Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6543/13.9YYPRT-A.P1-A.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO SUBSTANCIALMENTE IDÊNTICA
Data da Decisão Sumária: 02/10/2015
Votação: -----
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 721.º-A, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 671.º, N.º3, 672.º, N.º1
Sumário :
1. Confirmando a Relação a decisão de 1ª instância, sem qualquer voto de vencido, a admissibilidade do recurso de revista está dependente do facto de ser empregue fundamentação substancialmente diferente (art. 671º, nº 3, do CPC de 2013)

2. Tal não sucede quando a Relação se limita a reforçar, em termos cumulativos ou subsidiários, a fundamentação empregue pela 1ª instância.

Decisão Texto Integral:
1. AA – FUTEBOL, S.A.D., veio reclamar do despacho do relator que na Relação rejeitou o recurso de revista interposto de acórdão proferido no âmbito de oposição à execução que lhe foi movida pelo BB – FUTEBOL, S.A.D.

Alega que não se verifica uma situação de dupla conforme obstativa do recurso de revista normal. Para o efeito argumenta que as questões abordadas nos presentes autos não foram sequer apreciadas, sendo que a oponente não efectuou o pagamento cuja verificação esteve na base das decisões que declararam a inutilidade superveniente, limitando-se a remeter o cheque respeitante à quantia exequenda para a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, a fim de evitar a aplicação de sanções desportivas. Alega ainda que não se compreende onde foi sustentada a decisão das instâncias a respeito da inutilidade superveniente. E que uma e outra actuaram num quadro normativo afectado por inconstitucionalidade. E ainda que a decisão da 1ª instância constituiu uma decisão-surpresa, em violação do princípio do contraditório, correspondendo a uma denegação de justiça.

Alega ainda – agora incidindo sobre o que realmente interessaria à admissibilidade da revista – que a fundamentação empregue pelas instâncias “não é absolutamente coincidente”, de tal maneira que a “fundamentação «acrescida»” (sic) empregue pela Relação “carece de ser sindicada, não formando dupla conforme”.

A parte contrária nada disse.

É evidente que a reclamação não procede, na medida em que o acórdão da Relação, para além de confirmar, sem voto de vencido, a decisão da 1ª instância, se conteve nos limites da fundamentação substancial que por esta foi empregue.


2. O acórdão recorrido incidiu sobre uma decisão judicial da 1ª instância proferida em 17-2-14, sendo aplicável ao recurso interposto pela reclamante o disposto no art. 671º, nº 3, do CPC, nos termos do qual não é admissível revista quando a Relação confirme, sem voto de vencido, e com fundamentação substancialmente idêntica, a decisão da primeira instância.

2.1. Testada a figura da dupla conforme no agravo em 2ª instância que estava regulado no art. 754º, nº 2, do anterior CPC, a sua generalização ocorreu com a reforma do regime dos recursos de 2007, prosseguindo o objectivo de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Tal não ocorreu sem discussão em que, de um lado, se advogava a manutenção do sistema anterior que, em regra, apenas condicionava o terceiro grau de jurisdição pelo critério do valor do processo e da sucumbência e, do outro, os que sublinhavam a necessidade de reduzir a quantidade de recursos, não só como forma de racionalizar o uso dos meios processuais, como ainda de valorizar a intervenção do Supremo, com a justificação de que, em regra, basta assegurar o duplo grau de jurisdição.

O regime então consagrado levou à adopção da regra geral da inadmissibilidade de recurso em situações de dupla conforme, com excepção das três situações particulares enunciadas no nº 1 art. 721º-A do anterior CPC (a que agora corresponde o nº 1 do art. 672º), abrindo a possibilidade de interposição de revista excepcional.

Se, em abstracto, a multiplicidade de graus de jurisdição constitui elemento potenciador de maior segurança jurídica, também é certo que os meios disponíveis para a tarefa de administração da justiça são limitados e que a necessidade de alcançar uma decisão definitiva em tempo razoável não é compatível com o esgotamento da multiplicidade de recursos.

2.2. Na sua versão inicial, tal medida restritiva era totalmente independente da fundamentação de cada uma das decisões. Porém, no âmbito da revisão do CPC de 1961 (depois convertida na aprovação de um novo CPC), acabou por ser valorizada também a fundamentação, ante a consideração de que, embora as decisões sejam concordantes quanto ao resultado final, não devem ser tratadas com indiferença as situações em que as instâncias utilizem motivação substancialmente diversa, alcançando um resultado conforme seguindo vias distintas.

No horizonte desta modificação estiveram as situações, ainda que pouco frequentes, em que a confirmação da decisão da 1ª instância se processa a partir de um quadro normativo substancialmente diverso, como sucede nos casos em que a uma determinada qualificação contratual se sucede uma outra distinta que implica um diverso enquadramento jurídico. Ou aquelas em que a condenação tenha sido sustentada na aplicação das regras de um determinado contrato, sendo confirmada pela Relação ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa ou das normas que regulam os efeitos da nulidade do mesmo contrato. Ou quando um determinado resultado tenha sido baseado na apreciação da validade de um contrato e a Relação, oficiosamente, reconheça a existência de nulidade que nenhuma das partes invocou. Ou, ainda, se a primeira decisão absolveu o réu da instância com fundamento numa determinada excepção dilatória e a Relação fundou a mesma decisão noutra excepção.

Na realidade, em cada uma destas situações exemplificadas, posto que o resultado final seja idêntico, a diversidade do percurso acaba por nos revelar duas decisões substancialmente diversas, não se justificando a ablação do terceiro grau de jurisdição.

2.3. A alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representam efectivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na não aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado. Ou também quando a Relação, para confirmar o resultado declarado pela 1ª instância, tenha aderido à fundamentação utilizada, acrescentando, como reforço, em termos cumulativos ou subsidiários, outros fundamentos.

Com efeito, a restrição ao conceito de dupla conformidade que resulta do regime actual não pode servir de pretexto para restaurar de pleno o terceiro grau de jurisdição que o legislador de 2007 limitou e que o NCPC seguramente não pretendeu reintroduzir, tanto mais que se mantêm as vantagens que uma tal restrição assegura, por evitar o recurso indiscriminado ao Supremo Tribunal de Justiça, só porque o valor do processo ou da sucumbência o permite.

Na verdade, a restrição que foi assumida, apertando o critério da dupla conformidade, não pode servir – ainda que o quotidiano judiciário revele sucessivas tentativas nesse sentido – para superar, por via de meros juízos valorativos, o obstáculo levantado ao terceiro grau de jurisdição, num sistema que manteve generalizadamente aberto o canal do segundo grau de jurisdição em função do valor do processo ou da sucumbência.

O caminho que pode ser trilhado em determinadas situações em que a parte pretenda precaver-se contra a inadmissibilidade da revista normal, por consideração da existência de uma dupla conforme decorrente da identidade do resultado e da similitude da fundamentação, deve passar por outro mecanismo que a lei também prevê e que se traduz na invocação, ainda que a título subsidiário, de algum dos três fundamentos que podem abrir a porta à admissibilidade da revista excepcional, nos termos do art. 672º do CPC.


3. Como se adivinhava, a introdução daquela nuance, para além, de suscitar naturais dúvidas interpretativas e dificuldades de concretização, também veio incrementar as tentativas de contornar o impedimento ao terceiro grau de jurisdição através da invocação da diversidade de fundamentação.

3.1. O caso concreto é disso o exemplo, sendo que a resposta negativa à pretensão da reclamante nos parece inequívoca.

Não está em causa neste momento apreciar o mérito da solução dada pela 1ª instância e confirmada pela Relação. Neste momento, o que unicamente importa apreciar é se se verifica ou não o pressuposto da recorribilidade - diversidade da fundamentação - que permita à exequente aceder a este Supremo Tribunal de Justiça. Só depois de ultrapassado esse degrau é legítimo sindicar o acórdão recorrido e a respectiva fundamentação.

Ora, no caso concreto, confrontamo-nos com duas decisões que comungam daquilo que era essencial para sustentar o resultado concordante que pelas mesmas foi estabelecido.

A fundamentação empregue pela Relação para julgar a apelação interposta pela exequente revela-se substancialmente idêntica à que foi utilizada pela 1ª instância para declarar a extinção da oposição, por inutilidade superveniente da lide, residindo a diferença unicamente na fortaleza da motivação que foi empregue pela Relação em resposta ao recurso de apelação.

3.2. Como já se disse anteriormente, de modo algum se compreenderia que a utilização de uma argumentação mais reforçada do que que foi utilizada pela 1ª instância pudesse servir para ampliar os graus de recurso.

No caso concreto o eixo fundamental de cada uma das decisões é o mesmo, girando em torno da verificação e afirmação da existência de um comportamento que foi adoptado pela executada e que, tendo sido classificado como efectivo pagamento da dívida, foi considerado pertinente para determinar a extinção da oposição à execução por inutilidade superveniente da lide. Em ambas as decisões foi afirmada ainda a inatendibilidade de pagamentos condicionais.

Neste contexto, os argumentos adicionais que a Relação utilizou são apenas isso: argumentos adicionais que não equivalem sequer nem a novas nem a diversas questões que tenham sido apreciadas.

Tal como a 1ª instância, a Relação acabou por considerar que a actuação da executada traduziu um acto que despoletou a inutilidade superveniente da oposição, considerando prejudicadas as demais questões que a apelante suscitara e que, na realidade, não interessava apreciar em face do resultado que acabou por ser integralmente confirmado.

Não constitui argumento que viabilize a admissibilidade da revista o facto de a Relação não ter apreciado determinadas questões suscitadas no âmbito da apelação, uma vez que então considerou que tais questões estavam prejudicadas pela resposta que foi dada à questão essencial em torno da utilidade da discussão dessas questões no âmbito da oposição.

Se, como é natural, o objectivo da oposição era o de obter a extinção da execução – e apenas isso – e se esse objectivo estava prejudicado pela verificação de uma situação que foi considerada como cumprimento espontâneo da obrigação exequenda, o facto de não terem sido apreciadas outras questões que foram invocadas pela apelante não interfere na admissibilidade da revista, considerando a relação de “conformidade” que se verificou entre o acórdão da Relação e a decisão da 1ª instância relativamente àquele ponto crucial.

Do mesmo modo, os demais argumentos em torno do mérito do acórdão da Relação apenas poderiam ser analisados, como se disse, depois de ser ultrapassado o obstáculo que foi colocado pela situação de dupla conforme.


V – Face ao exposto, indefere-se a reclamação, confirmando o despacho reclamado.

Custas da reclamação a cargo da reclamante.

Notifique.

Lisboa, 10-2-15


Abrantes Geraldes