Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A2355
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
HIPOTECA VOLUNTÁRIA
Nº do Documento: SJ200511080023556
Data do Acordão: 11/08/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8333/04
Data: 01/13/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1 - Os privilégios imobiliários gerais de que gozam os créditos dos trabalhadores, previstos no art.º 12º da Lei dos Salários em Atraso (Lei 17/86) não preferem sobre o crédito de terceiro garantido por hipoteca, mesmo depois da entrada em vigor da Lei 96/01, de 20 de Agosto.
2 - São privilégios creditórios que por analogia se enquadram na previsão do art.º 749º e não do art.º 751º, ambos do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Por sentença de 3.3.02, transitada em julgado, foi declarada a falência de "A", Ld.ª, abrindo-se posteriormente concurso de credores em que nenhum dos créditos reclamados sofreu impugnação.
No saneador-sentença de 21.1.03, rectificado por despachos de fls. 204 e fls 251, fixou-se a data da falência em 7.1.00, graduando-se os créditos verificados pela ordem seguinte:
1º - O crédito reclamado pela Gestora Judicial, relativamente a todos os bens da massa falida;
2º - O crédito reclamado pelos credores trabalhadores, indicados sob os nºs 1 e 5 a 11;
3º - O crédito reclamado pelo C, reconhecendo o montante de 566.798,41 € (art.º 19 do CPEREF), com referência à fracção autónoma designada pela letra "A", do prédio descrito na CRP de Odivelas, sob o n.º 954/120686, da freguesia de Odivelas;
4º - Havendo remanescente após o referido pagamento e na ordem indicada, os restantes créditos comuns reclamados devem ser satisfeitos proporcionalmente.
O C apelou, mas sem êxito, pois a Relação de Lisboa julgou o recurso improcedente.
Mantendo-se inconformado, o C interpôs recurso de revista, formulando as seguintes conclusões no fecho da alegação:
1ª - O acórdão em crise carece de fixar o montante do crédito privilegiado do Banco recorrente, deixando de se pronunciar sobre esta questão suscitada no recurso de apelação, pelo que é nulo nos termos da alínea d) do artigo 668.º do CPC.
2ª - A sentença de graduação de créditos recorrida graduou incorrectamente, salvo o devido respeito, os créditos dos ex-trabalhadores da falida, ao considerá-los com preferência sobre o produto da venda do imóvel dado de hipoteca, em detrimento dos créditos garantidos por hipoteca no que a esse bem imóvel diz respeito.
3ª - O acórdão da Relação de Lisboa, ao confirmar a decisão de 1.ª instância, viola o disposto nos art.ºs 686º, n.º 1 e 749º, ambos do CC.
4ª - O art.º 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, interpretado no sentido de que o privilégio imobiliário nele conferido prefere à hipoteca, nos termos do art.º 751º do CC é inconstitucional, por violação do art.º 2.º da CRP, tendo sido julgado como tal pelo Tribunal Constitucional o preceito correspondente, constante do art.º 11.º do DL n.º 103/80, de 9 de Maio, no acórdão 160/2000, de 22 de Março, 3.ª secção, publicado no DR II série, de 10.10.2000.
5ª - Tal inconstitucionalidade resulta do facto da referida norma instituir um ónus oculto que lesa a fiabilidade que o registo predial merece, afectando as legítimas expectativas dos credores hipotecários e, assim, o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, constituindo, ainda, uma lesão desproporcionada do comércio jurídico.
6ª - Como norma inconstitucional que, nesse sentido, é, encontra-se vedada a sua aplicação, devendo ser revogada a douta sentença de graduação de créditos recorrida e substituída por outra que gradue os créditos garantidos por hipoteca à frente dos créditos dos ex-trabalhadores da falida no que ao produto da venda dos imóveis onerados com hipoteca diz respeito.
7ª - Com a criação legal de privilégios imobiliários gerais, o art.º 751.º do CC deverá ser objecto de uma interpretação restritiva, considerando-se que apenas os privilégios imobiliários especiais preferem à hipoteca, sob pena de incompatibilidade com o n.º 1 do art.º 686º do mesmo Código, onde se determina que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
8ª - A interpretação subjacente à sentença recorrida, para além de ir contra o n.º 1 do art.º 686º do CC, trata o privilégio imobiliário geral como um verdadeiro direito real de garantia, natureza que a lei e o direito não lhe conferem.
9 -ª O privilégio imobiliário geral conferido pelo referido preceito não prefere à hipoteca, pelo que os créditos garantidos por esta deverão ser graduados em primeiro lugar.
Com base nestas conclusões o recorrente pede a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que reconheça o montante do crédito privilegiado de que é titular, no valor de 600.064,45 €, graduando-o com preferência sobre os créditos dos ex-trabalhadores da falida pelo produto da venda do bem imóvel onerado com hipoteca a seu favor.
O Ministério Público e B, ex-trabalhador da falida, contra alegaram, defendendo a manutenção do julgado; o MP considerou ainda que a decisão transitou em julgado na medida em que, perante a sua não tempestiva reacção, o crédito do Banco recorrente cai nos créditos comuns face ao caso julgado formal.
Tudo visto, cumpre decidir.

2. - Os elementos de facto provados com relevo para a apreciação do recurso são os seguintes:
a) - Os créditos reclamados pelos ex-trabalhadores da falida, identificados na sentença sob os nºs 1 e 5 a 11, respeitam a remunerações laborais (férias e subsídios) não pagas pela falida;
b) - Por escritura pública de 12.5.95, no 11.º Cartório Notarial de Lisboa, foi constituída hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma designada pela letra "A", do prédio descrito na CRP de Odivelas sob o n.º 954/120686, da freguesia de Odivelas;
c) - Esta hipoteca encontra-se registada a favor de Banco C, S.A., sob a inscrição C-4, garantindo o montante máximo de 128.500.000$00, equivalentes a € 640.955,30, sendo o capital de 80.000.000$00 e o juro anual de 14,875%, acrescido de 4% em caso de mora (fls 143 do processo principal);
d) - A fls 80/84 o Banco C, S.A., reclamou um crédito no montante de 789.730,62 €, correspondendo ao capital em dívida, no montante de 394.050,34 €, aos juros moratórios, contados desde a data de denúncia do contrato, em 31.3.97, no montante de 380.461,60 €, e ainda ao montante de 15.218,47 € a título de imposto de selo;
e) - O crédito reclamado foi reconhecido, julgado verificado e graduado na sentença de reclamação de créditos proferida em 21.1.2003 (fls 185 e 187).
f) - Notificado desta sentença, veio o C, por requerimento de 0.7.2.2003, a fls. 201 e v.º, requerer a respectiva rectificação, uma vez que o seu crédito, certamente por mero lapso, foi graduado como comum, não tendo sido levado em linha de conta o privilégio decorrente da garantia por hipoteca.
g) - No mesmo requerimento, e para a hipótese de se entender que não havia lugar à requerida rectificação, interpôs recurso da referida sentença.
h) - A fls 204 foi proferido um despacho de rectificação da sentença, em que, fazendo-se expressa referência aos requerimentos para rectificação apresentados a fls. 191 e 192 - e não ao do C - se procedeu à rectificação da graduação relativamente aos créditos dos trabalhadores, onde haviam sido indevidamente incluído créditos comuns.
i) - Este despacho foi notificado ao C, que nada disse.
j) - Após requerimento apresentado pela Sr.ª Gestora Judicial e novamente pelo C, foi proferido o despacho de fls. 251 a 254 dos autos, no qual, considerando-se "que houve lapso manifesto na sentença, na parte em que não considerou a garantia do crédito reclamado por Banco C, S.A., por hipoteca voluntária", se graduou o mesmo em terceiro lugar, a seguir aos trabalhadores e antes dos créditos comuns, reconhecendo a importância de 566.798,41 €, considerando a data de entrada em juízo da petição inicial.
a) O Ministério Público entende que, perante a falta de reacção tempestiva do C, a decisão da primeira instância transitou em 21.1.03, devendo por isso o crédito do recorrente incluir-se nos créditos comuns, conforme ali se decidiu.
Mas não tem razão.
Efectivamente, notificado da sentença, o C requereu em tempo oportuno a sua rectificação, nos termos que atrás se indicaram (alíneas f) a I) supra). E no despacho de fls. 202 e sgs, - que apreciou e decidiu outros pedidos de rectificação apresentados por trabalhadores da falida - omitiu-se, por lapso, qualquer referência quanto àquela pretensão do Banco, que, notificado, nada disse. Esta inacção do recorrente, no entanto, não origina a formação de caso julgado formal; e isto pela razão simples, mas decisiva, de que a omissão de pronúncia jurisdicional sobre pedido de rectificação tempestivamente apresentado não torna este inexistente ou desprovido de efeitos processuais, que mais não seja porque no caso dos autos, prevenindo a hipótese da rectificação ser desatendida, logo o Banco interpôs recurso da sentença de graduação, assim impedindo eficazmente o trânsito em julgado.
Não se formou, portanto, qualquer caso julgado formal sobre a graduação do crédito do C como crédito comum.
Improcede, assim, a pretensão do Ministério Público, ainda que por razões diversas das consideradas no acórdão recorrido.
b) Quanto à nulidade do acórdão por omissão de pronúncia sobre o montante efectivamente garantido pela hipoteca, que o despacho de rectificação da sentença fixou em 566.798,41 € e o C pretende ser de 600.064,45 €, não há dúvida de que a Relação não se pronunciou expressamente sobre o assunto, apesar da questão lhe ter sido colocada na apelação (fls. 273). Entende-se, porém, que o fez implicitamente ao confirmar a decisão da primeira instância, confirmação esta que tem de considerar-se abrangente do montante reconhecido. Com efeito, o acórdão recorrido começa logo no seu ponto II por dar como reproduzidos os factos provados, para os quais remete; e é certo que devem aí considerar-se incluídos, logicamente, os elencados no despacho de rectificação (art.ºs 666º, nºs 2 e 3, e 670º, nº 2, do CPC). Ali se refere que o C, SA, reclamou um crédito no montante de 789.730,62 € e que tal importância, considerando a data de entrada em juízo da petição inicial, cifra-se em 566.798,41 € (fls 251); logo, não pode senão considerar-se que este foi o montante que a Relação teve por reconhecido. Acresce que, por se tratar de simples cálculo aritmético, nada obsta a que o próprio STJ, aplicando o princípio contido no art.º 249 do CC, proceda ao cálculo da quantia em causa, pois a regra deste preceito é aplicável aos actos judiciais, sendo o cálculo a que faz referência o lógico, o lógico-jurídico, ou mesmo o matemático (1) , conforme tem sido pacificamente entendido na doutrina e na jurisprudência. Ora, sendo o capital em dívida de 394.050,34 € e contando-se os juros moratórios, como pretende o recorrente, à taxa contratualmente fixada de 18,875% ao ano desde a data de denúncia do contrato (31.3.97) até à data da declaração de falência (coincidente com a da entrada da petição inicial em juízo (2) - 7.1.2000), não restam dúvidas sobre a existência de uma acentuada diferença entre o cálculo do montante julgado reconhecido na primeira instância e confirmado pela Relação e aquele que o recorrente efectuou. A diferença radica no facto de a primeira instância ter feito o cálculo com base apenas na taxa de juro anual de 14,875%, enquanto que o recorrente acrescentou aos juros assim apurados a cláusula penal de 4%, convencionada para o caso de mora. Por isso alude a uma taxa de juro de 18,875%. Conforme resulta da certidão junta nos autos principais a hipoteca está registada a favor do C sob a inscrição C-4, garantindo o montante máximo de 128.500.000$00, equivalentes a € 640.955,30, ou seja, um montante superior ao pretendido pelo recorrente, mesmo calculando os juros com a sobretaxa de 4%. Por outro lado, os juros peticionados são relativos a um período inferior a três anos, pelo que não sofrem de qualquer restrição legal no tocante ao período da contagem efectuada; e o mesmo é de dizer quanto à taxa de juros contratualmente fixada de 14,875%, acrescida de 4% em caso de mora, pois ambas estão registadas, devendo ser consideradas acessórios do crédito (3), nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 693º do CC. Protegido, assim, o interesse de terceiros, face à publicidade do convencionado entre as partes, nada obsta à aplicação da taxa global pedida pelo C, porque livremente clausulada dentro dos limites legais.
Tem assim razão o recorrente quando pretende que o montante do seu crédito a reconhecer é de 394.050,34 € de capital, acrescido de 206.014,11 € de juros e cláusula penal contratualmente fixadas em 14,875% + 4% ao ano, desde 1 de Abril de 1997 até 7 de Janeiro de 2000, num total de 600.064,45 €.
c) Resta apreciar a questão fundamental posta no recurso, que consiste em saber se o crédito do recorrente C, garantido por hipoteca sobre o imóvel, registada anteriormente à declaração de falência, deve ou não preferir aos créditos dos ex-trabalhadores da falida, que gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral sobre todos os bens apreendidos para a massa.
Mais concretamente: o art.º 12, nº 1, da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, deve ser interpretado como as instâncias fizeram, no sentido de que os créditos emergentes do contrato individual de trabalho gozam de privilégio imobiliário geral e prevalecem sobre hipoteca anteriormente registada, ao abrigo do art.º 751º do CC, ou, pelo contrário, aplica-se-lhes o disposto no art.º 749º do CC, prevalecendo a hipoteca sobre os créditos laborais? E, caso se conclua que a interpretação correcta é a dada pelas instâncias, estará ela de acordo com a Constituição, designadamente com o seu art.º 59º?
São problemas que têm sido objecto de entendimentos diversos, quer na doutrina quer na jurisprudência.
Quanto ao primeiro, deve dizer-se que apesar de existirem várias decisões proferidas, na 1ª instância e nos Tribunais da Relação, no sentido do acórdão recorrido, o certo é que na jurisprudência do STJ apenas nos acórdãos proferidos em 18.11.99 e 10.2.00 se entendeu que o art.º 751º do CC é de aplicar, directamente ou por analogia, aos privilégios imobiliários gerais instituídos pela Lei 17/86, concluindo-se que os créditos assim privilegiados devem ser graduados com prioridade relativamente aos garantidos por hipoteca, ainda que esta seja de data anterior.
Exceptuando estas duas decisões (4) - proferidas, note-se, antes das alterações legislativas posteriormente efectuadas e que adiante serão referidas adiante - toda a jurisprudência deste STJ (5) tem sido em sentido contrário, ou seja, no de que ao caso em apreço é de aplicar o disposto no art.º 749º do CC, prevalecendo, em consequência, os créditos garantidos por hipoteca anteriormente registada sobre os créditos dos trabalhadores a que o art.º 12º da Lei 17/86, confere privilégio imobiliário geral (6).
Sopesando os argumentos em confronto na defesa de ambas as posições, não vemos razões para alterar esta orientação do STJ.
De facto, o eco jurisprudencial mais recente da controvérsia que tem tido lugar consta da revista n.º 2606/05, desta mesma secção (7), cujo acórdão foi publicado no dia 25 de Outubro último. Este aresto é relevante porque nele se ponderaram todos os argumentos em confronto e é posterior às alterações legislativas que interessam ao caso; além disso, foi publicado na sequência de acórdão do FC proferido naqueles mesmos autos e no qual se decidiu não julgar inconstitucional o referido art.º 12, nº, quando interpretado no sentido de que o privilégio imobiliário geral nele conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do art.º 751º do C, revogando nessa parte o acórdão da 2ª instância graduara o crédito hipotecário com preferência sobre os créditos dos ex-trabalhadores. Por isso, segui-lo-emos aqui de muito perto, transcrevendo-o na parte que reputamos esclarecedora da posição assumida.
Ora, interpretando as normas legais em apreço, afirmou-se no acórdão citado (nº 2606/05):
"Entende-se, assim, que o referido art.º 751º do CC contém um princípio geral insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, por este não incidir sobre bens determinados e pelo facto de os privilégios imobiliários gerais não serem conhecidos aquando do início da vigência do actual CC, o que implicava que, dizendo o n.º 3 do art.º 735º que os privilégios imobiliários eram sempre especiais, só a privilégios imobiliários especiais o art.º 751º se podia referir, só estes, portanto, preferindo à hipoteca, aliás de harmonia com a referência aos privilégios especiais feita no dito art.º 686, n.º 1. Não se compreenderia sequer que o legislador, perante a delicadeza da questão, se pre-tendesse integrar os privilégios imobiliários gerais no regime do art.º 751º, não procedesse à alteração radical de regime que tal determinaria no que respeita àqueles n.º 3 do art.º 735º e n.º 1 do art.º 686º, deixando subsistir enormes dúvidas susceptíveis de provocar grave insegurança no comércio jurídico e concorrendo para defraudar legítimas expectativas dos credores hipotecários, por ele próprio criadas. Logo, se não produziu tal alteração, só pode ser porque não quis integrar os privilégios imobiliários gerais no regime do citado art.º 751.
E tanto é assim que, entretanto, o DL n.º 38/03, de 8/3, veio dar nova redacção ao dito art.º 751º, que passou a referir apenas, de forma expressa, os privilégios imobiliários especiais: ou seja, apenas estes, e não os gerais, é que preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção.
Tal diploma veio, pois, decidir a questão já então controvertida de saber quais dos créditos ora em causa devem ser graduados em primeiro lugar, questão essa forçosamente conhecida do legislador e que este quis resolver excluindo explicitamente do art.º 751º os privilégios imobiliários gerais. Assim, constitui esta nova formulação uma norma de natureza interpretativa, que, nos termos do art.º 13, n.º 1, do CC, se integra naquele dispositivo e, consequentemente, nas leis que atribuíram aos créditos laborais privilégio imobiliário geral.
Conclui-se, pois, que os privilégios imobiliários gerais se traduzem em meras preferências de pagamento, só sendo susceptíveis de prevalecer em relação a titulares de créditos comuns, pois, não incidindo eles sobre bens determinados, - pelo que não estão envolvidos de sequela -, o regime aplicável tem de ser o dos privilégios mobiliários gerais a que se reporta o art.º 749º do CC, cedendo os direitos de crédito por eles garantidos perante os direitos de crédito garantidos por hipoteca".
Face à clareza do que ficou transcrito, ocorre salientar apenas mais o seguinte:
Como é do conhecimento geral, a Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, (Lei dos Salários em Atraso) surgiu numa conjuntura muito especial da vida sócio-económica do país ocorrida no início dos anos 80, visando reger "os efeitos jurídicos especiais produzidos pelo não pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores por conta de outrem" - art.º 1, n.º 1 - assim se afirmando a sua natureza de excepção. Tais efeitos jurídicos especiais tiveram desenvolvimento na Lei, designadamente nos art.ºs 3º e segs, mediante a concessão de direitos especiais ao trabalhador, como a possibilidade de rescindir o contrato ou suspender a sua prestação de trabalho; a atribuição ao trabalhador, durante o período de suspensão da prestação de trabalho, da percentagem máxima do subsídio de desemprego; o direito de exercer outra actividade remunerada fora da empresa, etc. Além destas medidas, e para o que aqui interessa mais directamente, o art.º 12º atribuiu aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho privilégios mobiliário e imobiliário gerais (nºs 1 e 2), estabelecendo ainda que os privilégios mobiliários se graduam antes dos créditos referidos no art.º 748º do CC e dos créditos por contribuições devidas à segurança social (nº 3), indicando claramente que tais créditos são "os primeiros, de entre os possuidores de idêntica garantia, a obter pagamento, seja sobre o produto da venda dos bens móveis, seja dos bens imóveis do devedor" (8).
Por seu turno, a Lei n.º 96/01, de 20/8, alterou o regime dos privilégios creditórios resultante da referida LSA, atribuindo aos créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela dita Lei nº 17/86 os mesmos privilégios mobiliário e imobiliário geral, assim afastando a dúvida quanto a saber se os créditos indemnizatórios devidos pela cessação do contrato estavam também abrangidos privilégio imobiliário geral.

Assente, portanto, que todos os créditos reclamados pelos trabalhadores da falida gozam de privilégio mobiliário e imobiliário geral, nos termos dos citados diplomas, somos chegados ao ponto de definir a extensão da sua eficácia face ao direito de terceiros, no caso o recorrente o C, cujo crédito proveniente de empréstimo concedido à falida goza de garantia hipotecária anteriormente constituída. Ora, das citadas Leis 17/86 e 96/01 não constam normas reguladoras do previsível conflito entre o privilégio imobiliário geral que garantem aos trabalhadores e o privilégio imobiliário especial concedido pelo Código Civil aos credores hipotecários. Há, pois, uma lacuna que deve ser suprida pelo intérprete (art.º 10º do CC). Porém, como bem se salienta no acórdão de 13.1.05, proferido na Revista 4398/04 (cfr. nota 6) "a referida lacuna não pode ser suprida por via da aplicação, na espécie, do disposto no art.º 751º do CC, porque este normativo se reporta a privilégios imobiliários especiais, cuja estrutura é essencialmente diversa da dos privilégios imobiliários gerais. Atendendo ao elemento negativo da ausência de sequela, a similitude que se impõe ao intérprete é entre privilégios imobiliários gerais e privilégios mobiliários gerais (art.º 10, n.º 2, do CC). A referida lacuna deve, por isso, ser suprida por via de uma regra equivalente à do n.º 1 do art.º 749 do CC, segundo a qual, os direitos de crédito da titularidade de trabalhadores garantidos por privilégios imobiliários gerais constantes das Leis n.ºs 17/86, de 14 de Junho e 19/2001, de 20 de Agosto, são preteridos pelos direitos de crédito de outrem garantidos por hipoteca. A circunstância de os art.ºs 12, n.º 3, al. b) da Lei 17/86, de 14 de Junho, e 4, al. b) da Lei 96/2001, de 20 de Agosto, estabelecerem que os direitos de crédito a que se reportam são graduados antes do créditos referidos no art.º 748 do CC não assume qualquer relevo para a resolução do conflito relativo à graduação de direitos de crédito garantidos por direitos de hipoteca e de privilégio imobiliário sobre os mesmos imóveis penhorados ou apreendidos. Com efeito, o referencial de prevalência, no quadro da graduação de direitos de crédito a que se reportam os mencionados normativos, são créditos que já nem existem, que eram de entidades públicas, situação essencial-mente diversa da que envolve os direitos de crédito em geral garantidos por direito de hipoteca".
Na defesa da interpretação seguida cabe ainda salientar o aspecto relativo à publicidade do crédito que o registo da hipoteca assegura, publicidade essa que, dada a segurança que confere aos agentes económicos, é essencial à fluidez do comércio jurídico e ao regular funcionamento da economia. Dar prevalência, em tais circunstâncias, a créditos privilegiados, mas "ocultos" e sem limites temporais, pode deitar por terra as legítimas expectativas de terceiros que se relacionaram contratualmente com o devedor confiados de boa fé na exactidão do registo e na sua presunção de verdade e completude. De facto, conforme se refere acórdão de 5.5.05, proferido na Revª 835/05 (nota 6) "parece racional que entre a obscuridade de um privilégio e a clareza de outro, ambos sobre a mesma coisa, a melhor interpretação do Direito vá pela certeza da transparência". A não ser assim, "e num horizonte de análise mais amplo, ninguém financiaria o crescimento da economia, com grave prejuízo para a iniciativa privada que a Constituição também estimula (art.º 61, n.ºs 1 e 2)". Em boa verdade, este argumento parece-nos da maior importância na medida em que, sem financiamento bancário dos projectos criadores de postos de trabalho, não se vê como será possível assegurar (ou, pelo menos, não sacrificar ainda mais) o direito ao trabalho, também protegido pela Constituição. Para salvaguardar as prerrogativas dos trabalhadores existem, como se pondera no acórdão citado em último lugar, "mecanismos legais de garantia para compensação de créditos laborais, tendo em consideração o equilíbrio de ponderação, sem afectação do normal funcionamento das garantias reais das obrigações e das causas legítimas de preferência, estabelecidas pelo art.º 604 do CC, a favor dos credores garantidos. Mecanismos esses que se revêem no Fundo de Garantia Salarial, criado pelo DL n.º 219/99, de 15 de Junho, o qual assegura aos trabalhadores o paga-mento dos créditos emergentes de contratos de trabalho, ficando sub-rogado nos privilégios creditórios dos trabalhadores (art.ºs 1 e 6)"
Por último deve ainda dizer-se que as decisões já proferidas pelo Tribunal Constitucional acerca da inconstitucionalidade da interpretação do art.º 12º, nº1, da LSA, não se projectam na decisão que aqui importa tomar, relativa à aplicabilidade dos artigos 749º ou 751º do CC à questão controvertida, como, aliás, aquele Tribunal ali deixou bem claro. Efectivamente, considerando que a questão em apreço nos coloca "perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito, muito embora o modo como a norma impugnada solucionou o conflito, fazendo prevalecer o direito à retribuição, não pareça poder ser avaliada, directamente, à luz do disposto no artigo 18º da Constituição, isso não significa que não deva ser analisado do ponto de vista de um critério de proporcionalidade. Na verdade, as exigências do princípio da proporcionalidade decorrem, não só especificamente do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, mas também, justamente, do princípio geral do Estado de direito, consignado no artigo 2º (cfr., neste sentido, o Acórdão n.º 491/02, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 2003). Assim, e em primeiro lugar, há que observar que parece manifesto que a limitação à confiança resultante do registo é um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição; na verdade, será, eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva "sobrevivência condigna". Muito embora a falência da entidade empregadora seja também a falência da entidade devedora, é precisamente este último aspecto, ou seja, a retribuição como forma de assegurar a sobrevivência condigna dos trabalhadores, que permitiria justificar em face da Constituição a solução da norma impugnada, na interpretação aludida. Mas esta consideração carece de ser confrontada com outros aspectos, e, em particular, com o âmbito da tutela constitucional da retribuição (artigo 59º, n.º 1, al. a), da Constituição), para saber se incide apenas sobre o direito ao salário ou abrange também, de modo mais geral, os créditos indemnizatórios emergentes do despedimento".

Ou seja, como ali bem se entendeu, "ao Tribunal Constitucional apenas cumpre averiguar se a interpretação normativa do artigo 12º, n.º 1, b), da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, segundo a qual todos os créditos emergentes do contrato individual de trabalho gozam de privilégio imobiliário geral e prevalecem, nos termos previstos no artigo 751º do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada - interpretação que constitui o objecto do presente recurso, por ter sido a que o acórdão recorrido recusou com fundamento em inconstitucionalidade - é ou não compatível com a Constituição"; mas, "uma vez delimitados os contornos da questão, não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre as opiniões em confronto, no âmbito da interpretação do direito ordinário".
Contudo, é justamente no âmbito do direito ordinário que o sentido e alcance das normas em confronto tem de ser fixado; e, como resulta do exposto, tudo leva a concluir que a graduação entre os privilégios em causa se encontra por aplicação analógica do art.º 749º e não do art.º 751º, ambos do CC.
3. Nestes termos acorda-se em revogar o acórdão da Relação e em graduar os créditos em presença do seguinte modo, para efeitos de pagamento pelo produto da venda do imóvel apreendido:
1.º - O crédito reclamado pela Gestora Judicial;
2.º - O crédito do C, pelo valor reconhecido de 600.064,45 €, até ao limite de 640.955,30 €;
3.º - O crédito reclamado pelos trabalhadores;
4.º - Os demais créditos comuns.
Custas pela massa falida - art.ºs 248, n.º 2 e 249, n.º 2, do CPEREF.

Lisboa, 8 de Novembro de 2005
Nuno Cameira,
Sousa Leite,
Salreta Pereira.
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(1) Castro Mendes, Teoria Geral, 1979, III vol., pág. 305.
(2) Nos termos do artigo 19 do CPEREF.
(3) Cfr. neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, 1982, vol. I, pág. 685.
(4) A interpretação acolhida nestes acórdãos é também a perfilhada por D, Legislação Anotada sobre Salários em Atraso, Coimbra, 1986, pág. 28 e Pedro Romano Martinez, Repercussões da Falência nas Relações Laborais, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XXXVI, 1995, pág. 423 e Direito do Trabalho, Coimbra, 2002, pág. 567-568 e nota 3, citados no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 498/2003, de 22-10-2003, publicado no DR II série, de 03-01-2004.
(5) Apoiada em doutrina no mesmo sentido de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8.ª edição, pág. 898; Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, II vol., págs. 500/501 e Salários em atraso e privilégios creditórios, ROA, ano 58 (1998) - II vol. Pág. 667; João Amado, A Protecção do Salário, 1993, pág. 151; António Nunes de Carvalho, Reflexos Laborais do CPEREF, RDES, ano 37 (1995), n.ºs 1 a 3, pág. 73; Luís Miguel Lucas Pires, Os privilégios creditórios dos créditos laborais, Questões Laborais, ano 9, (2002), n.º 20, pág. 173; A. Luís Gonçalves, Privilégios Creditórios: Evolução Histórica. Regime. Sua Inserção no Tráfico Creditício, BFDUC, ano 47 (1991), vol. 39, pág. 7 e Salvador da Costa, O Concurso de Credores, pág. 259 a 261.
(6) Assim já se havia entendido no Proc.º 87251 - 1.ª secção, Ac. de 19-11-1996, e continuou a entender-se nas revistas 652/01 - 6.ª secção, Ac. de 03-04-2001 e 1928/02 - 6.ª secção; 4145/02 - 1.ª secção, Ac. de 14-01-2003; 34/03 - 2.ª secção, Ac. de 06-03-2003; 466/03 - 6.ª secção, Ac. de 03-04-2003; 198/03 - 2.ª secção, Ac. de 27-05-2003; 1550/03 - 2.ª secção, Ac. de 12-06-2003; 709/03 - 1.ª secção, Ac. de 30-09-2003; 3052/03 - 6.ª secção, Ac. de 04-11-2003; 1929/04 - 6.ª secção, Ac. de 22-06-2004; 1550/04 - 7.ª secção, de 24-06-2004; 2913/04 - 6.ª secção, de 19-10-2004; 2875/04 - 1.ª secção, de 26-10-2004; 4164/04, de 11-01-2005 e 946/05 - 1.ª secção, de 03-05-2005; 4398/04 - 7.ª secção, de 13-01-2005; 835/05 - 7.ª secção, de 05-05-2005, e 1511/05 - 2.ª secção, de 22 de Junho de 2005, todos na edição dos Sumários de Acórdãos Cíveis organizada pelo Gabinete dos Juízes Assessores do Tribunal, disponível em www.stj.pt.
(7) Acórdão relatado pelo Consº S. Salazar, no qual o aqui relator interveio como adjunto, e que teve um voto de vencido da autoria do Consº Afonso Correia.
(8) Cfr. Luís Miguel Lucas Pires, ob. cit..