação pública como os doutos acórdãos, traçam uma história de, alegadas, agressões físicas e psicológicas, sofridas pela assistente, que terão tido início pouco depois do seu casamento, o qual teve lugar em 26 de Julho de 1976, sendo certo que só se provou, em concreto, um único episódio (Agosto de 2002).

12 – A assistente apenas veio apresentar queixa crime em 26.04.2003, pelo que esse direito quanto a factos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei 7/2000, de 27 de Maio, já havia caducado quando o presente procedimento criminal teve início.

13 – Aqui chegados, apenas ficariam por se discutir, alegadamente, a prática pelo arguido dos factos que terão ocorrido no Verão de 2002, os quais não representam uma reiteração de condutas de modo a inculcar um carácter de habitualidade.

14 – Estes foram cometidos através de um único acto, o que equivale a dizer-se que, quando muito, nesse dia, o arguido terá praticado um crime de ofensas à integridade física simples.

15 – Porém, a assistente, também não apresentou, tempestivamente, a respectiva queixa-crime de que o mesmo dependia, sendo certo que expressamente desistiu quanto a esse crime, do procedimento criminal, conforme decorre das suas declarações de fls. 31 e 32 dos autos.

16 – Pelo que e salvo o devido respeito, mal andou o douto acórdão que manteve a condenação do arguido como autor material de um crime de maus-tratos a cônjuge.

17 – Violando assim o douto acórdão recorrido por erro de subsunção, o disposto nos artigos 410º-2 e 3 do CPP e no artigo 152º-2 do CP.

18 – Por outro lado, e quanto ao crime continuado de abuso sexual de criança, é nosso entendimento de que outra conclusão não se poderia retirar da análise e exame da prova, que não fosse a inexistência da prática pelo arguido, desse crime.

19 – Ao contrário do que é sustentado no douto acórdão, entende o arguido que os factos constantes dos parágrafos 13º, 14º, 15º, 16º e 27º da matéria dada como assente no douto acórdão, não poderiam ter sido dados como provados, tendo por base a fundamentação referida na decisão recorrida.

20 – Com efeito e conforme dela se vê, a assistente DD e as testemunhas FF, GG e HH ê, a assistente DD e as testemunhas FF, GG e HH limitaram-se a referir o que a EE lhes contou.

21 – Os registos clínicos das presenças da EE no Hospital entre 2000 e 2003, não estabelecem qualquer nexo de causalidade entre as ofensas que a EE diz ter sido vítima.

22 – As fotografias de fls. 201/203, relativas à perna da EE, da mesma apenas se vê uma cicatriz, a qual conforme decorre do exame médico-legal de fls. 213 a 216, não se determinou a causa da mesma.

23 – O exame médico-legal de fls. 213 a 216, foi realizado em 10 de Setembro de 2004, ou seja, 1 ano e 5 meses depois de a menor EE deixar de ter qualquer contacto com o arguido (pois que esta, sua mãe e restantes irmãos abandonaram a casa de morada de família em 25.04.2003) e quando esta já tinha 14 anos de idade.

24 – Desse exame médico-legal consta que a menor EE apresentava lesões traumáticas do hímen, não recentes, cicatrizadas, o que na opinião destes apenas quer dizer que têm mais de 8 dias, dado ser esse o tempo necessário para que se cicatrizem.

25 - Pelo que, a condenação do arguido, verdadeiramente se baseou única e exclusivamente, nas declarações para memória futura da menor EE e que foram prestadas a fls. 79/83 e 512/513.

26 – E quanto a essas declarações, salvo o devido respeito, não nos parece merecer qualquer credibilidade, atendendo entre outras coisas, às regras da experiência comum.

27 – Tudo sem prejuízo de se dizer que, até hoje, o arguido não sabe, em concreto, quando, alegadamente, teriam acontecido os aventados abusos, pois que o acórdão recorrido apenas refere que o arguido abusou da EE pelo menos 10 vezes, entre os anos de 1999 a 2003.

28 – O que é de todo incongruente com o facto da menor por 8 vezes ter ido ao hospital, onde a mesma foi vista, atendida e diagnosticada por médicos, que não determinaram a existência de qualquer abuso.

29 – Salvo o devido respeito, não temos quaisquer dúvidas, e face ao acima exposto, que as declarações para memória futura prestadas pela menor EE não têm qualquer credibilidade ou, mesmo que se apelasse ao princípio constitucional do “in dúbio pró reo” aquelas teriam de ser consideradas, no mínimo, como muito duvidosas.

30 – Nos termos e à luz daquela experiência comum e mesmo por consideração da inegável moda com sucesso garantido das imputações malévolas de abuso sexual de menor que têm surgido no País, não pode deixar de relevar a dúvida que não se revelou nunca ultrapassada, quanto à génese dos factos probatórios e à forma como tais factos foram obtidos.

31 – Essa dúvida terá de beneficiar o recorrente, que terá de presumir-se inocente, beneficiando do princípio “in dúbio pró reo”.

32 – O qual embora seja um princípio de prova, não é de excluir do poder cognitivo desse Alto Tribunal – por ser matéria de direito – a indagação do modo como se obteve o acervo factológico em que nas instâncias se assentou a condenação do recorrente e, consequentemente, o poder cognitivo sobre a inerente violação que aqui se invoca daquele princípio de que o recorrente não pode deixar de beneficiar.

33 – A apreciação deste princípio, com o alcance referido, não contende com os princípios da livre apreciação da prova e da livre convicção do julgador, sendo inconstitucional a interpretação do artigo 127º do CPP que veda aquela interpretação.

34 – Pelo que, salvo o devido respeito, mal andou o douto acórdão ao manter a condenação do arguido como autor material de um crime continuado de abuso sexual de criança, agravado.

35 – Violou, assim, o douto acórdão recorrido, o disposto nos artigos 410º-2 e 3 do CPP e no artigo 172º-2, 177º-1-a), 30º-2, 50º, 51º, 52º, 53º, 71º-1 e 79º, todos do Código Penal e ainda o que prescreve o artigo 32º-2 da CRP.

36 – Contudo, mesmo que se entendesse que o arguido deveria ser condenado pela prática de um crime de maus tratos ao cônjuge e por um crime continuado de abuso sexual de crianças, a verdade é que as penas, respectivamente, aplicadas de 12 anos e 3 anos e 6 meses, de prisão efectiva, se mostra, salvo o devido respeito, desproporcional.

37 – Dando concretização aos vectores enunciados, o nº 2 do artigo 71º do CP, torna-se evidente que as penas aplicadas são demasiadamente pesadas violando o douto acórdão o disposto nos artigos 70º e 71º do CP, nunca devendo exceder, a pena mínima de 1 ano para o crime de maus tratos ao cônjuge e de 4 anos para o crime continuado de abuso sexual de crianças, devendo a sua execução ser suspensa nas condições que este Tribunal julgar adequadas.

38 – Por fim, sendo o ora arguido absolvido dos crimes por que vinha acusado, também deverá o mesmo ser absolvido dos pedidos de indemnização civil formulados.

39 – Mesmo que assim não se entenda, o montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais fixado, é claramente excessivo, ultrapassando, em muito, o “quantum” indemnizatório devido, em tese, pelos danos morais invocados pelas assistentes.

40 – Em consequência, a decisão recorrida deverá ser alterada impondo-se a redução do valor da indemnização atribuída a título de danos não patrimoniais.

41 – Contudo, ao decidir assim, o douto acórdão “a quo” violou o artigo 496º-1 do Código Civil.

O Mº Pº junto do Tribunal da Relação de Lisboa apresentou resposta, pugnando pela rejeição do recurso ou, caso assim se não entenda pelo não provimento do mesmo e pela manutenção do decidido.

Em resumo, alega o seguinte - - -

A – Questões prévias (rejeição do recurso por absoluta falta de motivação – o presente recurso não visa o acórdão da Relação, pelo que em nada poderá vir a infirmá-lo; e rejeição do recurso por manifesta improcedência – quanto a questões novas agora suscitadas)

1 – O recurso deve ser rejeitado por absoluta falta de motivação, na medida em que o arguido/recorrente AA não suscita ao STJ quaisquer questões que não tenham já sido objecto de conhecimento e decisão no Tribunal da Relação (exceptuada apenas a questão referente à invocada violação dos artigos 50º, 51º, 52º e 53º do CP e do artigo 32º-2 da CRP que, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa não havia sido expressamente invocada e que surge, assim, como “questão nova”).

2 – Neste recurso para o STJ o recorrente limitou-se a reeditar questões cuja apreciação fora já colocada aquando da impugnação do acórdão proferido na 1ª Instância, através do recurso interposto para o Tribunal da Relação, aproveitando quase na íntegra, a peça processual que elaborara para motivar o primeiro recurso, o que justifica a inteira correspondência entre a redacção dos artigos 1º a 6º, 8º, 13º, 14º a 19º, 22º e 23º, 25º e 26º, 34º, 36º e 38º a 41º das conclusões da motivação deste recurso para o STJ com, respectivamente, a dos artigos 7º a 12º, 16º, 24º, 25º a 30º, 33º e 34º, 39º e 40º, 50º, 52º e 54º a 57º das conclusões da motivação anteriormente apresentada, bem como ligeiras alterações na redacção dos artigos 7º, 9º, 10º, 11º, 12º, 20º, 21º, 24º, 27º, 28º, 29º e 37º das conclusões da motivação deste recurso para o STJ com, respectivamente, a dos artigos 14º, 17º, 18º e 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 31º, 32º, 35º e 37º, 42º, 43º, 45º, 48º e 53º, das conclusões antes formuladas.

3 – Nessa medida, o presente recurso em nada poderá infirmar o Acórdão da Relação pela singela razão de que não o visou, o que conduz à existência de absoluta “falta” de motivação, geradora da rejeição do recurso – artigos 412º-1, 414º-2 e 420º-1-b), do CPP.

4 - É que, limitando-se o recorrente a reequacionar a questão da (in)adequação das penas parcelares e única que lhe foram impostas, em termos em tudo idênticos aos que fizera constar da motivação do recurso interposto para a Relação, sem que algo mais tenha acrescentado no sentido de infirmar a fundamentação que, sobre a matéria, consta do acórdão proferido pela Relação, tal equivale a falta de motivação já que é como se o acórdão agora sob recurso não existisse nos autos. Por isso, impõe-se a rejeição do recurso por falta de motivação – artigos 414º-2 e 420º-1-b), do CPP.

5 – O arguido/recorrente AA sustenta agora, além do mais, ter incorrido a decisão recorrida em violação dos artigos 50º, 51º, 52º e 53º, do Código Penal e do artigo 32º-2 da CRP.

Ora, se analisada a motivação do recurso interposto pelo referido arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, imediatamente se conclui não ter suscitado ali tal questão, surgindo agora como “questão nova” e, como tal, de conhecimento vedado ao STJ, pois, constitui entendimento uniforme do STJ que os recursos destinam-se a reexaminar questões proferidas por jurisdições inferiores e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas sobre aquelas jurisdições.

6 – Assim, se o recorrente excluiu do objecto do recurso por si interposto para o Tribunal da Relação a questão da eventual violação dos citados comandos legais em que a 1ª instância houvesse incorrido, quando deveria, caso pretendesse vê-la apreciada por este Tribunal superior, ter colocado tal questão à apreciação do Tribunal da Relação, face à natureza dos recursos penais está-lhe vedado levantar agora tal questão perante o STJ, sendo tal recurso, no segmento considerado, manifestamente improcedente.

B – Improcedência do recurso

7 - Para a hipótese de não procederem as questões prévias suscitadas, a decisão recorrida, cumprindo a lei e perfilando-se ao lado do que vem sendo entendido pela jurisprudência, decidiu bem.

8 - Desde logo é de acolher toda a fundamentação jurídica referente à incriminação inserta no acórdão sob recurso, do mesmo modo que o raciocínio lógico-jurídico conducente á escolha da medida concreta das penas ali plasmado, prima pelo rigor e acerto recortando da factualidade assente, os segmentos merecedores de destaque e valoração, todos eles – à excepção da inexistência de antecedentes criminais – matizando negativamente o comportamento delituoso e os traços de personalidade do arguido e apontando para necessidades de prevenção geral positiva nitidamente elevadas.

9 – Atenta a reiteração e persistência com que o arguido empreendeu as comprovadas condutas, demonstrando a mais profunda indiferença relativamente ao seu desvalor e ao sofrimento infligido ao longo de vários anos, ao cônjuge e filhos, mormente á filha menor, esta última vítima silenciosa, também durante vários anos, de abusos sexuais, dessa forma como que perpetuando comportamentos altamente disruptivos e susceptíveis de abalar irreversivelmente, como abalaram, a célula familiar em que ele próprio se inseria, instalando um clima de terror e de repulsa, geradores, justamente pela sua natureza e reiteração, de marcas indeléveis nas ofendidas, inexiste fundamento legal atendível para a redução das penas parcelares e única impostas.

10 – Finalmente, para que possa ser suspensa a pena de prisão – como, em última análise, pretende o arguido, é imprescindível poder formular-se um juízo de prognose social favorável que permita esperar que essa pena de substituição não só reintegre o agente na sociedade, como proteja os bens jurídicos violados e os fins visados pelas penas – artigo 40º-1 do CP.

11 - Ora, parece incontestável que no caso sub Júdice, marcantes razões de prevenção geral e especial afastam em absoluto o pretendido decretamento de suspensão da execução da pena (isto, caso viesse a ser imposta pena única contida no limite máximo de 5 anos de prisão – cfr. artigo 50º-1 do CP) quer por se postularem, no caso, fortes necessidades de prevenção geral de intimidação, quer por se registarem assinaláveis exigências de prevenção especial, decorrentes, desde logo, das características de personalidade evidenciadas pelo arguido e pelas reconhecidas dificuldades por ele sentidas numa profunda interiorização do desvalor do seu comportamento e da avaliação da dimensão do sofrimento por infligido a todos os elementos do agregado familiar, com especial destaque para as vítimas dos ilícitos a que se reporta a condenação sofrida em 1ª instância.

12 – Caso não se conclua quer pela irrecorribilidade do Acórdão proferido pela Relação, quer pela falta de motivação do recurso interposto – em qualquer dos casos com a consequente rejeição do recurso – será de manter na íntegra aquele acórdão.

Respondeu também a assistente, pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção do decidido.

Na respectiva motivação, alega, em resumo:

O arguido/recorrente volta a reeditar os argumentos invocados quer no recurso para o douto Tribunal da Relação, quer na audiência de julgamento, quer ao longo de todo o processo.

A matéria de facto fixada afigura-se-nos intangível, não se vislumbrando qualquer vício lógico no percurso intelectual e processual que a ela conduziu, sendo a sua enumeração clara e congruente e a sua valoração correcta e ajustada à lei.

O enquadramento jurídico-penal dos factos foi correcto e a medida da pena, dada a gravidade dos factos, a intensidade da culpa e as exigências de prevenção geral e especial, mostra-se adequada.

Com efeito, as necessárias exigências de prevenção, geral e especial, impõem que o arguido não veja a pena reduzida, a qual se mostra bem doseada, face à culpa, à natureza do crime cometido e ao alarme social e à danosidade social provocados – a este respeito entendemos mesmo possuir o presente caso “dantescos” e de extrema gravidade.

Igualmente vigorando no nosso ordenamento jurídico-penal o princípio da livre apreciação da prova, o qual incidiu de forma cabal e irrepreensível em toda ela, com abundância se revelou ter decidido bem o douto acórdão recorrido pois a própria motivação é clara e precisa ao revelar os meios de prova de que o douto tribunal se muniu.

Remetido o processo a este STJ, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer no sentido de que face à alteração feita no ponto 7º da matéria de facto provada o Tribunal da relação deveria ter apreciado todos os factos para fundamentar a integração do crime de maus tratos; no ponto 10 da matéria de facto o tribunal ao fixar que o não comparecer no trabalho devido a actividades sindicais o livrava de cumprir horários parece haver erro notório porque a actividade sindical é um trabalho e não uma maneira de não trabalhar; e no ponto 3 da matéria de facto consta que dava-lhe e servia-se de um ferro cilíndrico que também introduzia na vagina da menina, enquanto no nº 3 dos factos não provados consta que o arguido guardava um ferro de 30 cm de cumprimento por 3 cm de largura, com bordos rasgados, na mesinha de cabeceira, o que parece ser contradição com a fundamentação pois quanto ao caso do ferro, foi dado como não provado porque a sua mãe disse nunca o ter visto. Por outro lado entende que as penas parcelares e única se mostram exageradas.

Foi cumprido o estatuído no artigo 417º-2 do CPP.

Colhidos os vistos, cumpre conhecer.

É a seguinte a matéria de facto provada:

A)

1. O arguido casou com DD, em Ponta Delgada, no dia 26/07/1976.
2. Tiveram quatro filhos: GG, nascido no dia 20/11/1975; HH, nascido no dia 1/04/1980; FF, nascida no dia 19/09/1981; e EE, nascida no dia 1/06/1990.
3. Praticamente desde o início do casamento, concretamente logo depois do nascimento do GG e, o arguido passou a agredir física e verbalmente a sua mulher, desferindo amiúde sobre ela socos, bofetadas e pontapés, em várias partes do corpo, e chamando-a «puta» e outros nomes do mesmo jaez. Em certas ocasiões também lhe assegurava que a mataria.
4. Os filhos foram criados no ambiente de violência que o arguido gerava em casa, tendo estes sempre que podiam e como podiam ajudado a sua mãe, sendo por essa razão também muitas vezes algo da fúria do arguido, sendo agredidos a soco e pontapé.
5. Pelo menos duas vezes, sendo já mãe de filhos, o arguido colocou a sua mulher de noite na rua, apenas com a roupa interior, indo esta acolher-se a casa de outros familiares que residiam na mesma rua.
6. Em data não concretamente determinada, mas seguramente no Verão de 2002, estando a família reunida em casa, a mulher do arguido, seguindo um ritual religioso, queimou uma pequena porção de açúcar com incenso numa frigideira que colocou no bico do fogão, para dar aroma à casa e benzer os membros da família, como era costume fazer duas ou três vezes por ano, designadamente no Natal e na Páscoa. Chegando-se à beira do arguido para o benzer este afastou bruscamente a frigideira, a qual veio a atingir a sua mulher na testa, continuando depois a agredi-la com pontapés até a fazer cair no chão, arrastando-a depois pelos cabelos. Os filhos foram em socorro da sua mãe e pediram auxílio aos vizinhos.
7. Numa ocasião, em 31.07.2002, a mulher do arguido,II, recebeu tratamento hospitalar a lesões corporais sofridas no seu corpo por violência doméstica e detectadas no boletim clínico de fls. 241 e 242.
8. O arguido também agredia a II no modo como tratava os seus filhos, chamando «puta loura» à FF e «surdo» ou «mouco» ao HH (que tem uma deficiência auditiva).
9. Em todas as situações o arguido actuou por decisão própria e de acordo com o que queria, consciente de que se dirigia à sua mulher, de que lhe atingia o corpo e lhe provocava dores, que lhe ofendia a honra e consideração, a humilhava, bem como nela criava ansiedade, medo, intranquilidade em casa e perda de auto-estima.
B)

10. O arguido é tipógrafo e exercia as suas funções numa gráfica da Ribeira Grande, cumprindo o horário das 8 horas às 17 horas. Contudo, em muitas ocasiões, não comparecia na empresa, ou porque se envolvia em actividades sindicais e isso o livrava de cumprir horários, ou porque não lhe apetecia trabalhar e então não ia de todo à empresa, ou ia apenas uma parte do dia.
11. Em várias ocasiões em que se encontrava nu, o arguido deixava a porta do quarto ou da casa de banho aberta, de modo a que as suas filhas o vissem nu ao passarem, apesar das constantes recriminações da sua mulher a tal propósito.
12. EE, filha do arguido, integrava o seu agregado familiar. Desde muito nova que evidenciou alguma fragilidade. Tinha desmaios frequentes e cedo começou a ser seguida em consultas de psicologia.
13. Depois de a EE ter completado 9 anos de idade, aproveitando as ocasiões em que estava sozinho com ela em casa, o arguido começou a ter contactos e a praticar actos de carácter sexual com ela. Dava-lhe beijos na cara e na zona genital depois de a despir, apalpava-a em todo o corpo, metia os dedos na vagina e servia-se de um ferro cilíndrico que também introduzia na vagina da menina. Nalgumas ocasiões colocou o seu pénis na zona genital da sua filha, chegando a introduzi-lo completamente, mas a ejacular fora, besuntando-lhe o corpo. Aproveitava as ocasiões em que a sua mulher, que era doméstica, saía para ir às compras ou para dar de comer aos animais domésticos, ou de noite, depois dela adormecer profundamente em sequência da medicação que tomava, sempre que a filha FF, que partilhava o quarto com a EE, saía. Esses contactos, que ocorreram inúmeras vezes (seguramente mais de dez), ocorriam no quarto da menina ou na sala da casa. Abafava-lhe os gemidos de dor e protestos com as mãos ou com pedaços de roupa. Quando a menor protestava contra a actuação do arguido, este mandava-a calar-se, amedrontando-a, assim fazendo com que ela nada contasse a ninguém.
14. Quando a EE tinha 10 anos de idade, sendo já menstruada, a sua médica passou a receitar-lhe a pílula para tornar regular esse ciclo e atenuar as dores que sentia.
15. Sabedor disso, sem o constrangimento de uma gravidez reveladora dos seus actos, o arguido passou a manter relações de cópula completa com a sua filha EE, nas referidas circunstâncias. Algumas vezes amarrava os pés da EE à grade da cama com atilhos e na sala prendia-lhe as mãos e os pés à mesa ou ao sofá.
16. Pelo menos numa das referidas ocasiões o arguido aqueceu a lâmina de um canivete e queimou a pele da perna dessa sua filha.
17. Em razão do que se tornou a sua vida, quando tinha 10 anos de idade, a EE, aproveitando uma ocasião em que a sua mãe deixou à vista uma garrafa contendo um líquido para os móveis de madeira (mistura de vaselina com aguarrás), ingeriu uma porção dessa substância, com intenção de acabar com a sua vida. Recebeu tratamento médico e ficou sem sequelas.
18. Muitas vezes, antecipando a actuação do arguido a EE escapulia-se para a rua.
19. No dia 25/4/2003, à noite, DD foi deitar e adormecer a sua filha EE no quarto de dormir desta, no primeiro andar. Depois voltou para a cozinha onde juntamente com a filha FF ficaram a ver televisão. O arguido encontrava-se deitado no seu quarto, que também fica no primeiro andar.
20. Quando eram cerca das 22 horas DD e FF ouviram gritos da EE, então com 13 anos de idade, vindos do seu quarto.
21. Acorreram à pressa e chegados ao primeiro andar ainda viram o arguido a sair do quarto da EE, puxando as calças para cima. Lá dentro estava ela deitada na sua cama, com a roupa chegada para os pés, as cuecas baixadas até aos joelhos e num pranto.
22. O arguido tinha entrado no quarto da sua filha momentos antes, descobrindo-a e tentado tirar-lhe as cuecas, tendo fugido para o seu quarto na sequência dos gritos da EE que ele não conseguiu abafar. Teve a intenção de mais uma vez manter com ela relações sexuais de cópula.
23. Nessa noite, a mãe e os filhos todos saíram de casa e foram hospedar-se na residencial Hotel Apartamentos do Rosário. Só tinham dinheiro para uma noite. E, por isso, no dia seguinte, voltaram para casa com intenção de dela fazerem sair o arguido. Mas este recusou sair.
24. A EE decidiu que não ficaria nem mais um dia debaixo do mesmo tecto que o seu pai. Daí que, perante a intransigência dele em sair, ela informou a sua mãe e irmãos que ali não ficaria nem mais ali voltaria. Nestas circunstâncias a mãe e os irmãos recolheram alguma roupa e saíram de casa sem terem para onde ir, acabando por acolher-se em casa de uma irmã de DD.
25. Só quase um ano depois a EE contou à sua mãe o que lhe vinha acontecendo desde os 9 anos de idade.
26. Submetida a exame médico verificou-se que a menor EE apresentava lesões traumáticas do hímen, não recentes, cicatrizadas.
27. O arguido conhecia a idade da EE, sua filha, e em todas as ocasiões quis com a sua conduta satisfazer os seus desejos sexuais, bem sabendo que essa sua conduta era proibida por lei.
Mais se provou:

28. Que a menor EE enquanto vivia na mesma casa do seu pai tinha pesadelos e acordava a meio da noite assustada, o que entretanto já deixou de acontecer.
29. Já depois de a EE, sua mãe e irmãos terem ido viver para longe do arguido este voltou a procurá-la, na escola que frequentava (Escola Básica Gaspar Frutuoso, na Ribeira Grande), durante o horário escolar, o que deixou a menor em grande aflição.
Provou-se também que (dos pedidos cíveis):

30. A DD, enquanto esteve casada com o arguido, levou uma vida triste, sentindo medo de viver na sua própria casa, o que só terminou com a separação ocorrida em 2003.
31. A menor EE vive com receio de sair de casa e de vir a encontrar o pai e tornou-se uma pessoa triste, revoltada e desconfiada.
Provou-se ainda que:

32. O arguido está divorciado de II desde 2005 e é pai de quatro filhos, sendo três deles maiores, tendo a EE agora 17 anos de idade. Trabalha numa gráfica onde aufere um salário mensal de 730,00 €. Paga uma pensão de alimentos à filha ainda menor de 100,00 €, cabendo o exercício do poder paternal à sua ex-mulher e mãe da menor. Frequentou a escola na idade própria, tendo concluído a 4.ª classe com 12 anos de idade. Iniciou nessa altura o seu percurso laboral. Primeiro, na agricultura, depois, numa mercearia, e aos 14 anos foi trabalhar para a gráfica onde ainda hoje trabalha. Casou-se com 21 anos de idade. Após a separação conjugal, o arguido foi viver para casa da sua mãe, passando a integrar o agregado familiar desta, que é composta por ela, por ele e por um irmão de 42 anos de idade, laboralmente activo. O arguido é pessoa de relacionamentos sociais escassos, que se resumem aos colegas de trabalho, sendo, contudo, neste contexto bem referenciado. É indivíduo com um coeficiente intelectual inferior. Revela pouco interesse pelos outros e, em contrapartida, uma excessiva tendência à auto-centração, a sobrevalorizar o seu papel, dando excessiva prioridade ao seu ponto de vista, desvalorizando o impacto dos seus comportamentos nos outros. Tem um baixo potencial de mudança. Não regista antecedentes criminais.

E, relevantemente, não se provou, que:

1 - A surdez de HH advenha de agressões perpetradas pelo arguido sobre a sua mulher, quando esta estava grávida dele.
2 - Que, no Verão de 2002, FF tenha ingerido comprimidos para se suicidar.
3 - Que o arguido guardava um ferro com 30 centímetros de comprimento por 3 centímetros de diâmetro, com os bordos raspados, na mesinha de cabeceira.
4 - Que, no dia 21 de Abril de 2004, cerca das 12,30 horas, ao ver o seu pai junto da escola a EE se refugiou na casa de banho até ter a certeza que ele já se tinha ido embora.

È a seguinte a fundamentação da decisão de facto:

O tribunal colectivo estribou a sua convicção quanto aos factos que julgou provados e não provados a partir das declarações da ofendida DD e da também ofendida menor EE (no que a esta respeita tomadas para memória futura – constantes a fls. 79/83 e 512/513), dos depoimentos das testemunhas FF, GG e HH, filhos do arguido e JJ, irmã da ofendida DD, conjugados com as perícias (exame à letra da menor EE – fls. 170/175 - que conclui ser «muito provável» que o texto de fls. 176/177 tenha sido por ela redigido; exame médico-legal à menor EE – fls. 213/216 -, que confirmou a existência de lesões traumáticas himenais compatíveis com relações sexuais continuadas com penetração; e avaliação psicológica do arguido – fls. 630/634 – onde se traçam as características da sua personalidade auto-centrada) e os elementos documentais constantes dos autos, nomeadamente a carta de fls. 176/177, que a EE escreveu e entregou à sua mãe (por não encontrar coragem para falar directamente com ela sobre o assunto), as fotografias de fls. 201/203, da perna da EE onde se vê a lesão acusada pela lâmina aquecida do canivete, e este; os registos clínicos das presenças da EE no hospital, em razão de perdas de consciência sem razão aparente e outras ocorrências, 8 vezes entre 2000 e 2003; e da presença da ofendida DD, no hospital em 31.07.2002.

No respeitante à vivência profissional e social do arguido bem assim como em confirmação de alguns traços de personalidade já referidos no relatório pericial citado e no relatório social, relevaram os depoimentos das testemunhas por ele arroladas: KK (estudante, amiga de EE durante o primeiro ciclo de escolaridade), LL (pároco), MM (amigo de infância do arguido), CC mãe do arguido), NN (irmã do arguido), OO (sobrinha do arguido); PP (irmã do arguido), QQ (sobrinha do arguido), RR (amigo do arguido), SS (amigo do arguido) e TT (amiga e colega da EE nos 6º e 7º anos de escolaridade).

Os relatos feitos pelas testemunhas que têm directo conhecimento do acontecido, que são a ofendida DD e os filhos, revelam cada um por si o conhecimento que só tem quem viveu os acontecimentos. Como seria de esperar todos esses depoimentos estão em sintonia, mas revelando os pormenores que são conhecidos apenas de um ou de outro (no caso de DD e de EE), integrados numa lógica que é corroborada pelos elementos documentais e periciais, que torna inabalável e profunda a convicção quanto à verificação dos eventos tal-qualmente foram no essencial acima narrados. Em determinados pontos há mesmo contacto com as declarações produzidas pelo arguido em audiência. Este, apesar de ter negado totalmente ter tido qualquer envolvimento de cariz sexual com a sua filha EE, aceitou ter agredido fisicamente a sua mulher, pelo menos 2 vezes, procurando justificar esses actos com alegada bruxaria que ela fazia em casa contra a vontade dele. Reconheceu mesmo que noutras duas ocasiões pôs a mulher na rua, de noite, apenas com a roupa interior e que muitas vezes os seus filhos se intrometiam nas discussões que tinha com a sua mulher. E no respeitante à EE, quando confrontado com o resultado da perícia médico-legal, limitou-se a dizer que ele é que não foi… Não mostrando nenhuma surpresa, indignação ou sequer curiosidade por saber quem poderia ter sido, ou o que tal poderia ter motivado, em razão designadamente da idade que a menina então tinha.

Estes pontos de contacto entre as provas servem de escora e arrimo seguro aos depoimentos testemunhais referidos, mormente de DD e dos filhos. Mas é destes que ressalta toda a envolvência do ambiente de terror familiar em que o arguido pontifica como carrasco das piores malfeitorias. Poucas vezes se mostra com tamanha clareza como a casa de morada da família pode ser um lugar perigoso. O modo como os filhos mais velhos (FF, GG e HH) falaram do seu pai, descrevendo com profunda mágoa mas com o sentido do dever a vivência familiar, as constantes agressões físicas e verbais à mãe, aos próprios e ao respeito que apesar de tudo foram mantendo pela figura paterna, é só por si elucidativo no que à credibilidade respeita. Mas porque a justiça é um sentimento impregnado na natureza humana e a injustiça encontra limites intransponíveis, embora com a voz embargada estes filhos não puderam calar a torrente que se sintetiza nos factos provados. A gota de água foi o acontecimento da noite de 25 de Abril de 2003, em que tomaram conhecimento do quão longe o arguido era capaz de ir. Mas só mais tarde conheceram a dimensão da tragédia. A EE só praticamente um ano depois conseguiu desabafar e contar à sua mãe o que lhe vinha acontecendo desde os 9 anos de idade. E para o fazer teve de escrever, com as limitações próprias de quem tem aquela idade, não foi capaz de o verbalizar perante ela. Tal escrito consta a fls. 176/177. E mesmo aí foi parcimoniosa. Mais completo é o relato feito nas suas declarações juiz de instrução criminal, para memória futura. E é destes dois, em conjugação com os elementos documentais e periciais referidos, completados com o que foi dito por DD e FF relativamente à noite de 25/4/2003 e à descrição do ambiente familiar feita por todos os membros da família, que se apura a conduta do arguido sobre a sua filha EE.

As circunstâncias relativas à pessoa e condições de vida do arguido decorrem do relatório social elaborado pela DGRS, em sintonia com o que também consta do relatório de avaliação psicológica do arguido e do que foi trazido à audiência pelas testemunhas arroladas pelo arguido.

No que respeita aos factos não provados eles decorrem da circunstância de as provas produzidas os não terem confirmado, pese embora, num ou noutro caso, tenha havido a eles referência. É o caso do ferro a que a EE se refere como instrumento de penetração usado pelo arguido na sua pessoa, mas que a sua mãe disse nunca ter visto. E é também a certeza de que o arguido procurou a sua filha na escola e de que a menor tinha medo de ir ao portão por causa do pai (testemunha TT), mas não houve referência ao dia nem ao refúgio na casa de banho. E a testemunha FF não conseguiu conter as emoções na audiência, não tendo sido capaz de dizer tudo quanto ainda teria para contar, não se referindo assim por exemplo à ingestão de comprimidos.

Os relatórios de exame pericial, certidões dos assentos de nascimento, fotografias, carta, boletins clínicos e as declarações para memória futura referidos constam dos autos, nas folhas indicadas, e as declarações do arguido e os depoimentos testemunhais foram gravados, constando os respectivos registos nas cassetes, nas rotações indicadas na acta.

Os Factos e o Direito:

Antes do mais importa conhecer das questões prévias suscitadas pelo MºPº junto do Tribunal da Relação de Lisboa: (rejeição do recurso por absoluta falta de motivação – o presente recurso não visa o acórdão da Relação, pelo que em nada poderá vir a infirmá-lo; e rejeição do recurso por manifesta improcedência – quanto a questões novas agora suscitadas).

A - Estamos, sem dúvida, perante recurso interposto de acórdão proferido pela Relação.

E, da análise do processo constata-se – como aliás bem refere o MºPº junto do Tribunal da Relação de Lisboa – que o arguido/recorrente AA não suscita ao STJ quaisquer questões que não tenham já sido objecto de conhecimento e decisão no Tribunal da Relação (exceptuada apenas a questão referente à invocada violação dos artigos 50º, 51º, 52º e 53º do CP e do artigo 32º-2 da CRP que, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa não havia sido expressamente invocada e que surge, assim, como “questão nova”).

Na verdade, cotejados os recursos interpostos pelo arguido primeiramente para o Tribunal da Relação e agora para o STJ, verifica-se que o recorrente reequaciona a questão da inadequação das penas parcelares e única que lhe foram aplicadas e a questão dos montantes que foi condenado a pagar a título de danos de natureza não patrimonial, em termos em tudo idênticos aos constantes da motivação do recurso interposto para a Relação, sem que tenha acrescentado algo no sentido de infirmar a fundamentação que, sobre essa matéria, consta do acórdão da Relação.

Porém, não obstante as questões suscitadas pelo recorrente/arguido e que constituem o objecto deste recurso interposto para o STJ já terem sido suscitadas no anterior recurso interposto para o Tribunal da Relação, sendo, no essencial, os mesmos os fundamentos de um e outro recurso, isso não retira qualquer validade ao presente recurso (interposto para o STJ) pois a repetição dos fundamentos de direito desatendidos no anterior recurso (interposto para a Relação) constitui afinal a razão da legitimidade e do interesse em agir do recorrente (cfr. Ac. STJ de 20.07.2005 in Proc. 2531/05 – 3ª; SASTJ nº 93, pág. 97).

É este o entendimento que sufragamos, não obstante se saber da existência de entendimento diverso neste mesmo STJ (cfr. entre outros, os Acs. STJ de 19.04.2007 in Proc. 07P620 e de 12.04.2007 in Proc. 07P516 in www.dgsi.pt.).

Por isso, improcede esta questão prévia (supra referida e respeitante à rejeição do recurso por absoluta falta de motivação) suscitada pelo MºPº.

B - Na conclusão 35º da motivação o recorrente alega que o acórdão recorrido violou os artigos 50º, 51º, 52º e 53º do Código Penal e também o artigo 32º-2 da CRP.

Ora, da análise cuidada da motivação do recurso interposto pelo arguido para a Relação resulta claro que essa questão da violação dos citados preceitos legais não foi de modo algum ali suscitada.

Sendo assim, trata-se, manifestamente, de uma “questão nova” cujo conhecimento está vedado a este STJ.

Na verdade, vem sendo entendido de forma uniforme por este Supremo Tribunal, que os recursos destinam-se a reexaminar questões decididas por jurisdições inferiores.

Não se destinam a obter decisões sobre questões que não foram colocadas àquelas jurisdições, isto é, sobre questões novas (neste sentido, cfr. Ac. STJ de 04.10.2007 in Proc. 07P2433 in www.dgsi.pt, onde são referidos mais os seguintes acórdãos todos do STJ, de 12.07.1989, BMJ 389, 510; de 07.10.1993, in Proc. 43879; de 09.03.1994 in Proc. 43402; de 1205.1994 in Proc. 45100; de 01.03.2000 in Proc. 43/2000; de 05.04.2000 in Proc. 160/2000; de 12.04.200 in Proc. 182/2000; de 28.06.2001 in Proc. 1293/01 – 5ª; de 26.09.2001 in Proc. 1287/01 – 3ª; de 08.11.2001 in Proc. 3142/01 – 5ª; de 16.01.2002 in Proc. 3649/01 – 3ª; de 27.02.2003 in Proc. 255/03; de 02.02.2006 in Proc. 4409/05 – 5ª; e de 20.07.2006 in Proc. 2316/06 – 5ª) e também os Acs. deste STJ: de 09.04.2008 in Proc. 07P1491 in www.dgsi.pt onde se diz que “ …. Os recursos são remédios jurídicos que não se destinam a apreciar questões novas, que não foram colocadas ao tribunal a quo, pelo que não pode ser conhecida a questão da alteração da qualificação jurídica dos factos, que não fazia parte do lote de questões que o recorrente colocara à Relação …”; de 18.04.2007 in Proc. 07P796 in www.dgsi.pt onde se refere “Se as questões apresentadas pelo recorrente no seu recurso para o STJ relativas à aplicação do regime penal especial para jovens e á medida da pena, não integravam o objecto do recurso para a Relação, sendo, por isso, questões novas, não integram os poderes de cognição deste Supremo Tribunal”; de 18.04.2007 in Proc. 07P1032, in www.dgsi.pt, onde se diz “… É entendimento constante do STJ sobre a natureza e função processual do recurso o de que este não pode ter como objecto a decisão de questões novas, constituindo apenas um remédio processual que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objecto de decisão do tribunal de que se recorre: em fórmula impressiva, no recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas que tenham já sido objecto de decisão anterior pelo tribunal a quo e que um interessado pretende ver reapreciadas (v. g. Ac. STJ de 20.12.2006 in Proc. 3661/06 – 3ª). As questões que são submetidas ao tribunal constituem o “thema decidendum”, como complexo de problemas concretos sobre que é chamado a pronunciar-se; os problemas concretos que integram o “thema decidendum”, sobre os quais o tribunal deve pronunciar-se e decidir, devem constituir questões específicas e não razões, no sentido de argumentos, opiniões e doutrinas expostas pelos interessados na apresentação das respectivas posições (v.g. Ac. STJ de 20.12.2006, Proc. 3397/06 – 3ª).

Tendo tudo isto presente e porque o recorrente excluiu do objecto do recurso que ele próprio interpôs para a Relação a questão da eventual violação dos comandos em que a 1ª instância tivesse incorrido, quando deveria – se pretendesse que fosse apreciada por este STJ – ter colocado tal questão á apreciação do Tribunal da Relação, não pode agora suscitar essa questão perante o STJ.

Por isso, procede esta questão prévia suscitada pelo MºPº e supra referida (rejeição do recurso por manifesta improcedência – quanto a questões novas agora suscitadas).

E, por isso também, nesse segmento, o recurso é manifestamente improcedente, pelo que terá de ser rejeitado.

C – 1 - Como decorre do artigo 412º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido, que se define o âmbito do recurso.

É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.

E o conhecimento oficioso pelo STJ verifica-se por duas vias: uma primeira que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º-2 do CPP; e outra que poderá verificar-se em virtude de nulidade de decisão, nos termos do estatuído no artigo 379º-2 do mesmo diploma legal (isto, para além do conhecimento oficioso das nulidades insanáveis – artº 119º do CPP).

Por outro lado, definindo os poderes de cognição deste STJ, estatui o artigo 434º do citado CPP que, sem prejuízo do disposto no artigo 410º-2 e 3, o recurso interposto para este Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

Na verdade, enquanto antes de 01.01.1999 estava estabelecido um sistema de “revista ampliada”, após a reforma da Lei 59/98, de 25 de Agosto, deixou de ser possível recorrer para o STJ com fundamento da existência de qualquer dos vícios referidos nas várias alíneas do artigo 410º-2 do CPP.

Anteriormente, o Supremo tinha poderes de intromissão em aspectos fácticos, mesmo nos casos em que o conhecimento se restringia a matéria de direito, embora de forma mitigada pois o reexame da matéria de facto apenas poderia ter lugar através da análise do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e podendo o recorrente invocar como fundamento do recurso os vícios referidos.

Após a reforma de 1998, o STJ pode ainda conhecer dos vícios do artigo 410º-2 do CPP, não a pedido do recorrente, isto é, como fundamento do recurso, mas por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios – cfr. Acs. deste STJ de 12.09.2007 (que aqui seguimos de perto) in Proc.2583/07 – 3ª; de 17.01.2001, de 25.01.2001, de 22.03.2001, in CJSTJ 2001, I, pág 210, 222 e 257; de 04.10.2001 in CJSTJ 2001, III, 182, de 24.03.2003 in CJSTJ 2003, I, 236, de 27.05.2004 in CJSTJ 2004, II, 209, de 30.03.2005 in Proc. 136/05 – 3ª, de 03.05.2006 in Processos 557/06 e 1047/06, ambos da 3ª secção, de 20.12.2006 in CJSTJ 2006, III, 248, de 04.01.2007 in Proc. 2675/06 – 3ª, de 08.02.2007 in Proc. 159/07 – 5ª, de 15.02.2007 in Processos 15/07 e 513/07, ambos da 5ª secção, de 21.02.2007 in Proc. 260/07 – 3ª, de 02.05.2007 in Processos 1017/07, 1029/07 e 1238/07, todos da 3ª secção e ainda Simas Santos e Leal Henriques, CPP anotado, 2ª edição, II volume, pág. 967, onde se refere: “O considerar-se que não podem invocar-se os vícios do nº 2 do artigo 410º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente, como ocorre no processo civil e é jurisprudência fixada pelo STJ (…)”.

Por outro lado, continua em vigor o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ, de 19.09.1995, in DR I Série-A, de 28.12.1995 e BMJ 450, 71 (acórdão 7/95) que no âmbito do sistema de revista alargada decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º-2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.

Vem isto a propósito porquanto o arguido/recorrente invoca, na respectiva motivação e conclusões (designadamente as constantes dos números 1, 2, 3, 4, 6, 8, 9, 11, 14, 16 e 17) a violação do disposto no artigo 410º-2 do CPP ou seja, neste segmento, invocou os vícios da matéria de facto previstos naquele normativo.

Porém, como decorre claramente do atrás se expôs, o recurso para este Supremo Tribunal é restrito á matéria de direito, embora o STJ possa conhecer dos vícios do artigo 410º-2 do CPP nos termos (supra) referidos: por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer daqueles vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.

Ora, da análise do acórdão recorrido, do respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo (designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo, designadamente em julgamento) não se indicia a existência de qualquer um daqueles vícios.

Na verdade, daquele texto considerado nos termos referidos e indicados no citado artigo 410º-2 do CPP, não se indicia quer a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, quer erro notório na apreciação das provas ou seja erro de que todos se apercebam directamente ou que a decisão esteja eivada de clara contradição insanável na fundamentação.

Isto é, da decisão recorrida, considerada por si só ou conjugada com as regras da experiência comum não se indicia erro grosseiro na decisão da matéria de facto, erro patente, que não escapa à observação do homem de formação média.

Do texto da decisão recorrida considerada nos termos referidos não resulta de forma evidente uma conclusão contrária àquela a que o tribunal chegou.

Aliás, resulta claro da motivação do recorrente que este afinal impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre certos factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo-se o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º do CPP, sendo ainda certo que, no caso em apreço, está bem explícita na decisão recorrida a forma como o Tribunal adquiriu e formou a sua convicção que está bem fundamentada, objectivada e logicamente motivada.

E nem se diga como o MºPº neste STJ que, ficando a matéria de facto sobre o crime de maus tratos a cônjuge limitada á matéria fixada no nº7 dos factos provados (“Numa ocasião, em 31.07.2002, a mulher do arguido, II, recebeu tratamento hospitalar a lesões corporais sofridas no seu corpo por violência doméstica e detectadas no boletim clínico de fls 241 e 242) o acórdão recorrido deveria ter apreciado todos os factos e fundamentar a integração do crime, pelo que foi omisso nesta apreciação.

É que, por um lado, a matéria de facto sobre o crime de maus tratos não ficou limitada, como pretende o MºPº no STJ á matéria provada sob o nº 7.

Também a integram a matéria provada sob os nºs 3, 5 e 6.

E, nessa medida, seria desnecessária aquela apreciação e fundamentação, sendo bastante a constante da decisão da 1ª instância ao referir “ … Provou-se que o arguido vem mantendo com a sua mulher uma relação conflitual, dentro da qual este procura impor a sua vontade por meio da força física e da constante humilhação do seu cônjuge. Provou-se que o arguido agrediu fisicamente a sua mulher, em várias ocasiões e com gravidade. Nas mesmas ocasiões dirigiu-lhe expressões atentatórias da sua honra e dignidade. Procurou humilhá-la também ao maltratá-la na presença dos filhos de ambos. O clima de terror …”.

Por outro lado, considerando que a matéria de facto em causa estaria limitada á factualidade assente no nº7 dos factos provados, mesmo assim o acórdão recorrido tem fundamentação.

Tal fundamentação pode considerar-se ligeira mas existe.

Do acórdão consta expressamente: “… A actual redacção do mesmo artigo 152º do CP na versão da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, dispensa ainda a reiteração da conduta do agente, aliás não pacífica por antes não constar desse tipo de crime. …”.

Também não vemos qualquer erro notório ao fixar-se que “ … em muitas ocasiões (o arguido) não comparecia na empresa, ou porque se envolvia em actividades sindicais e isso o livrava de cumprir horários, ou porque não lhe apetecia trabalhar e então não ia de todo à empresa ou ia apenas numa parte do dia”.

È sabido que as actividades sindicais nem sempre têm lugar na empresa. Podem ter lugar, p. ex. na sede do sindicato.

Por outro lado, uma coisa é não estar sujeito ao cumprimento de horários e outra, diferente, é não trabalhar.

Bem pode suceder que as actividades sindicais tivessem lugar fora do local normal de trabalho e isso acarretava que não comparecesse na empresa. E, por isso, bem poderia suceder que as actividades sindicais pudessem servir de “desculpa” para algumas ausências pontuais do arguido na empresa.

Quanto ao ferro, não vemos contradição entre a matéria provada no nº 13 e a matéria não provada sob o nº 3 e a fundamentação dessa matéria de facto. Pela razão simples de que não é incompatível o uso pelo arguido do dito ferro, que introduzia na vagina da menina e o facto de não se ter provado que o arguido guardava um ferro com 30 cm de comprimento por 3 cm de diâmetro, com os bordos raspados, na mesinha de cabeceira. Da não prova deste facto não resulta que o ferro não exista ou que o arguido não tenha utilizado um ferro com a menina. Uma coisa é a existência do ferro e outra, diversa, é a prova de que o arguido guardava esse ferro na mesinha de cabeceira. E a não prova deste facto decorreu da circunstância de as provas produzidas não o ter confirmado, designadamente do facto de a mãe da menor ter dito nunca ter visto o ferro. Não vemos, portanto, a alegada contradição.

Por isso, se conclui pela inexistência, no douto acórdão recorrido, dos vícios previstos no artigo 410º-2 do CPP.

E, porque, como se disse, o recurso para este Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, não sendo possível recorrer-se para o STJ com fundamento na existência de qualquer dos vícios constantes das três alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP, o recurso não é admissível com este fundamento.

2 - E o mesmo se diga quanto à alegação do recorrente de que a sua condenação - quanto ao crime continuado de abuso sexual de criança – se baseou única e exclusivamente nas declarações para memória futura da menor EE, declarações essas que, em seu entender, não merecem credibilidade ou, no mínimo, são muito duvidosas, atentas as regras da experiência comum que não podem deixar de revelar a dúvida não ultrapassada, quanto á génese dos factos probatórios e à forma como tais factos foram obtidos, sendo que tal dúvida terá de beneficiar o recorrente que terá de presumir-se inocente, beneficiando do princípio “in dúbio pró reo” o qual, sendo um princípio de prova, não é de excluir do poder cognitivo do STJ a indagação do modo como se obteve o acervo factológico em que nas instâncias se assentou a condenação do recorrente e, consequentemente, o poder cognitivo sobre a inerente violação daquele princípio de que o recorrente não pode deixar de beneficiar (conclusões 25ª, 26ª, 29ª a 33ª).

Também desta forma o recorrente põe em causa e pretende o reexame da matéria de facto.

Só que, porque este recurso para o STJ é restrito á matéria de direito, este tribunal apenas pode pronunciar-se sobre a violação do princípio “in dubio pro reo” se do texto do acórdão recorrido resultar que os julgadores tiveram dúvidas sobre a culpabilidade do arguido mas, mesmo assim, decidiram condená-lo (cr. Ac. STJ de 07.12.2005 in SASTJ nº 96, 61).

Ora, não é isso que ocorre no caso em apreço onde a decisão recorrida se mostra devidamente fundamentada, com indicação objectiva e motivada do processo de formação da convicção do tribunal, sendo claro o acervo probatório em que assentou essa convicção o que permite o necessário controlo da sua legalidade e do processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu e a razão de ser do crédito dado àquelas declarações para memória futura que, convém não esquecer, foram prestadas perante o Juiz de instrução e com observância de todos os requisitos legais.

Por isso, nestes segmentos, o recurso é manifestamente improcedente, pelo que terá de ser rejeitado.

Assim:

D - Conhecer-se-á das questõesde direito - suscitadas pelo recorrente e que, face ás conclusões da respectiva motivação (atrás transcritas), são as seguintes:

1 – A factualidade provada não deveria ter sido subsumida ao tipo incriminador do artigo 152º-2 do CP e deveria, quando muito, ser convolada para o tipo legal do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º-1 do CP?

2 – Porque a assistente só apresentou queixa-crime em 26.04.2003, já havia caducado esse direito quanto a factos ocorridos antes da entrada em vigor da lei 7/2000, de 27 de Maio?

3 – As penas parcelares aplicadas são desproporcionadas e exageradas, devendo ser reduzidas e a sua execução suspensa?

4 – O montante indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais é excessivo?

Decidindo:

1ª Questão: A factualidade provada não deveria ter sido subsumida ao tipo incriminador do artigo 152º-2 do CP e deveria, quando muito, ser convolada para o tipo legal do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º-1 do CP?

Pretende o recorrente que os factos provados não se subsumem à previsão do artigo 152º do CP.

Quanto a este aspecto ficou claramente provado que o arguido mantinha com a mulher uma relação conflituosa procurando aquele impor a sua vontade através da força – quer física – agredindo fisicamente a sua mulher em várias ocasiões e com gravidade, quer moral - através da frequente humilhação do seu cônjuge, dirigindo-lhe ainda, em várias ocasiões, expressões atentatórias da sua honra e dignidade.

Ficou ainda provado que o arguido procurou também humilhar a mulher ao maltratá-la na presença dos filhos de ambos.

O arguido provocou no lar um clima de terror idóneo a causar danos na sanidade mental e/ou psicológica da sua mulher e idóneo a causar medo, angústia, revolta e impotência.

Esse ambiente provocado pelo arguido afectou o direito de sua mulher ao descanso, ao sossego e à tranquilidade que deveria gozar no lar.

É certo que não ficaram provadas com exactidão algumas das datas em que ocorreram episódios de agressões físicas e psíquicas à mulher do arguido, o que não surpreende dado o grande espaço de tempo em que ocorreram e a frequência com que ocorreram.

Mas o importante e essencial é a descrição dos factos concretos imputados e praticados pelo arguido, mesmo que de forma sintética na medida em que isso será suficiente para a organização da defesa constitucionalmente garantida no artigo 32º-1 da CRP.

Ora, para o que aqui importa, ficou provado, designadamente que:

- Praticamente desde o início do casamento, concretamente logo depois do nascimento do GG, o arguido passou a agredir física e verbalmente a sua mulher, desferindo amiúde sobre ela socos, bofetadas e pontapés, em várias partes do corpo, e chamando-a «puta» e outros nomes do mesmo jaez. Em certas ocasiões também lhe assegurava que a mataria.
- Pelo menos duas vezes, sendo já mãe de filhos, o arguido colocou a sua mulher de noite na rua, apenas com a roupa interior, indo esta acolher-se a casa de outros familiares que residiam na mesma rua.
- Em data não concretamente determinada, mas seguramente no Verão de 2002, estando a família reunida em casa, a mulher do arguido, seguindo um ritual religioso, queimou uma pequena porção de açúcar com incenso numa frigideira que colocou no bico do fogão, para dar aroma à casa e benzer os membros da família, como era costume fazer duas ou três vezes por ano, designadamente no Natal e na Páscoa. Chegando-se à beira do arguido para o benzer este afastou bruscamente a frigideira, a qual veio a atingir a sua mulher na testa, continuando depois a agredi-la com pontapés até a fazer cair no chão, arrastando-a depois pelos cabelos. Os filhos foram em socorro da sua mãe e pediram auxílio aos vizinhos.
- Numa ocasião, em 31.07.2002, a mulher do arguido, II, recebeu tratamento hospitalar a lesões corporais sofridas no seu corpo por violência doméstica e detectadas no boletim clínico de fls. 241 e 242
- Em todas as situações o arguido actuou por decisão própria e de acordo com o que queria, consciente de que se dirigia à sua mulher, de que lhe atingia o corpo e lhe provocava dores, que lhe ofendia a honra e consideração, a humilhava, bem como nela criava ansiedade, medo, intranquilidade em casa e perda de auto-estima.
Ora, os factos provados evidenciam claramente e sem quaisquer dúvidas a agressão continuada, quer física, quer psíquica, com início há muitos anos e que continuou depois do ano 2000 (tanto assim que o cônjuge mulher apresentou queixa em 26.04.2003), mesmo depois de 27 de Maio de 2000, data em que a Lei 7/2000, de 27.05, deu nova redacção ao artigo 152º do CP, conferindo natureza pública a tal crime, pelo que o procedimento criminal respectivo deixou de depender da vontade da vítima, evitando o arquivamento de muitos casos em que a vítima desistia do procedimento mas em que se duvidava da verdadeira “vontade” daquela e da “liberdade” com que o fazia.

Aliás, importa não esquecer que o arguido “aceitou ter agredido fisicamente a sua mulher, pelo menos duas vezes” embora tivesse procurado justificar essas agressões “com alegada bruxaria que ela fazia em casa contra a vontade dele” (cfr. fundamentação da matéria de facto).

Acresce que o arguido reconheceu também que noutras duas ocasiões pôs a mulher na rua, de noite, apenas com a roupa interior e que muitas vezes os seus filhos se intrometiam nas discussões que tinha com a sua mulher (cfr. fundamentação da matéria de facto).

Além disso, os filhos mais velhos do casal (FF, GG e HH) descreveram as constantes agressões físicas e verbais do seu pai á sua mãe de que o acontecimento do dia 25 de Abril de 2003 foi a gota de água (cfr. fundamentação da matéria de facto).

Portanto, como se disse, os factos provados evidenciam claramente e sem quaisquer dúvidas a agressão do arguido ao seu cônjuge, agressão essa continuada, quer física, quer psíquica, com início há muitos anos e que continuou depois do ano 2000.

Ora, até à entrada em vigor da lei 59/2007, de 04 de Setembro (que manteve a incriminação e a moldura penal respectiva), o crime de maus tratos pressupunha, em regra, uma reiteração de condutas.

Por isso, o arguido foi acusado da prática de um único crime de maus tratos ao cônjuge, previsto e punível pelo artigo 152º - 2 do CP.

Porém, face à nova redacção dada pela citada lei 59/2007, de 04.Setembro, o referido crime pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas (“Quem, de modo reiterado ou não …– citado artigo 152º-1) embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencherá o tipo de ilícito (cfr. Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Almedina, 2005, pág. 106/107; e Ac STJ de 247/4/2006, in Proc. 06P975 – cfr. www.dgsi.pt).
Ora o artigo 152º do CP responde à necessidade que se fazia sentir de punir penalmente os casos mais chocantes de maus tratos na violência doméstica. Neste crime protege-se a saúde física e mental do cônjuge, sendo que esse bem pode ser violado por todo o comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge, designadamente por ofensas corporais simples. Neste crime protege-se a dignidade humana, em particular a saúde, aqui se compreendendo o bem estar físico, psíquico e mental (cfr. Acs. do STJ de 30.10.2003 in CJSTJ, XI, tomo 3, 208; e de 04.02.2004 in Proc. 2857/03 – 3ª).

No caso em apreço e como se viu, ficou provada não só uma conduta reiterada e violenta do arguido para com a mulher (e os filhos) – as agressões físicas e verbais começaram praticamente desde o início do casamento e continuaram quer quando, pelo menos por duas vezes o arguido pôs a mulher fora de casa, á noite, só com a roupa interior, quer novas agressões no Verão de 2002, quer ainda posteriormente, tendo a ofendida apresentado queixa em Abril de 2003 - mas (provaram-se) também concretas agressões à mulher no Verão de 2002 e, pelo menos por duas vezes, a colocação desta fora de casa, na rua, de noite, apenas com a roupa interior, pelo que (a mulher) teve de se acolher em casa de familiares que viviam na mesma rua, pelo que não há dúvida que os factos provados se subsumem à previsão do citado artigo 152º- 1 e 2 do CP na redacção anterior à Lei 59/2007, de 04.Setembro, não havendo que considerar as agressões praticadas pelo arguido no Verão de 2002 como os únicos factos criminosos e autonomizá-los de todo o comportamento anterior do arguido para com a mulher e considerar que apenas cometeu um crime de ofensa à integridade física, como pretende o recorrente.

É que, como se disse, aquelas agressões surgem na continuação do comportamento agressivo do arguido para com a mulher, constituindo como mais uma agressão física – e não apenas a única agressão – na sequência de socos, bofetadas e pontapés que o arguido lhe desferia amiúde, em várias partes do corpo, praticamente desde o princípio do casamento, concretamente logo após o nascimento do filho GG, como está provado.

É certo que, como se disse, não foi possível provar as datas exactas de todas as agressões praticadas pelo arguido na pessoa do seu cônjuge.

Mas provaram-se as agressões físicas e verbais, cometidas amiúde, desde 1976 (após o casamento e nascimento do filho do arguido e do seu cônjuge DD); provou-se também que pelo menos por duas vezes o arguido pôs o cônjuge fora de casa, na rua, à noite, só com a roupa interior; e provou-se ainda que no Verão de 2002 o arguido voltou a agredir a mulher.

Estes factos só por si já revelam uma conduta violenta e reiterada do arguido para com a sua mulher, violadora da saúde física e mental desta e da dignidade humana, o que seria suficiente para subsumir a conduta do arguido na previsão do artigo 152º-1 e 2 do CP na redacção anterior à dada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.

O facto de se terem provado – como provou - outras agressões físicas (socos, pontapés, bofetadas) e agressões verbais (chamando-lhe “puta” e outros nomes do mesmo jaez) praticadas amiúde pelo arguido contra a mulher, sem se ter conseguido apurar a data exacta da respectiva prática, não obsta à prova dessas (outras) agressões, sendo certo que isso não impede o direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrado na medida em os factos essenciais – as agressões – já constavam da acusação e as datas exactas da prática das mesmas são factos que não são indispensáveis para a concretização do crime.

Portanto, concluímos que os factos provados não podem deixar de se subsumir à previsão do citado artigo 152º- 1 e 2 do CP na redacção anterior à Lei 59/2007, de 04.Setembro

Por isso, quanto a este aspecto, a decisão recorrida não merece censura.

2ª Questão: Porque a assistente só apresentou queixa-crime em 26.04.2003, já havia caducado esse direito quanto a factos ocorridos antes da entrada em vigor da lei 7/2000, de 27 de Maio?

A assistente DD apresentou queixa-crime contra o arguido no dia 26.04.2003 e está provado que o arguido casou com DD no dia 26.07.1976 e que, praticamente desde o início do casamento – mais concretamente logo depois do nascimento do filho GG o arguido passou a agredir física e verbalmente a sua mulher desferindo amiúde sobre ela, socos, bofetadas e pontapés em várias partes do corpo, chamando-a “puta” e outros nomes do mesmo jaez. Também lhe assegurava que a mataria.

O crime de maus tratos ao cônjuge passou a estar previsto no Código Penal, no artigo 153º-3, na redacção dada pelo DL 400/82, de 23 de Setembro.

E, tal normativo não exigia a queixa do ofendido. Por isso, tal crime revestia a natureza de público.

Porém, nos termos do artigo 152º-2 do CP na redacção dada pela Lei 35/94 de 15 de Setembro, o procedimento criminal (relativo ao crime de maus tratos a cônjuge) passou a depender de queixa. Aquele preceito legal era expresso quanto a esse aspecto. Quer dizer que tal crime passou a revestir a natureza de semi-público.

Com a revisão operada pelo DL 48/95, de 15 de Março e alterações posteriormente introduzidas pela Lei 65/98, de 02 de Setembro, o procedimento criminal pelo referido crime continuou a depender de queixa, mas o MºPº podia dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse e não houvesse oposição do ofendido antes de ser deduzida acusação (cfr. artigo 152º-2 in fine, do CP na redacção indicada).

Isto é, o crime continua, em regra, a assumir a natureza de semi-público mas passou a assumir a natureza de público sempre que o interesse da vítima o impuser, caso em que o MºPº tem o poder/dever de dar início ao procedimento, para o que fica dotado da necessária legitimidade. Será normalmente o caso de haver constrangimento da vítima, para que não apresente queixa. Pretendeu o legislador ir de encontro à vontade real e profunda da pessoa ofendida mas que esta, por temor ou outros factores inibitórios, se abstinha de expressar através da queixa, reservando-lhe porém a última palavra até ser deduzida acusação (cfr. Maia Gonçalves in CP anotado, 1999, pág. 523).

Com a Lei 7/2000, de 27 de Maio, o crime passou a revestir novamente a natureza de público, sendo que a nova redacção veio responder à necessidade que se fazia sentir de punir penalmente os casos mais chocantes de maus tratos, designadamente em cônjuge e equiparado, deixando de ser exigido o dolo específico (na versão originária exigia-se que o autor/agente agisse por malvadez ou egoísmo), sendo bastante o dolo genérico.

Na redacção actual, dada pela Lei 59/2007, de 04 de Setembro o crime mantém a natureza de público; deixa de ser imprescindível uma continuação criminosa; há uma agravação do limite mínimo da pena se o facto for praticado na presença de menores ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente; e foram acrescentadas penas acessórias.

Daqui decorre que tendo a ofendida casado em 1976, o crime em questão não estava expressamente previsto no Código Penal pelo que haveria de apurar-se se a conduta concreta do agente se subsumia ou não, á previsão de qualquer outra norma daquele código, integrando designadamente, crimes de ofensas corporais voluntárias, injúrias, difamação ou outro(s).

Só a partir da revisão operada pelo DL 400/82, de 23 de Setembro é que o crime de maus tratos ao cônjuge passou a estar especificamente previsto no CP, no artigo 153º-3.

E revestia a natureza de crime público.

Sendo assim, pelo menos após Setembro de 1982 e até Setembro de 1994 o procedimento criminal não dependia de queixa do ofendido, sendo que só a partir dessa data é que o crime passou a revestir a natureza de semi-público. Mas apenas até Março de 1995 pois a partir de então o MºPº podia dar início ao procedimento embora o cônjuge ofendido pudesse opor-se até ser deduzida acusação. Se o não fizesse, o processo prosseguia.

E após Maio de 2000 o crime passou a revestir a natureza de público.

Por isso, durante a maior parte do tempo que durou o casamento da ofendida, o procedimento criminal pelo crime de maus tratos ao cônjuge não dependia de queixa, situação que se verificava á data da queixa apresentada pela assistente (26.04.2003).

Sendo assim, como era, o facto de esta ter declarado desistir dessa queixa nas declarações que prestou em 06.06.2003 (fls. 32) é de todo irrelevante juridicamente e ineficaz.

Daí que, sendo o crime público, é inaplicável o estatuído no artigo 115º quanto à extinção do direito de queixa, sendo aplicáveis os prazos de prescrição do procedimento criminal referidos no artigo 118º do CP que, obviamente ainda não tinham decorrido á data da apresentação da queixa pela assistente (26.04.2003) dado que, como decorre dos factos provados, alguns dos factos integradores do crime de maus tratos ocorreram seguramente no Verão de 2002.

Em face do exposto, improcede esta 2ª questão, razão por que o recurso improcede com este fundamento.

3ª Questão: As penas parcelares aplicadas são desproporcionadas e exageradas, devendo ser reduzidas e a sua execução suspensa?

O arguido AA foi condenado na pena de três anos e seis meses pelo crime de violência domestica p. e p. no art. 152, nº1 e 2, e por um crime continuado de abuso sexual de menor agravado p. e p. nas disposições conjugadas dos arts. 172, nº 2, 177, nº1 alínea a), 30, nº2 e 79 do Código Penal, na redacção anterior à Lei 59/2007, de 4 de Setembro na pena de doze anos de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única de catorze anos de prisão

O arguido entende não dever a pena pelo crime p. p. no art. 152, nº1 e 2, ser superior a 1 ano de prisão e suspensa na sua execução por igual período; e que a pena pelo crime de abuso sexual de menor agravado continuado, não deve ser superior a 4 anos, suspensa na sua execução.

Fundamenta essa pretensão na sua personalidade, no facto de não ter antecedentes criminais e haverem já decorrido 6 anos sem que tenha noticia de que desrespeitou as normas sociais vigentes, estando inserido na sociedade, sendo certo que a suspensão da execução da pena incide sobre a pena unitária em caso e por imposição legal ( art. 77º do Código Penal) do próprio cumulo jurídico das penas.

Quid juris?

Desde a entrada em vigor do DL nº 48/95, o crime de violência doméstica p. e p. no art. 152, nº1 e 2, do Código Penal, passou a ser sancionado com pena de prisão de 1 a 5 anos.

Quanto ao crime de abuso sexual de menor, o Código Penal na redacção do DL nº 48/95, de 15 de Março, dispunha que:

Artigo 172 (Abuso sexual de crianças)

1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2 - Se o agente tiver cópula ou coito anal com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

Artigo 177 (Agravação)

1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:

a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela;

O Código Penal, na redacção do DL nº 65/98 de 25 de Agosto, dispunha que

Artigo 172º

1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2 - Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

Artigo 177º (Agravação)

1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:

a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela; ….

O Código Penal, na redacção do DL 59/2007, de 4 de Setembro, dispõe que

Artigo 171º (Abuso sexual de crianças)

1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

Art. 177º

1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:

a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ….

Assim também desde a entrada em vigor do DL nº 48/95, o crime de abuso sexual de menor agravado p. p. nos arts. 172, nº2 e 177, nº1 a) do Código Penal é punido com prisão de 4 (quatro) anos a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses.

Actualmente, todos estão de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis.

Porém, há quem defenda que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade, estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista.

Outros ainda, distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa, estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção.

Mas a determinação, dentro daqueles parâmetros, do “quantum” de pena, o recurso de revista seria inadequado.

Só assim não será – e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, p.ex, tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada (cfr. Figueiredo Dias in Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, pág.211; e Ac. deste STJ, 3ª Secção, in Proc. 2555/06).

Sobre esta questão deve dizer-se desde já que, tendo em conta os parâmetros legais de determinação da medida concreta da pena e as molduras penais abstractamente aplicáveis e ainda todas as circunstâncias relevantes para a determinação da medida concreta daquela (artigos 40º-1 e 2 e 71º-1 e 2, do C. Penal), as penas parcelares e única aplicadas parecem-nos um pouco elevadas.

Nos termos do artigo 71º nº 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.

Daí que não haja pena sem culpa - nulla poena sine culpa.

Mas, por outro lado, a culpa constitui também o limite máximo da pena – (cfr. Ac STJ de 26.10.00 in Proc. 2528/00, desta 3ª Secção: “a culpa jurídico-penal traduz-se num juízo de censura que funciona, a um tempo, como um fundamento e um limite inultrapassável da medida da pena”.

Isto mesmo resulta claro do estatuído no artigo 40º-2 do CP: em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Além disso, como se disse, há que atentar nas exigências de prevenção, quer geral, quer especial.

Com o recurso à prevenção geral busca-se dar satisfação aos anseios comunitários da punição do caso concreto, tendo em atenção de igual modo a necessidade premente da tutela dos bens e valores jurídicos.

Com o apelo à prevenção especial aspira-se em conceder resposta às exigências da socialização (ou ressocialização) do agente delitivo em ordem a uma sua integração digna no meio social” – Cfr. Ac. desta 3ª Secção deste Supremo Tribunal, de 26.10.00, in processo nº 2528/00, supra citado.

Citando Figueiredo Dias (obra supra citada, pág. 214) “ … a culpa e prevenção são, assim, os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena”.

E, mais adiante (pág. 215) “ …a exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limita de forma inultrapassável as exigências de prevenção …”.

A este respeito, é pertinente citar aqui o acórdão do STJ de 1/03/00, in processo nº 53/2000, desta 3ª Secção “ … a culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, os seus limite mínimo e máximo absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir. A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade da protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo, este logicamente não pode ser outro que não o mínimo da pena que, em concreto, ainda realiza, eficazmente, aquela protecção … se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e, se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal – a moldura da pena legal aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social …”.

Por seu turno, estatui o nº 2 do mesmo artigo 71º do CP que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Voltando ao caso em apreço, importa, desde logo, ter em atenção a moldura penal correspondente aos crimes praticados pelo arguido/recorrente (tendo-se em atenção, por um lado, a opção feita na decisão recorrida e que não é posta em causa no recurso, de aplicação de pena privativa de liberdade; e, por outro lado, que não foi suscitada qualquer questão relativa à aplicação da lei no tempo):

Relativamente à ofendida/assistente DD, um crime de maus tratos a cônjuge, da previsão do artigo 152º-1 e 2 do Código Penal (na redacção anterior à Lei 59/2007, de 04/09): prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos;

Relativamente à ofendida EE, um crime continuado de abuso sexual de criança, agravado, da previsão dos artigos 30º-2, 79º, 172º nº 2 e 177º-1-a), todos do Código Penal: prisão de 4 (quatro) anos a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses.

Todos os referidos aspectos foram tidos em conta na decisão recorrida, como consta claro do respectivo texto.
Além disso, foram tidos em conta os factos concretos:
No 1º caso, quanto á assistente/ofendida DD há ainda que ter em atenção que a culpa do arguido deverá ser considerada um pouco superior á média; sendo ainda de atentar que foram várias as agressões físicas e psicológicas que o arguido praticou em relação á sua mulher; o modo como o arguido praticou tais agressões físicas (desferindo-lhe amiúde, socos, bofetadas e pontapés em várias partes do corpo; pelo menos por duas vezes pôs a mulher fora de cãs, na rua, à noite, só com a roupa interior; no Verão de 2002 agrediu a mulher na testa com uma frigideira, continuando depois a agredi-la com pontapés até a fazer cair no chão, arrastando-a depois pelos cabelos, na presença dos filhos que foram em socorro da mãe e pediram auxílio aos vizinhos; a ofendida recebeu tratamento hospitalar em 31.07.2002 a lesões que sofreu no seu corpo por violência doméstica) e verbais (chamando-lhe “puta” e outros nomes do mesmo jaez e chamando “puta loura” á filha de ambos FF e “surdo” ou “mouco” ao filho de ambos HH (que tem uma deficiência auditiva); e o tempo (vários anos) durante o qual o arguido manteve tal conduta, sendo que enquanto esteve casada com o arguido, a DD levou uma vida triste, sentindo medo de viver na própria casa, o que só terminou com a separação em 2003.
No 2º Caso, quanto à filha EE, deve ter-se em atenção que o arguido começou a abusar da EE quando esta tinha apenas 9 anos de idade; o tempo durante o qual foi mantendo esses contactos de natureza sexual com essa filha menor (vários anos); o facto de esses contactos ocorrerem no lar, na casa de morada da família onde as crianças – em princípio – se sentem mais protegidas; do modo como agia (refinado, chegando a utilizar uma lâmina de navalha aquecida e a imobilizar a vítima amarrando-a, abafando-lhe os gemidos de dor e protestos com as mãos ou com pedaços de roupa e amedrontando-a, sendo que após os 10 anos de idade da EE, já menstruada e tomando a pílula sob prescrição médica para regularizar aquele ciclo, o arguido passou a manter relações de cópula completas com aquela sua filha, por vezes amarrando os pés dela à grade da cama com atilhos e na sala prendia-lhe as mãos e os pés á mesa ou ao sofá); sempre visando exclusivamente a sua satisfação sexual, sem olhar a meios; a personalidade do arguido (que o tornam o centro de tudo o que o rodeia e desvaloriza o sofrimento dos outros); o arguido conhecia a idade da EE, sua filha e sabia bem que a sua conduta – para satisfazer os seus desejos sexuais – era proibida e punida por lei; a menor tinha pesadelos e acordava a meio da noite, assustada; o arguido sabia bem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei; a EE vive com receio de encontrar o pai e tornou-se uma pessoa triste, revoltada e desconfiada.
Além disto, há ainda que ter em conta que:

O dolo do arguido é directo e intenso;

Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, previstas nos artigos 31º a 39º do Código Penal;

O grau de ilicitude dos factos é elevado (considerando os elementos que já fazem parte dos tipos de crime), tendo em conta as circunstâncias em que os mesmos ocorreram, em situações de particular vulnerabilidade (sobretudo quanto à menor EE pois sendo o arguido seu pai, tinha, por isso, natural ascendente sobre ela).

O arguido não tem antecedentes criminais;

A integração social do arguido;

A postura do arguido em audiência de julgamento: negou totalmente ter tido qualquer envolvimento de cariz sexual com sua filha EE e quando confrontado com o resultado da perícia médico-legal limitou-se a dizer que ele é que não foi, não mostrando surpresa, indignação ou sequer curiosidade por saber quem teria sido ou o que poderia ter motivado aquilo, face á idade que a EE tinha então.

E, relativamente á mulher DD, aceitou tê-la agredido fisicamente, pelo menos duas vezes, procurando justificar essas agressões com alegada bruxaria que sua mulher fazia em casa contra a vontade dele; reconheceu que noutras duas ocasiões pôs a mulher na rua, de noite, apenas com a roupa interior e que muitas vezes os filhos se intrometiam nas discussões que tinha com sua mulher.

Finalmente, foram também consideradas as elevadas necessidades de prevenção, particularmente de ordem geral, que se fazem sentir neste tipo de ilícitos, face ás características do meio social em causa, que sendo algo permissivo em matéria de costumes precisa ver sancionados e severamente, os comportamentos desviantes que rompem de forma profunda os compromissos ético-sociais, o que aconteceu quer no caso dos maus tratos á sua mulher, quer nos abusos sexuais á filha menor EE.

Quanto às necessidades de prevenção especial foram igualmente ponderadas, tendo-se considerado igualmente elevadas face à personalidade do arguido que desvaloriza o impacto do seu comportamento nos outros e o ter um baixo potencial de mudança o que significa que o arguido não só ainda não interiorizou o desvalor da sua conduta como continua a representar um perigo para repetir actos do mesmo género, desde que tenha para isso oportunidade. O arguido revela-se pessoa com frieza de ânimo e calculista.

Há, porém, que ter também em atenção que (como consta do relatório social e avaliação psicológica) que “o arguido desenvolveu a sua personalidade num ambiente familiar caracterizado pelo autoritarismo e rigidez do progenitor, o qual frequentemente recorria a punições físicas dos filhos quando estes não cumpriam as regras impostas. O papel desempenhado pela mãe era de submissão. O arguido estabeleceu uma forte identificação a este pai agressor, que se tornou para si um modelo a reproduzir, principalmente a nível familiar”

Os factos provados, praticados pelo arguido são, inquestionavelmente, bastante graves, tendo até em conta as consequências dos mesmos não só em toda a família, mas em particular na sua mulher DD e sobretudo na filha menor EE.

E, se é certo que a reintegração social do arguido deve ser tida em conta, também não pode esquecer-se que, quer os crimes de maus tratos a cônjuge, quer os crimes de natureza sexual, praticados contra menores, são frequentes com graves consequências na vida de cada uma das vítimas.

Do exposto se conclui que as necessidades de prevenção geral e especial são elevadas em ambos os casos.

Acresce que os efeitos e consequências de tais crimes, sobretudo no que respeita às ofendidas, perduram no tempo, isto é, não são crimes cujo decurso do tempo apague facilmente as respectivas consequências.

O crime de abuso sexual de criança visa “proteger a autodeterminação sexual das crianças … face a condutas de natureza sexual que em consideração da pouca idade da vítima e o não total desenvolvimento da personalidade, podem mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade” – (cfr. Ac. STJ de 15.07.2007, Proc. 1133/07-5ª).

Daí que, embora tenham decorrido já cerca de 6 anos sobre a data da prática dos últimos factos, a verdade é que as consequências dos crimes em causa não desaparecem facilmente com o decurso do tempo.

É certo que o arguido trabalha regularmente numa gráfica onde aufere um salário mensal de cerca de € 730,00.

Paga uma pensão de alimentos á filha ainda menor, de € 100,00, cabendo o exercício do poder paternal á sua ex-mulher e mãe da menor.

Frequentou a escola e concluiu a 4ª classe com 12 anos de idade.

Começou por trabalhar na agricultura, depois numa mercearia e aos 14 anos foi trabalhar para a gráfica onde ainda agora trabalha.

Após a separação conjugal, o arguido foi viver para casa de sua mãe, com esta e com um irmão do arguido com 42 anos de idade.

Estes factos, conjugado com o decurso de tempo decorrido desde a prática dos crimes destes autos e com a situação económica do arguido, justificam, face ao tipo e à gravidade dos crimes cometidos e às necessidades de prevenção geral e especial e às demais circunstâncias atrás referidas a aplicação de penas parcelares e única rigorosas e exemplares, mas não tão elevadas quanto as aplicadas.

Sendo assim, relativamente ao crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º-1 e 2 do CP (na redacção anterior à Lei 59/2007, de 04 de Setembro) - cuja moldura penal, como se disse, é de prisão de 1 a 5 anos – impõe-se a aplicação duma pena de 1 ano de prisão; e, relativamente ao crime continuado de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos artigos 30º-2, 79º, 172º e 177º-1-a), todos do CP (também na redacção anterior à Lei 59/2007, de 04 de Setembro) - cuja moldura penal é de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses – impõe-se a aplicação de uma pena de 8 anos de prisão.

Procedendo ao cúmulo jurídico das penas agora aplicadas, nos termos do artigo 77º-1 e 2 do Código Penal, tendo em conta os factos no seu conjunto e a personalidade do arguido, condena-se este, na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão

Na verdade, tendo a moldura penal da pena aplicável em cúmulo, o limite mínimo de prisão de 8 anos (a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes) e o limite máximo de prisão de 9 anos (a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes), a pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão revela-se justa e equilibrada.

Resta dizer que tendo sido aplicado o regime do CP anterior á Lei 59/2007, de 4 de Setembro deve tal regime ser aplicado em todos os seus aspectos e não apenas em aspectos pontuais, designadamente aqueles que, em concreto, se mostrassem mais favoráveis ao arguido.

Sendo assim, porque estamos perante pena superior a 3 anos de prisão o citado regime penal aplicado e aplicável, impede a suspensão da execução dessa pena.

Portanto, neste segmento, o recurso procede em parte.

4ª Questão: O montante indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais é excessivo?

Alega o recorrente que o montante fixado é excessivo (conclusão 39ª da respectiva motivação).

Só que, por um lado, nem indica as razões da sua discordância, nem indica o montante que reputa justo.

Pois bem, como o recorrente não questiona a condenação em indemnização por danos de natureza de não patrimonial – apenas discordando do montante fixado – é este aspecto que tem de apreciar-se.

Quanto a estes danos (não patrimoniais) rege o artigo 496º do Cód. Civil, de onde resulta que são indemnizáveis os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.

A gravidade do dano deve medir-se por um padrão objectivo (devendo, porém, considerar-se as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos.

Assim, são geralmente considerados danos não patrimoniais relevantes, a dor física, a dor psíquica, a ofensa à honra ou reputação do indivíduo, o desgosto pelo atraso na conclusão de um curso ou de uma carreira – cfr. Pires de Lima e A. Varela in C. Civil anotado (anotação artigo 496º).

O dano não patrimonial tem por objecto um interesse não avaliável em dinheiro.

Na determinação do quantum indemnizatório – nº 3 do citado artigo 496º – deve atender-se ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica do lesante e do lesado e demais circunstâncias do caso.

Esta indemnização deve, pois, ser adequada à gravidade do facto ou dano, tomando em conta todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.

Esta indemnização, além de sancionar o lesante pelos factos que praticou e que causaram danos a terceiro, visa permitir atenuar, minorar e de algum modo compensar o lesado pelos danos que sofreu, permitindo-lhe a satisfação de várias necessidades de teor monetário.

Visa compensar o lesado, na medida do possível, das dores e incómodos que suportou e se mantêm, assim como da situação de debilidade física resultante dos factos (neste sentido, cfr. Ac. STJ de 26.01.94, in CJ Acs. STJ, Tomo II, pág.67).

E, porque neste tipo de danos é evidente a impossibilidade de reparação natural dos mesmos, no cálculo da respectiva indemnização deve recorrer-se à equidade, tendo em conta, como se disse, os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as circunstâncias do caso (supra citado artigo 496º-3 do CC).

No caso em apreço, resulta da matéria de facto assente (que aqui nos dispensamos de repetir) que a assistente DD, ex-mulher do arguido foi vítima de agressões (físicas e psicológicas) e humilhações, pelo que sofreu dores, teve ansiedade, medo e intranquilidade em casa, com perda de autoestima, o que só terminou com a separação conjugal que aconteceu em 2003.

Por isso, estes danos sofridos pela assistente – graves e relevantes - não podem deixar de considerar-se merecedores da tutela do direito.

As instâncias fixaram em € 10.000,00 o montante da indemnização a arbitrar á demandante/assistente, a título de danos não patrimoniais, montante que se nos afigura um pouco excessivo.

Por isso, tendo em atenção os factos provados, designadamente atendendo ás dores, ás agressões, ás humilhações e ás sequelas delas resultantes para a referida ofendida, afigura-se-nos justa uma indemnização de € 5 000,00.

Daí que, nesta parte, se altere a indemnização arbitrada, fixando-se agora a indemnização de € 5 000,00.

Relativamente à ofendida menor, filha do arguido, EE, sofreu agressões físicas e psicológicas gravíssimas, com sequelas de enorme gravidade quer ao nível da saúde – física e psicológica – quer ao nível da sua auto-estima. Ela foi vítima silenciosa, ao longo de vários anos, de abusos sexuais praticados pelo pai, que lhe provocaram pesadelos, acordando assustada durante a noite e a tornaram numa pessoa triste, revoltada e desconfiada, tendo receio de sair de casa e vir a encontrar o pai. Tais sequelas manter-se-ão, seguramente, durante muito tempo.

Esses danos sofridos pela menor demandante EE – muito graves e muito relevantes têm, obviamente, tutela jurídica.

As instâncias fixaram em € 20.000,00 o montante da indemnização a arbitrar á demandante EE, a título de danos não patrimoniais, (montante que aquela peticionou).

Inexistem factos ou razões que justifiquem a sua alteração.

Daí que se mantenha tal montante.

Por isso, neste segmento, o recurso procede em parte.

Decisão:

Nos termos expostos:

1- Rejeita-se o recurso no segmento respeitante à matéria de facto e aos alegados vícios da mesma; e no segmento respeitante á questão nova suscitada.
2- Na parte criminal, concede-se parcial provimento ao recurso no segmento respeitante à medida das penas e, em consequência, nesta parte, revoga-se o acórdão recorrido, condenando-se o arguido:
a) - Como autor material de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo artigo 152º-1 e 2 do CP (na redacção anterior à Lei 59/2007, de 4 de Setembro), na pena de 1 (um) ano de prisão.
b) - Como autor material de um crime de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 30º-2, 79º, 172º e 177º-1-a), todos do CP (na redacção anterior à Lei 59/2007, de 4 de Setembro), na pena de 8 (oito) anos de prisão.
c) - Em cúmulo jurídico das penas agora aplicadas, condena-se o mesmo arguido AA, na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
3 – Na parte cível concede-se parcial provimento ao recurso e, em consequência, fixa-se em € 5 000,00 a indemnização a pagar pelo arguido à demandante civil DD, a título de danos de natureza não patrimonial.

4 – No mais, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs – arts. 513º-1 e 2 e 514º-1, do CPP e 87º do CCJ.

Mais vai condenado no pagamento de 3 UCs – art.º 420.º- 3, do CPP.

Custas do pedido cível pelo arguido e demandante civil DD, na proporção do decaimento.

Lisboa, 12 de Março de 2009

Fernando Fróis (Relator)
Henriques Gaspar