Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
618/11.6TTPRT.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO LEONES DANTAS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
Data do Acordão: 11/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO.
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA APLICAÇÃO NO TEMPO - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.
Doutrina:
- MARIA DO ROSÁRIO DA PALMA RAMALHO, Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 2009, pp. 44, 54, 56.
- MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 14.ª Edição, 2009, Almedina, p. 149.
Legislação Nacional:
REGIME JURÍDICO DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 49 408, DE 24 DE NOVEMBRO DE 1969: - ARTIGOS 1.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, N.º2, 342.º, N.º1, 1152.º, 1154.º,
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 8 DE OUTUBRO DE 2008, PROCESSO N.º 1328/08, EM WWW.DGSI.PT, COM O N.º 08S1328.
-DE 10 DE NOVEMBRO DE 2010, PROCESSO N.º 3074/07.0TTLSB.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT
-DE 9 DE FEVEREIRO DE 2012, PROCESSO N.º 2178/07.3TTLSB.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT
Sumário :
1.º - Incumbe ao trabalhador, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, a alegação e prova dos factos reveladores da existência de uma relação de natureza jurídico-laboral, porque são constitutivos do direito que pretende ver reconhecido, quando tal relação se tenha iniciado antes de 1 de Dezembro de 2003;

2.º - Apesar de se ter provado que a Autora recebia mensalmente um valor certo e que exercia funções clínicas nas instalações de um Lar gerido pela Ré, com equipamento por esta fornecido, mas que não estava sujeita a um horário de trabalho definido pela Ré, que se podia fazer substituir por médico da sua confiança e que emitia como título dos quantitativos auferidos recibos verdes, que estava inscrita na Segurança Social e nas Finanças como trabalhadora independente e que não auferia subsídio de férias nem de Natal, não pode qualificar-se a relação existente entre ambos como um contrato de trabalho. 

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

 

AA instaurou a presente ação emergente de contrato de trabalho contra INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL I.P., pedindo: a) - dever ser declarado que a Autora é trabalhadora do Réu desde maio de 1982; b) - dever julgar-se nulo o contrato de avença celebrado entre Autora e Réu; c) - dever ser declarada a nulidade do despedimento da Autora, ocorrido em 31.12.2010; d) - a condenação do Réu a reintegrar a Autora ao seu serviço, no Lar BB, ou então, a pagar-lhe a indemnização por antiguidade, desde maio de 1982, e no valor de € 42.208,88, acrescido dos juros legais desde a citação e até integral pagamento; e) - a condenação do Réu a pagar as remunerações vincendas até ao trânsito em julgado da sentença, acrescidas dos juros de mora à taxa legal até efetivo e integral pagamento; f) - a condenação do Réu a pagar a quantia de € 56.425,60, relativa a subsídios de férias e de Natal não pagos, acrescida dos juros vincendos até integral pagamento; g) - a condenação do Réu a pagar uma indemnização pelos danos não patrimoniais causados à Autora, em virtude do despedimento ilícito, cujo montante será apurado em liquidação de sentença.

Invocou como fundamento da sua pretensão que foi admitida ao serviço do Réu em maio de 1982, para exercer as funções de médica de clínica geral, mediante a retribuição mensal certa ilíquida de € 138.000$00, e sob as ordens e direção do Lar BB, o qual é tutelado pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social. Nessa qualidade a Autora consultava os utentes desse Lar, avaliava a sua situação clínica e procedia ao seu tratamento, tendo a seu cargo as consultas e diagnóstico da situação clínica dos candidatos a utentes do Lar.

No referido Lar a Autora dispunha de um gabinete e de uma secretária, papel timbrado e material de escritório, bem como os equipamentos necessários ao exercício da profissão de medicina de clínica geral. A Autora cumpria um horário de trabalho, de segunda a quinta-feira, das 14 às 18 horas, o qual foi determinado pela sua entidade patronal. No entanto, a Autora estava obrigada a dar permanente assistência telefónica mesmo fora do seu horário de trabalho ou a deslocar-se ao Lar, em caso de urgência. A Autora, desde maio de 1982 até ao ano de 1993, auferiu ainda subsídios de férias e de Natal. Quanto ao gozo de férias, a Autora acordava com a Direção do Lar o período em que as poderia gozar, tendo em conta a organização do serviço médico. No dia 02.01.1994, e tendo em vista a manutenção do exercício das funções de médica no Lar, a Autora celebrou um contrato com o então Centro Regional de Segurança Social do Norte, designado de «contrato de avença», com a duração de um ano, mediante a remuneração mensal de 144.900$00. A partir da data da celebração do dito contrato a Autora não mais recebeu subsídios de férias e de Natal, sendo certo que tudo o mais se processou como anteriormente. Em 13.10.1999, por adenda ao dito contrato de avença, a Autora passou a auferir a quantia mensal certa de 250.000$00. Sucede que no dia 22.10.2010 o Réu remeteu à Autora carta a denunciar o «contrato de avença» com efeitos a partir de 31.12.2010 traduzindo essa comunicação um despedimento ilícito, já que durante 28 anos a relação jurídica estabelecida entre as partes traduziu-se num contrato de trabalho. 

A ação prosseguiu seus termos e veio a ser decidida por sentença de que a julgou parcialmente procedente, tendo-se decidido «que a Autora, em 1986, celebrou com o Réu um contrato de trabalho nulo; [que] o despedimento da Autora ocorrido em 31.12.2010 é ilícito, e em consequência, condena-se o Réu a pagar-lhe as retribuições que deixou de receber desde o seu despedimento até à data em que foi apresentada a contestação, sem prejuízo das deduções previstas no artigo 390º, nº 2, al. a) a c) do CT, acrescidas dos juros de mora calculados à taxa de 4% ao ano desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento, e cuja liquidação se relega para execução de sentença e uma indemnização fixada em 30 dias de retribuição base mensal ilíquida por cada ano completo ou fração de antiguidade, contabilizada desde o ano de admissão (1986) acrescida dos juros moratórios calculados à taxa de 4% ao ano desde o trânsito em julgado até efetivo pagamento».

Mais se decidiu condenar «o Réu a pagar à Autora a quantia de € 56.425,60 relativa aos subsídios de férias e de natal acrescidos dos juros moratórios calculados à taxa de 4% ao ano desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento e uma indemnização de € 10.000,00 por danos não patrimoniais acrescida dos juros moratórios calculados desde o trânsito em julgado até pagamento, absolve-se do demais peticionado».

Inconformado com esta decisão dela recorreu o Réu para o Tribunal da Relação do Porto que veio a conhecer do recurso por acórdão de 23 de fevereiro de 2015, e que integra o seguinte dispositivo: «Termos em que se julga a apelação procedente, se revoga a sentença recorrida, se substitui pelo presente acórdão e em consequência se julga a ação improcedente e de todos os pedidos se absolve o Réu.

Custas a cargo da apelada/Autora.» 

Irresignada com esta decisão, dela recorreu a Autora, agora de revista para este Tribunal, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido nos autos à margem referenciados que julgando procedente o recurso interposto pela Ré, revogou a sentença proferida na 1.ª Instância,

2. Na medida em que concluiu que "a factualidade apurada nos presentes autos é manifestamente insuficiente para se concluir pela existência de um contrato de trabalho",

3. Baseando tal conclusão no facto de que "apenas temos como factos indícios a retribuição auferida pela Autora e o recebimento durante sete anos de subsídios de férias e de Natal", ..

4. Apesar de ter mantido, no essencial, como provados os factos já considerados como tal na douta sentença da 1.ª instância e bem assim os factos assentes - que, por isso, uns e outros, ficaram definitivamente assentes no Acórdão recorrido -,

5. E enquadrado tal matéria assente nos factos índice normalmente utilizados para caracterizar o contrato de trabalho, tais como, o local e os instrumentos de trabalho (determinados pela e pertencentes à entidade empregadora), horários de trabalho, assiduidade, gozo e marcação de férias e bem assim pagamento das mesmas e, ainda, ordens a vários níveis recebidas pela Autora por parte da Ré,

6. Do que resulta até, na ótica da Recorrente, a sua manifesta e óbvia inserção na estrutura organizativa da Ré e que determinariam por si só, salvo o devido respeito, conclusão totalmente contrária à retirada no Acórdão recorrido, no que se refere à qualificação do contrato em causa, como sendo de trabalho.

7. E que por isso mesmo o Tribunal da Relação deveria ter respondido também às questões colocadas pela Ré na sequência de se considerar a existência de uma verdadeira e própria relação laboral,

8. Relação laboral essa que a Recorrente considera, salvo o devido respeito, que logrou provar, já que chamou a si a alegação e prova dos factos constitutivos da existência de um contrato de trabalho, ao invés de se escudar na presunção de laboralidade constante dos artigos 12° do Contrato de Trabalho de 2003 e do Contrato de Trabalho de 2009.

9. E se viesse a considerar que tal contrato de trabalho era nulo, pelas razões constantes na legislação vigente à data, deveria ter retirado as consequências que dessa nulidade foram retiradas para a esfera pessoal e patrimonial da ora Recorrente, tendo em conta o disposto no artigo 15° do Decreto-Lei 49 408 de 24/11/69, se se entender que deve ser esse o diploma aplicável.

10. Pelo que se interpõe o presente recurso de Revista e que ora se submete à douta apreciação dos Venerandos Conselheiros o caso sub judice, que plasma questão jurídica muito debatida e pertinente no nosso ordenamento jurídico, qual seja a de qualificar uma relação jurídica estabelecida e mantida por uma médica de clinica geral com um Lar de Idosos durante cerca de 28 anos, nas concretas condições e circunstancialismos em que a mesma se verificou- se de prestação de serviços, se de contrato de trabalho.

11. Entende a Recorrente que durante vinte e oito anos manteve um contrato de trabalho com o Lar de Idosos BB, gerido pela Segurança Social, pois conformou toda a sua vida pessoal e laboral nesse sentido, tendo na sua ótica logrado fazer prova dessa sua asserção.

12. Tendo em conta a matéria de facto definitivamente provada e assente, para a qual, por razões de economia processual se permite remeter e constante dos artigos 21 a 33 destas Alegações (páginas 6 a 21), no que se refere, designadamente, ao local e instrumentos de trabalho, à definição e âmbito das funções da Recorrente - médica de clínica geral, com a latitude que esta especialidade implica e, por isso, com a abrangência e essencialidade que tal implica num Lar de Idosos com esta dimensão, horário laboral fixado pela Direção do Lar, disponibilidade exigida à Autora em conexão com a fixação deste horário, remuneração mensal certa ilíquida e forma de pagamento e recebimento da mesma, pagamento de forma sucessiva e ininterrupta à Autora pela Ré de subsídios de férias e de Natal e bem assim o pagamento das respetivas férias, forma de marcação das consultas (efetuada pela Enfermeira Chefe) não lhe estando permitido pela Ré adiar consultas ou marcá-las segundo a sua conveniência pessoal, regras quanto à marcação de férias dependentes da vontade da Direção do Lar e inclusão da Autora no mapa de férias do pessoal, obrigatoriedade de comunicar ausências, de comunicar previamente qualquer necessidade de troca de dias de trabalho e obrigatoriedade de apresentação de atestado médico para justificar as suas faltas, que demonstram a completa inserção da Autora na estrutura organizativa da Ré e as relações de subordinação existentes,

13. Tanto mais que sempre foi designada por empregada, recebendo conforme talão de remuneração e depois como Funcionária, conforme recibo de vencimento, aderindo tal denominação à execução contratual concreta que era implementada pela Autora,

14. E, ainda, que a Ré colocou à A. um contrato de avença para assinar, assinatura essa que se verificou tendo em vista a manutenção do exercício de funções de médica naquele Lar, nunca tendo até à data emitido qualquer "recibo verde" ao Lar BB, nem ao Centro Regional da Segurança Social do Norte, sendo certo que provado ficou que a Autora continuou a estar subordinada a uma disponibilidade absoluta em caso de urgência, fosse em que dia fosse, e a que horas fossem e que na sua prestação laboral nada de nada foi alterado, apenas e tão só o nome que a beneficiária do trabalho da Autora entendeu dar àquela relação laboral.

15. Sendo certo que relativamente às consequências que a A. foi obrigada a retirar de tal denominação (emissão de recibos verdes e descontos para a Segurança Social enquanto trabalhadora independente), sob pena de violar de forma flagrante a lei e incorrer em sanções e coimas, chama-se à colação o disposto na Portaria 1035/2001 de 13/08 e, ainda, o disposto no Decreto-Lei n.º 328/93 de 25 de setembro (art. 5°, n° 2),

16. Tendo em conta a matéria fixada como definitivamente assente, dizia-se, só por si, a mesma na sua globalidade configura a existência de um contrato de trabalho, tal como definido na legislação em vigor, quer à data dos factos, quer à data atual.

17. Nesse sentido, de resto, foi carreada douta Jurisprudência diversa no que se refere à delicada temática jurídica em apreço no presente recurso devidamente elencada nestas alegações, destacando-se o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 21111/2005, in www.djsi.pt com o número convencional JTRP00038542 e de processo 0543392), o qual numa situação em tudo idêntica à dos presentes autos conclui pela qualificação desse contrato como sendo um contrato de trabalho.

18. Relativamente a tal Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, a Recorrente permitiu-se efetuar um exercício comparativo de factualidade aí descrita, em tudo similar à dos presentes autos e bem assim das conclusões retiradas, as quais são em tudo opostas às destes autos, não obstante a similitude de situações e até de avultarem nos presentes autos, mais factos índice da existência de um contrato de trabalho do que naquele Acórdão analisado e dissecado, para cuja resenha doutrinal e jurisprudencial, mui respeitosamente, se permite a aqui Recorrente remeter e chamar à colação (artigos 61.° a 64.°, correspondentes às págs. 27 a 34 destas alegações).

19. Donde decorre que a Recorrente não possa manifestamente concordar com a argumentação constante do Ponto VI do Acórdão recorrido para justificar a inexistência de um contrato de trabalho.

20. Desde logo porque não se entende porque razão é que são desvalorizados os factos índice "local de trabalho" e "instrumentos de trabalho", só pelo facto de se tratar de uma médica de clínica geral. É que precisamente por tal facto, ou seja, pela possibilidade desta profissional poder exercer a sua atividade no seu consultório com os seus instrumentos e equipamentos, é que, salvo melhor opinião, tal facto índice deve ser valorizado. Ou seja, da própria descrição exaustiva de tudo quanto foi atribuído à Autora pela Ré, tendo precisamente em conta que se trata de uma profissional, de antemão vocacionada para o exercício da profissão na sua própria estrutura organizativa, com os seus próprios equipamentos e determinar o modo de organizar consultas e organizar o serviço respetivo, é que ressalta o relevo destes factos índice (à semelhança de resto do que ocorre no Acórdão de 2005, do Tribunal da Relação do Porto nesta sede analisado).

21. Quanto ao horário de trabalho também, salvo o devido respeito, não colhe a argumentação para enjeitar esse facto índice, já que pelo facto de a hora do termo não ter que ser rigorosamente cumprida - nem podia, dada a obrigatoriedade de cumprir a agenda que lhe era apresentada ~ não significa que não exista horário de trabalho. Veja-se os milhares de casos de profissionais com cargos diretivos ou com autonomia técnica, integrados em verdadeiros e próprios contratos de trabalho, quer na Banca, Seguros, Empresas Públicas e Privadas, designadamente Hospitais e mesmo no próprio Estado.

22. Acresce, por outro lado, que a disponibilidade exigida à A. pela Ré, bastante circunstanciada e explicitada na matéria que ficou assente, também não se compadecia com o picar de ponto - o qual não é normalmente exigido também aos cargos diretivos ou com autonomia técnica, como se pode constatar da prática vivenciada no mundo do trabalho.

23. É também indiscutível, na ótica da aqui Recorrente, que efetivamente estava submetida a uma relação de subordinação para com a Ré, face à factual idade assente e que se encontra quanto a esta matéria (ordens) devidamente dissecada nos artigos 100° a 147° constantes das páginas 42 a 52 destas alegações, para cujo teor, mui respeitosamente se permite remeter, sendo que em funções desta natureza (médicos, advogados, professores universitários, engenheiros, etc.) esta subordinação tende a atenuar-se cada vez mais, na relação de trabalho subordinado, sendo igualmente verdade que a subordinação requerida pela noção de contrato de trabalho decorre também do facto de o trabalhador se integrar numa organização de meios produtivos alheia, dirigida à obtenção de fins igualmente alheios e que essa integração acarreta a submissão às regras que exprimem o poder da organização do empresário.

24. De facto, em determinado tipo de atividades cuja natureza implica a salvaguarda absoluta da autonomia técnica do trabalhador, este apenas ficará adstrito à observância das diretrizes gerais do empregador em matéria de organização do trabalho (local, horários, normas de procedimento burocrático, regras disciplinares). E continuará a existir subordinação jurídica. Mas sem dependência técnica.

25. Se na ótica da Recorrente é clara a existência de um contrato de trabalho que iniciou a sua vigência em 1986,

26. Também não foi pelo facto de ter sido obrigada a assinar um contrato de avença, nas circunstâncias em que o foi e para manter o seu posto de trabalho, que a situação foi alterada, já que em termos fácticos tudo, no que respeita ao modo e execução do seu trabalho se manteve inalterável.

27. Frise-se: a A. encarou a assinatura do contrato de prestação de serviços como mera formalidade burocrática, para manter o seu posto de trabalho, pois o mesmo não tinha qualquer adesão à realidade laboral vivenciada pela A. como de resto bem sabia a Ré,

28. Ré essa que manifestamente não quis abrir mão de uma pessoa que já mantinha ao seu serviço desde 1982, a quem reconhecia grandes qualidades e conhecimentos de trabalho, designadamente na área da geriatria, com provas cabalmente dadas.

29. Contudo, a categorização das situações não resulta do que lhes chama (nomen júris), mas sim do que resulta do seu conteúdo material/útil. E na presença de um contrato escrito, havendo contradição ou fundada dúvida entre o acordado e o realmente executado, prevalece a qualificação jurídica que resulta do conteúdo/execução efetiva do negócio.

30. Como demonstrado ficou e devidamente explicitado nos artigos 1610 a 1950 destas alegações, o contrato de avença e, depois, a sua Adenda, não estavam, nem de perto, nem de longe, conformes ou em sintonia com a execução do contrato por parte da Autora e, desde logo, quanto aos pressupostos de celebração de um contrato de avença! Além de que no que se refere à remuneração da A., o que no contrato estava contemplado em nada correspondia à realidade pois a Autora não era paga segundo critérios de números de atos médicos, antes, estando obrigada a manter a disponibilidade absoluta da sua força de trabalho relativamente à Ré.

31. Em suma, as funções exercidas pela Autora, de forma constante e ininterrupta desde 1986 até 2010, foram-no no âmbito de um contrato de trabalho, não consubstanciando qualquer prestação de serviços.

32. Ainda que se considere que a Segurança Social não podia celebrar contratos de trabalho, o que é certo é que dele beneficiou, no que se refere à Autora, devendo aplicar-se o regime do artigo 15° do Dec-Lei  49408,

33. Retirando-se daí as mesmas e exatas consequências das já retiradas na douta sentença da 1.ª Instância,

34. Condenando-a a Ré nos pedidos formulados pela Autora como se de um contrato de trabalho válido se tratasse,

35. Revogando-se o Acórdão recorrido, no sentido de ser qualificado como contrato de trabalho o contrato celebrado entre a A. e a Ré, extraindo-se daí as consequências devidas nos termos já extraídos na douta sentença proferida em 1.ª instância.»

O Réu respondeu ao recurso interposto integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«1 - A Autora, ora Recorrente, não se conformando com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que revogou a sentença da 1.ª instância e absolveu o Réu ISS, IP. de todos os pedidos, veio apresentar o presente recurso de revista, sem contudo indicar as normas e preceitos legais que entende terem sido violados, olvidando que esse Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece matéria de direito.

2 - Todavia, não merece qualquer acolhimento o alegado pela Recorrente em sede de alegações, uma vez que os factos que o tribunal da Relação deu como provados e que foram definitivamente fixados, apontam inquestionavelmente no sentido do contrato em causa ser de prestação de serviços na modalidade de avença, pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso.

3 - A A. no ano de 1982, terá iniciado funções como médica no Lar BB, no Porto, em regime de avença (doc 9 junto à contestação).

4 - Antes de 1993, o Lar BB não pertencia e nem estava sob a gestão do Réu, uma vez que, tal como as atuais Instituições Particulares de Solidariedade Social, aquele estabelecimento estava dotado de autonomia administrativa, contratual e financeira, embora beneficiando de apoios estatais.

5 - Apenas em meados do ano de 1993, por força do Decreto-Lei n.º 58/93 de 1 de março, foi o Lar BB integrado orgânica e funcionalmente, no então Centro Regional de Segurança Social do Norte.

6 - Nada existe na matéria de facto provada, que indicie que antes de 1993 (ou após, como se verá), a A. recebia quaisquer ordens ou instruções de quem quer que fosse no Lar, que se encontrava sujeita à sua fiscalização ou disciplina, que estava inserida na sua estrutura organizativa ou hierárquica, que se encontrava na sua dependência financeira, que prestava a sua atividade em exclusividade (pelo menos desde 1987 ela já detinha um contrato de trabalho com a PSP - doc 12 da contestação), que estaria sujeita a um horário de trabalho, ou sujeita ao poder disciplinar do Lar.

7 - Ou seja, não existe na matéria provada quaisquer indícios de que na época em que foi contratada até finais do ano de 1993, existia subordinação jurídica da A. para com o Lar.

8 - Aquando da sua integração no Centro Regional de Segurança Social do Norte, em 1993, o Lar BB, propôs à Segurança Social, a contratação da A. em regime de avença (conforme o art. 17° do DL. N.º 41/84 de 3.02 e DL. N.º 299/85 de 29.07), dados os conhecimentos de geriatria já demonstrados por ela nos anos em esteve contratada em regime de aquisição de serviços. Proposta que foi aceite e publicada em Diário da República.

9 - Na sequência a A. (pessoa letrada, instruída, com um curso superior e assim com uma cultura bem acima da média) assinou em 02.01.1994, de forma clara, esclarecida e na liberdade contratual que lhe assistia, um contrato de avença com o Centro Regional de Segurança Social do Norte, ao abrigo do art. 17° do DL n.º 41/84 de 3 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pelo DL. n° 299/85 de 29 de junho, termos no qual se estipulava expressamente, na sua cláusula sexta, que o referido contrato não lhe conferia quaisquer direitos inerentes à Função Pública.

10 - Os diplomas, ao abrigo dos quais a Autora e o Réu celebraram o seu contrato, por terem sido aprovados e emitidos pelo órgão legislativo competente e por se tratarem de atos legislativos de igual valor (art. 112°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa) não permitem que se recorra ao Código do Trabalho para nele se tentar enquadrar o contrato aqui em causa, mesmo que se verificassem (e não se verificam) todos os elementos típicos do contrato de trabalho;

11 - Foi o próprio legislador, quem previu e admitiu a celebração de contratos de prestação de serviços na modalidade de avença entre o Réu e os particulares, proibindo até a celebração de outro tipo de contrato, quando nos Serviços não existissem funcionários ou agentes com as qualificações adequadas ao exercício de determinadas funções necessárias, ou quando inexistisse um número suficiente de trabalhadores para as exercer, o que foi o caso.

12 - A Autora, sempre esteve consciente do contrato que livremente aceitou e assinou, sabendo-o como de prestação de serviços, regido pelas regras próprias deste tipo de contrato, nomeadamente, que podia ser resolvido a todo o tempo sem quaisquer direitos indemnizatórios, e não lhe conferindo o direito a férias, a subsídio de férias, a subsídio de Natal (que ela aliás, nunca requereu até à propositura da ação) ou qualquer indemnização por antiguidade em caso de denúncia.

13 - Existem inúmeros fatores que indiciam que a A. bem sabia o tipo de contrato que tinha e que o quis nos termos em que o assinou: solicitou à Segurança Social e às Finanças o seu enquadramento como trabalhadora independente, passando a ser tributada como tal e a apresentar a declaração de IRS em período diferente dos trabalhadores por conta de outrem; Não recebia subsídios de férias e de Natal e nunca exigiu o seu pagamento; Solicitou, em requerimento que dirigiu à sua entidade patronal (a PSP), autorização para acumular as suas funções públicas na PSP, com privadas no Lar BB e na empresa CC, …, Lda.; passava recibos verdes pela prestação dos seus serviços; apresentou um requerimento solicitando a revisão da remuneração acordada no seu contrato de avença (e que fora calculada com base numa estimativa do número de atos médicos mensais tento em conta o número de residentes do Lar na altura da celebração do contrato), com a fundamentação de que se verificara uma "evolução dos cuidados de saúde decorrente das novas políticas de intervenção ao nível de apoio às pessoas idosas", o que se traduziu num "significativo aumento" do número de atos médicos, exigindo uma maior disponibilidade da A. na prestação dos seus serviços.

14 - A A. não só aceitou o contrato aquando da sua celebração e durante todo o tempo que vigorou, como também beneficiou das suas características, apenas se insurgindo contra a sua qualificação, após ter cessado.

15 - É jurisprudência e doutrinariamente aceite que, enquanto que no contrato de trabalho se visa a prestação da atividade per si, com subordinação jurídica do trabalhador - concretizada no poder que o empregador tem de, através de ordens, diretivas e instruções, conformar a atividade do trabalhador (dever de obediência do trabalhador) - já no contrato de prestação de serviços, visa-se a obtenção de um determinado resultado, que o prestador obterá sem sujeição ao poder do empregador.

16 - São apontados vários indícios externos e internos como manifestações de subordinação jurídica (internos: a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho; a qualificação atribuída pelas partes ao contrato; a prestação em local definido pelo empregador; a propriedade dos instrumentos de trabalho do empregador; a integração do prestador na estrutura organizativa do empregador; a dependência económica do trabalhador; a exclusividade da atividade laborativa em benefício de uma só entidade; a pessoalidade da prestação; o controlo sobre a forma como o trabalho é prestado; a obediência a ordens e a sujeição imposta pelo empregador; a remuneração em função do tempo de trabalho; a indeterminação do conteúdo da atividade (ou, o seu resultado) externos: o regime fiscal e de segurança social próprios dos trabalhadores por conta de outrem; o recebimento de subsídios de Natal e de férias);

17 - A A. não estava sujeita a um horário de trabalho. Podia sair antes ou depois das 18h; podia trocar os dias de trabalho de segunda a quinta pela sexta-feira que tinha livre; podia ter de fazer consultas à noite, de dia, aos fins de semana, aos feriados, se houvesse necessidade urgente; estava disponível telefonicamente durante todos os dias a todas as horas, incluindo nas férias; nunca picou o ponto ou efetuou registos de entrada ou de saída; se não tivesse consultas podia ir-se embora;

18 - Vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade contratual (art. 4050 do CC), «o nomen iuris» atribuído ao contrato celebrado pelas partes releva na medida em que corresponde à exteriorização da vontade das partes, principalmente, quando se tratam de pessoas instruídas e com uma cultura acima da média. E a Autora sempre teve conhecimento da natureza do seu vínculo para com o ISS, IP., sempre se aproveitou das suas características (nomeadamente quanto à questão da não exclusividade), sempre lhe foi favorável que todos os outros a vissem como uma avençada do ISS, IP. (nomeadamente a sua entidade patronal - a PSP), e nunca se arrogou - ao longo de quase vinte anos - da existência de um contrato de trabalho, ou solicitou a conversão do seu contrato, ou sequer, alguma vez expressou tal entendimento ao Réu. Assim, in casu, a qualificação jurídica que as partes deram ao contrato é incontestavelmente relevante.

19 - O facto da A. prestar as suas funções no Lar e com alguns os instrumentos disponibilizados pelo Réu não é, neste contexto, atenta a natureza da atividade prestada, indício da existência de um contrato de trabalho, pois que a prestação teria sempre que ser realizada naquele local, uma vez que foi para consultar os utentes ali internados que ela foi contratada.

20 - A A. nunca esteve integrada na estrutura organizativa do ISS, IP., não existindo lugares para médicos nos mapas de pessoal do Réu. Além disso, poderia fazer-se substituir nas suas faltas por médico da sua confiança, o que demonstra que a A. nunca poderia estar integrada na estrutura organizativa do Réu.

21 - A A. nunca esteve economicamente dependente do Réu, ou trabalhou para o ISS, IP. em regime de exclusividade, pois que não só tinha um contrato de trabalho com a PSP, como também prestava a sua atividade noutros locais, nomeadamente, na empresa CC, …, Ld.ª. (doc. 3 da contestação)

22 - A Autora podia-se fazer substituir por médico da sua confiança, quando, por motivo de força maior, não pudesse prestar os serviços objeto do presente contrato e daí não resultasse qualquer encargo para o ISS, IP. Ora, daqui se retira que, para o Réu ISS, IP., o que interessava era a obtenção concreta de um resultado e não a prestação da atividade per si, ou seja, para o ISS, IP. o que interessava era que os utentes fossem assistidos em caso de consultas marcadas ou urgências, fosse a que horas fosse, sendo-lhe indiferente que tal assistência fosse efetuada apenas pela A, ou por qualquer outro médico escolhido por si própria para a substituir.

23 - Inexistem quaisquer indícios da existência de controlo, ordens ou sujeição, sobre a forma como a atividade da A. era prestada. A Autora prestava a sua atividade com total autonomia técnica e em conformidade com os procedimentos médicos, não havendo ninguém que controlasse a sua atividade ou o seu pretenso horário. Nem o tribunal fez constar na matéria provada quaisquer factos indiciários dessa sujeição a ordens, controlo ou hierarquia.

24 - O único controlo que poderia existir, era sobre o resultado efetivo da sua prestação, o que não podia deixar de ser, visto que a A estava a ser paga para produzir esse resultado.

25 - Assim, enquanto médica avençada, a A nunca recebeu qualquer tipo de ordem quanto à forma de proceder, detendo uma total autonomia técnica no exercício das suas funções e prestando a sua atividade de forma independente, ou seja, sem qualquer relação de subordinação, dependência, ou sequer interferência por parte do Réu ISS, IP. E se assim não era, a A. não o conseguiu provar e sobre si impendia o ónus de o ter feito.

26 - A A não era remunerada em função do tempo de trabalho. A sua remuneração (certa e mensal, em cumprimento do estabelecido no art. 17°, n.º 4 do DL n.º 41/84) foi calculada com base numa estimativa do número de atos médicos a efetuar mensalmente, tendo em conta o número de idosos internados no Lar aquando da contratação da A. Com a evolução dos cuidados de saúde e aumento significativo do número de atos médicos praticados pela A, procedeu-se a uma nova estimativa que culminou numa adenda ao contrato da A e consequente aumento da retribuição.

27 - Para o R. apenas interessava o resultado efetivo da prestação da A e não, a sua atividade per si. Ela podia sair e entrar a que horas quisesse, trocar dias de trabalho, fazer-se substituir por outro médico da sua confiança, desde que as consultas ficassem acauteladas.

28 - Também poderia fazer as férias quando quisesse, e se alguma vez aconteceu não terem sido "autorizadas" as férias da A. foi porque a mesma incumpriu a cláusula quinta do seu contrato de avença, não deixando acautelado o resultado efetivo da prestação;

29 - Como já demonstrado, existem inúmeros indícios que manifestam que a A. bem sabia o tipo de vínculo contratual que a unia ao R.  de prestação de serviços.

30 - Durante quase 20 anos não recebeu subsídios de férias e nem de Natal e nunca indagou o ISS, IP., sobre o motivo de não os receber, e muito menos alguma vez os requereu. Da mesma forma, nunca se arrogou da existência de um contrato de trabalho, nunca solicitou a conversão do seu contrato, e nem sequer alguma vez expressou tal entendimento ao Réu. E nem o faria, pois como bem sabe, caso o fizesse, nunca poderia continuar a prestar os serviços no Lar, pois que sendo funcionária na PSP, é estritamente proibida a cumulação de funções públicas com públicas. Para além do mais, a A era bem remunerada pelo Réu (veja-se os recibos juntos com a Petição Inicial, e cuja remuneração é igual à de um técnico superior que trabalhe todos os dias da semana), e a A não estava disposta a prescindir dessa remuneração. E tanto não estava, que aguardou a denúncia do contrato de avença para se vir arrogar de que era detentora de um verdadeiro contrato de trabalho, com direito a uma avultadíssima indemnização e com direito a todos os subsídios que nunca antes requereu ou se achou de direito.

31 - Assim, estamos perante um nítido caso de venire contra factum proprium, porquanto a A sempre aceitou esclarecida e livremente os termos e condições propostas no seu contrato de prestação de serviços e adenda, que assinou, aceitando também os efeitos nele previstos, nunca se insurgindo contra a sua caracterização jurídica.

32 - Enquanto vigorou o seu contrato, aceitou e beneficiou das suas características (nomeadamente o facto de poder acumular com as suas funções públicas na PSP), apenas vindo agora, cessado o seu contrato, num claro abuso de direito, arrogar-se da existência de um contrato de trabalho, numa clara tentativa de "beneficiar do melhor dos dois mundos",

33 - Os danos não patrimoniais apenas são indemnizáveis quando, pela sua gravidade e consequências, merecem a tutela do direito (art. 496°, n° 1 do CC). No caso, não só não existem quaisquer danos, como também os pretensos danos invocados pela A, mesmo que existissem (e não existem), não merecem a tutela do direito, sendo também o Réu totalmente alheio.

34 - A A. não logrou provar quaisquer factos relativos a esta matéria, concretizando de que forma se manifestou a sua vergonha, tristeza e abatimento, como muito menos provou a existência de nexo de causalidade e a sua imputação ao Réu ISS, IP. E também o Tribunal de 1.ª instância, na matéria que deu como assente, não deu como provado nenhum facto grave ou consequência, mas tão-somente recorreu a matéria conclusiva.

35 - Mesmo que se entendesse que o contrato em causa - o que não se concede, de todo - se tratava de um verdadeiro contrato de trabalho subordinado, então, o mesmo sempre seria nulo porque celebrado fora das situações legalmente previstas, em violação do disposto nas normas do DL n.º 41/84, de inquestionável natureza imperativa, bem como fora das regras da sujeição a procedimento concursal.

36 - Assim, mesmo que estivéssemos perante um verdadeiro contrato de trabalho, o que não se aceita, por ser o mesmo nulo, apenas produziria efeitos durante o tempo em que esteve em execução, tal como prevê o art. 122.º do Código do Trabalho em vigor.

37 - Sendo nulo e sendo inconstitucional a sua conversão para contrato de trabalho a termo incerto, nunca a A. poderia ser reintegrada ao serviço do R., e logo, também nunca lhe assistiria o direito à indemnização substitutiva da reintegração. E muito menos teria direito, às retribuições que auferiria até à apresentação da contestação (na qual foi invocada a nulidade do contrato).

38 - A nulidade de um negócio jurídico, é um vício insanável que provém da falta dos elementos essenciais do negócio jurídico, A nulidade, ao contrário da anulabilidade opera por si, podendo ser declarada, mas não necessitando da declaração para que se verifique. Um ato nulo, é nulo de per si, e não porque assim o foi declarado.

39 - Assim, a declaração da nulidade é "ex tunc" ("desde a época"), ou seja, retroage ao momento em que o ato foi realizado, enquanto que pelo contrário, a declaração de anulabilidade tem efeito "ex nunc" ("desde agora"), ou seja, o negócio jurídico produziu efeitos e continuará a produzir até ao momento em que for declarada.

40 - Se se entendesse que estávamos perante um contrato de trabalho, o mesmo seria nulo (e não anulável) por violação das regras que regem a contratação pública e violação crassa das normas que obrigam a sujeição ao concurso público, pelo que o contrato apenas produziria efeitos enquanto vigorou, cessando no momento em que, licita ou ilicitamente, o 155, IP. lhe pôs termo, e não, até à data em que foi invocada a pretensa nulidade.

41 - Nunca teria por isso a A., direito às retribuições até à contestação que invocou a nulidade do contrato, porque tal efeito só se verificaria caso o contrato em causa fosse anulável e não nulo.

42 - Daí que, sem conceder, mesmo que se aceite a tese da A., nunca lhe assistiria o direito à reintegração, à indemnização por alegado despedimento, às prestações vencidas e vincendas, etc, como peticionado, decorrentes da cessação do contrato.

43 - Assim, por tudo o que foi referido, a rescisão do contrato de prestação de serviços efetuada pelo ISS. IP., nunca poderá configurar um despedimento, e muito menos, ilícito, pois que estando perante um contrato de avença (ao abrigo do art. 17° do DL n.º 41/84 de 3.02,) o ISS. IP. poderia denunciá-lo a todo o tempo, desde que cumprido o período de aviso prévio, e sem a obrigação de indemnizar (n° 5 do art. 17° do referido diploma).

44 - Assim, também não era necessária justa-causa para a denúncia do contrato, como de resto a A. bem sabia, já que a possibilidade da denúncia efetuada nesses termos, se encontrava expressamente prevista no seu contrato de avença. Não estamos, por isso, perante um despedimento, e muito menos ilícito.

45 - A relação contratual da Autora era totalmente diferente da do resto dos trabalhadores do ISS, IP., pois, como é sabido: os trabalhadores da administração pública, estão sujeitos ao regime de exclusividade (no caso do Réu, sem prejuízo de poderem ser autorizados, pelo ISS, IP., mediante requerimento, a acumular funções privadas), estão sujeitos a um horário de trabalho e à prestação de um número de horas de trabalho por mês, sendo os respetivos horários - assiduidade e pontualidade - fiscalizados por meios eletrónicos. Têm ainda a obrigação de proceder à justificação de faltas e, se o não fizerem, para além do não pagamento da respetiva retribuição, incorrem em falta disciplinar com as inerentes consequências. Estão, ainda, sujeitos à aprovação do mapa de férias, estão inseridos numa estrutura hierárquica (podendo ser objeto de processo disciplinar), e têm uma muito limitada autonomia técnica (sendo o seu trabalho fiscalizado e avaliado através do sistema de avaliação "SIADAP", com obrigação de cumprimento de objetivos e aplicação de "critérios de superação", preenchimento de mapas de produtividade, com repercussões na progressão na carreira e tabela salarial), etc.

46 - Ora, como se vê dos factos provados, nada disto se passava com a A.

47 - Em resumo, no contrato em causa, não existem nenhuns dos indícios externos ou internos apontados pela jurisprudência e doutrina, de que estaríamos perante um contrato de trabalho. Aliás, bem pelo contrário: a A. não se encontrava sujeita à fiscalização do ISS. IP.; não recebia ordens quanto à forma de proceder; detinha mesmo uma total autonomia técnica no desempenho das suas funções; não se encontrava sujeita ao poder disciplinar; não tinha superiores hierárquicos; ausentava-se e fazia férias quando queria, desde que, nos termos do seu contrato, se fizesse substituir por colega que efetuasse as consultas por ela, e bem assim, que assegurasse o resultado da prestação; não se encontrava adstrita ao cumprimento de um horário de trabalho; não estava sujeita ao controlo de assiduidade e pontualidade; não fazia parte do mapa de pessoal do ISS, IP.; a sua remuneração foi calculada com base numa estimativa do número de atas médicos e alterada quando o número de atos médicos aumentou;

48 - Por conseguinte, não só inexistem quaisquer indícios externos ou internos que apontem no sentido de estarmos perante um contrato de trabalho, como se verificam todas as características que a nossa doutrina e jurisprudência atribuem às prestações de serviço, pelo que bem andou o Tribunal da Relação ao revogar a sentença da ia instância e ao absolver o Réu ISS, IP. de todos os pedidos. Decisão essa que se deverá manter.»

Neste Tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta proferiu parecer, nos termos do n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho, pronunciando-se no sentido da concessão da revista.

Notificado esse parecer às partes, veio o Réu tomar posição sobre o mesmo pedindo a confirmação da decisão recorrida.

Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 3, e 639.º do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, está em causa na presente revista saber da natureza jurídica da relação existente entre a Autora e o Réu.

II

1 - As instâncias fixaram a seguinte matéria de facto:

«1. Competia à Autora consultar os utentes que residiam no Lar BB, avaliar a sua situação clínica e proceder ao seu tratamento, prescrevendo a respetiva medicação e tratamento – al. A).

2. Para além de ali consultar e tratar os utentes, tinha também a seu cargo as consultas e diagnóstico da situação clínica dos candidatos a utentes do Lar – al. B).

3. A Autora exerceu desde sempre tais funções precisamente no Lar BB, local que foi definido pela Direção do referido Lar para o respetivo exercício – al. C).

4. Neste sentido foi-lhe atribuído um gabinete e uma secretária, papel timbrado e material de escritório, também todos os equipamentos necessários ao exercício da profissão da medicina de clínica geral, tais como aparelho medidor de tensão arterial, estetoscópio, luvas, entre outros tantos – al. D).

5. Assim como as receitas médicas que a Autora passava para o levantamento dos medicamentos a serem utilizados pelos utentes do Lar BB, tinham o timbre do próprio Lar – al. E).

6. Até ao ano de 2006, a Autora era designada pelo número de empregada (Emp) 50113, conforme talão de remunerações referente ao mês de dezembro de 2005, emanado pelo Centro Regional de Segurança Social do Norte – al. F).

7. Mais tarde, a Autora passou a ser identificada como funcionária (Func 402770), pelo Instituto da Segurança Social, I.P., conforme recibo de vencimento referente ao pagamento do mês de setembro e outubro de 2010 e recibos de pagamentos de retroativos referentes aos anos de 2007, 2008, 2009 e 2010, datados de 19.11.2010 – al. G).

8. Em dia que não se consegue precisar, mas próximo do término do ano de 1993, a Direção do Lar informou a Autora que até àquela data, e desde há longos anos, o Lar BB era contemplado com uma verba anual do Centro Regional da Segurança Social do Norte, sendo que a gestão dessa verba ficava a cargo da Direção do Lar, e que o vencimento da Autora tinha sido sempre pago no âmbito dessa verba – al. H).

9. De acordo com a informação da Direção do Lar, de então em diante iriam existir alterações, na medida em que a gestão daquela verba passaria a competir, exclusivamente, ao Centro Regional da Segurança Social do Norte e que a Autora passaria a ser diretamente remunerada por aquela Instituição – al. I).

10. A Ré solicitou à Autora que emitisse «recibos verdes» para formalizar anteriores pagamentos que já tinham sido pagos à Autora, mais precisamente, a partir do mês de junho de 1993, tendo em vista a formalização de pagamentos já efetuados desde aquela data – al. J).

11. A Autora passou seis «recibos verdes» referentes ao ano de 1993, sendo que todos eles foram passados no dia 02.12.1993 – al. L).

12. A Autora assinou o designado «contrato de avença» junto a folhas 41-44 e foi publicado no Diário da República II série, nº 92, de 20.04.1994 – al. M).

13. Em 13.10.1999, por adenda ao então designado «contrato de avença», a Autora passou a auferir a quantia mensal certa no valor de 250.000$00, ficando, uma vez mais, concretamente estipulado que a Autora se obrigaria a «prestar os seus serviços», ou melhor, a trabalhar no Lar BB – al. N).

14. Como comprovativo de recebimento de quantias mensais, a Autora continuava a passar «recibos verdes» – al. O).

15. No dia 22.10.2010, o Instituto da Segurança Social, I.P., enviou uma carta à Autora a denunciar o então denominado «contrato de avença», com efeitos a partir de 31.12.2010 – al. P).

16. O Réu não pagou à Autora os subsídios de férias e de Natal desde o ano de 1994 até ao ano de 2010, proporcionais referentes ao subsídio de férias e de Natal referente ao ano de 2010, tendo a Autora trabalhado até 31.12.2010 – al. Q).

17. Ao contrário do que sucede nos hospitais, no Lar existia um caráter de permanência dos utentes/doentes, o que implicava inevitavelmente uma relação de especial carinho e amizade entre médica e doente. E por força das circunstâncias, os utentes/doentes do Lar são pessoas já de uma idade avançada e com um grau de dependência e de necessidade de afetos e de estabilidade, muito superior ao comum dos restantes doentes – al. R).

18. E, é precisamente esta especial ligação e esta especial necessidade dos doentes tão própria da sua idade avançada que levou a Autora a dar o seu melhor a nível profissional e pessoal – al. S).

19. Apesar de toda a sua tristeza, a Autora ainda conseguiu escrever umas palavras de agradecimento e de despedida constantes do documento de folhas 87 e que afixou num placard do Lar, antes de se vir embora definitivamente – al. T).

20. A Autora foi admitida, pelo então denominado Ministério do Trabalho e da Segurança Social, ao serviço do Lar BB, de 1982 a 1986, para exercer funções de médica de clínica geral, uma ou duas vezes por semana, como apoio do marido médico que aí prestava serviço, e a partir de 1986, substituiu-o quando este se desvinculou do Lar, mediante retribuição – resposta ao quesito 1.

21. A partir de 1986, a Autora trabalhava, de segunda-feira a quinta-feira, das 14 às 18 horas, com dispensa à sexta-feira, período esse que lhe foi determinado pela Direção do Lar BB – resposta ao quesito 2[1].

22. A Autora estava ainda obrigada a dar permanentemente assistência telefónica, ou a deslocar-se ao Lar BB, caso alguma urgência o ditasse, fosse num sábado, num domingo ou num feriado, durante a noite ou durante o dia, o que se verificou algumas vezes, ao longo destes quase 30 anos ao serviço do Lar BB – resposta ao quesito 3[2].

23. Já no que respeita à assistência telefónica, era tão constante que até houve um ano em que se encontrava em gozo de férias e não houve um único dia em que a Autora tivesse deixado de receber telefonemas do Lar – resposta ao quesito 4.

24. A partir de 1986, foi fixada uma remuneração mensal certa ilíquida, num valor aproximado de 138.000$00, que era paga, em numerário, pelo Lar BB pela respetiva chefe da secretaria do Lar – resposta ao quesito 5.

25. A Autora não emitia qualquer recibo, nem recebia qualquer recibo de remunerações; apenas lhe era pedido pela Direção do Lar que apusesse a sua assinatura num livro que se encontrava na secretaria do Lar destinado a receber essas assinaturas a título de comprovativo do recebimento das quantias auferidas – resposta ao quesito 6.

26. Desde 1986 até ao ano de 1993, inclusive e ininterruptamente, a Autora auferiu subsídio de férias e subsídio de natal, assinando num livro existente na secretaria do Lar para comprovar os recebimentos dessas quantias em numerário – resposta ao quesito 7.

27. Para o exercício do direito a gozo de férias, a Autora acordava com a Direção daquele Lar o período em que poderia gozar as suas férias e esta, tendo em conta a organização do serviço médico, podia conceder à Autora férias no período solicitado ou, então, concedê-las noutro período que achasse mais conveniente – resposta ao quesito 8.

28. A Autora antes de acordar as suas férias tentava sondar a Direção para averiguar do período mais oportuno para as gozar, em consonância também com as férias do outro médico psiquiatra que trabalhava no Lar BB, doutor DD, pelo que as mesmas eram normalmente concedidas nos moldes solicitados pela Autora – resposta ao quesito 9.

29. Uma vez estipulado o período de férias da Autora, a secretaria elaborava o mapa de férias – resposta ao quesito 10.

30. A Autora sempre comunicou as suas faltas ao serviço – resposta ao quesito 11.

31. A Autora comunicava previamente qualquer necessidade de troca de dias de trabalho – resposta ao quesito 12.

32. Apenas, por uma única vez, a Autora apresentou um atestado médico porque teve a necessidade impreterível de faltar 5 dias consecutivos em virtude de doença grave de um filho, que veio a falecer – resposta ao quesito 13.

33. Por vezes, também sucedida que a Autora apresentava-se ao serviço às 14 horas, consultava os utentes e caso não tivesse mais consultas naquela tarde, saía mais cedo – resposta ao quesito 14.

34. No entanto, permanecia sempre contactável e disponível para atender telefonemas do Lar ou para ali se deslocar novamente, caso houvesse necessidade – resposta ao quesito 15.

35. No caso de ter muitas consultas marcadas para aquela tarde – note-se que as consultas eram previamente marcadas pelas senhoras enfermeiras na agenda da Autora – esta ficaria para além das 18 horas, não deixando quaisquer utentes por consultar – resposta ao quesito 16[3].

36. Tudo dependia do estado de saúde dos residentes do Lar, do número de utentes para consultar e do número de candidatos a residentes para o Lar – resposta ao quesito 17.

37. A Ré nunca obrigou a Autora a «picar o ponto» – resposta ao quesito 18[4].

38. Na sequência dos factos descritos em 8 e 9, tendo em vista a formalização dos pagamentos, a Autora teria que celebrar um contrato com o Centro Regional da Segurança Social do Norte – resposta ao quesito 19.

39. A Autora passou os recibos referidos em 10 – resposta ao quesito 20[5].

40. Até à data a Autora nunca tinha emitido qualquer «recibo verde» ao Lar BB, nem ao Centro Regional da Segurança Social do Norte – resposta ao quesito 21.

41. No dia 02.01.1994, e tendo em vista a manutenção do exercício de funções de médica naquele Lar, a Autora celebrou um contrato designado «Contrato de Avença» com o então Centro Regional de Segurança Social do Norte, sob a tutela do então Ministério do Trabalho e da Segurança Social – resposta ao quesito 22.

42. A Autora assinou o «contrato de avença» referido em 12, sem ter recebido quaisquer quantias a título de cessação de «contrato de trabalho» – resposta ao quesito 23[6].

43. A partir do momento em que assinou aquele «contrato de avença», nunca mais recebeu subsídio de férias e de natal – resposta ao quesito 24.

44. Eliminado.

45. A Autora continuou a estar subordinada a uma disponibilidade absoluta em caso de urgência, fosse em que dia fosse, e a que horas fossem, continuou, também, a comunicar atempadamente as faltas e pedidos de troca destas pela sexta-feira que tinha livre, e ainda continuou a acordar com a Direção do Lar o período em que gostaria de gozar as suas férias, que seria autorizado ou alterado de acordo com a orgânica do Lar, à exceção dos anos de 2009 e 2010, em que a Autora passou a comunicar à enfermeira chefe do Lar, o período em que iria ficar de férias – resposta ao quesito 26.

46. Por volta do ano de 2007, foi colocado um sistema de portão automático de acesso ao recinto do Lar e a Direção do Lar BB entregou o comando à Autora a fim de esta poder aí estacionar o seu veículo – resposta ao quesito 27.

47. Após ter recebido a comunicação aludida em 15, a Autora ficou num profundo estado de ansiedade e de tristeza, provocando-lhe um estado depressivo – resposta ao quesito 28.

48. Face aos 28 anos ao serviço do Lar BB, a exercer a função de médica de clínica geral naquele local, já há muitos anos que a Autora tinha adquirido uma grande amizade e dedicação aos doentes/utentes, muitos deles em idade muito já avançada, e que eram por si cuidados desde há muito tempo – resposta ao quesito 29.

49. A falta de explicações e de palavras de reconhecimento pelo trabalho prestado levou-a a sentir uma grande infelicidade e uma forte ansiedade – resposta ao quesito 30.

50. O Réu deu-lhe apenas dois meses para abandonar o seu trabalho através de uma mera comunicação escrita – resposta ao quesito 31.

51. De tal forma que a Autora ficou tão abalada com aquela comunicação que nem sequer se conseguiu despedir pessoalmente de todas as pessoas do Lar BB – resposta ao quesito 32.

52. Ao mesmo tempo, a Autora ficou tão envergonhada pelo facto de ser dispensada, que nunca conseguiu dizer aos seus doentes/utentes que iria ter que os abandonar – resposta ao quesito 33.

53. Todo este sentimento de tristeza em vez de se ir atenuando, tem vindo a aumentar com o passar dos tempos, porquanto a Autora continua a ser contactada pelos utentes e familiares dos utentes do Lar BB – resposta ao quesito 34.

54. Soube que nos doentes/utentes do Lar paira um sentimento generalizado que foram abandonados pela Autora, ou seja, pensam que a Autora saiu do Lar porque já não «gostava deles» – resposta ao quesito 35.

55. Acresce que em outros doentes/utentes do Lar paira um sentimento de desconfiança, pese embora a amizade que a Autora sabia que lhe tinham, este sentimento de desconfiança traduz-se pura e simplesmente no seguinte: «Se a senhora Doutora foi despedida é porque lá fez alguma asneira!» – resposta ao quesito 36.

56. A Autora apostou de forma significativa a sua carreira profissional como médica ao serviço do Réu – resposta ao quesito 37.

57. A Autora soube, há relativamente pouco tempo, que o Lar BB não tem qualquer médico ao seu serviço, situação que se afigura muito grave, uma vez que os utentes/doentes de idade avançada são muito carentes de assistência médica permanente – resposta ao quesito 38.

58. Por esse motivo, a Autora vivencia um estado de permanente preocupação, ansiedade e impotência por aqueles a quem a Autora dedicou 28 anos da sua vida profissional – resposta ao quesito 29.

59. A contrapartida remuneratória paga à Autora era equivalente a metade do índice 100, uma vez que prestava os seus serviços apenas durante as tardes de 4 dias da semana – resposta ao quesito 40.

60. A Autora exercia e exerce funções de médica na PSP do Porto durante as manhãs – resposta ao quesito 41.

61. A Autora não estava obrigada a fazer registo de entrada e saída – resposta ao quesito 43[7].

62. A Autora exercia as suas funções de médica com autonomia técnica e em conformidade com os procedimentos médicos – resposta ao quesito 44.

63. A menção nos recibos de vencimento traduz um código existente para o tipo de contrato, sendo os primeiros 3 dígitos, 402, atribuídos às avenças – resposta ao quesito 47.

64. A Autora requereu à Segurança Social o seu enquadramento como trabalhadora independente – resposta ao quesito 48.

65. A Autora requereu às Finanças o seu enquadramento como trabalhadora independente – resposta ao quesito 49.

66. Eliminado[8].

67. Do contrato de avença referido em 12 consta o seguinte: “ – QUINTA – SUBSTITUIÇÃO EM CASO DE IMPEDIMENTO 1. O Segundo Outorgante obriga-‑se a fazer-se substituir por médico da sua confiança, quando, por motivo de força maior, não possa prestar os serviços objeto do presente contrato e daí não resulte qualquer encargo para o Primeiro Outorgante”.[9]»

2 – As instâncias divergiram relativamente ao sentido da decisão a dar ao litígio.

Assim na 1.ª instância a ação foi julgada procedente tendo-se, para além do mais declarado que «a Autora, em 1986, celebrou com o Réu um contrato de trabalho nulo» e que o «despedimento da Autora ocorrido em 31.12.2010 é ilícito, e em consequência» condenou-se o «Réu a pagar-lhe as retribuições que deixou de receber desde o seu despedimento até à data em que foi apresentada a contestação, sem prejuízo das deduções previstas no artigo 390º, nº 2, al. a) a c) do CT, acrescidas dos juros de mora calculados à taxa de 4% ao ano desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento, e cuja liquidação se relega para execução de sentença e uma indemnização fixada em 30 dias de retribuição base mensal ilíquida por cada ano completo ou fração de antiguidade, contabilizada desde o ano de admissão (1986) acrescida dos juros moratórios calculados à taxa de 4% ao ano desde o trânsito em julgado até efetivo pagamento».

Para além disso, condenou-se «ainda o Réu a pagar à Autora a quantia de € 56.425,60 relativa aos subsídios de férias e de natal acrescidos dos juros moratórios calculados à taxa de 4% ao ano desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento e uma indemnização de € 10.000,00 por danos não patrimoniais acrescida dos juros moratórios calculados desde o trânsito em julgado até pagamento, absolve-se do demais peticionado».

O Tribunal da Relação veio a decidir em sentido contrário a questão que lhe era submetida, materializada na natureza do vínculo que enquadrava a atividade prosseguida pela Autora ao serviço do Réu, considerando que [a matéria de facto é manifestamente insuficiente para se concluir pela existência de um contrato de trabalho, na medida em que apenas temos como factos indícios a retribuição auferida pela Autora e o recebimento, durante sete anos, de subsídios de férias e de natal, quando se provaram outros indícios, de sinal contrário, a saber: a Ré nunca obrigou a Autora a «picar o ponto», a Autora não estava obrigada a fazer registo de entrada e de saída – factos 37 e 61; a Autora requereu à Segurança Social e às Finanças a sua inscrição como trabalhadora independente – factos 64 e 65; a Autora assinou, em 02.01.1994, um contrato de avença com o Centro Regional de Segurança Social do Norte, ao abrigo do disposto nos nºs.3 e 7 do artigo 17º do DL nº 41/84 de 03.02 – facto 41; a Autora, com a celebração do contrato de avença, em 02.01.1994, deixou de receber subsídios de férias e de natal, situação que se manteve até à cessação das suas funções, ou seja, durante 16 anos – facto 43», pelo que julgou a apelação procedente, revogando a sentença recorrida, que substituiu «pelo presente acórdão e em consequência» julgou «a ação improcedente e de todos os pedidos se absolve[u] o Réu].

Esta decisão fundamentou-se no seguinte:

«O local de trabalho e os instrumentos de trabalho.

 Provou-se que: Competia à Autora consultar os utentes que residiam no Lar BB, avaliar a sua situação clínica e proceder ao seu tratamento, prescrevendo a respetiva medicação e tratamento. Para além de ali consultar e tratar os utentes, tinha também a seu cargo as consultas e diagnóstico da situação clínica dos candidatos a utentes do Lar. A Autora exerceu desde sempre tais funções precisamente no Lar BB, local que foi definido pela Direção do referido Lar para o respetivo exercício. Neste sentido foi-lhe atribuído um gabinete e uma secretária, papel timbrado e material de escritório, também todos os equipamentos necessários ao exercício da profissão da medicina de clínica geral, tais como aparelho medidor de tensão arterial, estetoscópio, luvas, entre outros tantos. Assim como as receitas médicas que a Autora passava para o levantamento dos medicamentos a serem utilizados pelos utentes do Lar BB, tinham o timbre do próprio Lar.

O local de trabalho – o Lar – e o equipamento fornecido pelo Réu não são, no caso concreto, elementos relevantes, tendo em conta as funções que a Autora exercia, de médica de clínica geral no Lar.

O horário de trabalho.

Provou-se que: A partir de 1986, a Autora trabalhava, de segunda-feira a quinta-feira, das 14 às 18 horas, com dispensa à sexta-feira, período esse que lhe foi determinado pela Direção do Lar BB. A Autora estava ainda obrigada a dar permanentemente assistência telefónica, ou a deslocar-se ao Lar BB, caso alguma urgência o ditasse, fosse num sábado, num domingo ou num feriado, durante a noite ou durante o dia, o que se verificou algumas vezes, ao longo destes quase 30 anos ao serviço do Lar BB. Já no que respeita à assistência telefónica, era tão constante que até houve um ano em que se encontrava em gozo de férias e não houve um único dia em que a Autora tivesse deixado de receber telefonemas do Lar. A Autora comunicava previamente qualquer necessidade de troca de dias de trabalho. Por vezes, também sucedida que a Autora apresentava-se ao serviço às 14 horas, consultava os utentes e caso não tivesse mais consultas naquela tarde, saía mais cedo. No entanto, permanecia sempre contactável e disponível para atender telefonemas do Lar ou para ali se deslocar novamente, caso houvesse necessidade. No caso de ter muitas consultas marcadas para aquela tarde – note-se que as consultas eram previamente marcadas pelas senhoras enfermeiras na agenda da Autora – esta ficaria para além das 18 horas, não deixando quaisquer utentes por consultar. Tudo dependia do estado de saúde dos residentes do Lar, do número de utentes para consultar e do número de candidatos a residentes para o Lar. A Ré nunca obrigou a Autora a «picar o ponto». A Autora continuou a estar subordinada a uma disponibilidade absoluta em caso de urgência, fosse em que dia fosse, e a que horas fossem, continuou, também, a comunicar atempadamente as faltas e pedidos de troca destas pela sexta-feira que tinha livre, e ainda continuou a acordar com a Direção do Lar o período em que gostaria de gozar as suas férias, que seria autorizado ou alterado de acordo com a orgânica do Lar, à exceção dos anos de 2009 e 2010, em que a Autora passou a comunicar à enfermeira chefe do Lar, o período em que iria ficar de férias. A Autora não estava obrigada a fazer registo de entrada e saída.

O período de trabalho da Autora estava relacionado, predominantemente, com as consultas a efetuar aos utentes do Lar, pelo que seria natural e compreensível que ela comparecesse a essas consultas, previamente marcadas. No entanto, provou-se, igualmente, que à Autora era permitido sair mais cedo se terminasse as consultas antes das 18 horas, assim como sairia para além das 18 horas se tal se mostrasse necessário. Ora, e tendo em conta que a pré/determinação de um horário de trabalho no âmbito de uma relação laboral obriga ao seu cumprimento integral, quer o trabalhador tenha muito ou pouco que fazer ou esteja por momentos «desocupado», é relevante a matéria constante do nº 33 da matéria de facto [Por vezes, também sucedida que a Autora apresentava-se ao serviço às 14 horas, consultava os utentes e caso não tivesse mais consultas naquela tarde, saía mais cedo] para concluirmos que o cumprimento de horário por parte da Autora não pode ser tido em conta para efeitos de indicação de subordinação jurídica.

Aliás, a «total disponibilidade» da Autora para acorrer a situações de emergência, fosse em que altura fosse, afasta igualmente a existência de um horário de trabalho tal qual ele é considerado para efeitos da existência de um contrato de trabalho, na medida em que tanto poderia sair antes das 18 horas como depois das 18 horas. Ou seja, o «horário» que a Autora cumpria tinha mais a ver com o número de consultas marcadas do que com a «obrigação» de permanecer no Lar independentemente de ter consultas, ou não.

As ordens recebidas pela Autora.

Provou-se que: Para o exercício do direito a gozo de férias, a Autora acordava com a Direção daquele Lar o período em que poderia gozar as suas férias e esta, tendo em conta a organização do serviço médico, podia conceder à Autora férias no período solicitado ou, então, concedê-las noutro período que achasse mais conveniente. A Autora antes de acordar as suas férias tentava sondar a Direção para averiguar do período mais oportuno para as gozar, em consonância também com as férias do outro médico psiquiatra que trabalhava no Lar BB, doutor DD, pelo que as mesmas eram normalmente concedidas nos moldes solicitados pela Autora. Uma vez estipulado o período de férias da Autora, a secretaria elaborava o mapa de férias. A Autora sempre comunicou as suas faltas ao serviço. A Autora comunicava previamente qualquer necessidade de troca de dias de trabalho. Apenas, por uma única vez, a Autora apresentou um atestado médico porque teve a necessidade impreterível de faltar 5 dias consecutivos em virtude de doença grave de um filho, que veio a falecer. A Autora continuou a estar subordinada a uma disponibilidade absoluta em caso de urgência, fosse em que dia fosse, e a que horas fossem, continuou, também, a comunicar atempadamente as faltas e pedidos de troca destas pela sexta-feira que tinha livre, e ainda continuou a acordar com a Direção do Lar o período em que gostaria de gozar as suas férias, que seria autorizado ou alterado de acordo com a orgânica do Lar, à exceção dos anos de 2009 e 2010, em que a Autora passou a comunicar à enfermeira chefe do Lar, o período em que iria ficar de férias. A Autora exercia as suas funções de médica com autonomia técnica e em conformidade com os procedimentos médicos.

Resulta da matéria de facto que a Autora tinha plena autonomia no que respeita à concreta execução das tarefas necessárias à sua atividade de médica de clínica geral no Lar. Não se provou que a Autora recebia ordens ou orientações do Réu ou até dos responsáveis do Lar para a execução das suas tarefas.

Relativamente ao gozo de férias a Autora observava determinadas regras, quais sejam, marcava as suas férias de acordo com as necessidades do Lar e em consonância com o outro médico do Lar.

Ora, a marcação de férias, no caso concreto, pode indiciar subordinação jurídica. No entanto, tal situação pode ocorrer igualmente no caso em que não existe contrato de trabalho, atendendo à especificidade das funções exercidas pela Autora [quer numa situação de contrato de trabalho, quer de prestação de serviços, o trabalhador/colaborador que presta funções de clínica geral, como é o caso da Autora, tem obrigatoriamente que comunicar ou acordar com a parte com que contratou o momento do gozo das suas férias tendo em conta que os serviços médicos que presta não se compadecem com a interrupção dos mesmos por força da sua ausência]. Acresce dizer que o facto da Autora comunicar as suas faltas ao serviço e avisar previamente da necessidade de troca de dias de trabalho – factos 30 e 31 – por si só não são indiciadores de subordinação jurídica atendendo, como já referido, à especificidade das funções exercidas pela Autora, até porque não está provado quais as consequências para a Autora se não procedesse à comunicação das faltas.

Cumpre ainda dizer que a matéria de facto constante do nº 67 [Do contrato de avença referido em 12 consta o seguinte: “ – QUINTA – SUBSTITUIÇÃO EM CASO DE IMPEDIMENTO 1. O Segundo Outorgante obriga-se a fazer-se substituir por médico da sua confiança, quando, por motivo de força maior, não possa prestar os serviços objeto do presente contrato e daí não resulte qualquer encargo para o Primeiro Outorgante”] não se mostra suficiente para concluirmos pela não execução da prestação «intuitu personae», por desacompanhada de outros elementos de facto, nomeadamente a de que a Autora fez-se, na realidade, substituir por outro colega.

A retribuição da Autora.

Provou-se que: Em 13.10.1999, por adenda ao então designado «contrato de avença», a Autora passou a auferir a quantia mensal certa no valor de 250.000$00, ficando, uma vez mais, concretamente estipulado que a Autora se obrigaria a «prestar os seus serviços», ou melhor, a trabalhar no Lar BB. A partir de 1986, foi fixada uma remuneração mensal certa ilíquida, num valor aproximado de 138.000$00, que era paga, em numerário, pelo Lar BB pela respetiva chefe da secretaria do Lar. A Autora não emitia qualquer recibo, nem recebia qualquer recibo de remunerações; apenas lhe era pedido pela Direção do Lar que apusesse a sua assinatura num livro que se encontrava na secretaria do Lar destinado a receber essas assinaturas a título de comprovativo do recebimento das quantias auferidas. Desde 1986 até ao ano de 1993, inclusive e ininterruptamente, a Autora auferiu subsídio de férias e subsídio de natal, assinando num livro existente na secretaria do Lar para comprovar os recebimentos dessas quantias em numerário. A Autora assinou o «contrato de avença» referido em 12, sem ter recebido quaisquer quantias a título de cessação de «contrato de trabalho». A partir do momento em que assinou aquele «contrato de avença», nunca mais recebeu subsídio de férias e de natal.

A factualidade provada indicia a existência de um contrato de trabalho tendo em conta que a Autora auferia uma retribuição certa, tendo inclusivamente auferido, durante um certo período de tempo, subsídios de férias e de natal.»

III

1 − A relação cuja caracterização constitui objeto do presente processo iniciou-se em 1982, na vigência do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de novembro de 1969, vindo a cessar já na vigência do Código de Trabalho de 2009.

Uma vez que a Autora pretende exercer direitos que se prendem com a constituição dessa relação jurídica e que a mesma não sofreu alterações de relevo durante a sua vigência, o presente litígio deve ser resolvido à luz daquele Regime Jurídico, não sendo aplicável o Código de Trabalho em vigor, nem o Código de 2003, entrado em vigor no dia 1 de dezembro deste ano, por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil.

O contrato de trabalho é definido no artigo 1152.º do Código Civil como «aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob autoridade e direção desta».

Por sua vez o contrato de prestação de serviço, de acordo com o disposto no artigo 1154.º do mesmo código, é aquele em que uma pessoa «se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição».

A noção de contrato de trabalho consagrada naquele artigo foi retomada no artigo 1.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de novembro de 1969, mantendo-se nos seus aspetos essenciais no artigo 10.º do Código de Trabalho de 2003, ou no artigo 11.º do Código do Trabalho de 2009.

Existe uma evidente proximidade entre estes contratos encontrando-se na existência da subordinação jurídica o elemento estruturante na delimitação entre os dois.

O contrato de trabalho caracteriza-se, fundamentalmente, pela dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face ao outro contraente, a entidade empregadora, em face da qual o trabalhador fica sujeito às ordens daquela, relativamente aos termos da prestação do seu trabalho e ao respetivo poder disciplinar.

A conformação dos termos da prestação de trabalho tem um dos vetores no poder de direção da entidade empregadora e outro no dever de obediência à disciplina que enquadra essa prestação, decorrente do exercício daquele poder e a que o trabalhador se encontra sujeito.

Importa, contudo, ter presente, como refere MARIA DO ROSÁRIO DA PALMA RAMALHO, que «o reconhecimento tradicional do poder diretivo como critério qualificativo por excelência do contrato de trabalho, enquanto reverso da subordinação do trabalhador, merece ser reponderado, porque corresponde a uma visão excessivamente estreita da própria subordinação e porque o poder de direção é pouco saliente como marca distintiva do contrato de trabalho»[10] e conclui aquela autora pronunciando-se «pela inaptidão do poder de direção para, por si só, poder operar a qualificação do contrato de trabalho», referindo que «sem negar a importância deste poder no contrato, forçoso é reconhecer que tal importância decorre não tanto de uma diferença qualitativa como de uma diferença de intensidade, em razão da maior indeterminação da prestação laboral (…) e do caráter continuado do vínculo»[11].

Por outro lado, na prestação de serviço não existe esta subordinação, tendo o trabalhador autonomia relativamente aos termos da execução do trabalho, ficando, contudo, vinculado ao resultado da atividade prosseguida.

A aparente simplicidade desta delimitação é muitas vezes confrontada com situações de fronteira onde existem elementos que apontam para uma situação de trabalho subordinado, ao lado de outros típicos da autonomia da atividade que caracteriza a mera prestação de serviço.

Conforme se referiu no acórdão desta secção, de 9 de fevereiro de 2012, proferido na revista n.º 2178/07.3TTLSB.L1.S1[12], «nos casos limite, a doutrina e a jurisprudência aceitam a necessidade de fazer intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a atividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da atividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da atividade, existência de controlo externo do modo de prestação da atividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa) e indícios negociais externos (o número de beneficiários a quem a atividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da atividade, a inscrição do prestador da atividade na Segurança Social e a sua sindicalização)».

Importa igualmente ter presente que, conforme refere MONTEIRO FERNANDES, «cada um destes elementos, tomado de per si, reveste-se de patente relatividade», pelo que «o juízo a fazer (…) é ainda e sempre um juízo de globalidade, conduzindo a uma representação sintética da tessitura jurídica da situação concreta», não existindo «nenhuma fórmula que pré-determine o doseamento necessário dos índices de subordinação, desde logo porque cada um desses índices pode assumir um valor significante muito diverso de caso para caso»[13].

Torna-se, pois, necessária uma ponderação global dos elementos indiciários constatados, tentando encontrar o sentido dominante dos mesmos, procurando encontrar uma maior ou menor correspondência dessa dimensão global com o conceito-tipo de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviço.

Por outro lado, «a conclusão no sentido da existência de subordinação jurídica, a partir dos indícios de subordinação indicados, e a consequente qualificação laboral do contrato deve (…) ser rodeada das cautelas normalmente exigidas pela aplicação de um método indiciário à qualificação de um negócio jurídico, deve ainda ter especial atenção à evolução moderna do contrato de trabalho enquanto tipo negocial e, por fim, não deve conduzir a um resultado qualificativo contrário à vontade real das partes na conclusão do negócio».[14]

2 – Insurge-se a recorrente contra a decisão recorrida centralizando a sua discordância na ponderação que ali foi feita dos elementos que poderiam indiciar a existência de uma relação de trabalho subordinado.

Refere, com efeito, em síntese, que «designadamente, ao local e instrumentos de trabalho, à definição e âmbito das funções da Recorrente - médica de clínica geral, (…), horário laboral fixado pela Direção do Lar, disponibilidade exigida à Autora em conexão com a fixação deste horário, remuneração mensal certa ilíquida e forma de pagamento e recebimento da mesma, pagamento de forma sucessiva e ininterrupta à Autora pela Ré de subsídios de férias e de Natal e bem assim o pagamento das respetivas férias, forma de marcação das consultas (efetuada pela Enfermeira Chefe) não lhe estando permitido pela Ré adiar consultas ou marcá-las segundo a sua conveniência pessoal, regras quanto à marcação de férias dependentes da vontade da Direção do Lar e inclusão da Autora no mapa de férias do pessoal, obrigatoriedade de comunicar ausências, de comunicar previamente qualquer necessidade de troca de dias de trabalho e obrigatoriedade de apresentação de atestado médico para justificar as suas faltas, que demonstram a completa inserção da Autora na estrutura organizativa da Ré e as relações de subordinação existentes» e que «sempre foi designada por empregada, recebendo conforme talão de remuneração e depois como Funcionária, conforme recibo de vencimento, aderindo tal denominação à execução contratual concreta que era implementada pela Autora».

Na decisão recorrida considerou-se que os elementos resultantes do local de trabalho e dos instrumentos de trabalho não eram relevantes na caracterização da relação existente, atentas as funções atribuídas à Autora.

Dir-se-á que não merece qualquer censura este segmento daquela decisão.

Na verdade, a Autora disponibiliza-se para prestar a sua atividade de médica num lar de idosos, pelo que a definição do local de prestação dessa atividade pelo responsável pela gestão desse estabelecimento está intimamente ligada ao local onde os doentes residem – o lar, carecendo de sentido que se especulasse com qualquer outra solução.

Do mesmo modo, na atividade médica prosseguida – consultas -, o relevo dos instrumentos de trabalho fornecidos pela instituição, como elementos de caracterização da relação existente entre o prestador e o destinatário da atividade prestada, não tem relevo significativo.

Além disso, os elementos decorrentes da matéria de facto dada como provada no que se refere à duração da prestação dessa atividade, não permitem afirmar que a Autora estivesse sujeita a um horário de trabalho, tal como se concluiu na decisão recorrida.

De facto, a existência de um espaço temporal previamente definido em que a Autora teria de se deslocar ao estabelecimento para desempenhar a sua atividade, decorre da organização do dia a dia do próprio estabelecimento e não da necessidade de disponibilização da capacidade de trabalho da Autora para o prestar ao estabelecimento naquele período de tempo.

Por outro lado, tal como se considerou na decisão recorrida «provou-se, igualmente, que à Autora era permitido sair mais cedo se terminasse as consultas antes das 18 horas, assim como sairia para além das 18 horas se tal se mostrasse necessário» e que «[Por vezes, também sucedida que a Autora apresentava-se ao serviço às 14 horas, consultava os utentes e caso não tivesse mais consultas naquela tarde, saía mais cedo] para concluirmos que o cumprimento de horário por parte da Autora não pode ser tido em conta para efeitos de indicação de subordinação jurídica».

Decorre destes factos que embora a Autora tivesse de prestar a sua atividade num período de tempo previamente definido em que ocorreriam as consultas, tal definição não implicava a disponibilização da Autora para prosseguir a sua atividade nesse período de tempo, permitindo apenas definir o espaço diário em que as consultas ocorreriam.

E prosseguiu-se naquela decisão afirmando que a «total disponibilidade» da Autora para acorrer a situações de emergência, fosse em que altura fosse, afasta igualmente a existência de um horário de trabalho tal qual ele é considerado para efeitos da existência de um contrato de trabalho, na medida em que tanto poderia sair antes das 18 horas como depois das 18 horas. Ou seja, o «horário» que a Autora cumpria tinha mais a ver com o número de consultas marcadas do que com a «obrigação» de permanecer no Lar independentemente de ter consultas, ou não».

Também neste segmento não merece a decisão recorrida qualquer censura, uma vez que os factos dados como provados não permitem afirmar que estivesse sujeita a um horário de trabalho propriamente dito.

Destaca ainda a recorrente que se encontrava inserida na estrutura organizativa da Ré, que recebia ordens e instruções da mesma, a vários níveis, e que estava sujeita na marcação das férias às necessidades do Lar e dependente da vontade da direção deste.

Da matéria de facto dada como provada não resulta que a Autora recebesse ordens da Ré relativamente ao desempenho da sua atividade.

Por outro lado, resulta da matéria de facto dada como provada que «para o exercício do direito a gozo de férias, a Autora acordava com a Direção daquele Lar o período em que poderia gozar as suas férias e esta, tendo em conta a organização do serviço médico, podia conceder à Autora férias no período solicitado ou, então, concedê-las noutro período que achasse mais conveniente» e que «a Autora antes de acordar as suas férias tentava sondar a Direção para averiguar do período mais oportuno para as gozar, em consonância também com as férias do outro médico psiquiatra que trabalhava no Lar BB, doutor DD, pelo que as mesmas eram normalmente concedidas nos moldes solicitados pela Autora».

Resulta ainda da matéria de facto dada como provada que «a Autora continuou a estar subordinada a uma disponibilidade absoluta em caso de urgência, fosse em que dia fosse, e a que horas fossem, continuou, também, a comunicar atempadamente as faltas e pedidos de troca destas pela sexta-feira que tinha livre, e ainda continuou a acordar com a Direção do Lar o período em que gostaria de gozar as suas férias, que seria autorizado ou alterado de acordo com a orgânica do Lar, à exceção dos anos de 2009 e 2010, em que a Autora passou a comunicar à enfermeira chefe do Lar, o período em que iria ficar de férias».

A necessidade de articulação do período de ausência do serviço, a título de férias, numa atividade como a prosseguida pela Autora teria necessariamente que ser definida pela instituição destinatária dos seus serviços, uma vez que sempre haveria que garantir a assistência médica aos residentes no lar durante aqueles períodos.

Tal necessidade de articulação é compatível tanto com as situações de trabalho subordinado como com as situações de trabalho não subordinado.

Por outro lado, os elementos decorrentes da matéria de facto não permitem afirmar que a Autora estivesse integrada na estrutura organizativa da Ré, como um dos seus elementos.

De facto, a Autora desempenhava uma atividade relevante para o funcionamento da instituição, mas não como elemento integrante da mesma.

Trata-se de facto de um elemento externo que ali ocorre para o desempenho dessa atividade, não existindo elementos bastantes para que se possa considerar enquadrada naquela instituição.

É essa realidade que dá sentido ao facto dado como provado no sentido de que a Autora se podia fazer substituir, o que seria incompatível com a inserção na referida estrutura.

Na verdade provou-se que «do contrato de avença referido em 12 consta o seguinte: “ – QUINTA – SUBSTITUIÇÃO EM CASO DE IMPEDIMENTO 1. O Segundo Outorgante obriga-se a fazer-se substituir por médico da sua confiança, quando, por motivo de força maior, não possa prestar os serviços objeto do presente contrato e daí não resulte qualquer encargo para o Primeiro Outorgante».

Esta faculdade de substituição é manifestamente incompatível com a pretensão da recorrente de que se mostrava integrada na estritura organizativa da Ré.

3 – Da matéria de facto resultam ainda outros elementos relevantes relativamente à caracterização da relação que existiu entre a Autora e o Réu, nomeadamente, o facto de a Autora gozar férias pagas e de ter auferido subsídio de férias e de Natal entre 1986 e 1993 e de os seus serviços serem pagos em quantitativo mensal fixo, quer antes da celebração do contrato de avença com o Centro Regional de Segurança Social, referido nos pontos n.º 9 a 13 da matéria de facto dada como provada, quer depois.

No entanto, a existência de uma retribuição mensal de quantitativo fixo, como um elemento indiciador de uma relação de trabalho subordinado, a ponderar no contexto global do conjunto de elementos decorrentes da matéria de facto dada como provada não é incompatível com as situações em que não existe subordinação jurídica no desempenho da atividade prosseguida.

Por outro lado, resulta da matéria de facto dada como provada que a Autora em 1993, depois prestar o seu serviço ao lar desde 1986, sendo remunerada nas condições que resultam do ponto n.º 25, passou a ser remunerada diretamente pelo Centro Regional de Segurança Social, com o qual assinou o contrato de avença acima referido.

Na sequência deste contrato, tal como resulta da matéria de facto, ocorreram vários factos relevantes para a caracterização da relação existente entre a Autora e o Réu.

Na verdade, a Autora passou a titular os quantitativos que auferia mensalmente com recibos verdes, requereu à Segurança Social e às Finanças o seu enquadramento como trabalhadora independente e nunca mais recebeu subsídios de férias e de Natal.

Sobre esses factos entende a recorrente que «a categorização das situações não resulta do que lhes chama (nomen juris), mas sim do que resulta do seu conteúdo material/útil. E na presença de um contrato escrito, havendo contradição ou fundada dúvida entre o acordado e o realmente executado, prevalece a qualificação jurídica que resulta do conteúdo/execução efetiva do negócio»

E realça que como demonstrado ficou «(…) o contrato de avença e, depois, a sua Adenda, não estavam, nem de perto, nem de longe, conformes ou em sintonia com a execução do contrato por parte da Autora e, desde logo, quanto aos pressupostos de celebração de um contrato de avença».

Este Supremo Tribunal de Justiça vem mantendo, de uma forma praticamente unânime, a respeito do nomen iuris, atribuído pelas partes ao contrato o seguinte entendimento:

«Importa atender ao nomen iuris que as partes deram ao contrato e ao teor das respetivas cláusulas, o que, não sendo decisivo, não deixa de assumir especial relevo, uma vez que se trata de um documento em que as partes expressaram a sua vontade negocial, vontade essa que não poderá deixar de assumir relevância decisiva na qualificação do contrato, salvo nos casos em que a matéria de facto provada permita concluir, com razoável certeza, que outra foi realmente a vontade negocial que esteve subjacente à execução do contrato»[15].

Ou, «quando o contrato tiver sido reduzido a escrito, como no caso agora em apreço aconteceu, não só o nomem juris que as partes lhe deram, como, sobretudo, as próprias cláusulas assumem-se como indícios para a qualificação do contrato, pois, embora sem serem decisivos para a qualificação deste – uma vez que o que releva, para esse efeito, não é a designação escolhida pelas partes nem os termos em que foi redigido, mas sim os termos em que o mesmo foi executado –, assumem importância para ajuizar da vontade das partes no que toca ao regime jurídico que elegeram para regular a relação, sobretudo se os outorgantes forem pessoas instruídas e esclarecidas»[16].

Os termos resultantes do contrato de fls. 41 e ss. dos autos evidenciam a celebração de um negócio jurídico bilateral, sinalagmático, nominado - «contrato avença» -, celebrado, por nada indiciar o contrário, dentro da liberdade contratual de cada uma das partes.

Reconhecendo-se, como é suposto dever-se reconhecer que o Estado pauta a sua conduta como pessoa de bem, nada contraria tal asserção, visto a celebração levada a efeito com subordinação objetiva, imediata e prática ao princípio da legalidade.

Por outro lado, não é de suspeitar sequer uma menor capacidade de compreensão do exato alcance do contrato celebrado por parte da A./Recorrente, médica, quando assumiu a obrigação da prestação de serviços de médica de clínica geral e quando acordou que «o presente contrato não confere ao segundo outorgante a qualidade de agente do Estado, não cria qualquer vínculo, nem lhe confere quaisquer direitos ou regalias inerentes à função pública» e quando em conformidade com o teor desse contrato não formulou quaisquer exigências no que se refere ao pagamento de subsídio de férias e de Natal.

Para além destes elementos relevantes para a caracterização da relação da Autora com o Réu, resulta da matéria de facto dada como provada que «a Autora exercia e exerce funções de médica na PSP do Porto durante as manhãs», facto que permite afirmar que não existia exclusividade na prestação de funções por parte da Autora ao Réu.

4 - Cumpre, pois, fazer uma ponderação global do conjunto de elementos indiciários constatados, tentando encontrar o sentido dominante dos mesmos, procurando encontrar uma maior ou menor correspondência dessa dimensão global com o conceito-tipo de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviço.

À luz desses elementos é manifesto que o relevo dos indícios relativos à existência de uma situação de trabalho subordinado é muito menor do que aqueles que apontam para uma situação autonomia no desempenho da atividade da Autora.

A este nível têm algum relevo a forma de pagamento dos serviços prestados, mensal e certa, e o pagamento de subsídio de férias e de Natal, no período anterior à assinatura do contrato de avença.

Aqueles indícios são muito menos expressivos dos que os que apontam para uma situação de prestação de serviço, centralizados na inexistência de um horário de trabalho, numa situação de não exclusividade, no contrato de avença, no não pagamento de férias subsídio de férias e de Natal, no período posterior a 1993, na inscrição na Segurança Social e nas Finanças como trabalhadora autónoma e na emissão de recibos verdes.

Na verdade, o peso e o relevo dos elementos recolhidos que apontam para a existência de uma relação de trabalho subordinado é menos intenso do que o dos que apontam em sentido contrário.

Incumbia à Autora, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, fazer prova dos factos que integrassem a subordinação jurídica que é elemento integrante do contrato de trabalho, o que não fez.

IV

Pelo exposto, decide-se negar a revista interposta pela Autora e confirmar a decisão recorrida.

As custas da revista ficam a cargo da Autora.

Junta-se sumário do acórdão.

Lisboa, 12 de novembro de 2015

António Leones Dantas (relator)

Melo Lima

Mário Belo Morgado

____________________
[1] Redação introduzida pela decisão recorrida. A redação original era a seguinte: - «21. A partir de 1986, a Autora estava sujeita a um horário de trabalho, de segunda-feira a quinta-feira, das 14 às 18 horas, com dispensa à sexta-feira, horário esse que lhe foi determinado pela Direção do Lar BB – resposta ao quesito 2.
[2] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era a seguinte: «22. A Autora estava ainda obrigada a dar permanentemente assistência telefónica mesmo fora do seu horário de trabalho, ou a deslocar-se ao Lar BB, caso alguma urgência o ditasse, fosse num sábado, num domingo ou num feriado, durante a noite ou durante o dia, o que se verificou algumas vezes, ao longo destes quase 30 anos ao serviço do Lar BB – resposta ao quesito 3.
[3] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era a seguinte: «35. No caso de ter muitas consultas marcadas para aquela tarde – note-se que as consultas eram previamente marcadas pelas senhoras enfermeiras na agenda da Autora – esta ficaria para além das 18 horas, não deixando, como seria de esperar, quaisquer utentes por consultar – resposta ao quesito 16.»
[4] Redação introduzida pela decisão recorrida. A redação original era a seguinte: «37. A Ré nunca obrigou a Autora a «picar o ponto», o que não se coadunaria com a prática atrás descrita – resposta ao quesito 18.
[5] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era a seguinte: «39. Embora surpreendida com o pedido mencionado em 9, e sem compreender muto bem tais alterações, mas pensando tratar-se de mero pormenor burocrático, a Autora passou os recibos referidos em 10 – resposta ao quesito 20.
[6] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era a seguinte: «42. A Autora assinou o «contrato de avença» referido em 12, sem ter recebido quaisquer quantias devidas a título de cessação do seu «contrato de trabalho» – resposta ao quesito 23».
[7] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era do seguinte teor: «61. Atendendo a que a Autora está disponível para se deslocar ao Lar mesmo fora do horário supra indicado, não estava obrigada a fazer registo de entrada e saída – resposta ao quesito 43.»
[8] Eliminado pela decisão recorrida. A redação original era do seguinte teor: 66. A carta de folhas 125 através da qual a Autora solicita ao Comandante da PSP do Porto a autorização para acumulação de funções pública e privada foi redigida segundo minuta fornecida pelos serviços do secretariado do Lar BB, ficando ciente que se tratava de mera formalidade necessária à manutenção do seu vínculo com o Réu – resposta ao quesito 50.»
[9] Aditado pela decisão recorrida.
[10] Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 2009, p. 54.
[11] Obra citada, p. 56
[12] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[13] Direito do Trabalho, 14.ª Edição, 2009, Almedina, p. 149.
[14] MARIA DO ROSÁRIO DA PALMA RAMALHO, Obra citada, p. 44.
[15] Acórdão de 10 de novembro de 2010, proferido na revista n.º 3074/07.0TTLSB.L1.S1, disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[16] Acórdão de 8 de outubro de 2008, proferido no processo n.º 1328/08, disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI com o n.º 08S1328.