Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
DETERMINAÇÃO DO VALOR
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
DIRETIVA COMUNITÁRIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: RLJ ANO 152.º - N.º 4039, DE 2023 - ANOTAÇÃO DE ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- No cálculo da majoração da remuneração do administrador de insolvência, o valor de 5% referido no n.7 do art.23º do EAJ, com a redação dada pela Lei n.9/2022, não tem como objeto o montante total apurado para satisfação dos créditos (ou seja, o apurado depois de extraída a parcela correspondente à percentagem da remuneração variável prevista nos números 4 e 6 do art.23º).

II- Essa percentagem de 5% incide sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.

Decisão Texto Integral:


Processo n. 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1

Recorrente: AA

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA, na qualidade de Administrador da Insolvência de BB e CC, apresentou nos autos o cálculo da sua remuneração variável, que contabilizou, nos termos do artigo 23º, n. 4, alínea b), e números 7 e 8, do Estatuto do Administrador Judicial, com a redação dada pela Lei n. 9/2022 (de 11 de janeiro), em € 126.302,38. A tal quantia acrescerá o IVA à taxa legal de 23% [no valor de € 29.049,55].

Nem os devedores insolventes, nem os credores se pronunciaram.

2. A primeira instância decidiu fixar a remuneração do administrador judicial nos seguintes termos:

«(…) fixa-se a remuneração variável devida ao Sr. Administrador da insolvência em € 79.395,47 (setenta e nove mil trezentos e noventa e cinco euros e quarenta e sete cêntimos), a que acrescerá o respetivo IVA, de € 18.261,02 (dezoito mil duzentos e sessenta e um euros e dois cêntimos), num total de € 97.656,49 (noventa e sete mil seiscentos e cinquenta e seis euros e quarenta e nove cêntimos)

3. Discordando dessa decisão, o administrador da insolvência interpôs recurso de apelação, tendo o TRC, por acórdão de 11.10.2022, julgado o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.

4. Inconformado com esse acórdão, o apelante interpôs o presente recurso de revista, nos termos do art.14º do CIRE, juntando acórdão fundamento. Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:

«A. Por acórdão notificado ao Recorrente a 12/10/2022, com referência ...97, decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra manter a decisão do Tribunal de 1ª Instância que fixou a remuneração variável a atribuir ao AI – aqui Recorrente.

B. Não concordando o Recorrente com aquela decisão, em causa está a interpretação e aplicação do n.º 7 do art. 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, no sentido de saber se o grau de satisfação de créditos corresponderá a uma qualquer percentagem que tenha de ser apurada e, sobre ela, aplicada a majoração de 5%.

C. Encontrando-se o acórdão recorrido em profunda contradição com o proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 20/09/2022, no âmbito do processo n. 9849/14.6T8LSB-E.L1-1.

D. Não se compreende o raciocínio do Tribunal a quo que, mantendo a decisão recorrida, concluiu que daquele normativo resulta que o grau de satisfação corresponderá a uma percentagem que tenha de ser apurada e aplicada na fórmula de cálculo da majoração.

E. Para o cálculo da majoração apenas haverá que subtrair ao resultado da liquidação (receitas – despesas/dividas da MI, onde já se inclui a remuneração fixa do administrador), a remuneração variável apurada nos termos do n.º 4 do artigo 23.º, acrescida de IVA, aplicando-se diretamente a esse valor a percentagem de 5%.

F. Constitui acórdão fundamento da presente Revista o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa referido em C., que calculou o valor da majoração prevista no n.º 7 do art. 23.º de acordo com a interpretação que lhe dá o Recorrente.

G. O Acórdão fundamento, revogando a decisão de que ali se recorria, procedeu ao cálculo da remuneração variável daquele AI, aplicando a majoração de 5% diretamente ao montante dos créditos satisfeitos, como dita a norma e ao contrário do que fizeram o Tribunal a quo e o Tribunal de 1ª Instância.

H. Por tudo, constata-se a verificação de uma crassa contradição de julgados a que importa pôr termo.

I. Ao decidir da forma como o fez, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação e aplicação, a norma prevista no n.º 7 do artigo 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro.

Impondo-se a revogação do acórdão recorrido.

Nestes termos, e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, concedendo-se provimento ao presente recurso, revogando o acórdão de que ora se recorre, farão v. exas. Justiça.»

Cabe apreciar

*

II. ANÁLISE E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. A questão prévia da admissibilidade do recurso.

A decisão recorrida versa sobre matéria insolvencial, tendo sido proferida nos autos da insolvência. Assim, tem aplicação ao recurso de revista o regime específico previsto no art.14º do CIRE.

Dispõe esta norma:

«No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.»

Constata-se, inequivocamente, que o acórdão recorrido fez uma interpretação do n.7 do art.23º do EAJ que difere da interpretação seguida pelo acórdão fundamento – o acórdão do TRL de 20.09.2022 (relatora Fátima Reis Silva), proferido no processo n. 9849/14.6T8LSB-E.L1-1.

Embora o critério interpretativo do n.7 do art.23º do EAJ não seja referido no sumário do acórdão fundamento (que se refere apenas à questão da aplicação da lei no tempo), esse critério é usado na solução do caso concreto, e é pela sua aplicação que a decisão da primeira instância é revogada e o acórdão fundamento fixa (em via substitutiva) a remuneração do administrador judicial[1]. Pode, portanto, concluir-se que, em tese, se o acórdão recorrido tivesse seguido a interpretação daquela norma que foi seguida pelo acórdão fundamento o resultado decisório teria sido diferente.

Ambas as decisões foram proferidas depois de a Lei n.9/2022 ter dado ao art.23º, n.7 do EAJ a sua atual versão. Não existindo jurisprudência uniformizada sobre a matéria, e constatando-se a divergência dos tribunais da Relação quanto ao modo de decidir a mesma questão fundamental de direito, encontram-se preenchidos os requisitos de admissibilidade da revista exigidos pelo art. 14º do CIRE, pelo que cabe tomar conhecimento do objeto do recurso.

2. O objeto do recurso.

Sendo o objeto do recurso traçado pelas conclusões das alegações do recorrente (art.635º, n.4 do CPC), a única questão a decidir é a de saber qual o critério de cálculo da majoração da remuneração do administrador de insolvência que se encontra consagrado no n.7 do art.23º do EAJ (com a redação dada pela Lei n.9/2022).

Mais concretamente, trata-se de saber se o valor de 5% referido nessa norma tem como objeto o “montante dos créditos satisfeitos” (o mesmo é dizer: o montante total apurado para satisfação dos créditos); ou se essa percentagem incide sobre o resultado de uma operação aritmética prévia correspondente ao “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.

 

3. Fundamentos de facto.

As instâncias deram como assente a seguinte factualidade:
«1. CC e BB foram declarados insolventes por sentença proferida em 9 de julho de 2009, tendo na mesma sido nomeado administrador da insolvência o Sr. Dr. AA.

2. A sentença foi objeto de recurso, julgado improcedente por acórdão proferido em 2 de março de 2010, tendo transitado em julgado em 23 de março de 2010.

3. No âmbito da assembleia de apreciação do relatório, realizada no dia 11 de setembro de 2009, foi deliberada a liquidação do ativo dos devedores.

4. Foram apreendidos para a massa insolvente bens móveis avaliados em € 21.775,00, bens imóveis com o valor patrimonial de € 632.316,37, benfeitorias avaliadas em € 537.188,05 e a quantia de € 33.000,00.

5. O administrador da insolvência apresentou as listas de credores reconhecidos e não reconhecidos em 21 de outubro de 2009.

6. A esta lista foram deduzidas treze impugnações, parte das quais aceite pelo administrador da insolvência, vindo, após realização de tentativa de conciliação e de audiência de discussão e julgamento, a ser proferida sentença que verificou créditos no montante global de € 1.527.742,30.

7. O administrador da insolvência e os credores cujas impugnações não foram aceites pelo administrador da insolvência interpuseram recurso desta sentença, recurso que foi parcialmente procedente, sendo o crédito destes credores reduzido em € 100.000,00.

8. Foram deduzidas por apenso à insolvência dezasseis ações especiais para verificação ulterior de créditos, no âmbito das quais foram reconhecidos créditos sobre a insolvência no montante de € 283.909,30.

9. O total dos créditos reconhecidos ascende a € 1.711.652,03.

10. Por apenso à insolvência, correram ainda termos cinco ações de impugnação de resolução em benefício da massa e uma ação especial para restituição de bens.

11. O administrador da insolvência apresentou parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, vindo a final, após tramitação do incidente de qualificação, a ser proferida sentença que declarou a insolvência dos devedores culposa.

12. Em outubro de 2021 o administrador da insolvência apresentou mapa de rateio parcial, que não foi objeto de impugnações, tornando-se definitivo.

13. Neste mapa, o administrador da insolvência estimou a remuneração variável provável, acrescida do respetivo IVA, em € 45.261,58.

14. A liquidação do ativo foi concluída pelo administrador da insolvência em dezembro de 2021.

15. As contas finais do administrador da insolvência foram apresentadas a 21 de dezembro de 2021, nelas se relacionando receitas no montante de € 1.421.820,36 e despesas da massa insolvente no valor de € 97.369,61, incluindo a remuneração fixa do administrador da insolvência.

16. As contas foram julgadas por sentença proferida em 9 de março de 2022, na qual se ressalvou a aprovação de despesas no montante de € 64,90, pelo que as despesas aprovadas foram de € 97.304,71.

17. As custas da insolvência, contabilizadas por conta elaborada a 14 de abril de 2022, ascenderam a € 21.356,83.»

4. O direito aplicável.

4.1. No caso decidendo, o STJ é chamado a concluir se o valor de 5% referido no n.7 do art.23º do EAJ, com a redação dada pela Lei n.9/2022, tem como objeto o “montante dos créditos satisfeitos” (ou seja, o montante total apurado para satisfação subsequente dos créditos); ou se essa percentagem incide sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.

O recorrente entende que a remuneração variável não deve depender do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, aplicando-se, portanto, a percentagem de 5% sobre o montante apurado para ser distribuído aos credores (ou seja, imediatamente depois de extraída a parcela correspondente à percentagem da remuneração variável prevista nos números 4 e 6 do art.23º).

No acórdão recorrido (confirmando a decisão da primeira instância) entendeu-se, diversamente, que ao prever o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, o legislador continua a exigir (tal como acontecia antes da Lei n.9/2022) que se proceda a uma operação aritmética destinada a quantificar esse grau de satisfação, aplicando-se, depois, a percentagem de 5% sobre o montante a que corresponde esse grau de satisfação.

4.2. A formulação literal do n.7 do art.23º do EAJ não é isenta de dificuldades interpretativas.

Tais dificuldades identificam-se também quanto à determinação do sentido e alcance de outras disposições que regem a remuneração do administrador judicial (tanto enquanto administrador de insolvência, como enquanto administrador judicial provisório), das quais aqui se não cuidará porque o objeto do presente recurso se restringe ao n.7 do art.23º[2].

A remuneração do administrador judicial em processo de insolvência, havendo liquidação, é integrada por uma parte fixa (art.23º, n.1) quantificada em €2.000[3] e por uma parte variável, subdividida em dois vetores: um previsto nos números 4 e 6 do art.23º e outro previsto no n.7 (majoração). É apenas este segundo vetor da remuneração variável que está em causa no presente recurso.

Dispõe o n.7 do art.23º do Estatuto do Administrador Judicial[4]:

«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles

4.3. A tese defendida pelo recorrente (e com respaldo no acórdão fundamento) implica desconsiderar um segmento literal do n.7 do art.23º; precisamente aquele onde se lê: «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».

Amputando a norma deste segmento literal, ela apresentaria a seguinte configuração:

«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado (…) em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos (…)».

Com tal literalidade, o n.7 do art.23º expressaria claramente a tese que o recorrente pretende ver aí consagrada.

Porém, desconsiderar um segmento de uma norma (como se dele tivesse sido amputada) equivale a fazer uma interpretação ab-rogante dessa norma, ou seja, significa concluir que o legislador expressou aquilo que não queria dizer, e que, portanto, tal disposição não pode ter qualquer sentido normativo útil.

O intérprete concluiria, como afirma Oliveira Ascensão «(…) que esse texto proclamado como lei não contém, apesar das aparências, nenhuma regra[5]

Porém, tendo presentes o “princípio do aproveitamento das leis” e a “presunção de racionalidade da legislação[6], no percurso interpretativo do conjunto das regras que disciplinam a remuneração do administrador de insolvência, chega-se à conclusão que não existe oposição com qualquer outra norma que permita sustentar uma interpretação ab-rogante (lógica ou valorativa) do segmento literal «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» do n.7 do art.23º.

Efetivamente, numa análise intra-sistemática, conclui-se que esse segmento do n.7 não conflitua com qualquer outro dos números do art.23º (que preveem hipóteses distintas da hipótese de majoração da remuneração do administrador). Ampliando o campo de análise às demais normas que, direta ou indiretamente, respeitam à matéria da remuneração do administrador, também não é identificável qualquer disposição de natureza especial ou de prioridade sistemática que pudesse esvaziar de sentido lógico ou normativo o segmento do n.7 do art.23º que aqui está em equação.

Conclui-se, portanto, não existir fundamento para fazer uma interpretação ab-rogante do referido segmento dessa norma.

4.4. Considerando que o legislador se pode expressar de modo imperfeito, mas que não cria disposições inócuas, deverá o intérprete encontrar um sentido normativamente útil para o referido segmento do n.7 do art.23º, tendo presentes os parâmetros previstos no art.9º do Código Civil.

Nestes termos, e num percurso dialógico com a tese do recorrente, cabe apurar se as alterações introduzidas pela Lei n.9/2022 permitirão uma interpretação restritiva do n.7 do art.23º, teleologicamente orientada pelo propósito legislativo de aumentar a majoração da remuneração do administrador.

Para se responder a tal questão, e perceber se a Lei n.9/2022 teve como propósito alterar o critério normativo destinado a encontrar a fórmula da majoração, há que ter presente a evolução legislativa das disposições reguladoras da majoração da remuneração do administrador de insolvência.

 

Que a Lei n.9/2023 alterou a percentagem a aplicar ao montante a ser considerado para efeitos de majoração não existem dúvidas, pois a nova redação dada ao n.7 do art.23º é clara ao consagrar uma percentagem de 5%, em vez da percentagem que se encontrava estabelecida, entre 1% a 1.6%, pela Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro (que, nessa matéria, ficou esvaziada de sentido normativo).

Questão diferente, e é essa que ocupa o objeto do presente recurso, é a de saber a que montante se aplica aquela percentagem de 5%.

Como já referido, a atual redação do n.7 do art.23º do EAJ foi introduzida pela Lei n.9/2022. Porém, a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» não surgiu ex novo com a reforma introduzida por essa lei; ela já constava das normas que antecederam o n.7 do art.23º.

Tal expressão tem um lastro legislativo que remonta à Lei n.32/2004 (antigo Estatuto do Administrador da Insolvência)[7], cujo artigo 20º, n.4 dispunha:

«O valor alcançado por aplicação da tabela referida no n.º 2 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1

A portaria para a qual esta norma remetia era a Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro, do Ministério das Finanças e da Administração Pública e do Ministério da Justiça, cujo Anexo II continha uma tabela onde se encontravam previstos os fatores de majoração da remuneração do administrador, estabelecendo uma lista de correspondência entre a percentagem dos créditos reclamados que foram satisfeitos e o respetivo fator de majoração (entre 1% e 1,6%).

Quando a Lei n.32/2004 foi revogada pela Lei n.22/2013 (que estabeleceu o Estatuto do Administrador Judicial) aquela norma passou a corresponder ao n.5 do artigo 23º do EAJ, com o seguinte teor:

«O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.os 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1. »

Continuou a fazer-se a remissão para a referida Portaria n.51/2005, a qual continuou em vigor, apesar de ter ficado desatualizada, pois literalmente continuava a referir-se ao artigo 20º da Lei 32/2004 (revogada pela Lei 22/2013).


Com a alteração introduzida no art.23º pelo DL n.52/2019 (de 17 de abril), o alcance normativo do n.5 deste artigo não se alterou, tendo a alteração consistido apenas num ajustamento à numeração que antecedia esta norma. O seu teor passou a ser o seguinte:

«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 3 e 4 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1

Com a Lei n.9/2022, a previsão que até então se encontrava no n.5 do art.23º passou para o n.7 deste artigo, tendo desaparecido a remissão para a Portaria n.51/2005. Ao mesmo tempo, o legislador operou uma alteração relativamente às percentagens que antes constavam dessa portaria. Assim, em vez da percentagem que variava entre 1% e 1.6%, aplicáveis ao montante resultante do fator de satisfação, a lei 9/2022 estabeleceu uma percentagem fixa de 5%, que passou a constar do n.7 do art.23º.

Constata-se, assim, que com a Lei n.9/2022 o legislador não abandonou o critério normativo correspondente à expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos», que já vinha da Lei n.32/2004.

Todavia, na nova redação do n.7, ao procurar explicitar o objeto de referência daquela percentagem, o legislador referiu-se ao «montante dos créditos satisfeitos», o que sustenta a tese do recorrente no sentido de os 5% respeitarem à totalidade dos créditos satisfeitos, rectius, ao montante total destinado à satisfação dos créditos.

Apesar de literalmente imperfeita, essa expressão [montante dos créditos satisfeitos] não é necessariamente contraditória com o segmento literal que a antecede.

Na realidade, o montante a que se chega depois de aplicado o fator correspondente ao grau de satisfação dos créditos não deixa de ser um montante de créditos satisfeitos, ou seja, um montante destinado à satisfação de créditos.

4.5. Feito este percurso histórico, pode concluir-se que se o legislador da Lei n.9/2022 tivesse pretendido alterar o critério normativo (que já vinha da Lei n.32/2004) dificilmente se compreenderia que não o tivesse feito de forma clara, abandonando a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».

Porém, não se identifica qualquer argumento sólido para sustentar essa eventual mudança de orientação legislativa. É inequívoco que a Lei n.9/2022 pretendeu favorecer o administrador, alterando a percentagem da majoração para 5%, em vez dos valores mais reduzidos que constavam da Portaria n.51/2005. Mas não é possível concluir que o legislador o tivesse pretendido favorecer em mais do que isso.

Ao manter o valor da remuneração fixa (em 2.000 €), no n.1 do art.23º, não parece que o legislador tenha dado um sinal de pretender melhorar significativamente a remuneração do administrador independentemente dos resultados alcançados pelo seu labor em cada caso concreto. Neste sentido, é possível concluir que o legislador terá pretendido fazer depender uma maior remuneração de um maior grau de empenho do administrador na satisfação do interesse dos credores.

Por outro lado, tendo presente que a Lei n.9/2022 transpôs a Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, importa indagar se (nos considerandos ou no articulado) tal Diretiva contém alguma referência à remuneração do administrador.

Entre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de insolvência, encontra-se o artigo 27º daquela Diretiva, o qual se refere à supervisão e à remuneração do administrador.

No n.4 deste artigo dispõe-se que:

«Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos

Embora desta disposição não resulte um comando legislativo destinado a modelar diretamente as normas reguladoras da remuneração do administrado, o apelo a um propósito de eficiência compatibiliza-se melhor com uma majoração calculada «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» (como consta do n.7 do art.23º do EAJ) do que com uma interpretação que não depende de qualquer grau de satisfação.

Pode ainda acrescentar-se que, caso subsistissem dúvidas interpretativas quanto à definição do critério de calculo da majoração que o legislador terá pretendido consagrar no n.7 do art.23º, constatando-se que determinado critério favorece mais os interesses do administrador, enquanto que o critério alternativo favorece mais os interesses dos credores, sempre os princípios estruturantes do regime da insolvência haveriam de ser ponderados para dissipar tais dúvidas. E a resposta encontrar-se-ia no artigo 1º do CIRE, nos termos do qual o processo de insolvência tem como finalidade a satisfação dos credores, nomeadamente através da repartição do produto da liquidação do património do devedor.

Em resumo, pelas razões elencadas, concluiu-se que o acórdão fundamento não merece censura, pois fez a correta interpretação do disposto no n.7 do art.23º do EAJ, fazendo, consequentemente, a correta aplicação do direito ao caso concreto.

*

DECISÃO: Pelo exposto, decide-se negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 18.04.2023

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC.


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[1] A interpretação do n.7 do art.23º do EAJ que é seguida no acórdão fundamento, embora aí não surja teorizada, encontra-se desenvolvida noutros acórdãos subscritos pelo mesmo coletivo. Vejam-se, neste sentido, os dois acórdãos do TRL de 20.12.2022 (ambos relatados por Fátima Reis Silva), nos processos: 415/13.4TYLSB-E.L1-1 e 22770/19.2T8LSB-F.L1-1. 
[2] Para uma análise detalhada dos múltiplos problemas interpretativos emergentes da atual disciplina da matéria sobre a remuneração do administrador judicial, veja-se: Nuno Araújo, “A remuneração do Administrador Judicial depois de abril de 2022”, in Data Venia – Revista Jurídica Digital, n.13, 2022.
[3] Este montante já constava da Portaria n.51/2005 (de 20 de janeiro), passando a ser referido diretamente pelo n.1 do art.23º após a alteração introduzida pela Lei n.9/2022, a qual manteve tal montante inalterado.
[4] Aprovado pela Lei n.22/2013 (entretanto, objeto de múltiplas alterações).
[5] O Direito – Introdução e Teoria Geral (13ª ed.), página 428.
[6] Vd. Oliveira Ascensão, op. cit., página 429.
[7] Revogada pela Lei n.22/2013.