Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
354/12.6GASXL.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: INIMPUTABILIDADE
IMPUTABILIDADE
CULPA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
PENA DE PRISÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
CONDIÇÕES PESSOAIS
ARGUIDO
VÍTIMA
CÔNJUGE
INCÊNDIO
ALCOOLISMO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 07/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - PRESSUPOSTOS DA PUNIÇÃO / FORMAS DO CRIME - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
Doutrina:
- Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, Parte Geral, I, pp. 438-439.
- Figueiredo Dias, Direito Penal, I, 2ª ed., pp. 583 ss.
- Roxin, Derecho Penal, I, § 20, nºs 32 ss.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 20.º, N.ºS 1, 2 E 3, 71.º, 132.º, N.º2, ALS. B) E H).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 7.6.1995, PROC. Nº 46858; E, MAIS RECENTEMENTE, OS ACÓRDÃOS DE 27.1.2010, PROC. Nº 401/07.3JELSB.L1.S1; DE 13.4.2011, PROC. Nº 693/09.3JABRG.P2.S1; E DE 26.6.2013, PROC. Nº 10/11.2JAGRD.C1.S1.
Sumário :

I - A conceção da imputabilidade diminuída, fundada na diminuição da culpa, não tem correspondência na lei penal vigente. O art. 20.º, n.ºs 2 e 3, do CP prevêem casos em que apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assimilá-la à de autêntica inimputabilidade (a do n.º 1). Trata-se de situações de imputabilidade duvidosa.
II - Os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos nos n.ºs 2 e 3 do art. 20.º do CP. Se o tribunal considerar o agente imputável, estamos perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina nem sequer prevê a atenuação da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa.
III -Na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, reflectidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponde uma pena necessariamente mais grave.
IV - Aquando da prática do crime de homicídio qualificado tentado, o arguido encontrava-se alcoolizado, sendo que o alcoolismo que sofria, persistente na ocasião do crime, terá afectado de alguma forma a sua capacidade de autodeterminação. Estamos perante um caso de imputabilidade diminuída, porém, daí não decorre uma situação de diminuição de culpa, a determinar uma atenuação da pena.
V - Tendo em conta que o crime de homicídio foi qualificado não só por a vítima ser mulher do arguido mas também pela prática de um crime de incêndio, não pode desprezar-se a valoração de todo o processo executivo adotado pelo arguido, caracterizado por uma enorme insensibilidade perante a vida humana e por uma crueldade acima da “normalidade”. O alcoolismo, se influiu na prática do crime, não tem qualquer efeito desagravante da culpa, pois as qualidades pessoais reveladas pelo arguido, confirmadas pelas frequentes situações de conflito com a ofendida, derivadas do consumo excessivo de álcool, são manifestamente desvaliosas para o direito, situando-se a culpa num nível muito elevado. Mostrando-se adequada a condenação em 9 anos e 6 meses de prisão.
Decisão Texto Integral:

                Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

AA, com os sinais dos autos, foi condenado, por acórdão do tribunal coletivo do 1.º Juízo Criminal do Seixal de 12.9.2013, como autor material de um crime tentado de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, b) e h), 22º, 23º e 73º, todos do Código Penal (CP), na pena de 9 anos e 6 meses de prisão.

            Desse acórdão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a redução da pena. Por acórdão de 30.1.2014, a Relação negou provimento ao recurso.

            Novamente inconformado, recorreu o arguido para este Supremo Tribunal, concluindo:

I - Objeto do Recurso:

Vem o presente recurso interposto do aliás douto acórdão de fls. proferido nos autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo acima identificados, que condenou o arguido AA em 9 anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. nos termos dos artº 131°, 132°, n. º 1 e 2 alíneas b) e h), 22° e 73° todos do Código Penal.

No mesmo acórdão, foi também o arguido condenado no pagamento de uma indemnização à ofendida para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais por esta sofridos, bem como ao pagamento, ao Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E, da quantia correspondente aos serviços de saúde por este prestados à ofendida.

Entende o arguido, ora recorrente, que, face à factualidade dada como provada em juízo e ao Direito aplicável, a pena aplicada revela-se demasiado severa.

II- Dos factos:

Como melhor consta do douto acórdão, ficou provado, entre outros factos, que:

- o arguido é casado com a ofendida desde há cerca de trinta anos tendo nascido dessa relação dois filhos, ambos maiores de idade;

- residia com a ofendida e os filhos do casal, sendo frequentes nos últimos tempos situações de conflito derivadas do excessivo consumo do álcool pelo arguido e ausências deste, registando o arguido diversas situações de instabilidade psicológica no decurso das quais era visto a falar sozinho;

- no dia 7/07/2012 pelas 23.50h o arguido, no interior da residência, encetou uma discussão com a ofendida;

- no decurso dessa discussão, quando já se encontravam no quarto de dormir de ambos, o arguido trancou a porta desse quarto e dirigindo-se à ofendida disse que iriam ambos morrer;

- de seguida lançou gasolina sobre a cama do casal e com o auxílio de um isqueiro ateou fogo a uma colher de pau com um pano envolvido molhado com gasolina, lançando a colher de pau já com o fogo ateado, sobre a cama do casal, pegando fogo à cama, o qual se propagou pelo quarto e pelos corpos do arguido e da ofendida;

- momentos depois BB e CC acorreram em auxílio da ofendida, tentaram abrir a porta do quarto que se encontrava fechada à chave, partindo-a, acabando esta por se abrir de modo não concretamente apurado, assim conseguindo retirar a ofendida do quarto colocando-lhe uma toalha molhada no corpo;

- o arguido encontrava-se alcoolizado e é consumidor de bebidas alcoólicas há cerca de trinta anos, apresentando um quadro clínico de perturbação por uso de álcool, dependência de álcool, caracterizado por um modo de consumo de álcool em padrão de abuso, com dificuldade em reduzir ou suspender o consumo e de insuficiência no funcionamento social;

- o arguido encontrava-se alcoolizado, mas ciente das consequências da sua conduta, agiu livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade da sua conduta, não demonstrou arrependimento nem valoração crítica da sua conduta;

- já foi condenado em 2010 pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez;

- o arguido trabalhava como ladrilhador por conta própria e à data dos factos atravessava um período de dificuldades financeiras;

- a ofendida sofreu queimaduras com uma extensão aproximada de 20% da superfície corporal, tendo estado internada até 16/08/2012 na unidade de queimados do Hospital de S. José, transitando depois para a enfermaria dos serviços de cirurgia plástica, com alta hospitalar em 23/0812012, apresentando queimaduras do 2º grau, stress pós traumático e perturbações do equilíbrio, lesões essas ainda não completamente consolidadas;

- o arguido declarou ainda apenas se recordar que no dia dos factos saiu cedo de casa, por volta das sete horas, começou logo a beber, mais assumiu que consumia bebidas alcoólicas em excesso.

O Tribunal a quo fundamentou-se, na apreciação dos factos, na convicção formada pela confrontação das declarações prestadas pelo arguido, pela assistente e nos depoimentos das testemunhas.

III- Do Direito:

Com base nos factos provados, o Tribunal a quo formulou a sua convicção e decidiu.

Na fixação da medida da pena é necessário ordenar, relacionando-as, a culpa, a prevenção geral e a prevenção especial, tendo-se, para isso, em conta os quadros agravativos e atenuativos, sob pena de se frustrarem as finalidades da sanção, ou seja, a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do arguido na sociedade.

Atentos os factos provados, e a esses teremos que nos reportar, há que valorar, para aferir e determinar a medida da pena, o grau de culpa do agente - devendo o facto ilícito ser valorado em função do seu efeito externo -, e, por outro lado, atender às necessidades de prevenção - cfr. artigo 71º do Código Penal.

Na determinação da medida da pena há que, num primeiro momento, escolher o fim da pena, depois há que fixar os factores que influem no seu doseamento, tecendo-se, por fim, os considerandos que fundamentam a pena concreta aplicável. Aliás, "na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos das penas" cfr. art. 71º, n.º 3.

O Tribunal a quo violou, como segundo se demonstrará, o disposto no artigo 71° do Código Penal, por incorrecta e imprecisa aplicação.

Efetivamente, se atendermos ao facto do álcool prejudicar as capacidades de antecipação, de previsão e de decisão, do alcoolismo ter semelhanças manifestas com a dependência do consumo de estupefacientes e ao facto, claramente demonstrado, que o recorrente se encontrava alcoolizado à data da prática dos factos, quadro clínico de dependência do qual que aliás já padece há mais de trinta anos, dúvidas não podem restar que o mesmo se encontrava limitado na sua capacidade de discernimento quanto à sua atuação como o próprio referiu em sede de julgamento.

Considerando os, salvo melhor opinião, escassos factos provados sobre as concretas circunstâncias da prática do crime, sobre a conduta anterior e posterior à prática dos factos, quer sobre a personalidade do agente, a sua integração social, as suas condições pessoais, nomeadamente familiares, deverão pender a favor do arguido, seja por aplicação do princípio geral "in dubio pro reo", seja pelo facto da falta de fundamentos para penalizar o arguido.

Na verdade, afirmar que «o arguido encontrava-se alcoolizado, mas ciente das consequências da sua conduta, agiu livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade da sua conduta, não demonstrou arrependimento nem valoração crítica da sua conduta» carece de fundamentação.

Com efeito, a imputabilidade deve assentar na capacidade do agente, no momento da prática dos factos, avaliar a ilicitude do mesmo e agir de acordo com essa avaliação. Ora, estando o arguido num estado de embriaguez contínuo, agravado pela falta de trabalho e pelos problemas financeiros da sua empresa, parece-nos salvo melhor opinião estarem reunidos os requisitos do art° 20° nº 1 do Código Penal, visto estar diminuída a sua capacidade de querer e de entender, ao que acresce o facto de não se ter colocado intencionalmente nesse estado para executar o desígnio criminoso.

Há que respeitar a livre apreciação da prova e a convicção do Tribunal, sem, contudo, se descurar o facto de assistir ao arguido o direito de exigir que o acórdão que determina a sua condenação - em especial a privação da sua liberdade - seja criteriosamente fundamentado e se sustente em factos que permitam, só por si, valorar o grau de ilicitude e a intensidade do dolo, bem como as exigências de prevenção, nomeadamente, as exigências de prevenção especial.

Ao condenar o arguido em nove anos e seis meses de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. nos termos dos artº 131º, 132°, n.º 1 e 2 alíneas b) e h), 22° e 73° todos do Código Penal, o Tribunal a quo violou, por conseguinte, o disposto no artigo 71° do Código Penal, traduzindo-se a pena aplicada numa pena demasiado severa, atenta a factualidade considerada e a inexistência de fundamentação da douta decisão.

III- Conclusões:

1ª - A pena imposta ao ora recorrente é excessiva e deve ser reduzida.

2ª - Foi, assim, violado o artigo 71° do Código Penal.

Respondeu o sr. Procurador-Geral Adjunto na Relação, dizendo, em conclusão:

1.ª Um recurso interposto para o STJ deve especificar as razões de discordância com o decidido na Relação, não podendo circunscrever-se a renovação da argumentação já aduzida, sem qualquer novidade, sob pena de equivaler a falta de motivação, conducente à sua rejeição.

2.ª A lei foi aplicada e a prova foi valorada em conformidade com os poderes de cognição do Tribunal da Relação.

3.ª Colocando o recorrente críticas apenas no âmbito da livre apreciação da prova, tal questão é insindicável pelo Tribunal «ad quem». Nesta parte, deverá rejeitar-se o recurso, por ser manifestamente improcedente (art°s 419º, n. 4, a), 420°, n. 1 e 441° do CPP).

4.ª O Tribunal a quo deu cumprimento integral ao preceituado no art° 127º do CPP e não se verificam quaisquer vícios (art° 410º CPP).

5.ª A pena imposta ao arguido (9 anos e 6 meses de prisão), pela prática de crime de homicídio qualificado, na forma tentada, mostra-se ajustada, adequada e proporcional à gravidade do crime e à culpa do agente, pois que prossegue os fins punitivos.

6.ª O Acórdão recorrido não enferma de insuficiências (omissão de pronúncia), nulidades ou irregularidades, pelo não merece qualquer censura, devendo ser mantido e confirmado nos seu precisos termo, sim negando-se provimento ao recurso.

Neste Supremo Tribunal, o sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

                2 - Do mérito do recurso:

                2.1 Emitindo parecer, como nos cumpre, sobre a questão que vem colocada [reexame da medida concreta da pena], cabe dizer o seguinte:

                2.1.1 Liminarmente, e tendo em conta que, mesmo não sendo objecto de controvérsia, sempre a questão cabe, nesta sede, nos poderes, oficiosos, de cognição deste Tribunal, sublinhar que nos não merece qualquer reparo a qualificação jurídica dos factos operada pela 1.ª Instância e confirmada pela Relação, isto mesmo na parte em que convoca as supra referidas circunstâncias qualificativas das alíneas b) e h) do n.º 2 do art. 132.º do CPP, como susceptíveis de evidenciar uma densidade acrescida de culpa do arguido na prática da tentativa de homicídio em causa nos autos.

                Revemo-nos pois, sem necessidade de mais desenvolvidas considerações, no enunciado daquelas circunstâncias a este propósito feito, em 1.ª Instância, pelo Tribunal Colectivo, dele extraindo igualmente, sem sombra de dúvidas, mostrar-se verificada a censurabilidade acrescida que é pressuposto da convocação ao caso destas agravantes qualificativas. A ponderação das circunstâncias concretas da prática do homicídio serão portanto, também em nosso juízo, de molde a inculcar a ideia daquela diferença essencial de grau susceptível de, como diz Teresa Serra, preencher também o chamado Leitbild destes dois exemplos-padrão.

                2.1.2 Aqui chegados, e assim no quadro do homicídio qualificado pelas circunstâncias densificadas nas duas mencionadas alíneas do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, vejamos então se terão ou não sido ajustadas as consequências jurídicas do facto determinadas pela decisão impugnada, em sede de medida concreta da pena aplicada: 9 anos e 6 meses de prisão.

                Nesse desiderato, há que começar por evidenciar que o recorrente contesta essa medida, mas a verdade é que, se bem lermos os fundamentos para tanto aduzidos na sua motivação, ele se limita para tanto a meras considerações, pouco menos do que conclusivas, a propósito dos critérios legais densificados no art. 71.º do Código Penal, sem elencar, em bom rigor, os factos/circunstâncias concretas em que sustenta a sua pretensão. Nem sequer tem uma palavra de contestação ou de crítica a propósito das circunstâncias de que se serviu o aresto impugnado, estas devidamente explicitadas no seu ponto “3. Direito”.
Ora, e como é por demais sabido, a graduação da medida concreta da pena deve ser efectuada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção no caso concreto (art. 71.º, n.º 1 do CP), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2).
Nos termos do art. 40.º, n.º 1, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na ordem jurídico-penal (prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial positiva), sendo certo que, como também se sabe, a referência (legal) aos bens jurídicos conforma uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade de pena e a gravidade do facto praticado, a qual, desta forma, integra o conteúdo e o limite da prevenção.
Mas, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2 do mesmo art. 71.º), sendo certo que “disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva” (Ac. STJ de 10/4/96, CJ-STJ 96, II, 168).
Por outro lado, e também com Anabela Rodrigues, há ainda que ter em conta que «no âmbito da valoração dos factores de medida da pena vigora o princípio – comummente conhecido por princípio da proibição da dupla valoração – de que não devem ser apreciados para efeitos de determinação da medida da pena aqueles factores que se referem a aspectos já tidos em consideração pelo legislador ao estatuir as molduras penais.    
Desta forma, não só os elementos do crime – ilícito, culpa e punibilidade –, como as circunstâncias modificativas – atenuantes ou agravantes, nominadas ou inominadas, resultantes de “exemplos-padrão” ou conformadoras de casos excepcionalmente graves ou pouco graves –, são abrangidos pelo princípio».
Descendo a esta luz ao caso dos autos, e tendo em conta a factualidade dada como provada, vejamos então quais são os factores relevantes, da ilicitude e da culpa, a ponderar:

Para a gravidade da ilicitude há que atender (i) ao tipo e modalidade de ofensa escolhida pelo arguido [depois de trancar a porta do quarto de dormir onde se encontrava com a ofendida, regou a roupa da cama do casal com gasolina, após o que lhe ateou o fogo com um isqueiro, por forma a que ele se propagasse, como propagou, nomeadamente ao corpo daquela], (ii) à zona do corpo atingida [cerca de 20% da superfície corporal, com inclusão das regiões frontal, cervical anterior, faces latero posteriores dos membros superiores e costal superior], (iii) à situação em que a vítima se encontrava [fechada à chave dentro do quarto, do qual não podia sair sem auxílio de terceiros, e por isso totalmente indefesa e incapaz de reagir com a rapidez necessária], e por último (iv) às lesões provocadas pela ofensa provocada [queimaduras de 2.º grau nas regiões frontal, cervical anterior, faces latero posteriores dos membros superiores e costal superior]; e respectivas consequência médico-legais [194 dias de doença, todos com afectação da capacidade para o trabalho, a que acresce Stress pós traumático e perturbações do equilíbrio].

Por sua vez, a culpa do arguido, uma vez que se trata de uma culpa concreta, ou seja a culpa pelo facto de ter agido como agiu, reflecte a gravidade da ilicitude, que é intensa uma vez que, sendo por um lado ligeiramente atenuada pela circunstância de as lesões provocadas na vítima, posto que irreversíveis, não terem, apesar de tudo, provocado sequelas particularmente relevantes, não pode por outro deixar de ser significativamente agravada quer pelo respectivo móbil, quer pelo grau de proximidade da vítima, sua mulher, frieza de ânimo/reflexão e meios utilizados.

Por outro lado, e noutra perspectiva, não pode ainda deixar de ponderar-se, como o fez aliás a 1.ª instância e foi secundado pela Relação, quer a existência de um antecedente criminal, posto que por crime de natureza diversa, quer sobretudo o facto de o arguido não ter assumido uma atitude de arrependimento e contrição, nem de valoração crítica da sua conduta, quer ainda a sua provada dependência alcoólica, circunstância a ponderar até em sede de perigosidade, justificando alguma agravação das necessidades de prevenção especial, pelo inquestionável perigo de assumpção de comportamentos semelhantes em situações similares que se lhe possam voltar a deparar.

Por último, há que dizer que as necessidades de prevenção geral não podem também ser descuradas, tanto mais que está em causa um comportamento claramente inserido no arco da criminalidade relacionada com a denominada “violência doméstica”, realidade e fenómeno com que, com acurada sensibilidade social, se depara actualmente a sociedade portuguesa, em particular nos grandes aglomerados populacionais, e cuja contenção vem cada vez mais reclamando.

                Tudo ponderado, e tendo em conta a moldura abstracta da pena correspondente ao crime cometido – prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses –, afigura-se-nos que a medida concreta da pena não poderia ter deixado de ser graduada no limiar médio da respectiva moldura penal abstracta. O mesmo é dizer que, neste quadro, a medida encontrada, de 9 anos e 6 meses de prisão, se nos afigura adequada. Por inquestionáveis exigências quer de prevenção geral – decorrentes, como vimos, da necessidade de contenção deste tipo de criminalidade –; quer de prevenção especial – tendo em conta o valor pouco significativo das atenuantes nesta sede convocáveis e a perigosidade imanente à personalidade do arguido –, não cremos que qualquer outra reacção criminal pudesse ainda realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.     

                De resto, e ex abundanti, dir-se-á por último que não cremos que o caso concreto justifique qualquer intervenção correctiva de substituição nesta sede, sendo que, como o Supremo Tribunal vem dizendo – no acolhimento aliás dos ensinamentos de Figueiredo Dias [In Direito Penal Português, II – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197] –, em recurso de revista não é de sindicar o quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção manifesta da quantificação efectuada. Pressupostos que, convenhamos, de todo se não verificam, de todo, no caso concreto.

                2.2. Parecer:

Termos em que, e sem necessidade de mais desenvolvidos considerandos, se emite parecer no sentido de que, na improcedência do recurso, é de confirmar, integralmente, o veredicto condenatório proferido.

                 Notificado nos termos do art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido nada disse.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

A única questão que o arguido coloca é a da medida da pena, que considera “demasiado severa”, imputando ao acórdão recorrido a violação do art. 71º do CP.

É a seguinte a matéria de facto apurada:

O arguido AA é casado com a DD, com quem residia desde data não apurada, até 7 de Julho de 2012, na Avenida ...;

No dia 7 de Julho de 2012, pelas 23.50 horas, no interior da referida residência, o arguido AA encetou uma discussão com DD;

No decurso dessa discussão e quando o arguido AA e DD estavam no interior do quarto de dormir daquele domicílio, o arguido trancou a porta desse quarto e, dirigindo-se a DD, disse que iriam ambos morrer.

De seguida, o arguido AA lançou gasolina sobre a cama do casal e com o auxílio de um isqueiro ateou fogo a uma colher de pau com um pano envolvido molhado com gasolina, lançando a colher de pau já com o fogo ateado, sobre a cama do casal, pegando fogo à cama, o qual se propagou pelo quarto e pelos corpos do arguido e de DD.

Momentos depois, BB e CC, ocorreram em auxílio da DD, tentaram abrir a porta do quarto que se encontrava fechada à chave, partindo-a, acabando esta por se abrir de modo não concretamente apurado, assim conseguindo retirar DD do quarto e colocando-lhe uma toalha molhada no corpo.

Em consequência directa e necessária da conduta do arguido AA, DD sofreu queimaduras com uma extensão aproximada de 20% de superfície corporal, tendo estado internada até 16-08-2012, na unidade de Queimados do Hospital de S. José, transitando depois para a Enfermaria dos Serviços de Cirurgia Plástica.

Durante o internamento fez pneumonia complicada de sepsis.

DD teve alta hospitalar em 23.08.2012.

Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, DD apresenta as seguintes lesões:

Queimaduras de 2° grau nas regiões frontal, cervical anterior, nas faces latero posteriores dos membros superiores e na costal superior;

Stress pós traumático;

Perturbações do equilíbrio.

Tais lesões ainda não se encontram completamente consolidadas e foram até ao momento causa directa e necessária de 194 dias de doença todos com igual incapacidade para o trabalho.

Ao atear o fogo à colher de pau envolvida com o pano e à cama que previamente regou com gasolina, bem sabia o arguido que fogo podia propagar-se pelo quarto e pelo corpo da sua esposa, como veio a acontecer e desse modo causar a morte da sua esposa, resultado que previu e quis.

O arguido encontrava-se alcoolizado, mas ciente das consequências da sua conduta.

Agiu livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade da sua conduta.

O arguido não demonstrou arrependimento, nem valoração crítica da sua conduta.

O arguido foi condenado em 2010 pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez em pena de multa.

O arguido é consumidor de bebidas alcoólicas há cerca de trinta anos, apresentando um quadro clínico de Perturbação por Uso de Álcool, dependência de álcool, caracterizado por um modo de consumo de álcool em padrão de abuso, com dificuldade em reduzir ou suspender o consumo e de insuficiência no funcionamento social.

Possui o 4° ano de escolaridade.

É casado com DD há cerca de trinta anos e desta relação nasceram dois filhos, ambos maiores de idade.

O arguido trabalhava como ladrilhador por conta própria e à data dos factos atravessava um período de dificuldade de obtenção de trabalhos e de dificuldades financeiras e bem assim de conflito com o sócio, seu irmão.

Residia com DD e os dois filhos adultos sendo frequentes nos últimos tempos situações de conflito derivadas do consumo excessivo de álcool pelo arguido e ausências deste, registando o arguido diversas situações de instabilidade psicológica e no decurso das quais era visto a falar sozinho.

Como vimos, o recorrente não questiona a integração dos factos no crime de homicídio qualificado (als. b) e h) do nº 2 do art. 132º do CP) e não há quaisquer razões, face à matéria de facto, para oficiosamente a pôr em crise.

Impugna, sim, a medida da pena. E, ao fazê-lo, invoca o estado de embriaguez em que se encontrava aquando da prática do crime, o que teria diminuído acentuadamente a sua capacidade de querer e entender, chegando mesmo o recorrente a invocar o art. 20º, nº 1, do CP, que prevê a inimputabilidade por anomalia psíquica.

Da matéria de facto provada resulta, como se viu, que o arguido se encontrava “alcoolizado” quando praticou o crime. E mais: que “é consumidor de bebidas alcoólicas há cerca de 30 anos, apresentando um quadro clínico de perturbação por uso de álcool, dependência de álcool, e padrão de abuso, com dificuldade em reduzir ou suspender o consumo”.

Certo é também que se provou que, mau grado o estado etílico, o arguido estava “ciente das consequências da sua conduta”; e que “agiu livre, deliberada e conscientemente ciente da punibilidade da sua conduta”.

O relatório pericial psiquiátrico (fls. 688-694) explicita: “Face aos elementos apurados, somos de parecer que à data da prática dos factos o examinando era capaz de avaliar a ilicitude dos factos, embora a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação se encontrasse diminuída dadas as fragilidades da sua personalidade e a sua situação de dependência, o que, sob o ponto de vista médico-legal, justifica uma diminuição da sua imputabilidade em relação aos factos concretos de que é arguido, caso estes se venham a provar.” (itálico nosso)

Não restam dúvidas, pois, sobre a capacidade de avaliação por parte do arguido sobre as consequências e a punibilidade da sua conduta. A capacidade de autodeterminação é que estaria diminuída, mas não anulada, de forma que a imputabilidade penal não pode ser afastada, carecendo em absoluto de fundamento a invocação do nº 1 do art. 20º do CP.

Mas estaremos perante um caso de “imputabilidade diminuída”?

Tradicionalmente, a imputabilidade diminuída era reconhecida como cobrindo as situações em que o agente está fortemente limitado na sua capacidade de avaliação da ilicitude do ato e de determinação de acordo com essa avaliação, sem que tal capacidade esteja completamente eliminada. A diminuição dessa capacidade determinaria a diminuição da culpa, o que por sua vez obrigaria à atenuação da pena[1].

Esta conceção da imputabilidade diminuída, fundada na diminuição da culpa, não tem, porém, correspondência na lei penal vigente.

É nos nºs 2 e 3 do art. 20º do CP que a lei trata das situações em que a capacidade de avaliação e autodeterminação do agente se encontra “sensivelmente diminuída”. Na verdade, o nº 2 prevê a extensão da inimputabilidade aos casos em que o agente, “por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.” E o nº 3 acrescenta que a comprovada insensibilidade do agente às sanções penais pode constituir índice da situação prevista no nº 2.

Estes dois preceitos preveem afinal casos em que, apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assimilá-la à de autêntica inimputabilidade (a do nº 1). Trata-se, pois, de situações de imputabilidade duvidosa.[2] Verdadeiramente, ao permitir a integração dessas situações na inimputabilidade, a lei admite uma inimputabilidade fictícia, uma vez que a situação não é de total carência de capacidade de avaliação e determinação. Entendeu, porém o legislador que, nos casos mais graves, o tribunal deve poder optar (“pode ser declarado inimputável…”) entre a decisão de imputabilidade ou de inimputabilidade, ou seja, entre a aplicação de uma pena ou antes de uma medida de segurança, conforme faça ou não sentido censurar eticamente a conduta do agente (nº 2), ou tentar (ainda) influenciar a sua conduta futura mediante a aplicação de uma pena (nº 3)[3].

Ou seja: os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos nºs 2 e 3 do art. 20º do CP.

No caso de o tribunal considerar o agente imputável, estaremos então perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina nem sequer prevê a atenuação da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa.

É que na determinação do grau de culpa na imputabilidade diminuída há que levar em conta as qualidades pessoais do agente, refletidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave[4].  

Aliás, na determinação concreta da pena, intervirão necessariamente os critérios definidos no art. 71º do CP, que manda atender à culpa e às exigências preventivas.

Expostas estas considerações gerais, abordemos agora o caso dos autos.

Como vimos, da matéria de facto consta que o arguido, aquando da prática do crime, se encontrava alcoolizado, mas que estava “ciente das consequências da sua conduta”.

O alcoolismo de que o arguido sofria, persistente na ocasião do crime, terá afetado de alguma forma a sua capacidade de autodeterminação. Poderemos aceitar, como sugere o relatório pericial psiquiátrico, que estamos perante um caso de imputabilidade diminuída.

Contudo, daí não decorre que haja uma situação de diminuição de culpa, a determinar uma atenuação da pena. Pelo contrário, a conduta do arguido merece uma pena agravada.

Com efeito, e tendo em conta que o crime de homicídio foi qualificado não só por a vítima ser mulher do arguido, mas também pela prática de um crime de incêndio, não podendo embora essa circunstância ser de novo valorada, não pode desprezar-se a valoração de todo o processo executivo adotado pelo arguido, caracterizado por uma enorme insensibilidade perante a vida humana, e por uma crueldade notoriamente acima da “normalidade”.

O alcoolismo, se influiu na prática do crime, não tem qualquer efeito desagravante da culpa, pois as qualidades pessoais reveladas pelo arguido neste caso, confirmadas pelas frequentes situações de conflito com a ofendida, derivadas do consumo excessivo de álcool, são manifestamente desvaliosas para o direito. O patamar da culpa situa-se, pois, num nível muito elevado.

Por outro lado, são intensas as exigências preventivas; por um lado, as referentes à prevenção geral, inserido como está o crime na criminalidade conhecida como “violência doméstica”, que o legislador penal tem procurado insistentemente combater; por outro, de prevenção especial, atentas as circunstâncias pessoais do arguido.

Sendo o crime punido com uma moldura de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão, a pena fixada (9 anos e 6 meses de prisão) mostra-se inteiramente adequada, pois não excede a culpa e protege os interesses da prevenção.

Assim, não merece provimento o recurso.

III. Decisão

Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso.

Vai o arguido condenado em 8 UC de taxa de justiça.

                                   Lisboa, 3 de julho de 2014


Maia Costa (relator)**
Pires da Graça
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[1] Assim, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, Parte Geral, I, pp. 438-439. Esta é, aliás, ainda hoje a posição da doutrina alemã, perante o § 21 do código penal alemão, que estabelece: “Se a capacidade do agente, pelas razões indicadas no § 20 [perturbação psíquica], estiver consideravelmente reduzida na prática do ato, quer para compreender o ilícito, quer para atuar de acordo com essa compreensão, a pena pode ser atenuada de acordo com o § 41, nº 1 [atenuação especial]”. Ver também Roxin, Derecho Penal, I, § 20, nºs 32 ss.
Sobre toda esta matéria, ver Figueiredo Dias, Direito Penal, I, 2ª ed., pp. 583 ss.
[2] A expressão é de Figueiredo Dias, Direito Penal, 2ª ed., p. 584.
[3] Figueiredo Dias, ob. cit., p. 587.
[4] Exatamente assim, Figueiredo Dias, ob. cit., p. 585. Na jurisprudência, ver o acórdão deste Supremo Tribunal de 7.6.1995, proc. nº 46858; e, mais recentemente, os acórdãos de 27.1.2010, proc. nº 401/07.3JELSB.L1.S1; de 13.4.2011, proc. nº 693/09.3JABRG.P2.S1; e de 26.6.2013, proc. nº 10/11.2JAGRD.C1.S1.