Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17431/19.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: BOA FÉ
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
AÇÃO DE HONORÁRIOS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ADVOGADO
Data do Acordão: 11/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA, REPRISTINANDO-SE A SENTENÇA DA 1ª INSTÂNCIA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e diretrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito, revela-se essencialmente no âmbito dos contratos.

II - Menezes Cordeiro in https://portal.oa.pt, Revista Ano 2005, vol. II, Set. 2005, define “Abuso do direito” como uma mera designação tradicional, para o que se poderia dizer “exercício disfuncional de posições jurídicas”.

III - Referindo, também, que a aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos — salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis.

IV - O abuso de direito, na modalidade “suppressio”, exige não só o decurso de um período de tempo razoável sem exercício do direito, mas também a verificação de indícios objetivos de que esse direito não irá ser exercido. Indícios objetivos esses que geram na contraparte (beneficiário do não exercício) a confiança na “inação do agente”.

V - Não se apurando o modo como o(s) pagamento(s) dos serviços prestados seria efetuado, não se pode concluir que há abuso de direito ao ser intentada ação de honorários após a conclusão dos serviços ou terminus da relação contratual, mesmo que decorrido período temporal razoável.

VI - Dos factos provados nada permitia às rés concluir que, por parte do autor, “não mais haveria exercício” do direito a receber honorários, pelo que é exercício legítimo de um direito o autor vir exigir o pagamento de honorários pelos serviços que prestou.

VII - Tendo alegado as rés na contestação que já pagaram, resulta o contrário da formação da confiança de que nada lhes seria pedido a título de honorários por aqueles serviços prestados.

Decisão Texto Integral:

***


1. AA, advogado, intentou a presente ação declarativa de condenação com a forma de processo comum, contra BB e CC, pedindo a condenação solidária das RR. no pagamento da quantia de € 68.625,00 a que acresce IVA e juros legais até integral pagamento, mais requerendo a sua citação urgente visando a interrupção da prescrição.

2. Alega, em síntese, que é advogado, e que no exercício da sua profissão prestou serviços de assessoria jurídica, que elenca, às RR. e ao falecido DD, respetivamente seu marido e pai, de quem aquelas são as únicas herdeiras, serviços que não foram pagos. Invoca serviços prestados entre 2005 a 2017, peticionando o pagamento de um montante total de honorários de € 68.625,00, acrescido de IVA e de juros de mora.

3. Devidamente citadas as RR. vieram contestar concluindo pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido. Defendem-se por exceção, invocando a prescrição presuntiva, alegando que não são devedoras de qualquer quantia, por terem sido integralmente pagos os serviços prestados pelo A., tendo decorrido mais de dois anos sobre a prestação dos serviços no âmbito do patrocínio.

4. Foi proferido despacho saneador onde foi afirmada a validade e regularidade da lide e conhecida a exceção da prescrição presuntiva invocada pelas RR. na sua contestação, ali se concluindo no sentido da improcedência da exceção da presunção de cumprimento.

5. Fixou-se o objeto do litígio e os temas da prova e foi designada data para a realização do julgamento e, realizado o mesmo, foi após proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e condenou as RR. a pagarem ao A. a quantia de € 68,025,00, acrescida IVA à taxa legal e juros de mora civis, contados desde 24/08/2019, até integral pagamento.

6. Não se conformando com o assim decidido vieram as rés interpor recurso de apelação, que mereceu a seguinte deliberação do Tribunal da Relação:

“Em face do exposto, julga-se procedente o recurso interposto pelas RR., revogando-se a sentença recorrida que se substitui por decisão que julga improcedente a ação, absolvendo as RR. do pedido formulado pelo A.

Custas da ação e do recurso pelo A.”.

9. Inconformado com o decidido pela Relação, interpôs recurso de Revista, para este STJ, o autor, formulando as seguintes conclusões:

“1. Afirma o douto acórdão ora em crise que “É por isso legítimo concluir que as RR. foram surpreendidas com este pagamento reclamado ao fim de todos estes anos“.

2. Com o devido respeito, que é muito, saber se as RR ficaram surpreendidas ou não é uma questão de facto.

3. Pelo que o douto acórdão ora em crise fundamenta a sua decisão num facto que não está dado como provado no processo.

4. O que implica a nulidade do acórdão, nos termos do art. 615º do CP Civl.

5. No facto provado 151 afirma-se que “A relação contratual existente foi próxima, sobretudo com DD e estava acordado com ele o pagamento dos honorários devidos no processo;”

6. Ao afirmar que o Rte deixou este assunto para depois da morte de DD e por teve um comportamento manifestamente desleal e contrário ao princípio da boa-fé, o douto acórdão estava a fundamentar a sua decisão em contradição com os factos provados.

7. O que implica a nulidade do acórdão, nos termos do art. 615º do CP Civl.

8. Ao considerar que o Rte praticou abuso de direito, na modalidade supressio, o douto acórdão violou o disposto no art 334º do C Civil, porque não estão verificados os pressupostos da aplicação do instituto.

9. Desde logo porque os factos dados como provados nos autos não permitem essa conclusão.

10. O próprio acórdão ao afirmar que “Tendo presente os factos que resultaram provados, é manifesto que durante um período muito alargado de tempo, cerca de 14 anos, por razões que não se apuraram, o A. não terá reclamado o pagamento dos serviços que foi prestando desde o ano de 2005”, reconhece que em relação ao principal, requisito da supressio, o decurso do tempo, as razões não foram apuradas.

11. Daí em diante o douto acórdão limita-se a especular e a procurar tirar conclusões dessas especulações, não tendo um único facto sólido que lhe permita afirmar que o Rte teve comportamento manifestamente abusivo, ou sequer abusivo.

12. Não está provado que o Rte tivesse tido algum comportamento omissivo, ou que tivesse havido alguma expetativa criada nas Rdas.

13. Analisando os requisitos da supressio, indicados por Batista Machado, não esta sequer alegada no acórdão qualquer indicação de que “a contraparte chegue à convicção justificada de que o direito já não será exercido; que, movida por essa confiança, essa contraparte tenha orientado em conformidade a sua vida, tenha tomado medidas ou adoptado programas de acção na base daquela confiança o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado”.

14. O douto acordão viola também o art. 334º do C Civil ao procurar aplicar o abuso de direito a uma situação de facto que já está abrangida pelo instituto da prescrição, que é precisamente a base legal para apurar o decurso do tempo no exercício dos direitos.

15. Contrariando assim o douto acordão o entendimento da jurisprudência desse Supremo Tribunal.

16. Acresce que entendendo o Rte que o efeito do decurso do tempo no exercício do direito já foi regulado neste caso pela aplicação do instituto da prescrição –foi invocada pelas Rdas, pretensão que foi indeferida no saneador e que as Rdas deixaram transitar – o douto acordão ao pretender aplicar a supressio está a violar caso julgado, pelo que deverá ser declarada a ineficácia do acordão ora em crise.

Termos em que, com o douto suprimento de V.Exas., deve a decisão ora recorrida ser alterada, mantendo-se a sentença proferida na 1ª instância”.

Contra-alegaram as rés requerendo: “que seja negada procedência à Revista, confirmando-se na integra o douto Acórdão recorrido”.


*


O recurso foi admitido.

Cumpre apreciar e decidir.


*


Nas Instâncias foram julgados como provados os seguintes factos:

“1. O Autor é advogado, inscrito na Ordem dos Advogados, com a cédula profissional nº 9…0... do Conselho Distrital de …, e faz da advocacia a sua profissão;

2. No exercício da sua profissão, o A foi mandatado pelas RR e por DD, falecido e de quem as RR. são as únicas herdeiras, para os representar e assessorar juridicamente em todo o processo de investimento no …, no que viria a ser o empreendimento P… e da gestão da participação societária e de administração na sociedade … P…. Ltda, com acompanhamento de todas as vicissitudes legais, negociais e contratuais; (alterado)

3. Esses serviços foram prestados pelo A. entre os anos de 2005 e 2017 à medida que foram sendo solicitados pelas RR e sobretudo por DD, a pessoa que liderava o negócio;

4. Consistiram na prestação de serviços de consultoria, informação e assistência jurídica, com elaboração de minutas de contratos, de aditamentos, procurações e de correspondência negocial, bem como acompanhamento em negociações;

5. DD comprou um terreno no …, em …, no …, e nesse terreno fez aprovar um projecto de construção para 120 apartamentos;

6. Depois procurou um construtor local com quem desenvolver o projecto;

7. Em Março de 2005, altura em que o A começou a assessorar juridicamente DD, estavam em curso negociações com um empresário …, que tinha a empresa C… Ltda.;

8. Foi esse o trabalho inicial, acompanhar o desenho da operação, que passou por colocar o imóvel, que pertencia ao casal, numa sociedade, P…. Ltda, da qual inicialmente só DD era sócio, mas logo nessa altura a R CC passa também a sócia;

9. E celebrar o “Contrato particular de promessa de compra e venda de imóvel, com pagamento de unidades no local e outras avenças”, nos termos do qual a C… promoveria a construção do empreendimento e teria de entregar à P… 54 apartamentos;

10. Concluída essa fase, o trabalho neste processo baseia-se sobretudo no acompanhamento da construção, DD era construtor e empreiteiro de muito sucesso em Portugal e tinha portanto muitas opiniões sobre o assunto e por via disso houve varias divergências com o EE;

11. E foi acompanhar as vicissitudes burocráticas relacionadas com as participações na P… - aditivos (que são alterações ao contrato social) e relacionamento com o contabilista e administrador da empresa, FF;

12. Em 2009, o empreendimento já está quase concluído e DD, depois de analisar, decide não fazer a venda dos 54 apartamentos de forma individual;

13. Procura então investidores para comprarem o “pacote” de 54 apartamentos (menos uns poucos que tinha vendido a pessoas próximas);

14. Após várias possibilidades, volta a optar por fazer acordo com o EE;

15. Depois de um processo negocial e contratual são assinados em 2009 dois contratos: “Acordo Global” e “Instrumento Particular de Promessa de Cessão de Quotas e outras avenças”;

16. Nos termos desses acordos, o EE e mulher prometem comprar as quotas da P…. a DD e ás RR pelo preço de 13.500.000,00 reais, o que ao câmbio da altura representa sensivelmente € 4.870.000,00 (quatro milhões oitocentos e setenta mil euros);

17. O acordo previa um pagamento em espécie e o pagamento em dinheiro a DD e às RR da quantia de 11.500.000,00 reais;

18. Esse pagamento devia ser efectuado no prazo de 5 anos;

19. Com a assinatura dos contratos, a C… ficou autorizada a promover a venda dos apartamentos que pertenciam à P…;

20. Daí em diante, o acompanhamento profissional do A centrou-se na fase cobrança;

21. Houve atrasos constantes, com insistências, renegociações e aditamentos;

22. Embora se tenha conseguido um cumprimento muito relevante: quando o A é afastado deste dossiê, em reunião havida com as RR em 12.09.2017, faltava receber unicamente a quantia de 3.100.000,00 reais;

23. Que estavam, porém, “garantidos” por um contrato celebrado em final de 2016;

24. Houve ainda assessoria em vários assuntos conexos, como cambiais, bancários e societários;

25. Noticias surgidas em 2013/2014 sobre dificuldades financeiras do empresário EE, levaram DD a ter maior intervenção nos processos de formalização do empreendimento, o que originou acompanhamento também desses assuntos;

26. Todo este processo, originou as intervenções do A que se concretizaram na nota de honorários, designadamente:

27. - Março 2005 - 5 reuniões com o Sr DD sobre o negócio a celebrar com a C…;

28. - elaboração e análise de minutas sobre o contrato a celebrar, elaboração e discussão de 3 versões;

29. -…análise e preparação do 3º aditivo ao pacto social da P…. Brasil e análise e elaboração de procuração da Sra Dra CC;

30. - abril - 6 reuniões com o Sr DD sobre o negócio a celebrar com a C…;

31. - análise e preparação do 4º aditivo do pacto social da P… Brasil;( Docs 1 e 2)

32. - maio - 3 reuniões com o Sr DD sobre o negócio a celebrar com a C…;

33. -elaboração e análise de minutas de alterações do contrato e trocas de faxes; ( Docs 3 e 4 );

34. - Junho - análise de documentos e troca de mails com o Dr GG sobre aditivo à junta comercial, procuração e movimentação bancária; (Doc 5 )

35.- julho/agosto - 3 reuniões com o Sr DD, o Dr HH e o Eng EE, em …, para discussão e finalmente assinatura do “Contrato particular de promessa de compra e venda de imóvel, com pagamento de unidades no local e outras avenças”;

36. - reunião com o Sr DD, o Dr GG e o contabilista FF sobre novo aditivo ao pacto social e procuração e elaborar

37. Elaboração de minuta de aditivo e de procuração ao contabilista FF e elaboração de faxe para o Dr GG;

38. - Janeiro 2006 - 2 reuniões com o Sr DD sobre as reclamações da C…;

39.- Junho - 2 reuniões com o Sr DD sobre o novo aditivo ao pacto social e a procuração;

40. - Novembro - reunião com o Sr DD sobre a evolução e os problemas da obra e a relação com a C…;

41.- janeiro 2007 - 2 reuniões com o Sr DD e representante da empresa Réplica … sobre contrato a celebrar;

42.- análise e elaboração de alterações à minuta do contrato com a Réplica; (Doc 6 )

43. - Fevereiro - reunião com o Sr DD e o Eng EE em …;

44. -Março - reunião com o Sr DD sobre a situação com a C…;

45. - abril - reunião com o Sr DD sobre questões fiscais do empreendimento do Brasil;

46.- análise e informação sobre dados recebidos do Brasil ( Doc 7 );

47.- análise e informação sobre a procuração e alteração solicitada por FF;

48. - Junho - análise de comunicações sobre poderes de FF;

49. - julho - 2 reuniões com o Sr DD sobre as questões com a C…;

50.-. elaboração de reclamação à C… sobre colocação/remoção de placard na obra e elaboração de faxes para a C…; ( Doc 8)

51. -Novembro - reunião com o Sr DD sobre propostas de venda do imóvel no Brasil;

52. -Abril 2008 . 1 reunião com o Sr DD sobre propostas da C…;

53.- maio -reunião com o Sr DD e o Eng EE em …;

54. -Novembro - reunião com o Sr DD sobre a relação com a C…;

55.- Março 2009 - 5 reuniões com o Sr DD sobre as negociações com a C…;

56. - análise do negócio, definição da estratégia contratual e elaboração de minutas de dois contratos; ( Doc 9)

57.- abril - 2 reuniões com o Sr DD;

58.- reunião com o Sr DD e com o Eng EE, o Dr GG e FF;

59.- elaboração de “acta” da reunião e envio para o Sr DD; ( Doc 10)

60. - maio - 2 reuniões com o Sr DD;

61. - junho - troca de mails com o Dr GG sobre vários aspectos do negócio: registrais, fiscais, análise das propostas e troca de minutas; ( Doc11)

62.- julho - 4 reuniões com o Sr DD;

63.- diversa troca de mails com propostas novas minutas com o Dr GG e com a C…; ( Docs 11 e 12 )

64. - agosto - 2 reuniões com o Sr DD;

65. - troca de mails com propostas de alterações de minutas e de minutas de comunicações a enviar à C…; ( Docs 13, 14 )

66. -Setembro - 3 reuniões com o Sr DD;

67. - análise e elaboração de resposta ao Eng EE; ( Doc 15 )

68. - Fevereiro 2010 - 2 reuniões Sr DD;

69. - projecto de aditamento ao contrato com a C…;

70. - abril - 4 reuniões Sr DD;

71.- análise de documentação e troca de mails com o Dr GG sobre questões cambiais;

72. - maio - reunião Sr DD;

73. - análise e elaboração de correspondência com o Dr GG sobre questões cambiais;

74. - Dezembro - 3 reuniões Sr DD;

75. - elaboração e envio de minutas de comunicação à C… sobre aditamentos ao contrato e comunicação com a Dra CC; ( Docs 17 e 18);

76. - Janeiro 2011 - 3 reuniões com o Sr DD sobre movimentos bancários;

77. - 2 reuniões com o Sr DD e representantes de 2 bancos suíços, em … , sobre movimentações bancárias do Brasil para a Europa;

78. - Fevereiro - reunião Sr DD sobre questões cambiais;

79. - análise e elaboração de mails de e para o Dr GG sobre questões cambiais ( Docs 19 , 20 e 21 );

80. Março - 2 reuniões Sr DD;

81.- .análise e elaboração de minutas de 2 cartas para o Eng EE; (Doc 22)

82. - análise de minuta de 7º aditivo ao pacto social da P… Brasil;

83.- maio - 6 reuniões Sr DD;

84. - elaboração de 2 minutas de aditamentos aos contratos com o Eng EE; ( Doc 23)

85. - análise de contrato com o contabilista;

86. - análise de procuração com o contabilista; ( Docs 24 e 25 )

87. - análise e elaboração de correspondência com o Dr GG sobre questões cambiais e fiscais; ( Docs 26 e 27)

88. - reunião com o Sr DD;

89. - troca de mails com o Dr GG sobre serviços prestados;

90. -Setembro - 2 reuniões com o Sr DD;

91. - Análise de situação com o Eng EE, solicitação de informações e elaboração de minuta de carta; ( Doc 28)

92. - Outubro - reunião com o Sr DD e o Eng EE em …;

93. - análise de informação enviada por mail da Dra CC ( Doc 29);

94. - Março 2012 - 2 reuniões com o Sr DD a preparar reunião que iria ter no Brasil com Eng EE e com o responsável de um banco americano;

95. - Outubro - análise de documentação relativa ao empreendimento no Brasil; (Doc 30)

96. - Janeiro 2013 - 2 reuniões com o Sr DD;

97. - reunião com o Sr DD e o Eng EE em …;

98. - Abril - reunião com o Sr DD;

99. - reunião com o Sr DD e o Eng EE em …;

100. - maio - reunião com o Sr DD;

101. - análise e correcção de minuta de procuração; ( Doc 31)

102. - agosto - 2 reuniões com o Sr DD;

103. - análise do 10º aditivo – 3 versões; ( Doc 32) 104. - análise de procuração do síndico; ( Doc 33)

105.- Outubro - reunião com o Sr DD sobre o 10º aditivo;

106. - Janeiro 2014 - 2 reuniões com o Sr DD;

107. - análise de comunicações com o Eng EE  e elaboração de minuta de resposta; ( Docs 34 e 35)

108.- Fevereiro - reunião com o Sr DD;

109. - reunião com o Sr DD e o Eng EE em ….;

110. - Abril - 3 reuniões com o Sr DD;

111. - análise do 11º aditivo; ( Doc 36)

112. - análise e elaboração de minuta de aditamento ao acordo com o Eng EE;

113. - maio - reunião com o Sr DD;

114. - análise de informação do Sr II enviada pela Dra CC sobre o processo de formalização do empreendimento; ( Doc 37)

115. - julho - análise mail Dr Regis a informar sobre formalização do Empreendimento;

116. - Janeiro 2015 - reunião com o Sr DD;

117. - análise informação do Sr. II; ( Doc 38)

118. - Fevereiro - reunião com o Sr DD;

119. - análise e informação sobre a situação judicial do Eng EE; (Docs 39 e 40 )

120. - reunião com o Sr DD e o Eng EE em …;

121. - maio - . reunião com o Sr DD;

122. - análise de informação sobre situação judicial do Eng EE e resposta a preocupações da Dra CC; ( Doc 41).

123. - Fevereiro 2016 - reunião com o Sr DD;

124. - análise de informação do Sr II sobre situação do empreendimento; (Doc 42)

125. - análise de documentação sobre situação judicial do Eng EE; (Doc 43)

126. - análise e preparação do 12º aditivo consolidado; ( Doc 44)

127. - Março - 2 reuniões com o Sr DD;

128. - análise 2 mails Dra CC; ( Doc 45)

129. - troca de mails com o Sr II sobre o processo de formalização do empreendimento; ( Doc 46).

130. - abril - 2 reuniões com o Sr DD;

131. - reunião com o Sr DD, a Dra CC e o Eng EE em …;

132. - elaboração de minuta para aditamento de contratos; ( Doc 47) 133. -maio - troca de informações com o Sr II;

134. -Junho - reunião com o Sr DD; 135. - troca e análise de informações com o Sr II; 136. -Setembro - reunião com o Sr DD;

137. -Elaboração de minuta de comunicação para o Eng EE; (Doc48) 138. -análise e informação com o Sr II;

139. - Outubro - 4 reuniões com o Sr DD;

140. - análise 13º aditivo; ( Doc 49)

141. - troca de correspondência com a Dra CC;

142. - análise e correcção de minuta de contrato Prelúdio; ( Doc 50)

143. - análise de minuta e troca de informações com o contabilista JJ; ( Doc 51)

144. -Novembro - reunião com o Sr DD;

145. -troca de mails com o Eng EE;

146. -reunião com o Sr DD e o Eng EE;

147. - reunião com a Dra Ana Palmeira e o Eng EE;

148. - Maio 2017 - reunião com o Sr DD;

149. Em setembro de 2017 a R. CC pediu ao A. informação sobre um contrato, tendo tido lugar a troca de 3 emails entre eles, nos termos dos documentos juntos aos autos a fls, 57 e vs.º que se dão por reproduzidos. (alterado)

150. Em 12 de setembro de 2017 o A. encontrou-se com as RR. no C…. (alterado).

151. A relação contratual existente foi próxima, sobretudo com DD e estava acordado com ele o pagamento dos honorários devidos no processo;

152. DD faleceu em agosto de 2017;

153. O A. emitiu nota de Honorários no valor de € 68.625,00. (Doc. 54.).

154. (eliminado);

155. O A realizou e desempenhou todos os serviços solicitados por DD e pelas RR respeitando as instruções recebidas e cumprindo todas as normas deontológicas e legais;

156. O trabalho efectuado foi contabilizado em 457,5 horas;

157. O valor hora foi estipulado pelo A. em 150 euros;

158. Pela prática dos actos de advocacia acima descritos foi contabilizado o montante de € 68.625, 00 (sessenta e oito mil seiscentos e vinte e cinco euros), a que acresce o IVA legal;

159. (eliminado).


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Conhecendo:

São as questões suscitadas pelo recorrente e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 608, 635, nº 3 a 5 e 639, nº 1, do C.P.C. No caso em análise questiona-se:

- Aplicação do instituto do abuso de direito (como exceção perentória), na modalidade se “suppressio”.

O acórdão recorrido justifica ter aplicado este instituto nos seguintes termos:

“- do abuso de direito do A.

Invocam as Recorrentes o abuso de direito por parte do A. ao vir reclamar o pagamento de serviços que alega ter realizado desde março de 2005 e durante 12 anos, sem nunca reclamar o seu pagamento, o que só fez dois anos após o óbito de DD, assim dificultando ou impossibilitando a conferência dos serviços prestados, estando em causa honorários de advogado, cujo pagamento é habitualmente pedido em prazo curto, até pelo prazo de prescrição que lhes é aplicável, tendo sido violado o art.º 105.º n.º 2 do EOA.

A sentença recorrida não se pronunciou sobre estas questões da alegada violação do art.º 105.º n.º 2 do EOA quanto à emissão da nota de honorários cujo pagamento é reclamado, nem do abuso de direito do A., por não terem sido anteriormente suscitadas no processo pelas RR., que assim não submeteram tais questões à apreciação do tribunal.

O mencionado art.º 105.º do Estatuto da Ordem dos Advogado diz respeito aos honorários do advogado, estabelecendo no seu n.º 2: “Na falta de convenção prévia reduzida a escrito, o advogado apresenta ao cliente a respetiva conta de honorários com discriminação dos serviços prestados.”

O alegado incumprimento pelo A. das normas do seu estatuto profissional e em particular do invocado art.º 105.º n.º 2 do EOA é uma questão nova que só agora em sede de recurso é por elas trazida ao processo, sendo que nunca a invocaram anteriormente nos autos, designadamente colocando-a à apreciação e decisão do tribunal de 1ª instância.

O recurso tem em vista a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido e não a tomada de posição sobre questões novas que anteriormente não foram suscitadas pelas partes e objeto de apreciação pelo tribunal a quo.

Como já teve oportunidade de referir-se e não é controvertido, decorre do art.º 627.º nº 1 do CPC que os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões anteriormente apreciadas e decididas pelo tribunal recorrido, e não a pronúncia sobre questões novas- vd. neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/02/2013, no P. 285482/11.6YIPRT.L1-2 in. www.dgsi.pt

Como nos diz Brites Lameiras, in Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, pág. 16: “o recurso não visa um segundo julgamento, mas apenas um reexame, por um tribunal superior, do julgamento proferido por um tribunal inferior, e para corrigir eventual erro de que enferme a decisão por este último tomada.”

No caso em presença, a controvérsia trazida aos autos e suscitada pelas RR., centrou-se na circunstância de não se considerarem devedoras do A. por já terem sido pagos todos os serviços por ele prestados, que nunca por elas foram questionados, e cujo pagamento é aqui reclamado através da nota de honorários que foi junta aos autos.

Esta situação do incumprimento do art.º 105.º nº 2 do EOA, norma que respeita à apresentação da nota de honorários pelos advogados com discriminação dos serviços prestados, só agora é invocada pelas RR. em sede de recurso. Não foi de modo algum impugnada pelas RR. na sua contestação a nota de honorários apresentada pelo A. nem qualquer situação que pudesse pôr em causa o seu teor quanto aos serviços que dele constam ou ao preço reclamado, pelo que o tribunal de 1ª instância não se pronunciou sobre tal questão, como não tinha que se pronunciar, não competindo por isso também a este tribunal tomar posição sobre a mesma.

Já quanto à agora invocada exceção do abuso de direito, por ser questão de conhecimento oficioso, importa avaliar se pode dizer-se que a mesma se verifica, entendendo as Recorrentes que a passividade do A. em não ter vindo reclamar o pagamento de serviços prestados ao longo de 12 anos, fazendo-o, além do mais, dois anos após a morte de DD pessoa com quem essencialmente mantinha o contacto no âmbito da relação contratual estabelecida, por ser quem liderava os negócios, é contrário à boa fé, constituindo um abuso de direito.

Na resposta ao recurso que apresenta o A. pronuncia-se no sentido de considerar não haver base para o alegado abuso de direito.

O instituto do abuso de direito tem a sua previsão no art.º 334.º do C.Civil que estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Está em causa o exercício anormal de um direito em termos reprovados pela lei, ou seja, é respeitada a estrutura formal do direito, mas violada a sua afetação substancial, funcional ou teleológica.

Não é qualquer conduta que é suscetível de integrar o conceito de abuso de direito, já que a norma em questão impõe que o titular do direito exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Dizem-nos a este propósito, com grande propriedade, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, pág. 217, em anotação a esta norma: «Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem pois fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63). O Prof. Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (Abuso do direito, no Bol. N.º 85, pág. 253).»

O Acórdão do STJ de 15/12/2002, in www.dgsi.pt refere a este respeito: “a teoria do abuso de direito serve, como se sabe, de válvula de segurança para casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação, geral e abstracta, de normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.”

Razões de lealdade e confiança são inerentes ao princípio da boa fé, que se impõe, quer na negociação dos contratos, quer na sua execução, conforme dispõem, respetivamente o art.º 227.º e 762.º n.º 2 do C.Civil.

O legislador vem impor através destas normas que as partes orientem o seu comportamento pelos princípios da boa fé, surgindo esta como regra normativa de conduta humana, dirigida para a colaboração entre as partes em qualquer relação negocial.

Tal princípio de colaboração no âmbito das obrigações, tal como nos ensina Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º vol., pág. 145, determina, por um lado, um non facere, traduzido num dever geral de não prejudicar a parte contrária, do que decorre que está de má fé aquele que age com o objetivo direto ou necessário de lesar os interesses de outrem; e por outro lado, impõe a tomada de posições concretas por quem é parte no contrato, de acordo com as circunstâncias, com vista à satisfação do interesse da parte contrária, do que emergem diversos deveres acessórios como sejam os deveres de lealdade, honestidade, notificação, informação, etc.

Pondo-se a questão de saber qual a “medida de colaboração” entre os contratantes, na execução do contrato que é exigida, pelo princípio da boa fé que se impõe por força do art.º 762.º n.º 2 do C.Civil, podemos socorrer-nos da norma legal que constitui o art.º 487 nº 2 do C.Civil que faz referência ao bonus pater familias e que nos diz que a culpa, na falta de outro critério legal, é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso. A este respeito, ensina-nos Menezes Cordeiro, in ob. cit. pág. 153: “Não obstante a referência legal citada surgir, em sede de culpa, na responsabilidade civil, a figura do bom pai de família deve ser tratada, primordialmente, no campo da diligência devida, em termos de boa fé.”

Uma das modalidades de que pode revestir-se o abuso de direito é o denominado venire contra factum proprium que tem sempre como pressuposto a criação de uma situação objetiva de confiança – uma conduta de alguém que lhe irá ser vinculativa no futuro, apresentando-se o exercício do direito como contraditório em face de conduta anterior, frustrando as expectativas associadas ao comportamento anterior.

Refere Baptista Machado, in Obra Dispersa, vol. I, pág. 415 que o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico. É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.”

A respeito do abuso de direito enquanto comportamento violador da confiança, contraditório com as expectativas criadas na outra parte, diz-se de forma clara no Acórdão do TRP de 23/03/2017 no proc. 12383/15.3T8PRT.P1 que subscrevemos como adjunta: “Constituem modalidades desta figura os casos chamados suppressio e surrectio. Tratam-se dos casos em que o comportamento do titular do direito ao longo do tempo criou a legítima confiança de que aquele não exercerá mais o direito ou renunciou a ele ou então que reconhece a outrem um direito ou faculdade jurídica que de outra forma não existiria ou já se encontrava extinta. Enquanto formas de tutela da confiança concitada noutrem por um determinado comportamento, o que releva é o significado da aparência do comportamento, a ilação que o mesmo permite quanto ao comportamento da mesma pessoa – do mesmo titular do interesse juridicamente protegido – no futuro. Por isso, não importa se por não exercer o direito, o seu titular queria ou não renunciar ao mesmo, nem isso poderia ser facilmente concluído a partir de um comportamento – puramente – omissivo. Importa sim que a esse comportamento possa ser legitimamente associado um determinado significado perceptível pelo comum dos destinatários. Para tanto, mais que o tempo e para além do tempo, tornam-se necessários indícios objectivos desse significado que permitam concluir que a confiança criada não foi iminentemente subjectiva – correspondente à vontade e desejo de outrem – mas objectivamente fundada, só assim merecendo a tutela do direito. Para tanto, esses elementos objectivos hão-de indiciar que o direito não mais será exercido ou se renunciou a ele em definitivo. O que significa, afinal, que o contexto e as circunstâncias em que o comportamento tem lugar podem ser decisivos para a interpretação do seu significado.”

A respeito da noção de supressio, diz-nos Menezes Cordeiro, em artigo intitulado “Do abuso do direito: estado das questões e perpectivas”, in ROA ano 65, Vol. II, setembro 2005: “A suppressio (supressão) abrange manifestações típicas de “abuso do direito” nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé.”

Tendo presente os factos que resultaram provados, é manifesto que durante um período muito alargado de tempo, cerca de 14 anos, por razões que não se apuraram, o A. não terá reclamado o pagamento dos serviços que foi prestando desde o ano de 2005, nem solicitado qualquer provisão ao falecido DD ou às RR.

Ora, os créditos emergentes de uma prestação de serviços realizada no exercício de uma atividade profissional, como é o caso da advocacia, são normalmente reclamados pelo credor num prazo curto, não só porque se reportam aos proventos com que o credor faz face à sua subsistência, mas também porque têm um prazo de prescrição relativamente pequeno a que certamente o credor procurará obviar.

É isso também que o devedor espera, até porque dessa forma é-lhe possível fazer a conferência dos serviços prestados, cujo pagamento é reclamado, o que se torna, senão impossível, muito mais difícil se o lapso de tempo decorrido é muito alargado, como é o caso, já que na situação em presença o A. vem, em setembro de 2019, reclamar o pagamento de serviços que prestou entre 2005 e 2017.

É por isso legítimo concluir que as RR. foram surpreendidas com este pagamento reclamado ao fim de todos estes anos, não se vislumbrando também qualquer razão plausível para que o A. não o pudesse ter feito anteriormente e de forma regular e faseada à medida em que os serviços eram prestados, o que corresponde aos usos e costumes da profissão, e designadamente em vida de DD, pessoa com quem mantinha de forma principal e privilegiada o seu relacionamento profissional.

Não pode deixar de qualificar-se a sua conduta de vir agora reclamar o pagamento de serviços prestados ao longo de 12 anos, depois da morte de DD e ao fim de 14 anos, um comportamento manifestamente desleal e contrário ao princípio da boa fé, princípio que deve orientar as partes na execução dos contratos e no exercício dos direitos a ele inerentes, e por isso claramente abusivo, contrariando a legítima expetativa das RR. de que nenhum pagamento lhes viria a ser reclamado, ao fim de todo esse tempo e ainda mais após a morte de DD.

Ainda a respeito da supressio, diz-nos de forma clara o Acórdão do STJ de 05/06/2018 no proc. 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1 in www.dgsi.pt : “Esta outra variante do abuso de direito funda-se na tutela da confiança e na boa-fé../../../../andre.r.capricho_st/Desktop/10855-15 (Rel. 33 - aval - abuso de direito).doc - _ftn4. O que a distingue do venire contra factum proprium é a ausência de factum (conduta anterior), bastando o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar à contraparte a fundada expectativa de que o direito não mais será exercido. Assim, o comportamento reiteradamente omissivo da parte que poderia exercer o direito, seguido, ao fim de largo tempo, de um acto comissivo com que a contraparte legitimamente já não contava, constitui abuso de direito na modalidade da supressio. É desnecessária a ocorrência de culpa por parte do titular, bastando a situação objetiva criada a partir da sua inércia, geradora de justificada confiança da pessoa contra quem o direito se dirigia. Mais do que sancionar a inércia do titular do direito, o objectivo da supressio é o de proteger a legítima confiança do terceiro que, ao fim de largo tempo, é surpreendido com uma demanda que já não esperava.”

O comportamento omissivo do A. em exercer o seu direito de crédito durante todos estes anos, contra os usos e costumes da profissão e sem que exista qualquer justificação para que não o tivesse feito anteriormente, sobretudo em vida de DD com quem mantinha de forma privilegiada a relação profissional, criou nas RR. uma confiança de que não viria a ser reclamado qualquer crédito pelos serviços prestados já há longo tempo, pelo que a conduta do A. em vir agora reclamar o seu pagamento não deixa de ser surpreendente, contrariando a legítima expetativa das RR. de que tal não iria ser feito, assumindo-se como clamorosa e manifestamente contrária à boa fé e configurando um situação de abuso de direito, nos termos previstos no art.º 334.º do C.Civil, na modalidade de supressio.

Resta concluir que a prolongada conduta omissiva do A. criou nas RR. a confiança e justa expectativa de que não lhes iria ser solicitado o pagamento dos serviços prestados no âmbito do contrato de mandato, designadamente depois da morte de DD, e ao vir fazê-lo o A. contrariou as expectativas criadas, por contradição com o seu comportamento anterior, comportamento que manifestamente excede os limites da boa fé, nos termos da previsão do art.º 334.º do C.Civil, agindo em abuso de direito.

Impõe-se por isso julgar improcedente o pedido formulado pelo A., verificando-se uma situação de abuso de direito, na modalidade de supressio, assim se obviando a uma situação de injustiça, revogando-se a sentença proferida”.

O instituto do abuso de direito encontra-se previsto no art. 334º do Código Civil (CC) nos seguintes termos: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

E o art. 762º do mesmo código estipula, no seu nº 2 que, “2. No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé”.

O pedido de honorários, por parte do autor, só formulado ao fim de longos anos (12) por serviços prestados ao longo desses 12 anos integra uma situação de exercício abusivo do direito, por exceder manifestamente os limites que a boa-fé no caso exige?

O acórdão recorrido entendeu que sim, nos termos da fundamentação supratranscrita.

No caso dos autos, o autor ultrapassou “manifestamente” os limites impostos pela boa-fé que deve existir, quer na fase negocial dos contratos, quer no cumprimento destes?

O princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e diretrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito, revela-se essencialmente no âmbito dos contratos.

Como é referido no Ac. do STJ de 17-05-2012, proferido no Proc. nº 2841/03.8TCSNT.L1.S1, “O conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos: no sentido de boa fé objetiva, enquanto norma de conduta, ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efetivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral; e no sentido de boa fé subjetiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adotar um comportamento conforme ao direito e respetivas exigências éticas”.

Importa decidir se excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé o autor que veio acionar o cumprimento da contraprestação pelos serviços prestados no âmbito da profissão de advogado exercida pelo autor, quando se apurou que:

Factos 1e 2 - O Autor é advogado, inscrito na Ordem dos Advogados e faz da advocacia a sua profissão e, no exercício da profissão foi mandatado pelas RR e por DD, falecido e de quem as RR. são as únicas herdeiras, para os representar e assessorar juridicamente em todo o processo de investimento no Brasil, no que viria a ser o empreendimento P… das …. e da gestão da participação societária e de administração na sociedade brasileira P… Ltda, com acompanhamento de todas as vicissitudes legais, negociais e contratuais;

Facto 3 e 4 - Esses serviços foram prestados pelo A. entre os anos de 2005 e 2017 à medida que foram sendo solicitados pelas RR e sobretudo por DD, a pessoa que liderava o negócio e, consistiram na prestação de serviços de consultoria, informação e assistência jurídica, com elaboração de minutas de contratos, de aditamentos, procurações e de correspondência negocial, bem como acompanhamento em negociações;

Facto 22 – O autor é afastado do dossiê, em reunião havida com as RR em 12.09.2017.

Conforme nota de honorários, os serviços prestados pelo autor iniciaram-se:

Facto 27 - Março 2005, efetuando-se 5 reuniões com o Sr DD.

E prolongaram-se, com contactos regulares e serviços regulares, descritos nos factos 27 a 150, até:

Facto 150 - Em 12 de setembro de 2017 o A. encontrou-se com as RR. no C….

Facto 151 - A relação contratual existente foi próxima, sobretudo com DD e estava acordado com ele o pagamento dos honorários devidos no processo;

Facto 152 - DD faleceu em agosto de 2017;

No seguimento de reuniões inconclusivas com as rés:

Facto 153- O A. emitiu nota de Honorários no valor de € 68.625,00.

Como refere Menezes Cordeiro in https://portal.oa.pt, Revista Ano 2005, vol. II, Set. 2005, “I. “Abuso do direito” é, como temos repetido, uma mera designação tradicional, para o que se poderia dizer “exercício disfuncional de posições jurídicas”. Por isso, ele pode reportar-se ao exercício de quaisquer situações e não, apenas, ao de direitos subjetivos. De facto e em boa hora, cada vez menos surgem afirmações de inaplicabilidade do regime do abuso do direito … por não haver um direito subjetivo. Esta figura foi, todavia, paradigmática na elaboração do instituto: donde o discurso sempre usado.

II. A aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos — salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis. Além disso, as consequências que se retirem do abuso devem estar compreendidas no pedido feito ao Tribunal, em virtude do princípio dispositivo.

Verificados tais pressupostos, o abuso do direito é constatado pelo juiz, mesmo quando o interessado não o tenha expressamente mencionado: é, nesse sentido, de conhecimento oficioso. O Tribunal pode, por si e em qualquer momento, ponderar os valores fundamentais do sistema, que tudo comporta e justifica. Além disso, não fica vinculado às alegações jurídicas das partes.

III. O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objetivo. Quer isto dizer que ele não depende de culpa do agente nem, sequer, de qualquer específico elemento subjetivo. Evidentemente: a presença ou a ausência de tais elementos poderão, depois, contribuir para a definição das consequências do abuso”.

E acrescenta que, “o abuso do direito e a boa fé a ele subjacente representam, assim, uma válvula do sistema: permitem corrigir soluções que, de outro modo, se apresentam contrárias a vetores elementares”.

E sobre o abuso de direito na modalidade de “supressio”, seguida no acórdão recorrido, refere no mesmo estudo o prof. Meneses Cordeiro:

“A suppressio (supressão) abrange manifestações típicas de “abuso do direito” nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa-fé”.

O abuso de direito, nesta modalidade “suppressio”, exige não só o decurso de um período de tempo razoável sem exercício do direito, mas também a verificação de indícios objetivos de que esse direito não irá ser exercido.

Indícios objetivos que gerem na contraparte (beneficiário do não exercício) a confiança na “inação do agente”.

Não basta o mero decurso temporal sem o exercício do direito. Como refere Menezes Cordeiro, “Se a suppressio visasse a conduta omissiva do agente, ela aproximar-se-ia dos pressupostos histórico-culturais da prescrição. Mas para eles, temos já, justamente, a prescrição: nenhuma vantagem existiria em duplicar esta através de um instituto que, apesar de tudo, sempre pecaria por falta de clareza”.

Como refere o Ac. da Rel. de Co. de 24-11-2020, proferido no proc. nº 4472/18.9T8VIS-A.C1, “V - Costumam ser enunciados como requisitos de aplicação desta figura [suppressio]:

- um não exercício prolongado do direito;

- uma situação de confiança daí derivada para a contraparte, coadjuvada por elementos circundantes que a sustentem;

- uma justificação para essa confiança;

- um investimento de confiança;

- a imputação ao não exercente da confiança criada.

VI - Note-se que estes pressupostos não são necessariamente cumulativos, processando-se a sua articulação dentro dos mecanismos de uma sistemática móvel, ou seja, a falta de algum ou alguns deles pode ser suprida pela especial intensidade que assumam os restantes.

VII - Relativamente à prescrição dos direitos, a suppressio, tendo em comum o pressuposto da inércia do titular do direito durante um significativo período de tempo, afasta-se destas figuras ao depender da existência de um concreto investimento de confiança por parte do devedor para operar”.

E o Ac. deste STJ de 11-12-2013, no proc. nº 629/10.9TTBRG.P2.S1 refere:

I – A inércia, omissão ou não-exercício do direito por um período prolongado, sem que possa sê-lo tardiamente se contundir com os limites impostos pela boa fé, constitui uma expressão ou modalidade especial do ‘venire contra factum proprium’, conhecida por supressio (ou ‘verwirkung’, no alemão original).

II – À sua caracterização não basta, contudo, o mero não-exercício e o decurso do tempo, impondo-se a verificação de outros elementos circunstanciais que melhor alicercem a justificada/legítima situação de confiança da contraparte”.

No caso concreto, temos que o autor não veio exercer o seu direito, a ser pago pelos serviços que prestou ao longo de 12 anos, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência ou ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.

E não se poderá considerar um não exercício prolongado do direito porque o terminus da prestação de serviços ocorreu em finais de 2017 e o direito foi exercido em 2019. É diferente o período temporal em que o autor prestou os serviços e, o período temporal decorrido após cessar a prestação de serviços até vir exigir o pagamento dos que prestou.

No caso concreto:

- Nada se apurou acerca do modo como o(s) pagamento(s) desses serviços (honorários) seria efetuado, se seriam entregues prestações por conta (adiantamentos ou provisões) ou se seria feito somente a final, após conclusão dos serviços (conclusão no caso em finais de 2017 com as reuniões inconclusivas entre o autor e as rés que colocou fim à relação contratual entre autor e rés).

Não se apurando o modo como o(s) pagamento(s) dos serviços prestados seria efetuado, não se pode concluir que há abuso de direito ao ser intentada ação de honorários após a conclusão dos serviços ou terminus da relação contratual, mesmo que decorrido período temporal razoável.

Nem o Estatuto da Ordem dos Advogados estabelece qualquer regra ou modalidade de pagamento dos honorários ao advogado, nem resulta do alegado art. 105º no seu n.º 2: “Na falta de convenção prévia reduzida a escrito, o advogado apresenta ao cliente a respetiva conta de honorários com discriminação dos serviços prestados”.

Sendo o normal a nota de honorários ser apresentada a final.

- Nada se apurou acerca de eventual relação inter partes donde pudesse resultar uma situação de confiança daí derivada para a contraparte, nem diretamente nem através de indícios.

- Nada se apurou que indicie uma justificação para essa confiança de que o autor não iria exigir honorários

- Nada se apurou acerca do modo de atuação do autor de molde a que lhe pudesse ser imputada a formação dessa confiança nas rés.

Como refere Menezes Cordeiro, “O quantum do não-exercício será determinado pelas circunstâncias do caso: o necessário para convencer um homem normal, colocado na posição do real, de que não mais haveria exercício”.

Não se provaram factos donde pudesse resultar que o “homem médio”, o “bonus pater familiae”, ou seja, uma pessoa de normal entendimento, colocado na posição das rés pudesse formar a convicção e confiança de que o autor não iria exigir honorários.

Dos factos provados nada permitia às rés concluir de que por parte do autor “não mais haveria exercício” do direito a receber honorários.

Pelo que é exercício legítimo de um direito o autor vir exigir o pagamento de honorários pelos serviços que prestou.

O prof. Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, Tomo I, págs. 196 a 198 defende que a aplicação do instituto do abuso de direito exige a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjetiva para a materialidade da situação.

E refere o ac. do STJ de 28-02-2018, no proc. nº 10942/14.0T8LSB.L1.S2, “na ponderação de saber se houve, ou não, abuso do direito, o tribunal deve atender aos factos na sua globalidade, e não apenas a segmentos dos factos, bem como às características do contrato celebrado entre as partes e a todo o contexto jurídico e sócio económico subjacente à sua celebração”.

Vir o autor exigir judicialmente os honorários pelos serviços prestados, exigir que as rés cumpram a obrigação contratual é exercício legítimo de um direito seu que, não excede, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé.

Não constando dos factos, mas sendo alegação das rés na contestação, de que já pagaram resulta o contrário da formação da confiança de que nada lhes seria pedido a título de honorários por aqueles serviços prestados. Consta no acórdão recorrido: “No caso em presença, a controvérsia trazida aos autos e suscitada pelas RR., centrou-se na circunstância de não se considerarem devedoras do A. por já terem sido pagos todos os serviços por ele prestados, que nunca por elas foram questionados, e cujo pagamento é aqui reclamado através da nota de honorários que foi junta aos autos”.

Temos que os factos provados não permitiam ao Tribunal recorrido concluir que, “Não pode deixar de qualificar-se a sua conduta [do autor] de vir agora reclamar o pagamento de serviços prestados ao longo de 12 anos, depois da morte de DD e ao fim de 14 anos, um comportamento manifestamente desleal e contrário ao princípio da boa fé, princípio que deve orientar as partes na execução dos contratos e no exercício dos direitos a ele inerentes, e por isso claramente abusivo, contrariando a legítima expetativa das RR. de que nenhum pagamento lhes viria a ser reclamado, ao fim de todo esse tempo e ainda mais após a morte de DD”.

Assim, só nos resta concluir que o direito que o autor pretende fazer valer, “não se situa fora do seu objetivo natural e da razão objetiva da sua existência em termos manifestamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico, inexistindo, por isso, abuso de direito” – (como se concluiu no acórdão do STJ de 28-02-2018 suprarreferido).

Procedendo as conclusões do recurso referentes ao afastamento, in casu, do abuso de direito.


*


Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I - O princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e diretrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito, revela-se essencialmente no âmbito dos contratos.

II - Menezes Cordeiro in https://portal.oa.pt, Revista Ano 2005, vol. II, Set. 2005, define “Abuso do direito” como uma mera designação tradicional, para o que se poderia dizer “exercício disfuncional de posições jurídicas”.

III - Referindo, também, que a aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos — salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis.

IV - O abuso de direito, na modalidade “suppressio”, exige não só o decurso de um período de tempo razoável sem exercício do direito, mas também a verificação de indícios objetivos de que esse direito não irá ser exercido. Indícios objetivos esses que geram na contraparte (beneficiário do não exercício) a confiança na “inação do agente”.

V - Não se apurando o modo como o(s) pagamento(s) dos serviços prestados seria efetuado, não se pode concluir que há abuso de direito ao ser intentada ação de honorários após a conclusão dos serviços ou terminus da relação contratual, mesmo que decorrido período temporal razoável.

VI - Dos factos provados nada permitia às rés concluir que, por parte do autor, “não mais haveria exercício” do direito a receber honorários, pelo que é exercício legítimo de um direito o autor vir exigir o pagamento de honorários pelos serviços que prestou.

VII - Tendo alegado as rés na contestação que já pagaram, resulta o contrário da formação da confiança de que nada lhes seria pedido a título de honorários por aqueles serviços prestados.

Decisão:

Face ao exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça e 1ª Secção em julgar a revista procedente, revoga-se o acórdão recorrido e, consequentemente, repristina-se a decisão da 1ª Instância.

Custas pelas recorridas.


Lisboa, 04-11-2021


Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Isaías Pádua - Juiz Conselheiro 1º adjunto

Nuno Ataíde - Juiz Conselheiro 2º adjunto