Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3646
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: VALOR DA CAUSA
SUCUMBÊNCIA
ADMISSÃO DO RECURSO
Nº do Documento: SJ200403040036467
Data do Acordão: 03/04/2004
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 2054/02
Data: 03/14/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1. Tem lugar a verificação oficiosa do valor da causa, não obstante o valor atribuído não haver sido impugnado, ou as partes haverem acordado sobre ele, desde que se verifique, pelos elementos existentes no processo, que, tal valor, está em flagrante divergência com os critérios legais, conforme dispõe o artigo 315º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
2. Neste caso, o tribunal terá em consideração o valor que julgue adequado, segundo o critério estabelecido pelo mesmo preceito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No Tribunal Judicial da Comarca do Porto (1ª Vara Cível), a autora A demandou, em acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, os réus B e mulher, e vários outros, todos na qualidade de condóminos, de um prédio urbano, devidamente identificado, formulando, em síntese para o aqui relevante, o seguinte pedido:
a) que se declare "inválida a deliberação da assembleia de condóminos de 21 de Junho de 2001 sobre "Afectação e ou reforço de verbas do orçamento do condomínio para despesas resultantes de litígios judiciais" por violação dos princípios da igualdade e informação resultante da notificação aos restantes condóminos em 31/05/2001 de prévias informações sobre a matéria que iria ser discutida na assembleia de condóminos de 21/06/2001, informações que não foram dadas à A."
b) A deliberação em causa aprovou o reforço do orçamento do condomínio em 400.000$00, para despesas eventuais, sendo que tais despesas não cabem na norma imperativa do art. 1424º, nº 1 do Cód. Civil que se reporta a despesas necessárias". (Sublinhámos)
2. Na qualidade de administrador do condomínio contestou C, impugnando o alegado.
Houve ainda réplica.
3. Foi proferido despacho saneador que julgou a acção improcedente, e absolveu os réus do pedido.
4. A autora apelou. Mas o Senhor Juiz Desembargador/relator (do Tribunal da Relação do Porto) proferiu despacho, decidindo não conhecer do objecto do recurso (de apelação) com fundamento na irrecorribilidade do saneador (sentença), atento o valor da causa (da sucumbência).
A autora reclamou para a conferência (fls.217), tendo sido proferido o acórdão de fls. 230 e 231 que, com o fundamento no valor da causa, negou provimento à reclamação e condenou a autora em multa, como litigante de má-fé.
(Foi junta aos autos - fls.322- cópia do acórdão proferido pelo STJ no recurso de agravo relativo à condenação da autora em multa, por litigância de má-fé, tendo, nesta parte, sido revogado o acórdão de fls. 230 e 231, que a condenara, como tal).
5. Ainda inconformada (fls. 234), a autora interpôs recurso (de agravo) daquele acórdão.
Pelo senhor juiz relator foi proferido o despacho de fls. 239 a 241 que decidiu não admitir o recurso.
6. Após reclamação endereçada para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido o despacho de fls. 298 e 299, onde se ordenou a substituição do despacho impugnado por outro que admita o recurso (de agravo), o que foi cumprido a fls. 301 e 312, indeferindo-se, como vinha requerida, a intervenção plenária da secção cível, por ser completamente destituída de fundamento, como propôs o ora relator.
7. Feito o histórico da situação, com vista ao seu exacto entendimento, cumpre, sucessivamente, indicar os elementos de facto relevantes, expor a posição da recorrente, e decidir, depois:
Vai ser este o método.
Os factos relevantes:
a) A autora, que é dona de duas fracções do prédio, fundamenta a sua pretensão de anulação da deliberação de reforço do orçamento, na quantia de 400.000$00, para certas despesas que identifica, e que considera não pertinentes a encargos de condomínio, segundo o preceito do Código Civil, que invoca - artigo 1424º-1.
A este propósito, descreve vários episódios, porventura reveladores de desperdícios ou gastos inúteis de dinheiro do condomínio - episódios que não relevam aqui de interesse, salientando-se apenas várias acções judiciais de impugnação de deliberações da assembleia do mesmo condomínio - acções que identifica, todas a correr na jurisdição cível da comarca do Porto.
b) Em 7 de Junho de 2001, o administrador do condomínio aqui R, convocou a assembleia de condóminos do prédio, para o dia 21 de Junho de 2001, tendo como um único ponto na ordem de trabalhos, "Afectação e ou reforço de verbas do orçamento do condomínio para despesas resultantes de litígios judiciais".

c) O administrador do condomínio omitiu da convocatória de 7/6/2001 a indicação de que se tratava das "despesas da defesa dos condóminos RR nas acções de impugnação das deliberações que aprovaram" facto do conhecimento de todos os RR, com excepção da A (...)".

d) A A. requereu ao administrador do condomínio, que este lhe indicasse "quais as acções para as quais o reforço é necessário".

e) O administrador do condomínio recusou-se a indicar para que litígios judiciais se destinava o reforço do orçamento, e para que tipo de despesas carecia de uma "Afectação e ou reforço de verbas do orçamento do condomínio...".

f) A autora esteve presente na assembleia de condóminos, onde fez a seguinte declaração de voto, que foi levada à acta da assembleia de condóminos de 21/6/2001 "A Condómino A disse que vota contra o reforço do orçamento em virtude do administrador se negar a informar quais as acções para as quais o reforço é necessário. Disse também que, para as acções propostas contra alguns condóminos, o condomínio nada terá que suportar monetariamente"

8. A posição da recorrente, nas suas alegações, bastante prolixas e, com o devido respeito, de difícil entendimento (fls. 304 e seguintes), sustenta que o valor atribuído à acção é de 3.000.001$00 (fls.12).
E justifica (seguindo de perto o seu texto):
- Que pediu a anulação da deliberação da assembleia de condóminos de 21/6/2001, por violação do seu direito de informação e igualdade, pois o administrador do condomínio, em 28/5/2001, dez dias antes do envio da convocatória informou todos os condóminos, com excepção da A. sobre os fins da assembleia que ia convocar.
- Que o valor da desfavorabilidade tem como padrão o valor do pedido (que no caso se confunde com o valor da causa pois não há pedido reconvencional).
- Que é pacifica a solução jurídica que entende que o decaimento, a sucumbência, mede-se, gradua-se pelos termos em que a decisão jurisdicional tenha deixado de acolher a pretensão da parte.
E conclui: a decisão recorrida violou tal jurisprudência uniformizada e deu errada interpretação, entre outras, ás normas dos artigos 2º e 678º n.º1, ambos do Cód. Proc. Civil e o art. 9º do Cód. Civil.
9. É a vez da anunciada decisão fundamentada: a questão, objecto de controvérsia, respeita somente à admissibilidade ou inadmissibilidade de recurso do proferido despacho saneador que conheceu do mérito da causa, declarando a improcedência da acção, e absolvendo os réus.
A petição inicial deu entrada na secretaria judicial, em 31 de Julho de 2001.
A autora atribuiu à acção o valor de esc. 3.000.001$00, correspondentes a € 14.963,94, valor que não sofreu impugnação, nem foi alterado por despacho judicial.
Em matéria cível, a Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, no art. 24º, n.º 1, fixou em esc.750.000$00, correspondentes a € 3.740,98, a alçada dos tribunais de 1ª instância.
10. De acordo com o disposto no art. 305º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil,
«qualquer causa terá um valor certo, expresso em moeda legal, que representa a utilidade económica imediata do pedido e ao qual se atenderá para determinar a competência do tribunal, a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do tribunal». (Sublinhámos).
O art. 306º, n.º 1, do C. P. Civil, onde se enuncia o critério geral para a fixação do valor da causa, diz que: «se pela acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação, nem acordo em contrário; se pela acção se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício».
E ainda:
«Quando a acção tiver por objecto, nomeadamente, a apreciação da existência ou validade de um acto jurídico, atender-se-á ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes; se não houver preço nem valor estipulado, o valor do acto determinar-se-á em harmonia com as regras gerais». (Art. 310º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil).
11. No quadro legal indicado, há - de ponderar-se que, com a propositura da acção, pretendeu a autora atacar a validade da deliberação da assembleia de condóminos, tomada em 21 de Junho de 2001, deliberação que consistiu no reforço do orçamento anual do condomínio no montante de quatrocentos mil escudos, destinados ao pagamento de despesas decorrentes de litígios judiciais.
É esta a utilidade económica da acção, no dizer do preceito transcrito, do artigo 305º.
Trata-se de uma questão com conteúdo marcadamente patrimonial, logo economicamente mensurável, não estando em causa qualquer "interesse imaterial".
A autora o que pretende é pôr em causa o valor do reforço de 400 contos (diga-se "contos"), por entender que não é uma despesa para satisfazer encargos comuns do prédio.
Por outras palavras: o que está em causa, como utilidade económica da acção, é o valor do reforço do orçamento das despesas de condomínio, à altura, em 400.000$0,considerando a autora que não se trata de despesas de condomínio, mas gastos supérfluos para pagar despesas anteriores, tendo em conta o histórico da situação, que descreve, apontando mesmo, condóminos por ela responsáveis.
12. O valor é o real, o observável, não o simulado, ou ficcionado para que se atinja esta ou aquela alçada.
E se, em melhor, ou diferente rigor, se entender que está em causa, tão só, o valor da sucumbência, então, também é inquestionável que esse valor é 400.000$00 - que ninguém contesta.
Numa cultura judiciária consistente, tendo a lei como referência interpretativa adequada, o tribunal reconhecendo directamente, por forma observável, os limites concretos da sua competência, em razão de um valor certo (da utilidade económica da acção ou da sucumbência do pedido), para decidir em última instância, não pode ficar dependente da vontade expressa ou tácita das partes, invocando maior valor, para romper o nível de conhecimento definitivo judicial.
A competência judiciária, mesmo em razão do valor, é de ordem pública. O que explica que a sindicância desse valor possa ser feita oficiosamente, nas condições do artigo 110º- 2, do Código de Processo Civil, sempre que o tribunal disponha de elementos hábeis para o fazer.
É o caso! Agora no momento limiar do recebimento da instância de recurso para o Supremo tribunal de Justiça!
13. É certo que pode dizer-se que o valor da causa é aquele em que as partes tiverem acordado, expressa ou tacitamente, estando o valor definitivamente fixado (art. 315º, nºs 1 e 2, e 110º- 3).
Donde, poder dizer-se, que, a partir do momento em que findaram os articulados, a acção passa a ter um valor inalterável, porque aceite tácita ou expressamente pelas partes, ou fixado pelo juiz.
14. Já sem falar do inquestionável valor da sucumbência, (que decidiria a questão pela inadmissibilidade), não podemos aceitar ainda, um caminho formal para efeitos de inaugurar a instância de recurso perante este Tribunal, quando o valor real da acção é esse mesmo, ou seja: o real, não o declarado ou aceite.
A forma não pode iludir a substância, a menos que ambas se iludam, neutralizando-se.
Se o valor, ou utilidade económica da acção é de 400.000$00, impondo-se ao tribunal de recurso sem sombra de qualquer dúvida; se é uma verdade que se abre ao Juiz, como evidente, a que título, (?) pois, desvirtuar a realidade, trocando-o pela ficção, flagrantemente contrária, e "encostando" o juiz a um mero espectador?
A própria lei, no artigo 315º -1, acautela a « ressalva de juiz, findos os articulados, entender que o acordo está em flagrante oposição com a realidade, porque neste caso, fixará à causa, o valor que considere adequado».
O que leva a concluir que a verificação oficiosa do valor da causa deve ocorrer, não obstante o valor atribuído não haver sido impugnado, ou as partes haverem acordado sobre ele, desde que se verifique a sua flagrante divergência com os critérios legais (1).
A oficiosidade, de resto, atravessa todo o processo civil, como desejável sinal de modernidade, em vários momentos, desde que verificada a notoriedade judicial (artigos: 264º, 265, 315º, 319, 496º 514º, 535º, 665º, para citar apenas alguns mais representativos) numa clara atenuação do principio da preclusão, a benefício do pendor mais interventivo do juiz. (2)
15. Ponderemos, embora de um ponto de vista colateral - e meramente adjuvante do resultado a que conduz o anterior discurso - que a matéria que é objecto deste conflito - na acção, na apelação e no agravo - cabe actualmente dentro da competência dos julgados de paz, dependendo de, no território judiciário respectivo, já haver lugar à sua implementação. (3).
A Lei n.º 78/01, de 13 de Julho, regulou a competência, a organização e o funcionamento dos julgados de paz.
A partir da sua instalação nas freguesias por eles abrangidas são exclusivamente competentes para apreciar e decidir as acções declarativas resultantes de direitos e deveres dos condóminos, sempre que a respectiva assembleia não tenha deliberado sobre a obrigatoriedade de compromisso arbitral, para resolução dos conflitos entre condóminos ou entre eles e o administrador, desde que as questões não excedam a alçada do tribunal de 1ª instância, que é de 3.740,98 euros (artigos: 9º-1, c), daquela lei; 24º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção dada pelo anexo do Decreto-Lei n.º 323/01, de 17 de Dezembro).
16. Tendo em conta tudo quanto ficou exposto, poderia o relator julgar, em singelo e sumariamente inadmissível, o recurso, conforme ao artigo 704º-1, do Código de Processo Civil, após ouvir as partes.
Ouviu-as. (Fls. 334).
Só a recorrente respondeu, mantendo a defesa da admissibilidade do recurso, a decidir pela sua procedência (fls. 339).
Todavia, por precaução processual, aliada ao conhecimento de uma cultura judiciária em que, frequentemente, as partes, exercendo um direito processual, mesmo em situações de claro insucesso, requerem que, sobre a matéria do despacho singular, recaia um acórdão (n.º 3, do artigo 700º, citado), o relator teve, como benéfico para a celeridade processual e para a economia de gastos e de tempo, submeter, desde já, a matéria à apreciação do Tribunal em formação colectiva normal para conhecer do recurso.
17. Face ao exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em julgar o recurso inadmissível, não conhecendo do seu objecto.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 4 de Março de 2004
Neves Ribeiro
Araújo Barros (votei a decisão)
Oliveira Barros (votei a decisão, mas em função do valor - real - da sucumbência, dado que, consoante o art. 315º CPC, o valor da causa é o valor de ordem formal, com fixação sujeita a preclusão.
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(1) Neste sentido, Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, páginas 61, citando alguma jurisprudência.
(2) Sobre os princípios fundamentais da reforma do Processo Civil, particularmente sobre o principio da oficialidade, Pereira Baptista, Reforma do Processo Civil, páginas 26/27, com a indicação das várias fontes . Sobre o papel interventivo do Juiz, e numa posição apoiante, reagindo contra a ideia de um juiz espectador, veja-se também o Professor Lebre de Freitas, Estudos sobre Direito Civil e Processo civil, páginas, 111, 125 e 133, Coimbra editora, 2002.
(3) Não existem na comarca do Porto, mas, entre outras comarcas, na de Vila Nova de Gaia, abrangendo as freguesias de Avintes; Crestuma; Lever, Olival, Sandim, e Pedroso, onde está sediado.
Não existem na comarca do Porto, mas, entre outras comarcas, na de Vila Nova de Gaia, abrangendo as freguesias de Avintes; Crestuma; Lever, Olival, Sandim, e Pedroso, onde está sediado.