Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B948
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
AUTO DE MEDIÇÃO DE OBRA
NEGÓCIO CONSIGO MESMO
Nº do Documento: SJ20080527009487
Data do Acordão: 05/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. Os factos relatados nos autos de medição realizados pelos serviços de Divisão de Obras de uma Câmara Municipal, dona da obra, mais não traduzem do que actos de acompanhamento e fiscalização da obra feitos pelo respectivo dono, para fins de comprovação da sua conformidade com os termos do contrato e consequente autorização de pagamento. E foi a percepção desses factos por parte de um seu funcionário que lhe permitiu ajuizar dessa conformidade e emitir a respectiva autorização de pagamento.
Este documento não foi emitido pela Câmara Municipal no uso das suas funções específicas enquanto órgão da administração local, mas enquanto dona da obra e para os fins apontados.
Ora, não tendo este documento sido emitido nos limites da competência ou actividade legal da entidade emitente, não tem força probatória plena e, como tal, está sujeito à livre apreciação do julgador.
2. O contrato dos autos foi concluído e firmado por recorrente e recorrida por decisão da mesma pessoa, agindo simultaneamente em representação das duas sociedades contratantes.
E esta intervenção isolada do representante de duas entidades, distintas dele próprio, configura uma situação clara de dupla representação em que o perigo de se conseguirem contratos favoráveis para um dos representados à custa do outro poderá existir realmente, assim se possibilitando a fragilização contratual de um das partes.
A figura do contrato consigo mesmo pode verificar-se quando alguém revestido de poderes de gerência de duas sociedades diferentes, actuando como representante das duas, celebra determinado contrato.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

AA – CANTARIAS E ROCHAS ORNAMENTAIS, S.A.,
intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário,
contra
BB - PEDREIRAS DE AMARNTE, LDª,
pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de 37.544.3766$00, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de 1.241.366$00, e dos que se vencerem até efectivo e integral pagamento, correspondente ao valor dos materiais vendidos à ré, de acordo com as notas de encomenda por ela subscritas, e não pago oportunamente.

Contestou a ré para, no essencial, sustentar a anulação de determinadas encomendas feitas à autora por configurarem um negócio consigo mesmo e, no confronto entre os fornecimento feitos e as quantias pagas, existir um saldo a seu favor no montante de 23.370.640$00.
E deduz pedido reconvencional no sentido de ver anulados aqueles contratos e declarada válida a resolução por si operada de um outro contrato celebrado com a autora e condenada esta ainda a pagar-lhe aquela quantia de 23.370.640$00, acrescida de juros vencidos e vincendos.

Replicou a autora, impugnando a versão apresentada pela ré e defendendo a improcedência da reconvenção, acabando por pedir a condenação da ré como litigante de má fé.

E treplicou ainda a ré para manter a posição por si inicialmente assumida e pedir também ela, por sua vez, a condenação da autora como litigante de má fé.

Saneado o processo e fixados os factos que se consideraram assentes e os controvertidos, teve lugar, por fim, a audiência de discussão e julgamento.
Na sentença, subsequentemente proferida, foram a acção e reconvenção julgadas parcialmente procedentes e a ré condenada a pagar à autora a quantia de 22.400,14 € (4.490.824$00), acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento e declarado anulado o negócio consubstanciado pelos documentos representativos das condições de fornecimento de materiais à ré.

Inconformadas com o assim decidido, apelaram autora e ré, tendo o Tribunal da Relação do Porto, após anulação de um primeiro acórdão por omissão de pronúncia, julgado a acção improcedente e, na parcial procedência da reconvenção, declarado anulados os contratos representados pelos documentos juntos a fls. 18 a 34, com a consequente condenação da autora a restituir à ré a quantia de 20.367.987$00 (101.595,09 €), acrescida de juros de mora desde a notificação da contestação até integral pagamento.

Irresignada com o teor desta decisão recorre de novo a autora, agora de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela parcial procedência da acção e improcedência da reconvenção.

Contra-alegou a ré em defesa do decidido no acórdão recorrido.


Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo da recorrente radica, em síntese, no seguinte:

1- Está incorporada nos autos, fls. 169 a 350, prova documental que possui força probatória plena quanto aos factos dela constante, consubstanciada nos autos de medição da obra a que se reportam os fornecimentos em causa, elaborados e juntos pela Câmara Municipal de Bragança, entidade legalmente competente para a sua emissão e que constituem documentos autênticos nos termos do n.° 2 do artigo 363.° do Código Civil.

2- E, como após a sua junção ao processo, pela Câmara Municipal de Bragança, nenhuma das partes os impugnou, ambas os aceitando plenamente, tal prova documental tem força probatória plena em conformidade com o art. 371.° n.° 1 do Código Civil quanto às quantidades materiais que se encontravam incorporados na obra pela recorrida e contados pela Câmara Municipal de Bragança na data em que foram elaborados por aquela autoridade pública.
3- Dessa prova documental resulta que a recorrida havia incorporado na obra de Bragança material fornecido pela recorrente, que ascendia à quantia de € 185.412.608$00 (IVA incluído) aos preços acordados entre elas, no período em que vigorou a execução do contrato dos autos, ou seja, desde o início do mesmo até 10-1-2001.

4- Desse elemento de prova, que as instâncias deveriam ter atendido, não só pela sua força probatória plena, mas também por configurar prova isenta e credível, já que carreada para os autos por terceiro, a Câmara Municipal de Bragança, ter sido elaborado antes do surgimento do litígio entre autora e ré e ter sido objecto de confissão tácita pelas partes, resulta que a resposta ao quesito 39.° deve ser alterada para dela passar a constar aquele valor de € 185.412.608$00.

5- Deverá, por isso, a resposta ao quesito 39.° ser alterada em conformidade, nos termos do disposto nos arts. 722º, nº 2 e 729,° ambos do Código de Processo Civil, por violação do disposto nos artigos 363.° n.° 2 e 371° n.° 1, ambos do Código Civil.

Por outro lado,

6- O disposto no artigo 261.° do Código Civil não é aplicável ao caso subjudice, porquanto o disposto no artigo 261.° do Código Civil, pressupõe, como condição para a sua aplicabilidade, que determinado negócio seja celebrado pela mesma pessoa seja directamente seja em representação de outra.

7- Ora, nada se apurou acerca da pessoa que representou a autora no contrato dos autos, conforme se constata da matéria de facto.

8- E, por outro lado, sendo o Conselho de Administração da autora, na data da celebração do negócio, composto por três membros de que efectivamente era presidente CC, não bastaria apenas a intervenção de uma única pessoa como forma da sociedade se obrigar.

9- Por isso, não se compreende, nem se pode aceitar que as instâncias tenham concluído que foi o Eng.° CC quem celebrou o contrato representando ambas as sociedades, já que dos factos assentes não é lícito retirar tal conclusão.

10- Mas a verdade é que quem representou a ré, nunca teria sido o Eng.° CC, mas sim o Eng.° DD, limitando-se aquele a dar instruções para a assinatura das notas de encomenda juntas aos autos, o que não configura qualquer representação da ré.

11- E ainda que assim não se entendesse, a verdade é que o artigo 261.° do Civil pressupõe que o negócio se repercuta na esfera própria do representante, o que nunca aconteceria no caso dos autos, já que, ainda que se entendesse que teria sido o mesmo representante de autora e ré que em nome delas celebrou o negócio, tal circunstância nunca permitiria que o negócio dos autos se repercutisse na esfera jurídica do representante, mas apenas na esfera jurídica das representadas.

12- É que a autora e a ré têm personalidades próprias, que não se afundem, nem se podem confundir com a distinta personalidade do seu representante-administrador, não existindo fundamento para a proibição do negócio a que se referem os autos, nos termos do disposto no artigo 261.° do Código Civil.

13- De resto, tal proibição apenas teria sentido se verificado o prejuízo do negócio para a ré, o que não foi de todo demonstrado.

14- O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 363.° n.° 2 e 371.º nº 1 e 261º n°1 do Código Civil.

B- Face ao teor das conclusões formuladas, as questões controvertidas a decidir reconduzem-se, essencialmente, a duas:
- alteração da decisão sobre a fixação da matéria de facto;
- inexistência de requisitos da figura do negócio consigo mesmo.

III. Fundamentação

A- Os factos

Foram dados como provados no acórdão recorrido os seguintes factos:

1. A autora dedica-se à exploração, transformação e comercialização de rochas ornamentais e cantarias.

2. A ré subscreveu os documentos com cópias inclusas de fls. 28 a 34, acordando o fornecimento pela autora de materiais dos ali descritos, aceite por esta.

3. Autora e ré acordaram que a primeira deveria disponibilizar espaço para armazenamento ao ar livre dos materiais vendidos já prontos, independentemente destes virem a ser transportados de imediato ou não para a obra onde iriam ser aplicados.

4. E que o transporte, das instalações da autora, seria a cargo da ré, em camião seu.

5. Bem como que o fornecimento deveria ser feito, no prazo de 12 meses, de forma a não comprometer a normal evolução da empreitada onde iriam ser incorporados os materiais.

6. No âmbito desse acordo, a autora entregou à ré materiais dos referidos em 1) destinados a aplicação pela última na obra n.º 14 do projecto de urbanismo da Câmara Municipal de Bragança.

7. Autora e ré acordaram que o pagamento seria efectuado pela segunda trinta dias após a data da emissão da factura correspondente.

8. A autora solicitou à ré o pagamento dos materiais entregues.

9. A constituição e estatutos da autora estão inscritos na Conservatória do Registo Comercial de Amarante, nos termos que constam da certidão de fls. 70 e seguintes.

10. O Eng. CC, legal representante da autora, foi sócio e gerente da ré, nos termos que constam da certidão do registo comercial a esta respeitante, inclusa a fls. 63 a 69 e 651 a 657.

11. Em 10-1-2001, a autora proibiu a ré de proceder a carregamentos de materiais por si fabricados.

12. A ré enviou à autora a carta com cópia inclusa a fls. 61 e 62, onde afirmou, além do mais, que “caso não nos sejam efectuados mais fornecimentos, teremos que dar o contrato por definitivamente incumprido pela vossa parte”.

13. No dia 22-1-2001, a autora recusou o acesso do camião que a ré fez deslocar às suas instalações para carregamento de material destinado à obra de Bragança.
14. A autora entregou à ré os materiais constantes das facturas com cópias inclusas de fls. 8 a 24, 26 e 27, com as correcções que resultarem das respostas a ser dadas aos restantes artigos da base instrutória.

15. As facturas que constam com cópias inclusas de fls. 8 a 24, 26 e 27, importam aritmeticamente na quantia total de 21.819.576$00.

16. Os materiais indicados nessas facturas, com excepção daqueles que forem objecto de correcções como referido em 14., foram levantados e transportados pela ré das instalações da autora e depois aplicados na obra identificada no ponto 6.

17. Os acordos referidos nos pontos 2 a 6 foram subscritos, da parte da ré, pelo Eng .DD segundo instruções do Eng. CC.

18. As condições deles constantes não foram aceites pelos demais gerentes da ré que das mesmas não tinham conhecimento.

19. O Eng. CC sabia que a ré apenas se obrigava com a assinatura de, pelo menos, dois gerentes e que os demais gerentes da ré jamais aceitariam qualquer acordo que esta celebrasse com a autora e em que esta facturasse materiais não levantados pela ré.

20. A partir de Janeiro de 2000, a autora foi facturando e recebendo da ré pagamentos referentes a quantidades de materiais ainda não levantados pela ré.

21. Em finais de Junho de 2000, o material fornecido pela autora e levantado pela ré era de 76.687.498$00.

22. E o valor já pago pela ré, por conta dos fornecimentos de materiais, era de 171.721.855$00, com IVA incluído.

23. Desses, 59.245.644$00 foram liquidados com cheques datados de 5.05.2000 a 27.06.2000, sendo que o Eng. CC deixou de ser gerente da ré em 13.07.2000.

24. Após a saída do Eng. CC da ré, esta pretendeu, em conversações com a autora, que a autora emitisse uma nota de crédito referente ao valor pago em excesso em relação ao material efectivamente levantado pela ré, até finais de Junho de 2000.

25. E que a autora aceitasse que todos os pagamentos efectuados foram por conta dos materiais que tivessem sido já levantados pela ré.

26. E pretendeu ainda a ré que a autora aceitasse, que a facturação desta para aquela passasse a fazer-se à medida que o levantamento e carregamento dos materiais fossem feitos pela ré, cláusulas que a Autora não aceitou.

27. A factura n.º ........ acusava discrepâncias entre as quantidades facturadas e as efectivamente recebidas pela ré de granito de 0.03 de espessura e as facturas n.º ......,......., ......., ......, ........ e ......... não tinham em consideração, no débito de paletes, as que entretanto foram devolvidas pela ré até Junho de 2000.

28. Excedendo o montante indicado na factura......... em 272.713$00, sem IVA, o valor de materiais recebidos pela ré.

29. Por esses motivos, através da carta de 21.09.200, com cópia inclusa a fls. 51, recebida pela autora, a ré devolveu-lhe as referidas facturas.

30. A factura n.º .......... apresentava diferença entre o preço dela constante de lajeado de 3 cm e o preço acordado entre autora e ré para o mesmo, de 6.400$00, excedendo o montante indicado em tal factura em 30.255$00 o valor dos materiais recebidos pela ré.

31. Por esse motivo, através da carta de 11.10.2000, com cópia inclusa a fls. 52, recebida pela autora, a ré devolveu-lhe a referida factura.

32. A ré devolveu à autora a factura n.º ........., através da carta de 10.11.2000, com cópia inclusa a fls. 53, bem como lhe devolveu as factura n.º ........., ........., ......., através da carta de 10.11.2000, com cópia inclusa a fls. 54.

33. A factura n.º ............ divergia da quantidade entregue e transportada de “lancil com comprimentos variados”, que era de 12 metros lineares.

34. E o material fornecido correspondia a lancil de 15x13, diversamente do que consta daquela factura.

35. Nessa factura foi debitado o valor correspondente a 52 paletes, excedendo o montante nela indicado 23.673$00 o valor dos materiais recebidos pela ré.

36. Através de carta de 29.11.2000, com cópia inclusa a fls. 55 e 56, recebida pela autora, a ré devolveu à autora a referida factura, com os motivos que dela constam.

37. A factura n.º ............ divergia da quantidade de lancil entregue, que foi de 204,04m, na sequência da guia de remessa n.º 216, excedendo o montante nela indicado em 377.645$00 o valor dos materiais recebidos pela ré.

38. Através de carta de 24.12.2000, com cópia inclusa a fls. 57, a ré devolveu à autora a referida factura, com os motivos que dela constam.

39. A factura n.º ......... foi emitida pela autora apenas como concretização de uma revisão unilateral dos preços acordados, que a ré não aceitou.

40. Todos os fornecimentos efectuados pela autora à ré e por esta efectivamente recebidos, exceptuando as facturas ......, ........, ........, ........, ........., importam na quantia de 147.923.693$00 (valor com IVA) mais a quantia relativa a 946 paletes e bem assim a quantia relativa a todas as paletes facturadas nas facturas juntas com a petição inicial.

41. E a ré entregou à autora, para pagamento dos fornecimentos que esta lhe efectuou, a importância de 169.729.579$00 (valor Com IVA), mais a importância de 1.992.276$00 relativo a 946 paletes com IVA à taxa de 17%.

42. A Ré devolveu à autora 736 paletes, no valor global de 1.324.800$00 (1.800$00 x 736/ valor sem IVA).

43. Como precisava de material para ser aplicado na obra da Câmara Municipal de Bragança, a ré teve de contratar com terceiros a respectiva aquisição, na mesma espécie e quantidade em falta.

44. A autora nunca se obrigou a emitir qualquer nota de crédito.

45. Os acordos mencionados nos pontos 2 a 7 nunca foram modificados por autora e ré, mesmo após a saída do Eng. CC da ré.


B- O direito


1. alteração da decisão sobre a fixação da matéria de facto

Cumpre salientar que o Supremo Tribunal de Justiça, que, por sua natureza, se caracteriza como tribunal de revista, não conhece de matéria de facto (arts. 26º LOFTJ e 721º, n.° 2, 722°, n.° 2, 726°, 729°, nºs l e 2, e 755.°, n.° 2, todos C.Pr.Civil), apenas lhe competindo, em princípio, apreciar matéria de direito, o que vem sendo repetido de modo uniforme e constante.
Apenas se houver ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art. 722°, n° 2 C.Pr.Civil), é que poderá o Supremo alterar essa decisão (art. 729°, n° 2 C.Pr.Civil). Só no caso de existir erro das instâncias na análise da prova por violação das normas que fixam o seu valor, ou seja, se as instâncias atribuíram ao meio de prova um valor que ele não comporta ou deixaram de lhe conceder o seu valor legal poderá o Supremo pronunciar-se sobre os factos provados.

Cabe às instâncias apurar a factualidade relevante, sendo que na definição da matéria fáctica necessária para a solução do litígio, cabe à Relação a última palavra. Daí que, a tal propósito, a intervenção do Supremo Tribunal se apresente como residual e apenas destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material – artigo 722º, nº 2 – ou a mandar ampliar a decisão sobre matéria de facto – artigo 729º, nº 3. Aliás, só à Relação compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida na 1ª instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos nºs 1 e 4 do artigo 712º. (1)
Pode, assim, afirmar-se que no âmbito do julgamento da matéria de facto se movem as instâncias, estando, em princípio, vedado ao STJ proceder à respectiva sindicância.

Insurge-se a apelante contra a resposta que mereceu o ponto controvertido nº 39 da base instrutória relativamente à quantidade de material incorporado na obra pela recorrida, sustentando que os factos nele vertidos estão comprovados por documentos autênticos, como sendo os autos de medição efectuados pela Câmara Municipal de Bragança, entidade legalmente competente para a sua emissão. E como não foram impugnados, assumem força probatória plena. E defende, por isso, que se deve dar como assente que os materiais por si fornecidos e incorporados pela recorrida na obra de Bragança ascendem à quantia de 185.412.608$00, com IVA incluído, e não a 147.923.693$00, valor com IVA incluído, como se deu como assente no acórdão recorrido, tomando por base um depoimento testemunhal pouco credível e parcial.

Questionava-se no aludido ponto nº 39 se a Autora havia feito fornecimentos à Ré pelo valor global de 147.923.693$00.
Respondeu-se no tribunal da 1ª instância que todos os fornecimentos efectuados pela Autora a Ré e por esta efectivamente recebidos, exceptuando as facturas n.°s ......., .........., ............., ............, ............, importam na quantia de 147.923.693$00 (valor sem IVA), mais a quantia relativa a 946 paletes e bem assim a quantia relativa a todas as paletes facturadas nas facturas juntas com a petição inicial.
Alterou-se na Relação a resposta que havia sido dada a este ponto controvertido e deu-se como assente que todos os fornecimentos efectuados pela Autora a Ré e por e., ........., .........., ...........1, ............., importam na quantia de 147.923.693$00 (valor com IVA), mais a quantia relativa a 946 paletes e bem assim a quantia relativa a todas as paletes facturadas nas facturas juntas com a petição inicial.

Diga-se, desde já, que, contrariamente ao expendido pela recorrente, a factualidade questionada no referido ponto controvertido nº 39 foi impugnada expressamente pela recorrida. Em sua contestação, pôs esta em causa o valor dos materiais que a recorrente lhe forneceu. As posições assumidas pelas partes, em seus articulados, sobre esta questão não eram coincidentes, divergindo elas sobre o montante dos materiais fornecidos.
Depois, os documentos invocados pela recorrente, e por si considerados como documentos autênticos, mais não são do que autos de medição efectuados pelos serviços de divisão de obras da Câmara Municipal de Bragança, ou seja, pela dona da obra.

Definindo o que são documentos autênticos, diz o nº 2 do art. 363º C.Civil, que são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública.
E quanto à força probatória deste tipo de documentos, preconiza o nº 1 do art. 371º C.Civil que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.

Os documentos em causa reproduzem actos materiais de medição dos trabalhos efectuados, actos de medição esses realizados pelos serviços de Divisão de Obras da Câmara Municipal de Bragança.
Os factos aí relatados mais não traduzem do que actos de acompanhamento e fiscalização da obra feitos pelo respectivo dono, para fins de comprovação da sua conformidade com os termos do contrato e consequente autorização de pagamento. E foi a percepção desses factos por parte de um seu funcionário que lhe permitiu ajuizar dessa conformidade e emitir a respectiva autorização de pagamento.
Este documento não foi emitido pela Câmara Municipal no uso das suas funções específicas enquanto órgão da administração local, mas enquanto dona da obra e para os fins apontados.
Ora, não tendo este documento sido emitido nos limites da competência ou actividade legal da entidade emitente, não tem força probatória plena e, como tal, está sujeito à livre apreciação do julgador.
Os factos vertidos no ponto controvertido em questão não estavam sustentados em documentos que os tornassem inquestionáveis, pelo que podia o tribunal socorrer-se, como efectivamente se socorreu, de depoimentos testemunhais para sua apreciação.
Logo, não é passível de censura pelo Supremo Tribunal de Justiça a fixação da matéria de facto a que se procedeu na Relação.

2. negócio consigo mesmo

Negócio consigo mesmo é aquele que é celebrado por uma só pessoa, que intervém simultaneamente a título pessoal e como representante de outrem, ou, ao mesmo tempo, como representante de mais de uma pessoa.
O negócio celebrado pelo representante consigo mesmo é anulável, seja outorgado em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representante tenha especificamente consentido na celebração, ou se o negócio excluir, por sua natureza, a possibilidade de um conflito de interesses –art. 261°, n.° l C.Civil).
A anulabilidade do negócio celebrado consigo mesmo é estabelecida em defesa dos interesses do representado já que o representante, como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela (2), sentir-se-á tentado a sacrificar os interesses do representado em beneficio dos seus ou poderá prejudicar os interesses de um dos representados em benefício dos do outro.
Este preceito contempla duas hipóteses, sendo a segunda a chamada dupla representação, ou seja, quando alguém é simultaneamente representante de duas outras pessoas e, na qualidade de representante de uma delas, negoceia com a outra, também por ele representada.

Dos factos apurados decorre que o eng. CC, legal representante da autora, foi sócio e gerente da ré e que todos os pormenores negociais dos acordos tendentes ao fornecimento de materiais a efectuar pela autora à ré em vista da aplicação por esta nas obras da Câmara Municipal de Bragança foram subscritos, da parte da ré, pelo eng.DD segundo instruções do Eng. CC.

Como flui desta matéria de facto e se afirma no acórdão recorrido, dedução factual que este tribunal tem de aceitar, desde logo por se apresentar como desenvolvimento lógico dos factos assentes, o eng. CC, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração da autora e como sócio gerente da ré, interveio na celebração deste negócio, representando as duas partes. Não obstante estes negócios terem sido formalmente subscritos pelo eng.DD, quem verdadeiramente os concretizou foi o eng. CC, já que aquele, segundo os factos apurados, se limitou a acatar e agir segundo instruções do Eng. CC.
O contrato dos autos foi concluído e firmado por recorrente e recorrida por decisão da mesma pessoa, agindo simultaneamente em representação das duas sociedades contratantes.
E esta intervenção isolada do representante de duas entidades, distintas dele próprio, configura uma situação clara de dupla representação em que o perigo de se conseguirem contratos favoráveis para um dos representados à custa do outro poderá existir realmente, assim se possibilitando a fragilização contratual de um das partes.
A figura do contrato consigo mesmo pode verificar-se quando alguém revestido de poderes de gerência de duas sociedades diferentes, actuando como representante das duas, celebra determinado contrato.

O art. 261º C.Civil contempla o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo (contrato consigo mesmo stricto sensu), ou a hipótese da dupla representação (em que as partes contratantes são simultaneamente representadas pela mesma pessoa), relação diferente daquela que se estabelece entre uma sociedade e um seu administrador ou gerente quando entre eles é firmado determinado negócio. E esta relação não está contemplada naquele art. 261º, mas também não é ela que se configura na situação vertente.

O aludido art. 261º sanciona com o vício da anulabilidade o negócio celebrado consigo próprio, o que só não acontecerá se houver consentimento do representado ou se o negócio excluir, por sua natureza, a possibilidade de conflito de interesses.
A ocorrer alguma destas excepções, e porque será então indiferente para o representado que o negócio tenha sido celebrado pelo representante com um terceiro ou com o próprio em seu nome, o representado não sairá prejudicado e o contrato será plenamente válido.

Ora, resulta dos factos assentes (nºs 18 e 19) que os demais gerentes da ré não aceitaram as condições constantes dos acordos celebrados, bem como sabia o eng. CC que eles jamais aceitariam qualquer acordo que a ré celebrasse com a autora em que esta facturasse materiais não levantados pela ré.
Para além de não vir provado qualquer assentimento posterior da recorrida ao negócio celebrado, até decorre da factualidade assente a oposição expressa a esse mesmo negócio.
Por outro lado, a natureza do negócio não exclui a possibilidade de conflito de interesses. Aliás, essa conflitualidade até se vislumbra quando, por força dos termos desse negócio, a recorrente foi facturando e recebendo da recorrida pagamentos referentes a material ainda não levantado (Em finais de Junho de 2000, o material fornecido pela autora e levantado pela ré era de 76.687.498$00, enquanto o valor já pago pela ré, por conta dos fornecimentos de materiais, era de 171.721.855$00, com IVA incluído nºs 21 e 22). E quando pretendeu que fosse emitida pela recorrente uma nota de crédito referente ao valor pago em excesso e que a facturação passasse a ser feita à medida que o levantamento e carregamento dos materiais fossem feitos, esta recusou aceder a essas pretensões.
Vislumbra-se nestas cláusulas contratuais uma clara vantagem económica da recorrente, conflituando frontalmente com os interesses da recorrida que, desse modo, se viu confrontada com uma posição de desfavor perante aquela.
Não existindo nenhuma das excepções contempladas no nº 1 do citado art. 261º, o contrato celebrado entre recorrente e recorrida, ambas nele representadas pela mesma pessoa, apresenta-se assim anulável, como bem se decidiu no acórdão recorrido.
E as consequências daí decorrentes são efectivamente as extraídas nesse acórdão, o que nem sequer vem questionado.


IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.



Lisboa, 27 de Maio de 2008


Alberto Sobrinho (Relator)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Lázaro Faria
____________________________

(1)- cfr. acs. STJ de 22/11/94, no Proc. nº 85752, da 1ª secção; de 30/01/97, no Proc. nº 751/96, da 2ª secção; de 31/03/98, no Proc. 265/98 da 1ª secção; de 19/09/2002, no Proc. 2047/02, da 7ª secção; e de 29/02/2002, no Proc. 3/00 da 1ª secção
(2)- in Código Civil, Anotado, I, 4ª ed., em anotação ao art. 261º