Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
671/12.5TBBCL.G1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: OPOSIÇÃO DE JULGADOS
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS
OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
INCUMPRIMENTO
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
CASO JULGADO
FACTOS SUPERVENIENTES
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - DIREITO DA FAMÍLIA / ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES / FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA -  PROCESSO TUTELAR CÍVEL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 8.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 581.º, 608.º, 987.º, 988.º.
D.L. N.º 164/99, DE 13 DE MAIO: - ARTIGO 9.º, N.º 4.
LEI N.º 75/98, DE 19 DE NOVEMBRO: - ARTIGO 3.º.
ORGANIZAÇÃO TUTELAR DE MENORES (OTM): - ARTIGOS 150.º, 189.º.
RGPTC, APROVADO PELA LEI N.º 141/2015, DE 08-09: - ARTIGOS 12.º, 48.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 13/7/2010 (4210/06.9TBGMR.S1), EM WWW.DGSI.PT .
-DE 12/5/2016 (982/10.4TBPTL.G1-A.S19 E DE 11-09-2014 (3871/12.4 TBVFR-A.P1.S1), EM WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA DE 19/3/2015 (P. 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A), IN DR, I, 85, DE 4/5/2015.
Sumário :
I - A aferição da existência da oposição expressa entre acórdãos há-de ser feita em relação à questão ou questões concretamente decididas nas decisões e não aos argumentos ou fundamentos nelas utilizados, pelo que deparamos com uma efectiva oposição expressa entre o acórdão recorrido e o de uma outra Relação se ambas as respectivas decisões, debruçando-se sobre situações com contornos e particularidades inteiramente idênticas, solucionaram de modo radicalmente discordante a análoga questão fundamental de direito, fazendo das mesmas disposições legais uma interpretação e aplicação opostas, independentemente da argumentação que utilizaram ou de numa das decisões não estar inteiramente expresso o raciocínio lógico que lhe esteve subjacente, porque, normalmente, deve-se à assunção, explícita ou implícita, de diferentes fundamentos jurídicos a obtenção de uma distinta solução para a idêntica questão de direito concretamente suscitada.

II - É o interesse da certeza do direito, propiciada pela uniformidade e previsibilidade da jurisprudência e, por consequência, da unidade interpretativa e aplicativa do direito que recomenda que sobre questões objecto de controvérsia jurisprudencial seja estabelecida a interpretação a perfilhar pelos tribunais, incluindo o próprio Supremo, a qual só poderá ser arredada mediante uma fundamentação convincente e baseada no desenvolvimento de argumentos novos e de grande peso relativo, susceptíveis de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada e que tornem patente que a evolução jurisprudencial e doutrinal alterou significativamente o consenso formado.

III - Não existem razões para que à tramitação do incidente da garantia dos alimentos a cargo do FGADM, embora estabelecida, em parte, em regras avulsas (arts. 3.º da Lei 75/98 e 9.º, n.º 4, do DL n.º 164/99), seja conferida natureza diversa da do processado ou incidente de incumprimento do devedor originário (art. 189.º da OTM e, agora, art. 48.º do RGPTC, aprovado pela Lei 141/2015, de 08-09), em que passou a ser inserida, sendo essa natureza a inerente aos processos ditos de jurisdição voluntária, como sucede com o processo de regulação das responsabilidades parentais e os seus incidentes (art. 150.º da OTM e, agora, art. 12.º do RGPTC). E, como tal, não está o julgamento desse novo incidente – enxertado em processo de jurisdição voluntária – subtraído ao critério definido no art. 987.º do CPC, ou seja, ao predomínio da equidade sobre a legalidade estrita, à não sujeição do julgador, nas suas resoluções, a critérios normativos rigorosamente fixados, nem sempre aptos à obtenção das soluções ética e socialmente ajustadas.

IV - O caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos e com a mesma força e eficácia. Apenas sucede que as resoluções naqueles tomadas, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como o admite o art. 988.º do CPC).

V - As «circunstâncias supervenientes», a que o preceito citado alude, justificativas da alterabilidade das resoluções tomadas em processos de jurisdição voluntária hão-de reconduzir-se aos factos em si mesmos, a realidades sobrevindas, com reflexo na alteração substancial da «causa de pedir» – no conceito previsto no art. 581.º do CPC –, nada tendo a ver com a eventual posterior invocação de uma diversa qualificação atribuída àqueles factos ou com uma diferente interpretação jurídica sobre situações de facto. Assim sendo, para tal efeito, a publicitação dum acórdão uniformizador de jurisprudência não constitui alteração da situação de facto existente no momento da decisão inicial.

VI - Por conseguinte, sem a eventual demonstração de «circunstâncias supervenientes» e, por isso, sem a pronúncia sobre esse (eventual) diferente quadro factual superveniente, não deve nem pode o juiz, com fundamento exclusivo na interpretação jurídica entretanto estabelecida através dum AUJ, alterar a anterior decisão transitada em julgado.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. No âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais respeitantes a AA e BB, nascidos em 3/10/1999 e 29/12/2003, respectivamente, filhos de CC e DD, ficou este obrigado, por decisão de 7/7/2010, a pagar, mensalmente, a cada um dos menores a quantia de € 63, a título de alimentos, sendo tal prestação actualizável anualmente em função do índice de inflação.
2. Não tendo o requerido DD pago qualquer das indicadas prestações, o Ministério Público, em 28/2/2012, intentou este incidente de incumprimento de prestação de alimentos devidos aos menores, para os efeitos previstos no art. 181º da OTM.
3. Nestes autos, depois de verificado tal incumprimento, foi proferida decisão em 14/9/2012, determinando que o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos aos Menores (FGADM) procedesse ao pagamento de € 100 mensais a cada um dos menores.
4. A decisão identificada em 3. não foi objecto de impugnação, tendo o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social informado que tinha iniciado o pagamento da prestação de alimentos de € 200, com referência a Outubro de 2012.
5. Por decisões proferidas nos autos a 16/9/2013 e a 13/11/2014, respectivamente, foi determinado que o FGADM continuasse a proceder ao pagamento da aludida quantia mensal de € 200, por se considerarem renovados os pressupostos subjacentes à intervenção do referido Fundo.
6. Em 7/1/2016, a Sra. Juíza proferiu a decisão do seguinte teor: «Atento o disposto no art.º 9.º, n.º 4 do DL nº164/99 de 13.05 e o teor da prova junta, bem como da promoção que antecede, consideram-se validamente renovados os pressupostos subjacentes à intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) (…)».
7. O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social interpôs apelação dessa decisão, sustentando, à luz da interpretação entretanto fixada pelo AUJ de 19/3/2015, a falta de suporte legal da manutenção da prestação alimentícia a cargo do FGADM, no valor mensal global de € 100 para cada menor, por ser de montante superior à fixada ao progenitor incumpridor (€ 63).
8. A Relação de Guimarães julgou improcedente o recurso por ter ponderado: a decisão recorrida limitara-se a aferir da manutenção dos pressupostos subjacentes à atribuição da prestação de alimentos em pagamento (a já fixada por decisão judicial pretérita), não se tendo debruçado sobre a adequação do respectivo montante, que, por isso, emergia então como uma questão “nova”; a decisão que fixara a prestação de alimentos em pagamento (a cargo do FGADM) jamais fora discutida, pelo que, estando coberta pelo caso julgado, passou a ter força obrigatória dentro do processo.

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social interpôs recurso de revista do acórdão da Relação, delimitando o seu objecto com conclusões que colocam as questões de saber se:
1ª) – O recurso é admissível porque o acórdão recorrido foi proferido contra jurisprudência uniformizada do STJ e em contradição com o acórdão da Relação de Lisboa de 16/2/2016, já transitado, proferido no p. 2477/06.1TMSNTR-D.L2 (fls. 254 a 271), no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
2ª) – A decisão supra mencionada em 6., proferida após a prolação do citado AUJ, deveria ter alterado a prestação de alimentos a cargo do FGADM para montante não superior ao que fora fixado para o progenitor incumpridor.

Nas suas contra-alegações, o Ministério Público suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso, por não se verificar a oposição expressa entre os acórdãos invocados, e defendeu ter transitado a decisão referida em 3., de 14/9/2012.
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Importa apreciar as questões enunciadas e decidir, para o que releva o supra relatado.

1. A questão prévia.
Alega o recorrente que o recurso deve ser admitido, ao abrigo do art. 629º, nº 2, c) e d) do CPC, porque a decisão recorrida contradiz a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e o decidido pela Relação de Lisboa no citado acórdão de 16/2/2016, respectivamente.
A apontada contradição entre a jurisprudência assumida no citado AUJ e a decisão de 1ª instância, confirmada pela Relação, constitui, justamente, o cerne da censura que o recorrente dirige a esta. Por isso, confundindo-se a verificação da pertinência dessa contradição com o objecto do próprio recurso, sempre este teria que ser admitido para apreciar tal questão.
Mesmo que assim não fosse e pese embora a inteira acuidade, em abstracto, do argumentado pelo Ministério Público ([1]), pensamos que se verifica, no caso concreto, uma efectiva oposição expressa entre a decisão recorrida e o acórdão da Relação de Lisboa invocado pelo recorrente. Vejamos.
Neste último acórdão, segundo se retira do respectivo teor, foi reponderada uma decisão de 1ª instância datada de 5/6/2015, que renovara a prestação a favor de uma menor e a cargo do FGADM, de montante, anteriormente fixado, superior àquele por que ficara vinculado o obrigado originário. Ora, a Relação revogou tal decisão nessa parte, mantendo apenas a prestação a cargo do FGADM pelo montante equivalente ao devido pelo obrigado incumpridor.
Portanto, ainda que se reconheça a dificuldade, no caso, em divisar a (diluída) fronteira entre oposição expressa e oposição implícita de acórdãos, é indubitável que estamos perante duas decisões que se debruçaram sobre situações, que, sendo diferentes, têm contornos e particularidades inteiramente idênticas.
É certo que o aresto da Relação de Lisboa não enfrentou, sequer, qualquer dos fundamentos ou argumentos em que a Relação de Guimarães estribou o seu julgamento e consistentes – relembramos – em jamais ter sido discutido, antes da apelação, a questão do montante da prestação de alimentos a cargo do FGADM e em estar coberta pelo caso julgado a decisão que o fixara. Portanto, nesta estrita perspectiva, aparenta não existir contradição, pelo menos explícita, entre os fundamentos de ambas as decisões em confronto.
Todavia, propendemos a entender que também esta problemática deve ser vista sob o prisma do comando ínsito no art. 608º do CPC, segundo o qual, como vem sendo entendido, a expressão «questões» se prende com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir, mas, de modo algum se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que se funda a controvérsia. Assim sendo, a aferição da existência da oposição expressa há-de ser feita em relação à questão ou questões concretamente decididas nas decisões e não aos argumentos ou fundamentos nelas utilizados, asserção cuja pertinência se mantém ainda que uma das decisões não expresse inteiramente o raciocínio lógico que lhe esteve subjacente, até porque, normalmente, se deve à assunção, explícita ou implícita, de diferentes fundamentos jurídicos a obtenção de uma distinta solução para a idêntica questão de direito concretamente suscitada, por serem esses fundamentos que condicionam, «de forma decisiva e determinante, a decisão proferida num e noutro acórdão» ([2]).
Ora, a essa luz, é inegável que ambos os acórdãos, independentemente da argumentação que utilizaram, decidiram de modo radicalmente discordante a análoga questão fundamental de direito, fazendo das mesmas disposições legais uma interpretação e aplicação opostas.

2. O montante da prestação a cargo do FGADM.
Segundo o recorrente, a decisão de 7/1/2016 (mencionada em 6.), proferida após a prolação do citado AUJ, deveria ter alterado para montante não superior ao fixado para o progenitor incumpridor a prestação de alimentos em pagamento (a cargo do FGADM), estipulada pela decisão de 14/9/2012, sucessivamente renovada por decisões proferidas em 16/9/2013 e 13/11/2014, todas elas transitadas em julgado (cf. pontos 3 a 5). O recorrente sustenta essa sua tese no argumento de que aquela decisão de 14/9/2012 seria alterável pela de 7/1/2016, por ser esta uma nova decisão final e ser proferida em processo de jurisdição voluntária.
Salvo o devido respeito, essa tese não tem bom amparo, pelas razões que passamos a sintetizar.

2.1. O acórdão de 19/3/2015 (p. 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A), in DR, I, 85, de 4/5/2015, uniformizou jurisprudência nos termos seguintes: «Nos termos do disposto no artigo 2° da Lei n. 75/98, de 19 de Novembro, e no artigo 3° n° 3 do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário».
Como se sabe, o interesse da certeza do direito, propiciada pela uniformidade e previsibilidade da jurisprudência e, por consequência, da unidade interpretativa e aplicativa do direito ([3]) recomenda que sobre questões objecto de controvérsia jurisprudencial seja estabelecida a interpretação a perfilhar pelos tribunais, incluindo o próprio Supremo. Embora não seja vinculativo, o sentido interpretativo alcançado por via dessa jurisprudência qualificada, afirmada nos acórdãos uniformizadores, dado o seu valor reforçado, só pode ser arredado na concreta resolução da questão de direito, mediante uma fundamentação convincente, baseada, designadamente, no desenvolvimento de argumentos novos e de grande peso relativo, que, porventura, não tenham sido ponderados aquando da uniformização e susceptíveis de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada ou tornar, assim, patente que a evolução jurisprudencial e doutrinal alterou significativamente o consenso formado ([4]).
Porém, como veremos, o fulcro da questão posta neste recurso consiste em averiguar se a Sra. Juíza de 1ª instância, ao proferir a discutida decisão (de 7/1/2016), deveria (ou poderia), realmente, reduzir o montante da prestação que estava a ser suportada pelo Estado, com fundamento na jurisprudência entretanto uniformizada pelo STJ.

2.2. Também convergimos com o entendimento expresso pela recorrente quanto à natureza, dita de jurisdição voluntária, do processado em que foi prolatada a decisão criticada, embora se conheça a falta de total consenso sobre a matéria ([5]).
Com efeito, ao instituir na nossa ordem jurídica a garantia pelo Estado da subsistência dos menores, perante a falta ou o incumprimento das pessoas que, normalmente, o deveriam fazer, o legislador careceu de, em parte, disciplinar, específica e avulsamente (através das regras previstas nos arts. 3º da Lei 75/98 e 9º, nº 4, do DL nº 164/99), a tramitação do incidente de garantia dos alimentos a cargo do FGADM, fazendo-a inserir no procedimento de incumprimento do devedor originário, que estava previsto no art. 189º da OTM ([6]).
Contudo, não se vislumbram que eventuais propósitos, evidentemente não explicitados, poderia ter o legislador para conferir à específica tramitação criada por essa via a veste dum processo especial avulso com natureza diversa da do processado ou incidente em que passou a ser inserida, sendo essa natureza, como se sabe, a inerente aos processos ditos de jurisdição voluntária, como sucede com o processo de regulação das responsabilidades parentais e os seus incidentes (art. 150º da OTM ([7])). E, ainda menos, atingimos que possíveis razões levariam o legislador a subtrair o julgamento deste novo incidente – que, insistimos, é enxertado em processo de jurisdição voluntária – ao critério definido no art. 987º do CPC, ou seja, ao predomínio da equidade sobre a legalidade estrita, à não sujeição do julgador, nas suas resoluções, a critérios normativos rigorosamente fixados, nem sempre aptos à obtenção das soluções ética e socialmente ajustadas.

2.3. Se, até aqui, no essencial, nos mantivemos em sintonia com o sentido da argumentação expendida no recurso, já não acompanhamos a ilação que a recorrente, aparentemente, daí retira sobre a incondicional alterabilidade das resoluções tomadas em tal incidente, que, pelo que se nos afigura, assenta num equívoco.
Na verdade, o caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos (ditos de jurisdição contenciosa) e com a mesma força e eficácia. Apenas sucede é que as resoluções tomadas no âmbito do incidente em apreço, como as decisões proferidas nos demais processos de jurisdição voluntária, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como se admite no normativo contido no art. 988º do CPC ([8])).
Como parece evidente, sob pena de desrespeito do prestígio dos tribunais, da certeza do direito e da prevenção do risco da decisão inútil ([9]), a especificidade ora dilucidada não faz desaparecer a eficácia do caso julgado da decisão anteriormente produzida em processo de jurisdição voluntária. Tal particularismo apenas sujeita o caso julgado a uma espécie de cláusula rebus sic stantibus e, por isso, a uma eventual condição temporal.
E, por outro lado, para além de o princípio da alterabilidade das resoluções tomadas em processos de jurisdição voluntária não ter carácter absoluto, devendo, pois, ser aplicado com especial prudência, as «circunstâncias supervenientes», a que o preceito citado alude, justificativas da modificação daquela anterior decisão, hão-de reconduzir-se aos factos em si mesmos, a realidades sobrevindas, com reflexo na alteração substancial da «causa de pedir» – no conceito previsto no art. 581º do CPC –, nada tendo a ver com a eventual posterior invocação de uma diversa qualificação atribuída àqueles factos ou com uma diferente interpretação jurídica sobre situações de facto. Assim sendo, a publicitação do citado acórdão uniformizador não constitui alteração da situação de facto existente no momento da decisão inicial.
Ora, sem a eventual demonstração de «circunstâncias supervenientes», a Sra. Juíza não tinha de se pronunciar – e não o fez – sobre o montante da prestação decidido em 14/9/2012, o qual se mantém tal como desde que foi fixado e o FGADM vem pagando desde Outubro de 2012. Aliás, também não foram objecto de impugnação, quer essa decisão quer qualquer das que, posteriormente, procederam à reanálise anual da manutenção dos pressupostos desse encargo. Além disso, como mera decorrência do exposto, sem a demonstração de um eventual diferente quadro factual superveniente e a subsequente pronúncia judicial sobre o mesmo não se verifica nessas sucessivas reanálises anuais (obrigatórias) a “novidade” decisória a que o recorrente se refere.
Portanto, quanto àquele segmento (montante da prestação alimentícia) da decisão proferida em 14/9/2012 verifica-se, a nosso ver, caso julgado, que tem de ser respeitado, nos específicos termos supra enunciados.
É claro, por conseguinte, que, sem a pronúncia sobre um (eventual) diferente quadro factual superveniente e com fundamento exclusivo na interpretação jurídica entretanto estabelecida através do falado AUJ de 19/3/2015, a Sra. Juíza da 1ª instância, ao proceder à reapreciação anual dos pressupostos que estiveram na base da intervenção do FGADM, não deveria nem poderia alterar, quanto ao montante da prestação, a decisão (transitada em julgado) que determinara essa intervenção.
Acresce, por fim, que o que o recorrente pôs em causa na apelação – e só nesta o fez – foi o montante da prestação de alimentos, não a manutenção dos pressupostos atinentes à respectiva responsabilidade. Por isso, tal como observou a Relação, o recorrente apenas no recurso suscitou essa «questão nova», sobre a qual também não se pronunciara a Sra. Juíza.

Tudo visto, improcede o recurso.
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Síntese conclusiva:
1. A aferição da existência da oposição expressa entre acórdãos há-de ser feita em relação à questão ou questões concretamente decididas nas decisões e não aos argumentos ou fundamentos nelas utilizados, pelo que deparamos com uma efectiva oposição expressa entre o acórdão recorrido e o de uma outra Relação se ambas as respectivas decisões, debruçando-se sobre situações com contornos e particularidades inteiramente idênticas, solucionaram de modo radicalmente discordante a análoga questão fundamental de direito, fazendo das mesmas disposições legais uma interpretação e aplicação opostas, independentemente da argumentação que utilizaram ou de numa das decisões não estar inteiramente expresso o raciocínio lógico que lhe esteve subjacente, porque, normalmente, deve-se à assunção, explícita ou implícita, de diferentes fundamentos jurídicos a obtenção de uma distinta solução para a idêntica questão de direito concretamente suscitada.
2. É o interesse da certeza do direito, propiciada pela uniformidade e previsibilidade da jurisprudência e, por consequência, da unidade interpretativa e aplicativa do direito que recomenda que sobre questões objecto de controvérsia jurisprudencial seja estabelecida a interpretação a perfilhar pelos tribunais, incluindo o próprio Supremo, a qual só poderá ser arredada mediante uma fundamentação convincente e baseada no desenvolvimento de argumentos novos e de grande peso relativo, susceptíveis de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada e que tornem patente que a evolução jurisprudencial e doutrinal alterou significativamente o consenso formado.
3. Não existem razões para que à tramitação do incidente da garantia dos alimentos a cargo do FGADM, embora estabelecida, em parte, em regras avulsas (arts. 3º da Lei 75/98 e 9º, nº 4, do DL nº 164/99), seja conferida natureza diversa da do processado ou incidente de incumprimento do devedor originário (art. 189º da OTM e, agora, art. 48º do RGPTC, aprovado pela Lei 141/2015 de 8/9), em que passou a ser inserida, sendo essa natureza a inerente aos processos ditos de jurisdição voluntária, como sucede com o processo de regulação das responsabilidades parentais e os seus incidentes (art. 150º da OTM e, agora, art. 12º do RGPTC). E, como tal, não está o julgamento desse novo incidente – enxertado em processo de jurisdição voluntária – subtraído ao critério definido no art. 987º do CPC, ou seja, ao predomínio da equidade sobre a legalidade estrita, à não sujeição do julgador, nas suas resoluções, a critérios normativos rigorosamente fixados, nem sempre aptos à obtenção das soluções ética e socialmente ajustadas.
4. O caso julgado forma-se no processo chamado de jurisdição voluntária nos mesmos termos em que se forma nos demais processos e com a mesma força e eficácia. Apenas sucede que as resoluções naqueles tomadas, apesar de cobertas pelo caso julgado, não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como o admite o art. 988º do CPC).
5. As «circunstâncias supervenientes», a que o preceito citado alude, justificativas da alterabilidade das resoluções tomadas em processos de jurisdição voluntária hão-de reconduzir-se aos factos em si mesmos, a realidades sobrevindas, com reflexo na alteração substancial da «causa de pedir» – no conceito previsto no art. 581º do CPC –, nada tendo a ver com a eventual posterior invocação de uma diversa qualificação atribuída àqueles factos ou com uma diferente interpretação jurídica sobre situações de facto. Assim sendo, para tal efeito, a publicitação dum acórdão uniformizador de jurisprudência não constitui alteração da situação de facto existente no momento da decisão inicial.
6. Por conseguinte, sem a eventual demonstração de «circunstâncias supervenientes» e, por isso, sem a pronúncia sobre esse (eventual) diferente quadro factual superveniente, não deve nem pode o juiz, com fundamento exclusivo na interpretação jurídica entretanto estabelecida através dum AUJ, alterar a anterior decisão transitada em julgado.
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Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 13 de Setembro de 2016


Alexandre Reis (Relator)

Sebastião Póvoas

Paulo Sá
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[1] Que lembrou, com apoio no Ac. deste Tribunal de 13-07-2010 (4210/06.9TBGMR.S1 – Hélder Roque) que a «oposição deve incidir sobre decisões expressas, não sendo suficiente uma diversidade, meramente implícita ou pressuposta».
[2] V. ac. do STJ de 13/7/2010 (4210/06.9TBGMR.S1 – Hélder Roque).
[3] Cf. art. 8º nº 3 do CC.
[4] Neste sentido, os Acs. Deste Tribunal de 12/5/2016 (982/10.4TBPTL.G1-A.S1 – Abrantes Geraldes) e de 11-09-2014 (3871/12.4 TBVFR-A.P1.S1 – Bettencourt Faria), este, com o sumário: «Não basta não se concordar com o entendimento de um acórdão uniformizador. Para decidir em sentido contrário é necessário trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa».
[5] Em sentido oposto ao explicitado, v. os acórdãos da RG de 8/10/2015 (3901/04.3TBBCL.G1 – Isabel Silva) e da RP de 7/4/2016 (988/09.6TMPRT-A.P2 – Fernando Samões).
[6] E, agora, no art. 48º do RGPTC, aprovado pela Lei 141/2015 de 8/9.
[7] Agora, art. 12º do RGPTC.
[8] «Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração».
[9] Em suma, de que «o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior» (580º nº 2 do CPC).